A chance de Brasília fazer uma reforma política e administrativa séria é remota
A pandemia e a certeza de que tão cedo não teremos um ajuste fiscal seguro trouxeram de volta a preocupação com a fala de “resiliência” do sistema político brasileiro. Esse termo significa que nosso Estado cambaleia toda vez que se depara com situações muito negativas.
Triste é constatar que essa joia do jargão politológico não diz nem metade do que precisa ser dito. A fragilidade da organização política brasileira não é ocasional. Não se manifesta somente quando batemos de frente com algum obstáculo poderoso. Trata-se de uma fragilidade mal compreendida, abissal, que deriva de várias causas e produz efeitos crudelíssimos sobre as parcelas mais vulneráveis da sociedade. Seu aspecto mais perceptível é o que Ricardo Noblat certa vez denominou “o céu dos favoritos”. A fauna brasiliense compõe-se de numerosas espécies que diferem em quase tudo, menos no apetite. E na volúpia. Habitam os três Poderes e se valem deles para se apropriarem de cifras estratosféricas, sob a forma de salários, de ajudas de custo, das cotas ministeriais que alimentam o famigerado “presidencialismo de coalizão” e de assessores-de-coisa-alguma, sem esquecer as proverbiais “rachadinhas”. Com as exceções de praxe, claro.
Nesse quadro, o termo “resiliência”, com sua conotação de excepcionalidade ou intermitência, soa doce como o trinado de uma ave da nossa fauna. O buraco é muito mais embaixo, e há um ponto sobre o qual não temos o direito de nos enganar: a chance de Brasília fazer uma reforma política e administrativa séria é remota. Faz 35 anos que estamos discutindo reformas e o saldo é pífio. A rigor, não dispomos sequer de um diagnóstico, ou seja, de uma visão consistente, objetiva e abrangente do Estado e de suas relações com a sociedade. O problema, como vinha dizendo, não é a baixa “resiliência” de nossa estrutura institucional; é sua incapacidade de extirpar de si a infinidade de privilégios obscenos que se entrincheiraram em seus desvãos, para depois, com a ajuda de Deus, estabelecermos um sistema capaz de impulsionar o crescimento da economia, reduzir as desigualdades sociais e revolucionar o sistema de ensino.
Peço permissão aos leitores para repetir um argumento que venho martelando há várias semanas. Sem um sistema político verdadeiramente propulsor estaremos condenados à chamada “armadilha do baixo crescimento”. Com nossa renda per capita crescendo no máximo 2% ao ano, levaremos décadas para progredir. Nem temos como falar em progresso, pois, nesse horizonte, é de retrocesso que se trata, e deixo a critério de cada um imaginar o que isso significa.
Farei a seguir referência a três aspectos de nosso sistema político, os três com uma longa história e com tendência a piorar. O primeiro é nossa infantil fixação no “Executivo forte”, quero dizer, naquele anseio por um salvador, civil ou militar, que venha nos tirar do buraco. Aquele demiurgo capaz de fixar com sabedoria as prioridades nacionais e de assegurar unidade, estabilidade e eficiência à máquina de Estado que as irá executar.
Para ilustrar esse ponto o caminho mais curto é relembrar o ciclo de governos militares, 1964-1985. Durante aqueles 21 anos tivemos complicações sucessórias em todos os períodos presidenciais. Em todos, sem exceção. O próprio marechal Castelo Branco, o primeiro presidente do ciclo, comandante inconteste do golpe de 1964, viu-se encantoado pelo general Arthur da Costa e Silva, que lhe impôs sua própria candidatura. O resto da história é bem conhecido.
Os representantes civis do pós-1985 não demonstraram muito mais tirocínio. No tocante ao tamanho do Congresso Nacional, por exemplo, os constituintes de 1987-1988 conseguiram piorar bastante o que começáramos a construir antes de 1964. Estabeleceu o mínimo de oito deputados por Estado e aumentou de dois para três o número de senadores. Ao mesmo tempo, conferiu status de Estado aos quatro territórios do extremo Norte, criando um Congresso mastodôntico.
Obviamente, não estou afirmando que a sociedade brasileira ficaria bem representada por cem ou duzentos parlamentares, mas o número a que se chegou – 513 deputados e 81 senadores – é um atroz disparate. Basta lembrar que o governo dos Estados Unidos, com uma população um terço maior que a nossa, mantém desde priscas eras uma Câmara de Representantes com 435 deputados e uma Câmara Alta com 100 senadores.
A premissa é a de que o poder da instituição e o poder individual de cada representante crescem indefinidamente com o aumento do total de representantes. No Paper Federalista número 55, um dos documentos que precederam a ratificação da Constituição norte-americana, James Madison foi direto ao ponto: “Mesmo se cada cidadão ateniense fosse um Sócrates, com milhares de membros a assembleia da cidade seria uma balbúrdia”.
Para organizar o tumulto contamos atualmente 26 deputados federais, nenhum deles chegando à marca de 20% das cadeiras. Ora, convenhamos que ter 26 partidos fracos e não ter nenhum é mais ou menos a mesma coisa.
*Sócio-Diretor da Augurium Consultoria, é membro das Academias Paulista de Letras e Brasileira de Ciências