Vírus é resposta, embora brutal, à nossa pretensão, uma chamada de atenção aos limites de nossa íntima convivência
Não pensem que um dia a gente volta ao normal. Não é só que o vírus ainda pode matar muita gente, não sei quantos. Mas é que o mundo já não é mais o mesmo, e nunca mais será. Tudo muda tão depressa, diante de nossos olhos. O que aprendemos de manhã, já não serve para o fim da tarde. A cada momento, o vento sopra de um modo diferente para nos dizer o que se passa mais adiante ou um pouco atrás de nós.
Esse tempo do vírus é um tempo de desgraças, não é pra gente comemorar nada. Só um louco ou um ignorante pode preferir isso ou aquilo, no meio da incontrolável tempestade. Nós temos é que ficar atentos, vigiar a direção para onde o barco vai, depois que ela passar.
Levamos a vida provocando a Natureza, como se ela tivesse que nos obedecer e se manter sob nosso controle para sempre, agora que sabemos quase tudo dela. O vírus é uma resposta, embora brutal, à nossa pretensão, uma chamada de atenção aos limites de nossa íntima convivência. Como foram no passado a peste na Guerra do Peloponeso, a Negra no fim da Idade Média, a Gripe Espanhola na Primeira Guerra Mundial. É como se a Natureza, com muita sofisticação apesar da brutalidade, estivesse nos dizendo que fomos longe demais.
Bertrand Russel nos disse que “o amor é sábio e o ódio é tolo”. Mas nós, há tanto tempo, tentamos construir um mundo baseado na tolice do ódio, contra os semelhantes que sempre julgamos mais frágeis e talvez inferiores. Invisíveis eram as famílias moradoras de favelas, elas podiam ser substituídas de pronto em nossos serviços, tipo varejo ou mão de obra. Agora que o vírus ameaça maltratar preferencialmente essas populações, indefesas porque ignoradas, clamamos contra a hipótese e assustados pedimos socorro. Porque não podemos ficar sem seu papel, já milenar, de justificar por inércia nossos privilégios, nosso conforto pessoal. Com a pandemia se alastrando, os políticos procuram proteger a quem representam, fazendo sobreviver os que nos servem. Ao contrário do que podíamos supor, os invisíveis se tornam visíveis para seguirem servindo os mesmos, nos novos tempos.
E ainda nos dizem para evitar a “politização do vírus”. Está bem, não temos que politizar o vírus para defender ou atacar mandatos e candidaturas, não temos que nomear heróis, graças à maldade do vírus. Mas como podemos saber quem nos faz bem e quem nos faz mal, se não podemos politizar o evento? A ialorixá e educadora Wanda d’Omolú, em recente entrevista ao GLOBO, nos iluminou com a declaração de que “a Terra está passando por uma limpeza” e que “daqui a pouco, ela estará limpa e nós teremos oportunidade de fazer diferente”. Portanto, diz ela, “não podemos voltar ao normal, porque o normal era justamente o problema”.
O normal era países em guerra permanente, uns sufocando os outros; era a divisão do mundo entre uma esquerda e uma direita que, tirando muito pouco, era tudo a mesma coisa; era a superioridade da abstração religiosa de uma ideologia sobre a realidade; a exploração do trabalho, sem reconhecimento ou recompensa; a imensa desigualdade social e o racismo, que quase sempre a justifica; o julgamento do sonho, como uma negação do mundo real em que queremos viver. Tudo isso que faz da humanidade um projeto tão bonito, que ainda não deu certo. Não posso achar que voltar a esse normal seja um avanço, uma vitória da felicidade que buscamos durante a vida inteira.
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Em 30 de março, o Sinditelebrasil, sindicato das empresas de telecomunicações, pediu e conseguiu, junto ao Tribunal Regional da 1ª Região, uma decisão liminar que suspende o recolhimento da Condecine pelas empresas do setor. A Condecine é uma taxa devida por essas empresas, para o desenvolvimento do audiovisual brasileiro, responsável por 80% do orçamento do Fundo Setorial do Audiovisual (FSA). Como todo mundo sabe, Condecine e FSA são responsáveis pela existência atual de nosso cinema. Sem eles, em breve, não existirão mais filmes brasileiros de qualquer natureza.
Já as empresas de telecomunicações no Brasil nunca ganharam tanto dinheiro como agora. Sobretudo depois de declarado o justíssimo isolamento social, a quarentena que nos faz usar, muito mais vezes ao dia, nossos telefones e outros meios de comunicação. O crescimento do faturamento dessas empresas, nesse período, é de 300% .
As teles alegam à Justiça que, nesse momento de crise, seus lucros devem ser preservados como garantia de “manutenção de empregos”. Que tal comparar esses riscos com os de produtores, distribuidores e exibidores brasileiros, com a totalidade de salas de cinema no Brasil fechadas por causa dessa mesma crise? Está aí um bom exemplo do tal “normal” a que eles querem sempre voltar.