Estes dois componentes estão aí bem à mostra, como os pés de barro do gigante que queríamos (ou queremos) ser
Qualquer que seja nossa avaliação sobre o momento atual, parece-me fora de dúvida de que estamos no limiar de importantes transformações em nossa identidade nacional — ou seja, na maneira pela qual nos vemos como povo.
Nessa linha de raciocínio, podemos dizer que nossa identidade nacional já passou por duas fases — duas versões, duas ilusões — e dois erros colossais, que nos deixaram no limiar de um possível terceiro grande erro. A primeira versão foi a ideia do “brasileiro pacífico”, da conciliação entre as elites políticas, da “cordialidade” entre as pessoas comuns e da inexistência de racismo. No essencial, essa “narrativa” tinha um claro sentido de bajulação ao ditador Getúlio Vargas, exaltado como fundador da nacionalidade, culminando numa concepção do poder central como um Estado poderoso, bondoso e paternalista.
Era um apelo à convergência num país fadado a se transformar profundamente assim que a democracia fosse restabelecida,os conflitos políticos se acirrassem, e sofrêssemos os impactos externos da guerra fria. Uma sociedade concebida pela maioria como quase estática, invulnerável a abalos de monta e avessa a movimentos de mobilização política contrários ao governo.
Precocemente envelhecida, a cultura da cordialidade cedeu lugar ao chamado nacional-desenvolvimentismo, um projeto lastreado materialmente na industrialização substitutiva de importações e ideologicamente no nacionalismo. Essa nova fórmula também fez certo sentido enquanto o modelo de crescimento induzido pelo Estado permaneceu crível. O golpe de misericórdia que a inviabilizou em definitivo foi a tentativa do governo Geisel de acelerar a industrialização com base num enorme endividamento externo, opção liquidada entre 1973 e 1979 pelos choques do petróleo e a abrupta elevação das taxas de juros às quais a dívida fora indexada.
A nação “cordial” e o “nacional-desenvolvimentismo” tinham dois pontos importantes em comum. Primeiro, imaginavam ser possível o desenvolvimento de uma nação que em nenhum momento pôs em prática um projeto vigoroso de educação básica e de capacitação técnica da mão de obra. Segundo, aferraram-se a um doentio anti-liberalismo, à ideia do Estado empreendedor, a uma hostilidade ao mercado e, não menos importante, ao autarcismo, quero dizer, à opção por uma economia fechada.
Estes dois componentes estão aí bem à mostra, como os pés de barro do gigante que queríamos (ou queremos) ser.