O quadro eleitoral para outubro é um dos mais nebulosos da nossa História
Quero, mas está difícil. Baseando-se em dados do IBGE relativos ao primeiro trimestre do ano, o Estadão de ontem informou que “27,7 milhões de pessoas estavam desempregadas ou trabalhando menos do que poderiam ou gostariam, e 4,6 milhões de desalentados desistiram de procurar emprego, um recorde”. A recuperação econômica ainda é precária. As mazelas sociais permanecem. Nas ruas, muita insegurança; nas almas, muito rancor.
Contra esse pano de fundo sombrio, podemos afirmar sem temor de erro que o quadro eleitoral para outubro é um dos mais nebulosos de nossa História. Sem uma mudança expressiva, cujos contornos por enquanto ninguém vê, o pleito certamente realimentará as incertezas que rondam a economia. Essa afirmação pode ser esmiuçada em três níveis: o perfil dos candidatos, o formato da disputa que deles se pode esperar e, menos perceptíveis, certas características de nossa estrutura social – das “elites”, especialmente – que dificultam a articulação de uma saída mais consistente.
No que toca aos candidatos, o ponto de partida só pode ser Jair Bolsonaro, que no momento mantém folgada dianteira nas pesquisas. O que sabemos sobre sua candidatura é muito pouco, mas suficiente para sustentar alguns juízos preliminares. Ex-militar, tendo passado para a reserva no posto de capitão, está para completar 30 discretíssimos anos na Câmara dos Deputados. Tenta capitalizar o sentimento de insegurança que grassa na sociedade – com muito sucesso, a julgar pelos 28% de intenções de voto que as pesquisas lhe têm atribuído. Nada em sua biografia sugere que tenha desenvolvido um pensamento econômico coerente. Um vago intervencionismo nacionalista, semelhante ao da maioria dos políticos. Um pensamento liberal ele com certeza nunca desenvolveu, mas o coordenador de seu programa, Paulo Guedes, é um dos economistas mais consistentemente liberais do País. A esse bico de pena é preciso acrescentar que Bolsonaro é apoiado por um partido inexpressivo, o que desde logo autoriza a premonição de graves dificuldades no Congresso, com o nosso famigerado “presidencialismo de coalizão”. Mas isso não é tudo. Bolsonaro também oferece ao distinto público a curiosa proposta de colocar um general no Ministério da Educação, como se um militar, só por ser militar, pudesse dar andamento adequado aos problemas educacionais brasileiros. Sua retórica política não é menos tortuosa. Poucos dias atrás, quando se divulgou que o general Geisel, na condição de presidente da República, autorizara pessoalmente a execução de integrantes da luta armada, Bolsonaro comentou: “Mas quem um dia não deu uma palmada no bumbum de uma criança?”.
Dado esse perfil, o que se discute é se Bolsonaro já está no segundo turno ou, ao contrário, se sua candidatura é autoincinerável. Não me arrisco a responder. Os adeptos mais afirmativos de sua candidatura, como antes sugeri, são os que cultivam o mito de um governo “forte”, capaz de acabar com a criminalidade num abrir e fechar de olhos, e outros, ideologicamente orientados, que o veem, finalmente, como o messias “de direita” pelo qual tanto ansiaram.
No polo oposto, que seria a “esquerda”, não sabemos quem será o candidato, nem mesmo se haverá alguma candidatura. Lula, inelegível, carreará votos para algum candidato nessa faixa, mas a quantidade de votos com certeza dependerá do candidato adotado pelo PT. O ex-prefeito Haddad não me parece ser o beneficiário ideal da transferência dos votos de Lula, em parte por seu perfil pessoal e em parte por não encarnar o radicalismo dos setores à esquerda do partido e dos chamados “movimentos sociais”.
O espaço deste artigo não me permite percorrer todos os nomes, mas dois – Marina e Ciro Gomes – me parecem merecer um comentário. Se é verdade que a situação tumultuária em que o País se encontra favorece uma candidatura “carismática”, eu, no lugar de Marina, já mudaria meus planos. Não a vejo com a autoridade, a habilidade e a energia necessárias para enfrentar nosso serpentário legislativo. Seu lugar, e aí ela poderia desempenhar um papel importante, é o Senado. Por questões totalmente distintas, digo mesmo opostas, penso que esse deveria ser também o objetivo de Ciro. Ele foi governador do Ceará e esteve ministro da Fazenda durante alguns meses, e não há dúvida de que tem “energia”. Mas sua energia beira o destempero e mesmo a truculência. Teria muito a ganhar com o convívio legislativo, mormente em nosso plácido ambiente senatorial.
O segundo nível de análise que sugeri no início é o formato da disputa. Estamos caminhando para uma eleição radicalizada ou para uma convergência de centro? Do que acima foi dito, é difícil extrair um cenário radicalizado, seja no sentido clássico de esquerda x direita como no de uma logorreia virulenta, daquelas que geram muito calor e pouca luz. O cenário de centro, inegavelmente mais conveniente à recuperação econômica, depende do crescimento de Geraldo Alckmin, outra incógnita.
Meu terceiro ponto diz respeito à estrutura das “elites” brasileiras. O PT passou anos e anos vituperando-as, pintando-as como um pequeno círculo de conspiradores, sem se dar conta de que o problema brasileiro é exatamente o oposto. É a inexistência de um ou mais grupos que mantenham sequer uma remota semelhança com o que os livros de sociologia designam como elites. Temos, isso sim, corporações, grupos de interesse, setores aguerridamente engalfinhados, cada um querendo sua parte no erário. Um naco da riqueza geral do País. Mas perde seu tempo quem imagina que tais grupos, mesmo percebendo o risco enorme a que o País está exposto, tenham disposição ou coragem para dialogar em busca de uma convergência. Estamos em maio. Eles têm pouco mais de quatro meses para me desmentir. Rezo para que o façam.
* Bolívar Lamounier é sócio-diretor da Consultoria Augurium e membro das Academias Paulista de Letras e Brasileira de Ciências