Nara Lacerda*, Brasil de Fato
O Brasil tem mais de R$ 3 bilhões de reais parados no Banco Nacional de Desenvolvimento Social (BNDES), que deveriam ser destinados à preservação da floresta amazônica, mas foram desprezados pela gestão de Jair Bolsonaro (PL).
Ao decidir que não iria cumprir as regras para uso dos recursos do Fundo Amazônia, o governo de extrema direita mandava um recado para a comunidade internacional: o país estava fora dos debates globais sobre preservação ambiental.
Em entrevista ao programa Bem Viver, da Rádio Brasil de Fato, a coordenadora de Política e Direito Socioambiental no Instituto Socioambiental (ISA), Adriana Ramos, afirma que o boicote foi uma “opção política”.
Em 2019, o ex-ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, extinguiu os dois comitês responsáveis pela gestão dos recursos. A formação dos grupos, que atuam no controle e na aplicação do dinheiro, é uma obrigação contratual. Sem eles, o fundo deixa de existir.
“Nenhum país tirou dinheiro do Fundo Amazônia. Foi o governo Bolsonaro que fez a escolha de cancelar o funcionamento desses dois comitês. Foi uma opção política não utilizar esse recurso. Esse recurso só pode ser utilizado para conservação, fiscalização e promoção do desenvolvimento sustentável. O governo não conseguiria utilizar esse recurso para outros fins. Então, ele preferiu que não fosse utilizado, porque esse não era o objetivo da política dele para a Amazônia.”
O descumprimento das condições exigidas pelos países financiadores do fundo sabotou um mecanismo importante e estremeceu as relações com outras nações. O estrago foi considerável, porque o Brasil sempre dependeu de cooperação internacional para políticas ambientais.
“Ficou evidente que quem tinha interesses que não eram adequados era o governo Bolsonaro. Isso é tão reconhecido internacionalmente, que já no processo eleitoral havia essa sinalização de que acredita-se que o governo Lula vá recompor essas instâncias.”
Na semana seguinte à vitória de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) nas urnas, Alemanha e Noruega – os dois financiadores do fundo – declararam que vão retomar o aporte de recursos para preservação da Amazônia.
Em paralelo, o Supremo Tribunal Federal (STF), determinou que o governo federal retome o mecanismo e recomponha os comitês responsáveis pela gestão dos recursos.
Enquanto o Fundo Amazônia estava parado, as taxas de desmatamento aumentaram em todos os biomas, principalmente na Amazônia. A devastação este ano já é 33% maior do que tudo o que foi registrado em 2021.
Confira abaixo entrevista completa.
Brasil de Fato: O que o Fundo Amazônia representa para a política de preservação ambiental no Brasil?
Adriana Ramos: O Fundo Amazônia foi criado para que o BNDES recebesse um recurso que foi, na época, destinado pelo governo norueguês. Depois teve um aporte também do governo alemão, reconhecendo os esforços na redução do desmatamento, que aconteceu exatamente a partir do primeiro mantado do governo Lula e até o início do primeiro mandato do governo Dilma.
O Brasil foi um dos países que mais reduziu emissões de gases que causam o efeito estufa com a redução do desmatamento. Nesse sentido, se qualificou como país que poderia receber recursos para investimentos nessa área. Como um pagamento por resultados que já tinham sido alcançados pelo governo brasileiro.
Esse fundo é administrado pelo BNDES, mas conta com dois comitês. O primeiro é um comitê técnico que atesta as taxas de desmatamento que estão sendo alcançadas no país para sinalizar quanto o país tem de resultados a aferir financeiramente.
O outro comitê é o comitê orientador do Fundo Amazônia, criado para reunir parte do governo federal, os governos estaduais da Amazônia e a sociedade civil, para discutir as grandes diretrizes de investimentos do fundo. Quais são as áreas que deveriam ser privilegiadas, como os projetos poderiam acontecer e poder ajudar o fundo a direcionar esforços para manter as políticas e ações que ajudam o desmatamento a ficar baixo.
