Revista online | Para uma crítica progressista do identitarismo
1 de dezembro de 2022história,progresso,luta,crítica,Revista Online,POLÍTICA DEMOCRÁTICA DESTAQUE,artigosidentitarismo,causas,RPD DEZEMBRO 2022,FAP,REVISTA PD
Ricardo José de Azevedo Marinho*, especial para a revista Política Democrática online (50ª edição: dezembro/2022)
Risério, Antonio (org.). A crise da política identitária. Rio de Janeiro: Topbooks, 2022. 561 págs.
Antonio Risério é um intelectual rigoroso e reuniu um time plural e eclético no conjunto de ensaios intitulado A crise da política identitária. Ele e os demais buscaram origem, história, morfologia e linguagem usada pela política identitária, documentando-a com precisão e sem impressões superficiais e/ou intuições vagas. Desenvolveram uma argumentação baseada em análise precisa dos textos que embasam a política identitária. E parecem ter a capacidade de ler muito do que os identitários produzem, em toda a sua geografia política, mantendo a serenidade e agindo frente aos apaixonados pela vitimização com uma postura aberta ao diálogo real.
Para tanto, Antonio Risério, Barbara Maidel, Bruna Frascolla, César Benjamin, Demétrio Magnoli, Gustavo Alonso, Pedro Franco, Ricardo Rangel, Raphael Tsavkko Garcia e Wilson Gomes, entre outros, agarram-se firmemente aos valores clássicos de esclarecimento, precisamente o que é negado e rejeitado quando se recorre a expurgos, julgamentos e condenações.
Nas 561 páginas, 20 ensaios inéditos, uma entrevista e alguns artigos, o livro mostra até que ponto as reivindicações identitárias, em todo o espectro político, são contraditórias e colocam essa política em crise: elas rejeitam uma postura planetária universal que articula as diferenças, mas que acabam por proclamar para si em outro lugar. Será preciso percorrer a história de toda essa literatura de vingança, de todos esses apelos aos assassinatos em nome da restauração da justiça, para perceber que não se trata de tornar o mundo um lugar melhor, mas apenas ocupar o lugar dos odiados dominantes?
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Wilson Gomes insiste com razão que a nova língua dessas correntes, em sua diversidade, forma uma frente aparentemente unida apenas contra o homem-branco-patriarcal-ocidental, responsável por todos os infortúnios do mundo. Mas, assim que tais correntes são criticadas a partir de outras vertentes, elas se dispersam, e, se cada uma pode reconhecer a validade dos argumentos contra seu vizinho em luta, os mesmos argumentos certamente não são válidos para ela.
Há muitas causas diferentes a defender, injustiças a reconhecer e reparar, como mostram as estatísticas maniqueístas expostas por César Benjamin e Bruna Frascolla. A cada um seu território de ativismo e busca por reconhecimento, como mostra Barbara Maidel. Ricardo Rangel acompanha de perto as mutações das lutas feministas, de Beauvoir aos estudos de gênero, dos grupos LGBTQIA+ até Meghan Markle, das lutas anticoloniais às pós-colonialidades e culturas de cancelamento. Rangel sublinha de cada vez a proliferação de vocabulários opacos que permitem eliminar as contradições da realidade e construir um universo autolegitimado.
Pedro Franco ilustra a absorção da política identitária pelas corporações, indicando o paradoxo das consequências, inclusive em governança ambiental, social e corporativa (Environmental, Social and Governance - ESG). Raphael Garcia expõe como a teoria política da extrema-direita de Steve Bannon se apropria da crise da política identitária. Pois é preciso olhar com rigor a política identitária em toda a sua presença na geografia política e, ao mesmo tempo, perceber o perigo real daqueles que mobilizam os valores tradicionais retrógrados, como na dupla face de Janus. Esses adversários da direita extrema se baseiam na mesma lógica identitária, no ódio à alteridade e na definição fixa e imutável da identidade. Mais uma vez os extremos se unem.
Confira, a seguir, galeria:
Na história intelectual dessa política se vê que todas essas demandas se baseiam na “desconstrução” de Derrida, na luta contra os dominadores de Foucault e na denúncia da reprodução das elites de Bourdieu. E não nos parece ilegítimo chamar atenção para o fato de que esses mestres intelectuais aceitaram sua mobilização dessa forma, sem dizer nada sobre os entendimentos errôneos e o mau uso de suas obras. Às vezes, o silêncio fala mais alto que as palavras.
O volume oferece muito mais. Além de brilhantes análises conceituais, seu grande mérito é possibilitar uma leitura que estimula o necessário debate intelectual nessa hora de um governo de frente democrática que se avizinha.
Sobre o autor
*Ricardo José de Azevedo Marinho é presidente da CEDAE Saúde e professor do Instituto Devecchi, da Unyleya Educacional e da UniverCEDAE.
** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de dezembro/2022 (50ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.
*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na Revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores, não refletindo, necessariamente, as opiniões da Revista.
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1 de dezembro de 2022FAP,RPD NOVEMBRO 2022
*Daniel Costa é autor do artigo Um revolucionário cordial em revista. É historiador pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e desenvolve pesquisa acerca da corrupção na América portuguesa ao longo do século XVIII.
*A Fundação Astrojildo Pereira detém os direito do editorial da revista de novembro (edição 49): O caminho da democracia.
*Luis Sérgio Henriques é autor do artigo Breve notícia da terra devastada. É tradutor e ensaísta.
* JCaesar é o autor da Charge sobre Copa do Mundo e manifestantes. É pseudônimo do jornalista, sociólogo e cartunista Júlio César Cardoso de Barros. Foi chargista e cronista carnavalesco do Notícias Populares, checador de informação, gerente de produção editorial, secretário de redação e editor sênior da VEJA. É autor da charge publicada pela Revista Política Democrática Online.
*Mauricio Vianna é autor do artigo Sobre saúvas e saúde. É médico formado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e especialista em psiquiatria pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ).
Benito Salomão é autor do artigo Sinalizar uma regra fiscal é importante? economista e doutor em economia pelo Programa de Pós-Graduação em Economia da Universidade Federal de Uberlândia (PPGED-UFU).
*Álvaro José dos Santos Silva, 72 anos, é jornalista profissional, ex-editor do jornal A Gazeta de Vitória, no qual atuou durante 27 anos. É ex-assessor de comunicação, escritor, membro da Academia Espírito-Santense de Letras (AEL) e do Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo (IHGES). Também foi membro do PCB, PPS e Cidadania.
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Após PT apoiar Lira, Bolsonaro age contra orçamento secreto
1 de dezembro de 2022POLÍTICA HOJE 2,FAP,POLÍTICA HOJE
DW Brasil
O presidente Jair Bolsonaro (PL) encaminhou ao Congresso nesta quarta-feira (30/11) um projeto de lei para remanejar os recursos das emendas de relator para despesas obrigatórias previstas no Orçamento deste ano.
