Cacá Diegues: Indispensável Fênix

Mesmo que tentem nos impedir de fazer os filmes que desejamos fazer, o cinema brasileiro não vai acabar nunca.
Foto: Reprodução/Youtube
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Mesmo que tentem nos impedir de fazer os filmes que desejamos fazer, o cinema brasileiro não vai acabar nunca

O Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, cuja 52ª versão acaba de se encerrar, é o mais antigo do país. Vi-o nascer e participei de sua inauguração com meu segundo longa-metragem, “A grande cidade”, em 1967. O festival tinha sido criado como um foco de resistência cultural à ditadura que então se instalava no Brasil. Uma ideia de Paulo Emílio Salles Gomes e da turma da Universidade de Brasília, o festival se tornaria, ao longo dos anos, uma plataforma de difusão e reconhecimento do moderno cinema brasileiro.

Hoje, mais de 30 anos depois do fim da ditadura, vivemos no Brasil a ameaça de um novo tempo de intolerância e barbárie. O presidente nomeado da Fundação Palmares diz que que a escravidão foi benéfica para os negros. O da Funarte declara que Elvis Presley e os Beatles planejavam implantar o comunismo no Ocidente. E o da Biblioteca Nacional garante que Caetano Veloso e Renato Russo são responsáveis pelo analfabetismo no Brasil. E ainda temos o ministro da Educação, a afirmar que nossas universidades são uma balbúrdia, que se dedicam à plantação de maconha.

O cinema tem sido alvo preferencial dessa insensatez, nos levando a um dramático paradoxo — vivemos o melhor momento da história do cinema brasileiro, produzindo cerca de 170 filmes no ano passado, com prêmios e sucessos no Brasil e no exterior, enquanto somos ameaçados de extinção pelo poder público nacional que nos quer ver pelas costas.

Não nos deixam outra saída senão a de uma oposição positiva, ativa e criativa, através de nossos filmes e de nossa militância. Uma oposição democrática, pois a democracia é a base, o princípio e o argumento de tudo o que devemos pensar e fazer. Os que foram eleitos como representantes do povo precisam respeitar a vontade do povo que os elegeu e quer ver nossos filmes.

Na abertura do Festival de Brasília, cuja seleção oficial foi tão respeitosa com nossa diversidade, assistimos a dois exemplos lamentáveis de prática antidemocrática. Um cineasta lia, no palco, um documento de protesto contra atitude do poder público local, quando um segurança lhe arrancou o documento das mãos. De certo modo, o próprio público do festival havia inspirado esse gesto de intolerância autoritária quando, no início da cerimônia, não deixara um representante do governo falar, sufocando sua voz com vaias e gritos, não permitindo que ela fosse ouvida. Numa democracia de verdade, estar com a razão não autoriza ninguém a censurar a voz do outro, daqueles que não concordam conosco. Se agirmos do mesmo modo que eles, como poderemos afirmar a diferença entre eles e nós?

Através de porrada ou de inércia estratégica, o governo sonha em acabar com o cinema brasileiro que o incomoda tanto. O que eles precisam saber é que mesmo que nos tirem todos os recursos a que temos direito, que sufoquem nossos meios de produção, que nos ameacem com censura e filtros, que tentem nos impedir de fazer os filmes que desejamos fazer, o cinema brasileiro não vai acabar nunca.

O regime ditatorial após 1964, de um jeito, e o governo Fernando Collor, de outro, cederam a essa sombria tentação. Durante a ditadura, fomos vítimas de censura cega e radical, que mandava cortar cenas de nossos filmes ou simplesmente os interditava. No governo Collor, o primeiro eleito pelo voto direto da população, por puro rancor deram um fim à Embrafilme, responsável pela maioria de nossos filmes. Gerida pelo Estado, a Embrafilme chegara a ser a terceira distribuidora do continente, incluídas as majors americanas. Tanto uma, quanto o outro fracassaram pois, no tempo, não conseguiram acabar com nosso cinema. Ele ressurgiu sempre de um outro modo, como uma fênix necessária, indispensável. É que os filmes são um retrato da alma de um povo que se reconhece neles, para se conhecer melhor.

Dos oito filmes na seleção oficial do Festival de Brasília, apenas dois eram dirigidos por cineastas veteranos. Os outros foram realizados por jovens vindos do Rio de Janeiro, São Paulo, Paraná, Mato Grosso, Pará, sei lá mais de onde. E cada um era cada um; nenhum se parecia, nem um pouco, com o outro.

Pode-se criar uma crise financeira de produção. Pode-se enchê-lo de outras muitas dificuldades. Mas ninguém nunca vai conseguir acabar com o cinema brasileiro. Nunca.

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