Essa foi a lógica do fundo. Ele funcionou por praticamente dez ano, com muitas dificuldades já nos últimos tempos, em função dessa disputa muito grande de vários setores, como o agronegócio e a mineração, com pressão sobre a floresta.
Obviamente o fundo cumpre um papel fundamental, mas ele sozinho não dá conta do recado. Ele precisa estar ancorado em uma política. Ele foi criado no âmbito de prevenção e combate ao desmatamento, mas a desmobilização desse plano também afetou o fundo. Tendo em vista que não há esforço de investimento suficiente que resista a baixa aplicação da legislação e uma certa leniência com a ilegalidade, que nós vimos nos últimos quatro anos
Como ocorreu a extinção do Fundo Amazônia?
O que temos que entender é que nenhum país tirou dinheiro do Fundo Amazônia. Foi o governo Bolsonaro que fez a escolha de cancelar o funcionamento desses dois comitês, que eram uma condição contratual dos financiadores pra utilização dos recursos.
Mais de R$ 3 bilhões estão parados nas contas do BNDES desde o início do governo Bolsonaro. Foi uma opção política do governo Bolsonaro não utilizar esse recurso. Porque esse recurso só pode ser utilizado para conservação, fiscalização e promoção do desenvolvimento sustentável.
O governo não conseguiria utilizar esse recursos para outros fins, então ele preferiu que não fosse utilizado, porque esse não era o objetivo da política dele para a Amazônia.
O que aconteceu quando o fundo foi criado é que o contrato dos doadores com o BNDES tem as chamadas salvaguardas, exatamente para não permitir que o dinheiro seja usado para qualquer coisa. Uma delas é a existência desses comitês com a participação da sociedade.
Esses comitês é que definem as prioridades onde o recurso pode ser utilizado. Ao editar uma medida que cancelava o funcionamento desses comitês, o governo fez a opção por não utilizar o recurso.
Talvez eles tivessem a expectativa de que sem os comitês eles poderiam destinar o dinheiro como quisessem. É aí que essas medidas aparecem como salvaguardas, porque foram feitas exatamente para salvaguardar o interesse público diante de algum interesse específico que não fosse adequado aos objetivos do fundo. Ficou evidente que quem tinha interesses que não eram adequados era o governo Bolsonaro.
Isso é tão reconhecido internacionalmente que no processo eleitoral já havia essa sinalização de que acredita-se que o governo Lula vá recompor essas instâncias. Agora de qualquer maneira, porque a decisão do Supremo Tribunal Federal manda o governo, seja lá qual for, recompor essas instância.
Os doadores foram além, os resultados das eleições fizeram com que eles sinalizassem a vontade de continuar apoiando o fundo, além desse recurso que já está lá. O que é uma ótima notícia, porque a verdade é que o Brasil sempre dependeu de cooperação internacional para fazer suas políticas ambientais avançarem e, cada vez mais, vamos precisar disso.
Como é possível recuperar esse prejuízo de quatro anos?
Tem muita coisa para fazer. Eu acho que esse primeiro anúncio mostra que o presidente Lula ainda está na memória dos demais dirigentes como o presidente que mais reduziu o desmatamento no Brasil.
O fato de ele ter ao lado dele, nessa campanha de segundo turno, a ex-ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, trazendo uma proposta que deu mais consistência à agenda ambiental no programa de governo, também é uma sinalização muito objetiva para quem já teve oportunidade de ver que essas pessoas juntas conseguiram fazer a diferença.
Agora, o desmonte é muito grande. Há centenas de medidas revogadas ou editadas que precisam ser revistas, porque todas as estruturas do sistema nacional do meio ambiente e do Ministério do Meio Ambiente foram alteradas.
O Observatório do Clima fez um mapeamento, no âmbito do projeto Brasil 2045, um mapeamento das políticas e das normas que precisam ser revistas. O grupo do Instituto Talanoa, Política por Inteiro, também produziu um material nesse sentido.
