Caso do senador devia deixar legado para combate à corrupção
A cada escândalo nós atualizamos as medidas. Em 2005, José Adalberto Viera da Silva, então assessor do deputado José Guimarães (PT-CE) foi preso em flagrante no aeroporto de Congonhas com US$ 100,5 mil acondicionados na cueca e mais R$ 209 mil transportados numa sacola. Doze anos depois, a Polícia Federal precisou de sete máquinas e um dia inteiro de trabalho para contabilizar os R$ 51 milhões, em cédulas de dólares e reais, guardados em malas e caixas de papelão guardadas num dos apartamentos da família do ex-deputado Geddel Vieira Lima (DEM-BA).
Na Lava Jato, o executivo Hilberto Silva, responsável pelo setor de pagamentos do departamento de “Operações Estruturadas” da Odebrecht, acondicionava R$ 500 mil em mochilas que eram distribuídas em hotéis e flats a emissários de políticos dos mais variados partidos. Fernando Migliaccio, seu subordinado, chegou a distribuir R$ 35 milhões dessa forma num único dia. “Foi o meu recorde”, confessou ao Ministério Público Federal. Para comprovar a medida de capacidade pecuniária das bagagens, era de justamente meio milhão o valor contido na mala de rodinhas recebida pelo ex-deputado Rodrigo Rocha Loures (MDB-PR) em nome de Michel Temer, no episódio da JBS que decretou, na prática, o fim do seu governo. E tudo isso aconteceu numa época em que a maior nota brasileira era a garoupa, e não o lobo guará.
Os R$ 33.150 encontrados na cueca do senador Chico Rodrigues (DEM-RR) foram motivo de piadas e chacotas, além de ter provocado mal estar na base de apoio de Bolsonaro, de quem era vice-líder. Mas eles representam, sobretudo, nossa incapacidade de aprender com os erros e evitar que eles se repitam.
Traficantes de drogas e armas, terroristas, sonegadores, corruptos e corruptores, entre outros, se valem de pagamentos em espécie para “reciclar” capitais obtidos ilicitamente e tornar mais difícil sua rastreabilidade caso sejam investigados. É por essa razão que organismos internacionais como a Força Tarefa de Ação Financeira (FATF, na sigla em inglês), criada pelos países do G-7 em 1989 para combater a lavagem de dinheiro e o financiamento ao terrorismo, recomendam que transações financeiras envolvendo valores elevados sejam comunicadas aos órgãos de controle para, se for o caso, serem monitoradas mais de perto.
No Brasil, o Conselho de Controle e Atividades Financeiras (Coaf) foi criado em 1998 justamente para cumprir o objetivo de examinar atividades dessa natureza. Desde a aprovação da Lei nº 9.613/1998, instituições financeiras, casas de câmbio, cartórios, joalherias, imobiliárias, concessionárias de veículos e outros estabelecimentos que transacionam bens de luxo devem comunicar ao Coaf operações realizadas por “pessoas expostas politicamente” ou por qualquer cidadão, desde que efetuadas em espécie, em montante acima de R$ 30 mil.
A se julgar pelos casos de corrupção que periodicamente sacodem o país, essas determinações legais não têm sido suficientes. Pouco antes da descoberta de cédulas no cofrinho do senador, a própria família presidencial já vinha sendo assombrada por investigações conduzidas pelo Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro a respeito de diversas transações imobiliárias realizadas em dinheiro vivo que supostamente teriam origem ilícita, seja nas rachadinhas na Assembleia Legislativa fluminense ou talvez em algo até mais grave.
O mais lamentável é que, ao longo de décadas e mais décadas de escândalos de corrupção, avançamos bem menos do que seria necessário para fechar o cerco contra políticos e outros criminosos que se valem de pagamentos em espécie para requentar e ocultar patrimônio obtido de forma ilegal. Ao politizarmos operações como o Mensalão e a Lava-Jato, perdemos a oportunidade de pressionarmos por mudanças legais e institucionais que poderiam tornar mais efetivo o combate a desvios de recursos públicos no país.
E não é por falta de iniciativas legislativas que não tornamos mais efetivo o combate ao “branqueamento de capitais” no Brasil. Ainda em 2011, o PL nº 2.847, do ex-deputado Carlos Manato (PDT-ES), previa a proibição de pagamentos em cash de operações acima de R$ 1.500,00. Já na esteira da Lava-Jato, o PL nº 7.877/2017, do parlamentar paulista Gilberto Nascimento (PSC) atribuía ao Conselho Monetário Nacional a competência para definir um limite a partir do qual só seriam concretizadas transações por meio eletrônico. Mais recentemente, o deputado Rodrigo Agostinho (PSB-SP) acatou uma das “Novas Medidas contra a Corrupção”, elaboradas por um grupo de especialistas a pedido da Transparência Internacional, e apresentou o PL nº 75/2019, que veda o uso de dinheiro vivo para o pagamento de boletos e faturas acima de R$ 5 mil e outras operações superiores a R$ 10 mil.
Limitar o uso de pagamentos em espécie, a princípio, não traria nenhum prejuízo ao brasileiro comum – de um lado, os não bancarizados não dispõem de renda para compras de elevado valor, e de outro as classes média e alta já se habituaram a utilizar cartões de crédito e débito, DOCs, TEDs e transferência bancárias em seu dia-a-dia. A restrição legal só não avança por falta de pressão sobre justamente as “pessoas politicamente expostas” que se beneficiam do sistema atual ou têm conexões com a criminalidade.
Com o advento do Pix e das novas formas de pagamentos eletrônicos, não haveria motivos para o Brasil não aderir a uma tendência internacional que já inclui China, Índia, Estados Unidos, Canadá, Austrália, Portugal e Itália. Todos esses países, em alguma medida, já adotaram ações para restringir transações em dinheiro vivo com o intuito de combater a corrupção, a criminalidade e o terrorismo.
O caso dos reais nas partes íntimas do senador Chico Rodrigues talvez não dê em nada – com muita sorte, levará à sua cassação ou a uma condenação judicial. Melhor seria se deixasse como legado alguma mudança efetiva na legislação para tornar mais fácil investigações no estilo “follow the money” – mesmo que as buscas conduzam, ao final, a um lugar sujo e mal-cheiroso.
*Bruno Carazza é mestre em economia, doutor em direito e autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro”.