A história da literatura, a construir ou a modificar ideias e projetos, vai mudar a nossa própria história
Foi Jorge Furtado, consagrado realizador de cinema e televisão, quem me alertou para “O mundo da escrita”, livro do qual me deu de presente um exemplar. Nele, o autor afirma que uma sucessão de tecnologias mudou a história da humanidade ao longo do tempo. Algumas levaram séculos entre sua invenção e o uso regular delas. Outras foram inventadas mais de uma vez, conforme as necessidades locais, a distância entre as culturas e os territórios onde eram praticadas.
Uma delas é a escrita, do papiro ao papel, uma tecnologia primeiro inventada na Mesopotâmia, há cerca de cinco mil anos, para servir à burocracia do Estado, à política e aos negócios. Bem antes portanto de servir à literatura propriamente dita. A escrita criada e desenvolvida em diferentes cantos do planeta, durante tanto tempo, é o tema de Martin Puchner, professor de literatura na Universidade de Harvard, em seu livro publicado recentemente pela Companhia das Letras.
Puchner começa “O mundo da escrita” em 1968, num capítulo a propósito da viagem à Lua da Apollo 8. A espaçonave americana levava três astronautas aos céus, e eles traziam consigo um exemplar da Bíblia cristã. Com sincera emoção diante do que viam rodando lá embaixo (me desculpem os discípulos de Olavo, mas a Terra não é plana), cada um dos três leu um trecho do Gênesis, que se inicia dizendo: “No princípio, Deus criou o céu e a terra”. Pelo mundo afora, 500 milhões de espectadores acompanhavam a transmissão do feito pela televisão.
Ao êxtase místico de Anders, Lovell e Borman, Puchner contrapõe Yuri Gagarin, o astronauta soviético que se tornara o primeiro homem a viajar no espaço, cerca de sete anos antes. Gagarin não havia levado consigo uma cópia do “Manifesto do Partido Comunista”, nem discursos de Lênin ou Kruschev, para ler na viagem. Mas, ao descer na Terra, declarou meio sério, meio irônico: “Olhei, olhei, mas não vi Deus”. O piloto soviético e os três astronautas americanos se tornaram parte de uma nova e mais sofisticada etapa da Guerra Fria entre os blocos liderados por seus países. A Guerra Fria também tinha muito de uma guerra entre textos literários fundamentais.
A primeira referência de Puchner à importância da literatura na história da humanidade é a Alexandre, o Grande. Durante suas conquistas militares, na formação de um império que ia da Grécia à Índia, Alexandre levava três objetos que guardava com cuidado sob seu travesseiro. O primeiro era um punhal, presente de seu pai, Filipe II da Macedônia. Depois, uma caixa, dentro da qual mantinha em segurança uma cópia da “Ilíada”, de Homero. Era essa a leitura favorita de Alexandre, por ser a história através da qual “via sua campanha e sua vida”. Um texto quase sagrado para ele, que desejava reproduzir os sucessos de Aquiles em Troia. Podemos dizer que a “Ilíada” ilustrava e controlava sua visão de mundo.
A história da literatura, a construir ou a modificar ideias e projetos, vai mudar nossa própria história em diversos momentos. A primeira obra-prima da literatura universal, anterior à Bíblia e a Homero, é a “Epopeia de Gilgamesh”, de 1.200 a.C., da qual o temido rei assírio Assurbanípal, chamado o Rei do Universo, era um grande admirador e gostava de reencenar na realidade de sua corte e de suas conquistas.
Esdras e sua consolidação dos textos do Antigo Testamento, unificando e dando cidadania aos judeus que os veneravam; “As mil e uma noites”, de Sherazade, modificadas conforme onde eram lidas; os escritos de terceiros em nome de Buda, Confúcio, Sócrates e Jesus, que nunca escreveram uma só linha; a insurreição de Lutero, sustentada pela imprensa recém-inventada por Gutenberg, contra a opressão do Vaticano; o “Popol Vuh”, contos místicos que serviram aos maias para enfrentar a violência da colonização espanhola; as teses políticas e ideológicas de Marx, Engels e Lênin, além da oposição a elas de anticomunistas; os artífices literários criadores da África Ocidental moderna; tudo isso e muito mais faz parte, até nossos dias, da evolução da escrita, que enriquece a civilização com o acesso à mente do outro.
Não importa se então aparece o presidente de um grande país, como o Brasil, que se mofa e ri de tudo que está escrito e representa alguma coisa, mesmo que apenas sonhos. A marcha do avanço da literatura e da arte não pode ser detida, a não ser que a humanidade recue ao passado. E se considere incapaz de inteligência e de inventividade.