Tais emendas foram usadas nos últimos dois anos no âmbito do chamado orçamento secreto, para assegurar apoio de parlamentares do Centrão ao governo.
O Ministério da Economia argumentou que a proposta visa assegurar o pagamento de despesas obrigatórias previstas no Orçamento sem furar o teto de gastos.
De acordo com reportagem do Estado de S. Paulo, o presidente determinou a suspensão de todos os pagamentos de emendas de relator. Segundo o jornal, além do projeto encaminhado ao Congresso, um decreto editado pelo presidente nesta quarta visaria efetivar a decisão.
O decreto em questão autoriza o secretário Especial de Tesouro e Orçamento a remanejar, bloquear ou propor o cancelamento de dotações orçamentárias discricionárias (não obrigatórias).
Segundo o portal G1, no entanto, técnicos do Congresso avaliam que o decreto não garante o cancelamento de emendas de relator. Eles argumentam que as verbas do orçamento secreto estão previstas na Lei Orçamentária, que precisaria ser alterada por meio de projeto de lei.
Retaliação
De acordo com a imprensa, parlamentares veem no projeto encaminhado ao Congresso uma retaliação de Bolsonaro a uma aproximação do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva (PT) com o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), e sobretudo com o da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), que foi um dos principais aliados do atual governo.
Nesta quarta, Lira e Pacheco reuniram-se com Lula em Brasília. Na véspera, o PT e seus companheiros de federação PV e PCdoB anunciaram apoio à recondução de Lira à presidência da Câmara.
"O próprio presidente Arthur Lira foi o primeiro a reconhecer a legitimidade das urnas, do voto popular, e nós entendemos que é fundamental essa estabilidade institucional", destacou o líder do PT na Câmara, Reginaldo Lopes (MG).
Antes da eleição presidencial, a atuação de Lira vinha sugerindo uma tentativa de aumentar cada vez mais os poderes do Legislativo frente ao Executivo, sendo o ponto central dessa estratégia o orçamento secreto. E que o futuro presidente, fosse Lula ou Bolsonaro, teria que negociar com o líder do Centrão.
À DW, Thomas Traumann, analista político e professor da Fundação Getulio Vargas (FGV), definiu Lira como "o presidente da Câmara mais poderoso da história".
O orçamento secreto
O chamado orçamento secreto foi criado em 2020, no segundo ano do governo Bolsonaro. O mecanismo foi revelado pelo jornal O Estado de S.Paulo em maio de 2021.
Por meio do esquema, o governo e o comando da Câmara e do Senado distribuíram verbas públicas para atender interesses dos deputados e senadores que os apoiaram.
As autorizações para destinar essas verbas foram incluídas no Orçamento depois de ele já ter sido aprovado, por meio das emendas parlamentares. As usadas no orçamento secreto foram as emendas de relator. Elas costumavam ser usadas apenas para fazer pequenas correções no Orçamento, até uma nova regra de 2020, que mudou isso.
As emendas de relator passaram a destinar bilhões de reais para obras, compras de veículos e diversos outros gastos, sem transparência e às vezes ligados a indícios de corrupção.
A mídia batizou o mecanismo de orçamento secreto porque é impossível identificar em alguns casos qual deputado ou senador é o responsável pela criação da emenda. No começo, também era muito difícil identificar o destino do dinheiro.
Em agosto, Simone Tebet, candidata derrotada do MDB a presidente e que apoiou Lula no segundo turno, disse que o orçamento secreto poderia ser o "maior esquema de corrupção do planeta Terra".
lf (DW, ots)
Matéria publicada originalmente no DW Brasil
Relatório do Unaids marca Dia Mundial de Luta contra a doença
1 de dezembro de 2022TD-destaque,aids,doençaFAP,TEMAS & DEBATES
Agência Brasil
Atingir o compromisso global de encerrar a pandemia de aids até 2030 passa pelo combate às desigualdades e estigmas que acompanham essa emergência de saúde pública desde o seu surgimento, há 41 anos, destaca o relatório Desigualdades Perigosas, divulgado esta semana pelo Programa das Nações Unidas sobre HIV/Aids (Unaids) para marcar o Dia Mundial de Luta Contra a Aids, celebrado hoje (1°). Especialistas e ativistas reforçam que, mesmo com o avanço dos medicamentos disponíveis, a discriminação contra grupos vulneráves e pessoas que vivem com HIV reduz o acesso à saúde, impede o diagnóstico precoce e causa mortes por aids que poderiam ser evitadas com tratamento.
Em mensagem divulgada para marcar a data de combate à doença, o secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, alertou que o mundo ainda está distante de eliminar a Aids até 2030 e afirmou que as desigualdades perpetuam a pandemia da doença.
"São necessárias melhores legislações e a implantação de políticas e práticas voltadas para eliminar o estigma e a discriminação que afetam as pessoas que vivem com HIV, sobretudo aquelas em situação de vulnerabilidade. Todas as pessoas têm o direito de ser respeitadas e incluídas", disse.
Segundo o Unaids, 38,4 milhões de pessoas viviam com HIV em todo o mundo em 2021. Esse número é maior que a população do Canadá ou que a soma de todos os habitantes dos estados do Rio de Janeiro e Minas Gerais. No Brasil, o número de pessoas vivendo com HIV passava de 900 mil no ano passado, de acordo com o Ministério da Saúde, e, desse total, cerca de 77% tratavam a infecção com antiretrovirais. A efetividade do tratamento disponível gratuitamente no país é reiterada pelo percentual de 94% de pessoas com carga viral indetectável entre as que fazem uso dos medicamentos contra o HIV. Quando o paciente em tratamento atinge esse nível de carga viral, ele deixa de transmitir o HIV em relações sexuais.
Desde o início da pandemia de Aids, em 1980, até dezembro de 2020, o Brasil já teve mais de 1 milhão de casos da doença, que causaram 360 mil mortes. A taxa de detecção vem caindo no Brasil desde o ano de 2012, quando houve 22 casos para cada 100 mil habitantes. Em 2020, essa proporção havia chegado a 14,1 por 100 mil, o que também pode estar relacionado à subnotificação causada pela pandemia de covid-19.
HIV ou Aids?
O vírus da imunodeficiência humana (HIV) é um agente infeccioso que pode entrar no corpo humano por meio do sexo vaginal, oral e anal sem camisinha; por meio do uso de seringas e outros objetos cortantes ou perfurantes contaminados; pela transfusão de sangue contaminado; e da mãe infectada para seu filho durante a gravidez, o parto e a amamentação, se não for realizado o tratamento preventivo. Quando se instala no corpo humano, esse vírus tem um tempo prolongado de incubação, que pode durar vários anos, e sua atividade ataca o sistema imunológico, responsável por defender o organismo. Se essa infecção não for detectada e controlada a tempo com o uso de antirretrovirais, o HIV pode enfraquecer as defesas do corpo humano a ponto de causar a Síndrome da Imunodeficiência Humana (aids). Portanto, a sigla HIV se refere ao vírus, e a sigla Aids, à doença causada pelo agravamento da infecção pelo HIV.
