Verbo agressivo, não raro insultuoso, tem de dar lugar a fala formal, impessoal e comedida
A verdade é que temos dois governos. Um no rumo certo, sério e competente, personificado pelos ministros da Economia e da Saúde, principalmente. Outro, populista e irresponsável, personificado pelo presidente Jair Bolsonaro, vez por outra coadjuvado pelos ministros da Educação e das Relações Exteriores.
De fato, 15 meses não foram suficientes para Jair Bolsonaro nos tranquilizar quanto à sua compreensão dos requisitos básicos do cargo para o qual foi eleito e da crítica situação que estamos vivendo. Sua subestimação da seriedade da pandemia de covid-19 volta e meia nos traz à memória um fato de dez anos atrás: a hilária referência de Lula à crise financeira que se avizinhava. Da subestimação decorreu a convocação de manifestações de apoio à sua pessoa e de pressão sobre o Legislativo e o Judiciário. Há quem afirme que ele não fez tal convocação, que elas teriam sido espontâneas, ou, então, que ele as convocou e depois desconvocou. Acontece que em política é possível dizer algo sem dizer nada, ou até dizendo o contrário do que se pretende. Para mim, ele as convocou na base do “bem me quer, mal me quer”, deixando espaço para recuar quando isso lhe parecesse taticamente conveniente.
Mas isso é o de menos. Fato é que, sendo ele o presidente da República, a atitude correta seria alertar a sociedade para o risco de aglomerações, alerta feito por seu ministro da Saúde; e fazê-lo, não em frases soltas ao vento, mas com solenidade e firmeza, em cadeia nacional de rádio e televisão. Alertar também, no que toca ao Legislativo e ao Judiciário, que a Constituição veda expressamente quaisquer ações que dificultem o adequado funcionamento dos Poderes do Estado. Não menos importante, afirmar, em alto e bom senso, como supremo magistrado, que ele não compactua com a grita de setores “sinceros, mas radicais” que exigem a derrubada das instituições representativas, qualquer que seja a avaliação de cada um sobre o presente desempenho delas.
Acrescente-se – e este é o ponto mais grave, que não deixa dúvida sobre as diferentes interpretações que se têm dado aos fatos acima mencionados – que Jair Bolsonaro não se contentou em saber pela imprensa ou pela internet que uma parcela da sociedade parecia (ou parece) aderir ao seu não convocado “queremismo”. Não. Cedendo ao cerne populista que informa seu modo de sentir a política, ele desceu a rampa a fim de cumprimentar um grupo de manifestantes, trocar apertos de mão e tirar algumas selfies, descumprindo de modo flagrante as recomendações de todas as organizações nacionais e internacionais e de seu próprio ministro da Saúde, que ora, angustiadamente, se empenham no combate ao coronavírus.
A bem da justiça devo repetir que a outra metade de seu governo tem demonstrado seriedade e competência, mas em relação a ele, Jair Bolsonaro, sou forçado a reiterar o que afirmei no início: até o momento, ele tem se comportado como um político populista e irresponsável. E a reiterar também minha dúvida sobre sua compreensão dos requisitos básicos da posição que ocupa e dos dramáticos desafios que ora ameaçam nossa existência como povo.
Não voltarei ao coronavírus, voltarei à estúpida polarização que se configurou desde a eleição de 2018. O famigerado recurso ao “nós contra eles” cultivado por Lula e pelo PT metamorfoseou-se em coisa pior: o bolsonarismo acima de tudo e contra todos os outros. Ou seja, uma divisão vertical sem precedentes no País, como se fôssemos dois povos, contrapostos e antagônicos. Cada um com seus slogans, sua raiva e seus panelaços. Quem não apoia o “mito” é comunista, é de esquerda, é tucano, ou tudo isso ao mesmo tempo, ou coisa pior. É liberal, outro grave xingamento, não obstante o ministro da Economia se identificar como tal e estar tentando implementar reformas sabidamente indispensáveis, e inequivocamente liberais. Orientado, ao que tudo indica, pelo sábio da Virgínia, o clã Bolsonaro vê-se como um Dom Quixote de lança em punho, pronto para extirpar uma imaginária hegemonia de esquerda que se teria instalado entre nós desde a Contrarreforma e no bojo do patrimonialismo português, perdurando e se fortalecendo mesmo durante os 21 anos de governos militares.
Tivesse ele uma compreensão mais adequada de sua posição como supremo magistrado, Jair Bolsonaro já teria entendido que não foi eleito por uma seita, mas pela maioria do eleitorado; e que a função presidencial não se restringe a um grupo de seguidores, a um partido ou seita eleitoral, mas à totalidade do povo brasileiro. O palanque teve seu momento, mas não foi e não pode ser levado para dentro do Palácio do Planalto. O verbo agressivo, não raro insultuoso, tem de ceder lugar a uma fala formal, impessoal e comedida. O que temos visto, infelizmente, é o oposto. Jair Bolsonaro parece entender que seu papel é o de dividir ainda mais o País, nem que o preço seja se misturar infantilmente com a multidão, pondo em risco um número não desprezível de cidadãos.
*Sócio-diretor da Augurium Consultoria, é membro das Academias Paulista de Letras e Brasileira de Ciências