Não se pode ignorar o espetáculo na TV de Lirinha, músico pernambucano, filmado pela atriz Bárbara Paz
Houve um momento, na segunda metade do século passado, em que a cultura popular brasileira adquiriu tal força de expressão que se tornou a representação mais generosa do que era e do que podia ser o país. Ela não só representava com brilho e pertinência o que aqui se passava, como também se tornou fundadora de novos costumes capazes de nos organizar como nação. A chama incendiou os mais variados formatos de criação, da música ao cinema, das artes plásticas ao teatro, da poesia à ficção, passando pela recuperação de tradições esquecidas que foram reordenadas pela televisão com enorme sucesso. Cada uma dessas manifestações se julgava, naquele momento, o útero de uma nova nação.
De tal modo essa ideia se instalou vitoriosa entre nós, que os sucessivos fracassos políticos, econômicos e sociais dos governos de direita ou de esquerda passavam despercebidos, encobertos pelo que era, para intelectuais e artistas criadores, o “verdadeiro Brasil”. Só muito recentemente nos demos conta dos enganos que os políticos nos fizeram abraçar, em nome de conceitos que não se traduziam, na prática, em bem-estar, justiça e progresso para todos. Éramos prisioneiros da distância ilusionista entre povo e nação.
Não digo que isso esteja mudando. Digo apenas que outro horizonte se forma aos poucos diante de nós, apesar da oposição do governo às manifestações de uma oposição ao governo.
Não se pode ignorar o recente espetáculo na televisão de Lirinha, músico pernambucano, filmado pela atriz e realizadora paulistana Bárbara Paz, na Casa de Francisca, em São Paulo, idealizada por Rubens Amatto, também criador do projeto de “cine lives” (cinema ao vivo, segundo Amatto). O espetáculo contou ainda com a curadoria cinematográfica de Laís Bodanzky e a direção de fotografia de Thais Taverna.
Com o título de “Até o fim, cantar”, Lirinha montou um dos mais belos e intensos espetáculos que se viram ultimamente por aqui. “Perseguido” pela câmera orgânica de Bárbara Paz, vestido numa batina que lhe sobra no corpo, como se um santo e folgado cardeal passeasse pelo carnaval, Lirinha mistura canções, textos e gestos teatrais para nos falar do que sente e pressente, sabendo o que aquilo tudo tem a ver conosco, os que assistimos ao show.
Conheci Lirinha quando ele ainda era a voz do Cordel do Fogo Encantado, banda de Arcoverde, portal do sertão pernambucano. Criei uma cena para eles e chamei-os para uma participação especial em “Deus é brasileiro”, filme que eu então rodava no Nordeste. Lirinha musicou um monólogo de Antonio Fagundes, de modo tão belo, preciso e sucinto que, durante a edição do filme, pensei várias vezes em cortar fora a maravilhosa atuação de Fagundes. Só não o fiz porque Deus ficaria sem voz na cena.
Agora, reencontro Lirinha em forma, maduro e consequente, um sorriso no canto dos lábios quando nos diz, logo de cara: “A nossa sorte é ter coragem”. E ir em frente, acompanhado por pequena banda que vai de pífano nordestino a programação eletrônica. É emocionante vê-lo, no meio desse aparato tão simples e sofisticado, dizer que o lugar onde nasceu é “um rasgo na paisagem”. Tudo isso no ritmo do Brasil de hoje, um país dividido em tanta desigualdade, de todo gênero e natureza. A diferença é que, no passado do século passado, nós queríamos, sem saber que queríamos, que o conjunto de nossas obras substituísse a nação. Hoje, é apenas o mais profundo de um ser humano que nos revela, com tanta densidade, o que vê diante e dentro dele.
Mesmo sentimento que nos provoca um filme como “Breve miragem de sol”, realizado por Eryk Rocha, um de nossos mais brilhantes novos cineastas. Este é um filme sobre dois personagens, bem integrados: um motorista de táxi (empenhado em encontrar o filho pequeno de quem vive separado) e a cidade (por onde ele roda, como quase todos nós, sem destino próprio). Duas imensas e permanentes solidões, uma delas genialmente interpretada por Fabricio Boliveira. Eryk Rocha, surpreendido pela pandemia, não vacilou em perceber o que mudara e, em vez de chorar no vazio e reclamar de sombras, lançou seu filme em nova plataforma, abrindo mão de esperar o convencional garantido. “Breve miragem de sol” estreou há poucos dias no streaming da Globoplay e faz ali um grande e merecido sucesso. Alguma coisa acontece.