O uso de preservativos masculinos e femininos e gel lubrificante estão entre as principais ações preventivas contra o HIV. Também já estão disponíveis a Profilaxia Pré-Exposição (PrEP), que consiste no uso de antirretrovirais para prevenir a infecção caso a pessoa venha a ser exposta ao vírus, e a Profilaxia Pós-Exposição (PEP), que pode impedir a infecção caso seja administrada até 72 horas após a exposição. Mesmo no caso de haver uso dessas profilaxias, a camisinha continua importante, pois previne também outras infecções sexualmente transmissíveis, como a sífilis e as hepatites virais.
Ao menos 30 dias após uma possível exposição ao HIV, é fundamental fazer um teste para a detecção do vírus, exame que pode ser realizado em unidades da rede pública e nos centros de Testagem e Aconselhamento (CTA). O diagnóstico precoce da infecção e o início rápido do tratamento protegem o sistema imunológico da pessoa infectada, já que esse será o alvo do HIV quando a carga viral aumentar.
Diretor médico associado de HIV da GSK/ViiV Healthcare, Rodrigo Zilli explica que os antiretrovirais usados hoje para o tratamento das pessoas que vivem com HIV são menos tóxicos para o corpo humano, causam menos efeitos colaterais e são administrados em quantidade bem menor de comprimidos. A farmacêutica é a fornecedora do Dolutegravir e outros medicamentos usados no Sistema Único de Saúde (SUS) para combater o vírus. Desde 1996, o Brasil distribui gratuitamente os antirretrovirais a todas as pessoas que vivem com HIV e necessitam de tratamento, contando atualmente com 22 medicamentos em 38 apresentações farmacêuticas diferentes.
“O tratamento hoje é muito menos tóxico. Nem se usa mais a palavra coquetel, porque não é um conjunto enorme de remédios como se tinha antigamente. E, se a pessoa descobre o HIV a tempo de não ter desenvolvido a imunodeficiência, ela tem chance muito grande de ter uma vida totalmente normal tomando remédios diariamente”, afirma o infectologista. Ele reforça que a pessoa com HIV pode ter expectativa de vida até maior do que pessoas que não foram infectadas pelo vírus. “Essa pessoa que está em tratamento está acompanhando todas as doenças praticamente. Então, ela faz check-ups periódicos, faz exames periódicos, tem aconselhamento para manter um estilo de vida saudável, e acaba podendo ter uma vida mais saudável do que alguém que não tem HIV e não faz acompanhamento médico”.
Mesmo com esses avanços no tratamento contra o HIV e a disponibilidade gratuita dos medicamentos, o acesso à saúde ainda é marcado por desigualdades, pondera Zilli. “Por mais que se tenha um programa 100% público, o acesso à informação e aos serviços não é totalmente igualitário”, lembra o infectologista.
Questões sociais
O coordenador do Grupo Pela Vidda-RJ, Márcio Villard, avalia que o combate terapêutico à Aids avançou mais do que a superação dos preconceitos que afetam as pessoas que vivem com HIV. Mesmo com medicamentos menos tóxicos e uma expectativa de vida maior, questões sociais afastam pessoas com HIV de uma vida plena.
“Quando a gente fala em qualidade de vida, não pode entender somente a questão terapêutica e biomédica. É preciso também entender as questões sociais que envolvem a pessoa com HIV, porque enfrentamos ainda muitos problemas relacionados a estigmas, preconceitos e exclusão social que interferem na qualidade de vida”, afirma. "O que acontece é que o HIV sempre traz consigo uma condenação. De alguma forma, a sociedade vai te condenar, seja pelo seu estilo de vida, seja pela sua orientação sexual, seja por você pertencer a um determinado grupo da sociedade. Praticamente ninguém escapa, até uma criança que nasce com HIV vai ser estigmatizada por isso. Infelizmente, esse cenário não mudou".
O ativista explica que a estigmatização das pessoas com HIV tem raízes ligadas à LGBTfobia, já que os primeiros surtos de HIV se deram na população homossexual, bissexual e transexual nos Estados Unidos, e a imprensa da década de 80 reforçou a associação entre a população LGBTI e o HIV, chamando a aids até mesmo de câncer gay.
“Isso começou nos Estados Unidos, se espalhou pelo mundo e acabou virando um selo. Aqui no Brasil, até o ano passado, homossexuais não podiam doar sangue, independentemente de ter ou não o vírus”.
O Pela Vidda-RJ foi fundado em 1989 pelo sociólogo e ativista Hebert Daniel e atua desde então na luta por direitos das pessoas que vivem com HIV. Às 11h de hoje, o grupo vai promover ato público na Praça Mauá, no centro do Rio de Janeiro, com o tema Viver com o HIV é possível. Com o preconceito, não. Entre as principais demandas atuais da população que vive com HIV, Villard conta que estão a assistência jurídica para garantir direitos previdenciários e trabalhistas. Os problemas incluem processos seletivos que eliminam candidatos que testam positivo para HIV, enquanto essa testagem é vedada por lei em qualquer exame admissional, periódico ou demissional. Fora esses direitos, as pessoas com HIV também procuram a organização não governamental para receber acolhimento afetivo.
“A maior dificuldade ainda é a questão do estigma. Quando a pessoa tem esse diagnóstico, ela tem dificuldade de lidar com ele. E, ao se colocar para a família, no trabalho e para os amigos, vai enfrentar discriminação. São raros os casos em que a pessoa consegue viver tranquilamente, independentemente de sua sorologia”.
Angústia e cura
A dificuldade de encontrar informação e acolhimento depois do diagnóstico foi o que moveu o influenciador João Geraldo Netto a compartilhar sua experiência na internet desde 2008.
"Inicialmente, eu falava de uma maneira mais oculta, não falava especificamente que eu vivia com o vírus. Mas aí eu senti a necessidade de falar sobre isso mais abertamente. Eu descobri que, falando, eu me curava de certa forma. Sentia algo muito positivo quando falava sobre os dramas, os medos que eu tinha de fazer tratamento, de morrer, de adoecer. E eu vi que aquilo era muito bem recebido. Isso foi me dando força", conta.
O jornalista acrescenta que a maioria das pessoas que entram em contato nas redes sociais está angustiada, seja porque acredita que se expôs ao risco de infecção ou porque já recebeu o diagnóstico e está tentando lidar com ele. João Geraldo acredita que o peso social do HIV afasta as pessoas do teste e do diagnóstico precoce, porque muitas não se percebem parte de um suposto grupo social que poderia ser infectado e outras preferem não saber o resultado do teste por medo.
