Allan de Abreu,* Folha de São Paulo
No primeiro turno das eleições, o presidente Jair Bolsonaro (PL) teve 8 pontos percentuais a mais de votos do que seu principal oponente, Luiz Inácio Lula da Silva (PT), na região metropolitana do Rio, que agrega dezenove municípios. Nas áreas dominadas pelas milícias, no entanto, Bolsonaro, que possui ligações históricas com essas forças paramilitares, expande essa vantagem para 14 pontos, de acordo com estudo inédito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) obtido pela piauí. “Embora à primeira vista a diferença pareça pequena, em uma eleição tão acirrada quanto essa ela é muito significativa”, afirma o cientista político e coordenador do Observatório Político e Eleitoral da UFRJ Josué Medeiros. Bolsonaro teve 53% dos votos nas áreas controladas por milícias, contra 39% de Lula. No Grande Rio como um todo, o presidente teve 50% dos votos, contra 42% do petista.
A vantagem de Bolsonaro diante de Lula cresce conforme aumenta o controle miliciano sobre o território. Para aferir essa tendência, os pesquisadores dividiram as áreas controladas pelas milícias em três níveis: baixo, médio e alto. Essa classificação baseou-se em dois fatores: a presença ou não de outros grupos criminosos no território e a extensão do controle territorial. Assim, Campo Grande e Santa Cruz, na Zona Oeste, são de alta presença miliciana, pois são bairros extensos em que há um monopólio dos paramilitares. Já em Bangu e Senador Camará, o domínio da milícia é baixo e médio, respectivamente, uma vez que os paramilitares convivem com facções do tráfico.
Olhando o peso da votação de cada um por área, o estudo mostra que 3,52% dos votos de Bolsonaro na Região Metropolitana do Rio vieram das áreas com baixa presença de milicianos; no caso de Lula, essas áreas garantiram 3,14% dos votos do petista, uma diferença de 0,4 ponto percentual. Já nas áreas com alta concentração de paramilitares, a diferença entre os dois se amplia: o atual presidente conseguiu ali 27,51% do total de seus votos, contra 24,08% do petista. A diferença entre os candidatos sobe para 3,43 pontos percentuais, ou quase nove vezes a verificada nas áreas com baixo controle miliciano. Ou seja: na prática, Bolsonaro depende mais dos votos nas áreas de milícia que Lula, e tal dependência é tanto maior quanto mais forte for a hegemonia das milícias nessas áreas.
Esse curral eleitoral do bolsonarismo vem crescendo ao longo dos anos. Se em 2012 havia 833 mil eleitores em áreas dominadas pelos paramilitares (ou 9,6% do eleitorado de toda a região metropolitana), hoje são 1,4 milhão, ou 14,8% do total da região metropolitana, mais que o eleitorado de Recife. Já as áreas controladas pelas facções do tráfico de drogas (Comando Vermelho, Terceiro Comando Puro e Amigos dos Amigos), o eleitorado permaneceu estável, com 9,7%. Um estudo divulgado pelo Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos (Geni), da Universidade Federal Fluminense (UFF), e pelo Instituto Fogo Cruzado em setembro mostrava que, de 2006 a 2021, as áreas controladas por forças paramilitares cresceram quase 400% no Rio. Os pesquisadores da UFRJ cruzaram os dados desse estudo com as estatísticas do Tribunal Superior Eleitoral (TSE).
“Como são muitos os fatores de mediação entre o eleitor e o candidato, como a religião, a ideologia e o clientelismo tradicional, é muito difícil analisar somente o fator milícia isolado dos demais”, pondera Orlando Alves dos Santos Júnior, professor do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (Ippur) e integrante do Observatório das Metrópoles, ambos da UFRJ. “Mas a análise comprova que a presença ou não da milícia influencia diretamente no voto, disso não há dúvida.”
Em setembro, o prefeito do Rio, Eduardo Paes (PSD), disse ao presidente do TSE, ministro Alexandre de Moraes, que candidatos não apoiados pela milícia estavam sendo impedidos de acessar áreas controladas pelos paramilitares na capital – ele não disse quais seriam os candidatos. No dia 2 de outubro, primeiro turno das eleições, olheiros a serviço das milícias em Campo Grande e Santa Cruz tentaram impedir os fiscais do Tribunal Regional Eleitoral (TRE) de flagrar crimes como boca de urna e exibição de bandeira de candidatos próximos às seções eleitorais, de acordo com reportagem do jornal O Globo. No pleito de 2018, os fiscais foram atacados com pedras em áreas controladas pelos paramilitares na Zona Oeste – não houve feridos. Atualmente, as maiores milícias do Rio são comandadas por Danilo Dias Lima, o Tandera, e Luís Antônio da Silva Braga, o Zinho.
No livro A república das milícias, Bruno Paes Manso narra que em 2003, com a eleição do filho Flávio para a Assembleia Legislativa do Rio, Jair Bolsonaro começou a se aproximar de grupos milicianos que surgiam na época por meio de Fabrício Queiroz, um policial militar próximo desses paramilitares que era amigo de Jair. Querendo se vender como representante das milícias no Parlamento fluminense, Flávio nomeou Queiroz para o seu gabinete e passou a laurear policiais suspeitos de integrar milícias e grupos de extermínio, como Adriano da Nóbrega, morto em 2020. No total, foram 32 medalhas. Além disso, segundo o Ministério Público, Flávio financiou a construção de prédios da milícia em Rio das Pedras, berço dos paramilitares, com dinheiro das “rachadinhas” (parte dos salários que os funcionários do gabinete do deputado, incluindo parentes de Nóbrega, eram obrigados a devolver ao parlamentar).
Além dos negócios em comum, o discurso militarista dos Bolsonaro, dizem os pesquisadores, combina com o ethos miliciano, de valorização da lei e da ordem – os paramilitares surgiram com a proposta de expulsar ladrões e narcotraficantes dos bairros, em troca de “taxas de segurança” e do monopólio de determinados serviços, como gás e tevê a cabo irregular. “A solução paramilitar de controle dos territórios é altamente convergente com a imagem de uma sociedade armada como forma de proteção à escalada da violência urbana”, diz Filipe Souza Corrêa, pesquisador do Observatório das Metrópoles. Procurada pela piauí, a assessoria da Presidência da República não se manifestou.
Para o cientista político Medeiros, se nada for feito, a milícia ganhará cada vez mais poder político no estado do Rio, o terceiro maior do país depois de São Paulo e Minas Gerais. “Sabemos que os milicianos sempre buscaram ter representação política. Por isso, se não fizermos nada agora, aonde vamos chegar? A sociedade fluminense precisa fazer essa reflexão”, afirma.
Texto publicado originalmente em Folha de São Paulo Piauí.