Então tem tudo muito sistematizado. São mudanças que vamos precisar que sejam feitas imediatamente, assim como a recomposição das instâncias do comitê do Fundo Amazônia, a recomposição da participação da sociedade civil no Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama), todas as estruturas dos procedimentos de fiscalização e aferição de multas de crimes ambientais, que foram totalmente alteradas para beneficiar aqueles que estavam atuando de forma irregular.
Temos muita coisa que precisa ser refeita e estruturalmente, para que se possa começar a trabalhar no desenvolvimento de novas políticas.
O governo eleito de Lula sinaliza para a possibilidade de derrubar as medidas da gestão atual que representaram desmonte. No chamado revogaço prometido por Lula, quais são os pontos mais urgentes para o meio ambiente?
É muita coisa e muita coisa que é norma infralegal. Portarias, instruções normativas, que organizavam como uma burocracia funcionava e que foram alteradas.
Temos um exemplo no processo de fiscalização. O fiscal vai a campo, autua alguém que ele encontrou agindo de forma irregular e, na área ambiental, foi estabelecido um procedimento de que essa multa, antes de entrar no sistema direto do fiscal, ela tem uma verificação em uma instância acima do fiscal, que seria uma instância política para verificar se aquela multa vai adiante ou não.
Pequenas coisas que fazem muita diferença no sistema como um todo. Foi esse pente fino que as organizações ajudaram a fazer para poder identificar. Então são muitas medidas. Essa eu acho que ela é muito simbólica porque ela mostra como, ao alterar uma rotina de trabalho da fiscalização ambiental, você diminui a responsabilização por aqueles que agem na ilegalidade. Vai diminuir a forma de cobrar multa.
Tivemos, por conta dessas mudanças recentemente, muitas multas que estavam para expirar o prazo e aí é o poder público que perde. É o interesse público que perde quando você abre mão dessa cobrança.
Existem várias instâncias de conselhos que são importantes para definir como a política vai avançar. Medidas que revogaram essas instituições precisam ser revogadas para que as normas voltem a valer.
São coisas que mexem no dia a dia dos órgãos até grandes decisões, como as decisões no caso do Conama. Como você definir o que vai ser regulamentado no âmbito do Conselho, fortalecendo a instância de participação como a instância prioritária da política ambiental.
Já temos, inclusive, uma grande mobilização da sociedade civil. Nesta semana saiu uma carta do pessoal que trabalha com a Rede Brasileira de Educação Ambiental, pedindo a retomada de uma política nacional de educação ambiental. Existe uma legislação, mas foi tudo desmontado também. Tem várias áreas do governo em que isso vai precisar ser refeito.
Quais são as expectativas para a Conferência do Clima das Nações Unidas (COP27) e para a participação do presidente eleito no encontro?
O Brasil já vinha sendo representado só pela sociedade civil, com o governo não fazendo questão de se colocar nesse debate, e esse anúncio da ida do Lula gerou muita expectativa. Porque essa é uma COP que discute muito mais implementação do que grandes acordos. Os parâmetros dos acordos da convenção estão mais ou menos dados.
Então, para uma COP que vai discutir implementação, é animador que o país que detém a maior área de floresta tropical – portanto, uma área sensível e relevante para a agenda climática – esteja chegando com uma nova abordagem, com um novo governo e com um compromisso já anunciado pelo presidente Lula de implementação de políticas que são centrais no combate ao desmatamento.
É o caso da retomada da demarcação das terras indígenas, dos territórios, que são elementos centrais em qualquer estratégia de um país como o Brasil para lidar com essa questão. Então, é claro que o mundo se anima com a perspectiva de ter um ator importante nessa conversa, que é o Brasil, se colocando em outro patamar.
Obviamente vai ser uma coisa meio maluca, porque você vai ter a presença de um governo esvaziado e uma presença, que ainda não é governo, ainda é sociedade, mas que obviamente vai ter muito mais o que dizer do ponto de vista de compromissos futuros.
*Texto publicado originalmente no site Brasil de Fato