“A questão do preconceito é algo tão forte que atrapalha de fazer o teste, de procurar ajuda e tratamento e impede que a pessoa tome o medicamento todo dia. Então, o grande problema do HIV hoje não é mais um problema clínico, é um problema social”, diz. “As pessoas que chegam ao meu canal mais angustiadas são aquelas que passaram por situação que consideram moralmente errada e acreditam que é uma punição para elas. E a pior punição que elas conseguem imaginar é uma doença como a Aids. Então, isso é muito doloroso, sabe? Porque você vê que está conversando com uma pessoa que acha que a pior coisa que pode acontecer na vida é o que você tem”.
Em suas postagens nas redes sociais, o influenciador comenta sobre HIV e temas do dia a dia e de sua vida pessoal, como fotos de viagens, reuniões com amigos e declarações de amor ao namorado. Em um de seus perfis, chamado Superindetectável, ele deixa a seguinte mensagem: “Respira fundo! Pela frente ainda tem muito mundo. Agora pode não estar, mas tudo pode ficar bem”.
Edição: Graça Adjuto
Matéria publicada originalmente na Agência Brasil
Votação do Estatuto do Nascituro na Comissão da Mulher na Câmara é adiada após tumulto
1 de dezembro de 2022aborto,Mais NotíciasPOLÍTICA HOJE 2,muçher,FAP,PH-destaque
Thamy Frisselli | Brasil de Fato
Na tarde desta quarta-feira (30) a Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher na Câmara Federal, em Brasília, realizou reunião, entre outras pautas, para votar o PL 478/2007 que dispõe sobre o Estatuto do Nascituro e dá outras providências.
Na prática, o projeto pretende instituir os direitos da vida desde a concepção e conceder às mulheres e meninas, vítimas de violência sexual, uma “bolsa estupro” que as obrigariam a levar adiante a gravidez.
Em um debate tumultuado, a inversão da pauta da reunião chegou a ser aprovada para que o PL entrasse logo em votação. Para a deputada federal Sâmia Bonfim (PSOL/SP) “o projeto desconsidera acúmulos da ciência, da bioética e do Direito, podendo retroceder na interrupção de gestações fruto do estupro”.
:: Casos de aborto previstos em lei devem ser mantidos ou ampliados, defendem 74% dos brasileiros
Durante a reunião, o deputado Pastor Eurico (PL/PE) tentou, aos gritos, interromper as falas das parlamentares contrárias ao projeto. Em vídeo que circula nas redes sociais, é possível ver o parlamentar batendo na mesa. “Os fundamentalistas e bolsonaristas usam de todo tipo de violência para tentar intimidar as mulheres parlamentares na Câmara. Que saibam: não nos calam”, destacou Sâmia.
Representantes de movimentos feministas e também daqueles que se denominam pró-vida lotaram o plenário da sala da Comissão. “Criança não é mãe” e “Estuprador não é pai” eram algumas das palavras de ordem ditas pelas mulheres de organizações e movimentos feministas que acompanhavam a discussão. As deputadas federais Erika Kokay (PT/DF), Talíria Petrone (PSol/RJ), Aurea Carolina (PSOL/MG), Vivi Reis (PSOL/PA) e Fernanda Melchiona (PSOL/RS) também acompanharam a sessão.
Sem a possibilidade de continuidade do debate, o PL do Estatuto do Nascituro continua na próxima reunião da Comissão, no dia 7 de dezembro. Presidente da Comissão, a deputada federal Policial Kátia Sastre (PL/SP) disse que a presença de público estará proibida.
No Brasil o aborto é permitido em três situações: estupro, risco de vida para a mulher e em casos de anencefalia. O Estatuto do Nascituro está em análise desde junho de 2017, mas tramita na prática desde 2007, com outras autorias, redações minimamente distintas.
:: Entrevista | “Lutamos para situar a discussão sobre aborto dentro do campo da saúde pública” ::
“É bem de praxe que projetos desse tipo tramitem na Câmara no final do ano, ainda mais em final de legislatura. É uma forma que eles encontram de engajar suas bases mais conservadoras, religiosas, tirar um pouco a tensão de temas que envolvem orçamento, emendas parlamentares, formação de base do novo presidente, para tirar o peso de questões importantes que podem afetar sua popularidade esses parlamentares mais conservadores trazem esses projetos à tona”, destaca a cientista política e pesquisadora do Núcleo de Estudos de Sexualidade e Gênero da UFRJ, Priscilla Brito.
De acordo com dados do Ministério da Saúde, reunidos pelo Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA), são mais de 19 mil nascidos vivos por ano de mães com idade entre 10 a 14 anos.
:: Gravidez na infância e adolescência no Brasil: um estado de coisas inconstitucional ::
Para Priscilla Brito, se aprovado, o Estatuto resultaria em um crime contra a humanidade das mulheres e das meninas.
“Já tem aumentado a criminalização das mulheres que sofrem abortos espontâneos pela desconfiança que se tem de que eles possam ter sido provocados, que envolve toda uma desumanização do atendimento às mulheres, fazendo com que mulheres sejam constrangidas nos postos de atendimentos isso é bem resultado do crescimento da pauta conservadora no Brasil. E ainda teríamos como outro resultado desse Projeto, a imposição para que meninas prolonguem a violência sexual. Apesar de parecer um projeto que parece quase inofensivo, é com certeza um projeto violento, atingindo diretamente os direitos reprodutivos e sexuais das mulheres, por isso é tão combatido pelas organizações de mulheres de todo país”.
Matéria publicada originalmente no Brasil de Fato
Ressucitar penduricalho para juízes é absurdo, diz Rubens Bueno
1 de dezembro de 2022Mais Notícias,POLÍTICA HOJE 2,FAP,Parceiros FAP
Congresso em Foco
Relator do projeto aprovado pela Câmara que barra os supersalários no serviço público, e que está parado no Senado desde agosto do ano passado, o deputado federal Rubens Bueno (Cidadania-PR) criticou nesta terça-feira (29) a intenção do Senado de votar ainda nesta semana uma proposta que cria mais um penduricalho para engordar os salários do Judiciário e do Ministério Público.
“É um absurdo. Mais uma vez estão cedendo ao lobby do Judiciário. Aprovamos na Câmara um projeto que barra os penduricalhos que permitem salários acima do teto constitucional. Agora, em vez de aprovarem esse projeto no Senado, para dar um basta nessa farra, querem criar mais um. A população não aguenta mais bancar privilégios para uma pequena casta do Judiciário”, afirmou Rubens Bueno
A Proposta de Ementa a Constituição (PEC 63/2013) foi colocada na pauta da próxima quarta-feira (30) do Senado e tem o objetivo de ‘ressuscitar’ o chamado quinquênio, que é um acréscimo de 5% nos salários de juízes e integrantes do Ministério Público a cada cinco anos. O PL 6726/2016, que no Senado recebeu o número 2721/2021, está há mais de um ano na CCJ do Senado sem sequer a indicação de um relator.
Rubens Bueno também criticou decisão do decisão do CJF (Conselho de Justiça Federal) que reestabeleceu o benefício do quinquênio com efeito retroativo. O ‘penduricalho’ havia sido extinto em 2006.
