Kurosawa, um dos gênios do cinema japonês pós-Segunda Guerra, declarava sua admiração por Bergman
Domingo que vem, 14 de julho, Ingmar Bergman, cineasta sueco, um dos maiores artistas e pensadores na história do cinema, estaria fazendo 101 anos de idade. Filho de pastor luterano, educado em restrita disciplina religiosa, Bergman, depois de montar Ibsen e Strindberg no teatro, inventaria um cinema de gritos e sussurros, extraordinário encontro jamais igualado de beleza plástica com densidade humana.
Morto aos 89 anos de idade, em 2007, Bergman assistiria, ainda em vida, no isolamento e na solidão da Ilha de Faro, à sua consagração, da nouvelle vague francesa ao cinema independente americano, de Kubrick,
Woody Allen e Tarantino ao argentino Torre Nilsson e ao brasileiro Walter Hugo Khouri. Federico Fellini, gênio do improviso e da intuição, da ilusão e do humor cáustico, inventor de outra graça, proclamava Bergman o maior artista do século.
Do outro lado do mundo, vindo de uma cultura exuberante e combativa, Akira Kurosawa, um dos gênios do fértil cinema japonês posterior à Segunda Guerra Mundial, também declarava sua admiração por Bergman. Kurosawa começara sua carreira artística como pintor, numa exposição de estreia aos 17 anos, enfatizando sua influência das artes plásticas do Ocidente. Além de obras-primas cinematográficas, como “Os sete samurais” ou “Ran”, Kurosawa nos deixaria quadros pintados a partir do storyboard de seus 30 filmes, que ele mesmo desenhava, em mais de 50 anos de profissão.
Apesar de ser costume em países que têm tradição cinematográfica, o Brasil nunca cultivou livros e filmes sobre seus cineastas. Nem cartas trocadas entre eles. A única exceção talvez seja Glauber Rocha, cuja obra escrita é tão vasta, profunda e necessária, que se pode completar uma estante com seus textos ou textos sobre ele. Assim, sempre nos surpreende documentos como o que acabo de receber de Walter Lima Jr., excelente cineasta brasileiro que devia poder estar filmando muito mais do que filma. Walter me enviou o texto de uma carta de Akira Kurosawa a Ingmar Bergman, recolhida pelo jornalista e blogueiro espanhol Paco López, que a reproduziu na internet.
Kurosawa não conhecia Bergman pessoalmente. Ele decidira escrever-lhe depois de ler o livro de memórias do diretor sueco, “Lanterna mágica”, publicado em 1987. Ali, tomara conhecimento de que Bergman estava fazendo 70 anos de idade, angustiado com a vida e preocupado com seu futuro no cinema. Bergman lamentava que, certamente em breve, não estaria mais fazendo filmes. Mas ainda realizaria obras como “Saraband”; assim como o próprio cineasta japonês ainda faria “Os sonhos de Akira Kurosawa”. Kurosawa viria a falecer em 1998, aos 88 anos de idade, dez depois de escrever a carta a Bergman. Ei-la abaixo.
“Estimado senhor Bergman, por favor, permita-me felicitá-lo em seu septuagésimo aniversário. Cada vez que o vejo, seu trabalho toca meu coração profundamente e tenho aprendido muito de suas obras, sempre alentadoras. Desejo que o senhor se mantenha em bom estado de saúde, para que possa criar mais filmes maravilhosos para todos nós.
No Japão, existiu um grande pintor chamado Tessai Tomioka, que viveu na era Meiji (final do século XIX). Esse artista pintou vários quadros excelentes, quando ainda era jovem. Ao chegar à idade de 80 anos, começou de repente a pintar quadros que eram muito superiores aos anteriores, como se estivesse vivendo sua grande fase de florescimento. Cada vez que vejo suas pinturas, me dou perfeitamente conta de que um ser humano não é capaz de criar obras extraordinárias, até chegar aos 80.
Um ser humano nasce como bebê, se converte em um menino, passa pela juventude, a flor de sua existência. E finalmente volta a ser um bebê, antes da morte. Esta é, em minha opinião, a forma ideal da vida. Creio que estaria de acordo com que um ser humano chega a ser capaz de produzir obras puras, sem restrição alguma, nos dias de sua segunda infância. Agora tenho 77 anos de idade e estou convencido de que meu verdadeiro trabalho está apenas começando.
Mantenhamo-nos unidos, pelo bem dos filmes. Com as mais cordiais saudações, Akira Kurosawa”.