“Esse tipo de decisão em benefício próprio é um escárnio”, reforçou.
Supersalários
O projeto que barra os supersalários no serviço público, aprovado em julho de 2021 na Câmara, pode gerar uma economia de R$ 3 bilhões a R$ 10 bilhões por ano. Para isso, explica Rubens Bueno, foi feito exatamente o que determina a Constituição.
“Restringimos as verbas indenizatórias que podem ultrapassar o teto. Fora dessa lista, tudo será alvo do abate teto. E são centenas de rubricas que antes eram consideradas indenizatórias e que com a aprovação final do projeto serão alvo do abate teto”, explica Rubens Bueno.
Matéria publicada originalmente no Congresso em Foco
Nas entrelinhas: Projeto prevê controle de conteúdo da internet
1 de dezembro de 2022PH-destaque,plataformasFAP,internet
Luiz Carlos Azedo | Nas Entrelinhas
A equipe de transição do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva tenta adiar para o próximo ano a votação do projeto de lei de autoria do deputado federal João Maia (PL-RN), que estabelece regras para atuação das plataformas digitais no país e só falta ser incluído na pauta pelo presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL).
A proposta confere à Anatel (Agência Nacional de Telecomunicações) superpoderes para controlar a internet, inclusive seu conteúdo. “No Projeto de Lei nº 2.768/2022, proponho uma regulação na linha da Comissão Europeia, mas de forma bem menos detalhada. Isso porque estamos lidando com questões de extrema relevância, que exigem respostas regulatórias ao mesmo tempo novas e muito rápidas”, argumenta Maia.
Segunda a proposta, em vez de um novo órgão regulador, a Anatel seria empoderada para tratar de todas as questões relativas à internet. Há dúvidas sobre isso, embora Maia argumente que o órgão já possui expertise muito próxima da requerida para a missão de regular plataformas digitais. Na linha da União Europeia, o projeto distingue usuários profissionais e finais. Também estabelece critérios para a definição de operadores de plataformas digitais, que serão considerados como detentores de poder de controle de acesso essencial (receita operacional anual igual ou superior a R$ 70 milhões).
O projeto reduz o poder e a autonomia das chamadas big techs, as grandes empresas de tecnologia, principalmente Google, Facebook, Amazon e Apple, todas norte-americanas. A influência das plataformas e redes sociais nas eleições tem despertado o interesse dos políticos, sobretudo depois do escândalo da Cambridge Analytica, decisiva na campanha do Brexit, na Inglaterra, e da atuação de hackers russos nas eleições norte-americanas em favor de Donald Trump, eleito em 2016.
Aqui no Brasil, em 2018, o presidente Jair Bolsonaro surpreendeu os adversários ao estruturar sua campanha e focar o marketing eleitoral nas redes sociais, sem que houvesse qualquer controle da Justiça Eleitoral. Neste ano, porém, foi diferente. Um inquérito aberto pelo Supremo Tribunal Federal (STF) investiga bolsonaristas responsáveis pela produção de fake news nas redes sociais, com objetivos antidemocráticos.
As principais críticas ao modelo proposto por Maia parte da ideia de que o setor se desenvolve de forma disruptiva e esse tipo de regulação seria absorvido pelas big techs, mas mataria o desenvolvimento das startups. O termo startup, do inglês, significa “começar algo novo” e é comumente relacionado à inovação no mundo dos negócios. Portanto, uma startup é uma empresa que está em seu início, sem plano de negócios ou produto completamente definido, mas que tem algo novo a mostrar ao mercado. Aplicativos como Uber, Airbnb, Instagram e Pinterest já foram startups antes de se tornarem companhias multimilionárias. Nubank, GuiaBolso, QuintoAndar, Loggi, Contabilizei, Creditas e Amaro são startups genuinamente brasileiras.
Obrigações e multas
O mercado da internet é muito verticalizado. As big techs estão sendo questionadas por ampliarem seu poder na atividade principal para mercados adjacentes, com base no fato de a primeira ser, muitas vezes, um insumo para os segundos, no chamado self-preferencing. É o caso dos aplicativos em celulares deGoogle e Apple, da ferramenta de busca horizontal do Google, ao Buy Box da Amazon ou aos dados acumulados nas redes sociais, como fotos e postagens do Facebook.
Nos últimos 20 anos, houve grande concentração de mercado. Em vez de dúzias de mecanismos de busca, o Google. No lugar de milhares de lojas, a Amazon. Nos Estados Unidos, o American Innovation and Choice Online Act, que proíbe o self-preferencing, empacou no Congresso. Na Comissão Europeia, o Digital Markets Act (DMA), direcionado aos chamados “controladores de acesso” (gate keepers) no mundo digital, foi aprovado em 2022, mas gerou um contencioso com os Estados Unidos. A China investiu bilhões nas suas próprias plataformas e redes para manter o controle social, porém as manifestações que estão ocorrendo no país mostram que isso não é tão fácil.
Maia propõe um Fundo de Fiscalização das Plataformas Digitais — FisDigi, com fontes constituídas por uma nova taxa de fiscalização das plataformas digitais, dotações do Orçamento Geral da União, créditos especiais, transferências e repasses, entre outras. A taxa de fiscalização das plataformas digitais será devida anualmente pelos operadores de plataformas digitais que oferecerem serviços ao público brasileiro, detentores de poder de controle de acesso essencial, correspondente a 2% da receita operacional bruta.
Além dos recursos do FisDigi terem como destino o financiamento aos novos serviços prestados pela Anatel, prevê a possibilidade de o Poder Executivo destinar parte dos valores ao Fundo de Garantia de Operações — FGO para serem utilizados como garantia ao desenvolvimento de produtos e serviços digitais inovadores, o que financiaria um “FGO Digital”. As sanções seguiriam a lógica de “regulação responsiva”, com multas pesadíssimas.
Revista online | Desafios fiscais, reforma do Estado e redução das desigualdades sociais
30 de novembro de 2022Economia,opinião,reforma,Revista Onlinerevista online,posição_1,RPD NOVEMBRO 2022,RPD DEZEMBRO 2022,FAP,REVISTA PD
Eduardo Rocha*, especial para a revista Política Democrática online (49ª edição: novembro/2022)
A saúde das finanças públicas – ao lado de outras medidas saneadoras e regulatórias - é um grande objetivo a ser conquistado para viabilizar a retomada estratégica do investimento público e privado, crescimento, emprego, renda, melhoria dos serviços e desenvolvimento no Brasil, com um claro compromisso de redução das terríveis desigualdades que ainda persistem. Assim, a responsabilidade fiscal não pode gerar a irresponsabilidade social; a saúde fiscal não pode ter como contrapartida a ruína social.
O novo governo recém-eleito com Luís Inácio Lula da Silva, assumindo pela terceira vez a Presidência da República, não logrará sair de imediato do atoleiro fiscal, da desnutrição dos investimentos e da desestruturação sistêmica das políticas públicas, bem como não conseguirá redução do seu custeio – medidas maléficas produzidas pelo desgoverno Bolsonaro.
Nova obra destaca propostas para desenvolvimento com inclusão social
Este novo governo – cuja natureza e alianças políticas são mais amplas do que o PT e seus aliados históricos – precisa realizar um pacto democrático centrado, entre outras tantas agendas econômico-sociais e político-institucionais, na criação de alternativas financeiro-fiscais extensivas e intensivas inéditas que permitam, de um lado, cortar despesas supérfluas e mantenedoras de privilégios e, de outro, promover a elevação das receitas públicas sem tirar mais um centavo de imposto do já espoliado, cansado e insatisfeito contribuinte. Os grandes contribuintes, porém, têm de entrar na órbita contributivo-fiscal, pois a manutenção de seus privilégios histórico-estruturais inviabiliza o futuro social e mina as bases sociais da democracia.
Veja, a seguir, galeria:
Além de criar as condições – ainda que paliativas – para cumprir as promessas eleitorais da eleição de 2022, é inequívoca a necessidade histórica para a construção democrática de uma ampla, profunda e estrutural reforma fiscal que vise promover uma otimização fiscal repartida, isto é, otimização seja do lado da receita seja do lado da despesa.
Tal reforma necessita criar uma imprescindível correlação de forças sociopolítica para construir progressivamente uma estrutura tributária e fiscal mais justa; redefinir em sentido democrático e progressista a natureza tributária tanto em termos de arrecadação quanto em termos de distribuição do bolo; atualizar a tabela do imposto de renda; reduzir a multiplicidade e a complexidade das regras; redesenhar a política de incentivos fiscais para estimular determinados setores geradores de emprego e aumentar a produtividade do trabalho e a competitividade da produção; incorporar o mercado informal ao mundo fiscal formal e, por fim, construir um orçamento que possibilite o financiamento das políticas públicas direcionadas à redução progressiva da terrível desigualdade social e intelectual-cultural existente entre milhões de cidadãs e cidadãos brasileiros. As desigualdades gravíssimas persistem mesmo depois de 34 anos da promulgação da Constituição Cidadã de 1988.
São desafios fiscais gigantescos a serem enfrentados e nada garante que serão facilmente superados. Fazem parte ainda desses desafios o fim de privilégios fiscais e o combate eficiente e eficaz da sonegação. De acordo com o site www.quantocustaobrasil.com.br, de 01/01/2022 a 05/12/2022, o Sonegômetro registrava que o Brasil havia perdido em torno de R$ 582 bilhões, de acordo com estudo realizado pela Receita Federal, que revela quanto deixou de ser pago nos tributos PIS/Cofins, concessão de subsídios/benefícios fiscais ao setor privado. Essa receita é impraticável nos curtos e médios prazos. É, com certeza, um cálculo conservador, mas o número impressiona.
Essa reforma fiscal, que abarque as esferas da União, estados e municípios, deve ser construída pela interação democrática entre governo, parlamento e sociedade civil. Ela é parte integrante da própria e necessária reforma democrática do Estado brasileiro para que o país sepulte, de forma definitiva, duas tradições perversas da nossa história fiscal: de um lado, a penalização e sofrimento para a cidadania, dos mais humildes, dos pobres, dos miseráveis, e, de outro, a isenção fiscal e manutenção de privilégios para as oligarquias, nas mais diversas modalidades.
Fala-se muito em “Estado máximo” e “Estado mínimo”. Seriam dois concretos antitéticos. Na vida real, concreta, material, objetiva, contudo, o Estado brasileiro realmente existente é, ao mesmo tempo, os dois termos suprassumidos na dança dialética do concreto, numa síntese trágica expressa na existência real de um Estado que é máximo para uma minoria privilegiada e, ao mesmo tempo, é um Estado mínimo para a maioria da população brasileira.
No lugar desse Estado que aí está – que faz a alegria das oligarquias, da especulação financeira e das castas privilegiadas; desse Estado que é gigante para o que faz e pigmeu para fazer o que deve ser feito; desse Estado que é – é preciso constituir um Estado democrático, desprivatizado, publicizado, transparente, realmente federativo e republicano, de maneira a oferecer, dentro das regras da democracia consagrada na Constituição de 1988, oportunidades para uma vida melhor, social e cultural ao seu povo e uma integração econômica em novas bases com a economia mundial.
Para tanto, é preciso, em primeiro lugar, declarar sem meias palavras: precisamos de mais Estado para a cidadania e o desenvolvimento e menos Estado para as oligarquias e os privilégios.
É preciso inverter essa tradição das trevas fiscais de modo que, do lado da despesa, cortem-se os gastos supérfluos e dos privilégios de uma minoria e acabe-se com a agiotagem financeira contra as finanças públicas, vitalizando assim as políticas sociais e de investimentos que dinamizem o setor produtivo. Do lado da receita, deve-se eliminar a regressividade da estrutura tributária, fazendo com o que os que mais têm e ganham paguem mais, por meio da progressividade sobre a renda e propriedade.
Sobre o autor
*Eduardo Rocha é economista pela Universidade Mackenzie com pós-graduação em Economia do Trabalho pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
** Artigo produzido para publicação na revista Política Democrática online de novembro/2022 (49ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.
*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na revista Política Democrática online são de exclusiva responsabilidade dos autores, não refletindo, necessariamente, as opiniões da publicação.
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Revista online | Combate à intolerância religiosa é desafio do governo Lula
29 de novembro de 2022REVISTA PD,Religião,Revista Online,posição_3,intolerância religiosa,RPD NOVEMBRO 2022FAP,Notícias
Jane Monteiro Neves, Sionei Leão, Cleomar Almeida e João Rodrigues*, especial para a revista Política Democrática online (49ª edição: novembro/2022)
Doutor em História Comparada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), o professor Babalawô Ivanir dos Santos destaca a importância do movimento negro para a eleição do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e diz que a “intolerância religiosa está espalhada por todo o país”. Em entrevista à revista Política Democrática deste mês de novembro (49ª edição), ele diz que o problema se agravou nos últimos quatro anos, com “interferência muito forte na democracia brasileira”.
O professor, que também é membro da Associação Brasileira de Pesquisadores Negros (ABPN), defende um plano nacional de combate à intolerância religiosa, cuja proposta, segundo ele, foi apresentada ainda em 2008 a Lula. “O novo governo deve ter medidas concretas e efetivas de combate à intolerância religiosa”, assevera.
Pesquisador do Laboratório de História das Experiências Religiosas (LHER-UFRJ) e do Laboratório de Estudos de História Atlântica das sociedades coloniais pós coloniais (LEHA-UFRJ), Santos também critica o academicismo nas universidades brasileiras e ressalta a necessidade de pensamento intelectual que reflita sobre a realidade dos mais pobres, a maioria da população. “Nem todos os acadêmicos são intelectuais”, afirma.
Diante do alerta de o Brasil ter voltado ao Mapa da Fome, das Nações Unidas, o professor também chama a atenção para a urgência de se garantir a segurança alimentar da população. “Fome Zero não é só dar o cartão para o pessoal adquirir o alimento no mercado, mas criar um processo de produção e de escoamento de alimentos para que cheguem a uma rede mais barata e a quem mais precisa”, sugere. A seguir, confira trechos da entrevista.
Veja todos os artigos da edição 48 da revista Política Democrática online
Política Democrática (PD): O que o senhor espera para o Brasil nos próximos quatro anos?
Babalawô Ivanir dos Santos (BIS): Neste momento, o sinal é de que se deve caminhar em sintonia com o respeito à democracia, às liberdades, às diversidades, ao Estado laico e aos direitos humanos e o fortalecimento das lutas contra a misoginia, o racismo, a homofobia. No processo eleitoral, além das questões econômicas e sociais, havia um divisor de águas entre o ódio e a democracia, envolvendo o racismo, a intolerância religiosa, a diversidade e as liberdades. Ganhou o campo da diversidade e da liberdade. Tenho chamado atenção de que os partidos progressistas foram muito importantes nesse processo. Houve uma unidade nunca pensada antes, independente das questões do primeiro turno. Quem garantiu essas eleições foram os que eles chamam de grupos de identidade, porque correm dizendo que são identitários, que são os grupos, acham que são minoritários - e não são tão minoritários assim -, que já garantiram a eleição no primeiro turno, junto a essas forças progressistas, mas todos os apoios foram importantes do ponto de vista político, mas, do ponto de vista eleitoral, não garantiram uma larga vitória. Tivemos uma vitória eleitoral muito pequena, mas uma grande vitória política, inegavelmente. Não se pode esquecer desses movimentos sociais e desses grupos que foram aliados importantes desde o primeiro turno e, obviamente, no segundo. Por isso, espero que assim seja na compreensão da montagem do governo, que precisa ter uma expressão de representação simbólica muito importante desses grupos.
PD: O senhor publicou o livro Marchar não é caminhar: interfaces políticas e sociais das religiões de matriz africana no Rio de Janeiro (2019, 360 páginas). Ao longo de sua vida, como marchar não é caminhar?
BIS: Essa é a minha tese de doutorado em História Comparada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). É o que implantamos agora na sociedade brasileira. Você tem um setor da sociedade que quer marchar, marchar… Consequentemente, quer destruir o outro, quer impor ao outro, quer, de forma autoritária e fascista, impingir ao outro a sua vontade, e caminhar é o contrário. Caminhar é uma frente. Caminhar é estarmos juntos. Para caminhar, é preciso sentar, recuar, ter diálogo e convivência com o outro, aprender com o outro, trocar com o outro. Por isso, caminhar é um processo. Quando se diz marchar, você está fazendo o jogo do adversário ou do inimigo. E caminhar, não. Caminhar é esse processo de frente ampla. Tem, às vezes, conflitos, mas você aprende na caminhada. Na caminhada, não se impõe ao outro a sua vontade. Aqui também faço, justamente, uma comparação entre a Marcha para Jesus e a Caminhada em Defesa da Liberdade Religiosa. O resultado da eleição não foi diferente. Em suposto nome de Jesus, impõe-se o ódio, a misoginia, a homofobia, o fascismo. No caminhar, há grupos evangélicos, cristãos, não cristãos, ateus. E foi isso sempre que as religiões de matriz africana fizeram. São grupos minoritários do ponto de vista da expressão política, mas podemos construir uma hegemonia sem ser maioria política.
PD: O senhor é Babalawô. Na luta em defesa da liberdade religiosa, o senhor está otimista neste momento?
BIS: Fui iniciado no candomblé há 41 anos, na Bahia, em Maragojipe, onde fiz todas as minhas obrigações. Tornei-me Babalorixá. E hoje sou um Babalawô, iniciado na Nigéria há 17 anos. Um sacerdote que é o pai, que olha o oráculo. Na Nigéria, o Babalawô não é só um líder espiritual, é um líder espiritual e político do seu povo, é aquele que orienta espiritualmente e politicamente o seu povo. Então, essa é uma questão importante a ser observada, para entender o meu papel, inclusive, nesse cenário. Não é só o lado espiritual, é conjugando o lado espiritual com as questões sociais, políticas, culturais e econômicas no qual esse povo vive. Se tem desemprego, o Babalawô deve defender o pleno emprego. Precisa, ainda, lutar pela diversidade, por respeito, contra o racismo. Se há homofobia, deve ser contra a homofobia. Se tem antissemitismo, ele tem lutar contra o antissemitismo, Babalawô é isso. Ele não pode ser omisso, não pode só ficar ligado ao lado espiritual nem apenas à teologia da prosperidade, que não é riqueza, não são bens materiais. É viver bem, ter um bom salário, ter um bom emprego, ter uma boa casa, construir uma família, ter uma boa educação, ter saúde. Isto é prosperidade. Além disso, pouca gente tem noção da intolerância religiosa, que virou um problema sério na América Latina. Essa é uma agenda civil, e tem piorado muito esse aspecto no país. No final do mês de janeiro, vou lançar um relatório nacional que demonstra isso. A intolerância religiosa está espalhada por todo o país, em todos os lugares, e, nesses últimos quatro anos, fez uma interferência muito forte na democracia brasileira. O presidente [Jair Bolsonaro] diz que o Brasil é um país ocidental cristão e que a minoria tem que se enquadrar. Todos nós sentimos o impacto disso. Na vida de todos, houve uma divisão e briga nas famílias. A família brasileira sempre foi muito diversa. Há cristão católico, cristão protestante, ateu, candomblecista, espírita kardecista, umbandista. Quando tenta se colocar uma única forma de religiosidade, cria-se uma divisão enorme. Desde os anos 1970, havia uma forma de o fascismo crescer no Brasil. Ele cresceria a partir do viés religioso, neopentecostal, embora haja grupos neopentecostais minoritários que estiveram no nosso campo, no trabalho conosco da diversidade religiosa, porque no Rio mostramos isso muito bem. Lá atrás, em 2008, encontramos com o então presidente Lula logo depois da primeira caminhada pela liberdade religiosa, aqui no Rio de Janeiro. Foram 20 mil pessoas para a rua, e entregamos a ele um documento para que se fizesse um plano nacional de combate à intolerância religiosa. E não foi feito. Nenhum dos governos seguintes deu atenção a esse tema, e agora vai ter que dar não só para ampliar o diálogo com os evangélicos, como tenho escutado muito. Acho que tem que ampliar o diálogo com os evangélicos, não sou contra, muito pelo contrário, sou um homem de diálogo, mas, antes de tudo, o novo governo deve ter medidas concretas e efetivas de combate à intolerância religiosa. É preciso garantir a aplicação da Lei 10.639, que torna obrigatório o ensino da história e cultura africana e afro-brasileira. Ela foi capturada como se fosse uma lei religiosa, e não é. É uma lei de história e cultura. Vai ter que implantar isso, com orçamento, capacitação de professores e produção e distribuição de material didático. Também é preciso discutir a cultura indígena, porque a lei foi complementada depois. O Brasil não pode ter modelo civilizatório simplesmente europeu e achar que isso está correto. Existem outros grupos que estão na constituição desse país, embora em condições totalmente diferentes. Uns vieram como escravos, outros foram marginalizados, como a comunidade indígena, que também deve ser levada em conta e faz parte dos valores civilizatórios brasileiros. Todos temos noção do que é muito importante, mas há uma luta contra a hegemonia cultural no país. É preciso considerar a agenda do movimento negro, do movimento LGBTQIA+, das mulheres, das populações indígenas, assim como a agenda da diversidade religiosa. Não basta criar conselhos. Isto é importante, mas não é tudo. A questão é saber quais são as medidas efetivas de combate ao racismo, à homofobia, à misoginia, à intolerância religiosa... É importante considerar isso no projeto de governo, em todas as esferas. Estou falando não é só nos puxadinhos. Não é apenas reformular a Fundação Palmares, por exemplo. Tudo isso é importante, mas não dá conta da imensidão de brasileiros e brasileiras desses grupos na luta pelos seus direitos. Eles precisam estar representados nos ministérios, na economia, e devem participar da formulação de políticas públicas sociais, de saúde, de educação, de cultura e das demais áreas. É preciso haver diálogos e políticas públicas efetivas, com conferências também, mas, se as conferências propuserem medidas que não possam ser executadas, o país cai em uma situação de manter o status quo, que, no momento, é extremamente racista, do ponto de vista estrutural.
PD: Como o senhor vê essa possibilidade de mudança de paradigma e do fortalecimento da cultura antirracista em nosso país no novo governo?
BIS: Primeiro temos que observar a retórica do próximo presidente da República que nós elegemos. Durante a campanha, ele falou da questão racista, prometeu restaurar as estruturas antirracistas importantes. Ele tem noção muito boa, quando fala da escravidão, tem compreensão estrutural, mas há uma distância entre o que ele fala e o que aqueles que estão em sua volta executam. Lá atrás ele disse que os negros não só seriam ouvidos, mas que os iriam participar da construção do seu governo. Isso não aconteceu no primeiro momento da formulação da equipe de transição. Pelo contrário, foi necessária uma reação de setores da comunidade negra, muito irritados, porque o apoiaram e votaram nele, como eu e outros. Se não fosse essa pressão, não teria ampliado a participação minoritária, quase insignificante, em outros grupos da equipe de transição. Foi majoritária no grupo da igualdade racial. Nos demais grupos, a participação de pessoas negras foi extremamente minoritária. Por isso, digo que existe uma distância entre a fala de Lula, o compromisso que ele assumiu [na campanha eleitoral], e as ações subsequentes por parte daqueles que o cercam na compreensão política de diversidade. Não entendem nada de diversidade. Hoje há uma massa crítica de negros no Brasil que não havia antes, de formados, inclusive, de militantes ativistas, de intelectuais orgânicos e públicos, que construíram essa agenda racial. A academia vem um pouco depois, porque não formulou nada para nós. Muito pelo contrário. Fomos para a academia sistematizar a nossa experiência, totalmente diferente de uma grande parcela de homens e mulheres brancos, que discutem estado, políticas públicas, a partir não de uma experiência empírica que eles têm. E, no nosso caso, sim. Então, é preciso aproveitar essa capacidade. Nem todo acadêmico é intelectual. Às vezes, é mero reprodutor de teorias e metodologias. Devemos tomar muito cuidado ao trazer essas contribuições de formulações para dentro dos processos, para que não permaneçam os mesmos. Observamos que a estrutura não muda. Como é que você entende que, ainda nos dias de hoje, em governos progressistas, nos quais muitos de nós votamos e com os quais concordamos, a polícia continua, de forma lombrosiana, matando jovens negros, encarcerando jovens negros? O governo é progressista, mas a prática da máquina operacional do cotidiano ainda se reelege por conta disso. Essas mesmas práticas continuam nos aparelhos de Estado, de maneira até eugenista.
PD: Como o senhor interpreta a questão da história brasileira, seus estudos e a contribuição do negro, enquanto intelectual acadêmico?
BIS: Não é uma presença fácil, até porque, como digo, não fui para a academia para que a academia entrasse em mim, porque tem muitos negros que vão e ficam acadêmicos, muito teóricos. Discutir com a juventude teoria, metodologia e regras da ABNT [Associação Brasileira de Normas Técnicas] todo mundo sabe, mas a experiência empírica é quase nenhuma. Fui pela ideia de sistematizar a minha experiência. É diferente. Não é à toa que uso bem, por exemplo, obras de Antonio Gramsci e Thompson, que falam de experiência, e sempre, como militante de esquerda, achei que tinha um vácuo para se compreender essa noção, como se a classe operária fosse um único modelo. E os negros nunca vão ser analisados como classe operária nesse sentido. O trabalhador, às vezes, tem religião. Então, quando se amplia uma compreensão de classe operária, dá para compreender que se pode analisar as nossas experiências a partir desses lugares. Então, traz uma nova participação, inclusive, da questão negra, e, ao utilizar muito a história dos que vêm de baixo, estou na história comparada. Constrói-se uma história dos que vêm de baixo com os de baixo, não pelos de cima que querem analisar os de baixo e têm muita diferença também sobre isso. Por isso que minha tese é uma experiência que construímos, usando todas as regras acadêmicas da objetividade, da metodologia, da teoria, porque essa tese teve prólogo. Vou falar de uma experiência de que participei, mas analisando a experiência com distância. Eu tinha que fazer um prólogo para dizer de onde eu vim, o que eu fazia, para as pessoas entenderem o que eu estava falando. Então, isso é uma nova epistemologia. Como é esse negócio de se analisar uma coisa se você, de tão de baixo, pobre, operário, não vai se colocar? Isso é bom para quem? Para a elite, porque ela não precisa dizer que está estudando. Objetividade tem um pouco a ver com isso. Se você está em um debate político e traz um problema que incomoda, não está sendo racional. Como se os negros só fossem emoção e como se a razão fosse o único ponto importante da ciência. Então, é muito mentiroso. Acho que, do ponto de vista dos africanos, é preciso haver equilíbrio entre razão e emoção, obviamente. Essas estruturas racionais que foram criadas, e ainda são mantidas, são racistas e perversas. Em qualquer país, isso é muito nítido, como para nós. Para a nossa comunidade, elas são muito draconianas, muito tristes. Para manter o status quo da sociedade e os privilégios, são ótimas. Entrar na academia exige trazer novas reflexões, novos diálogos e novas possibilidades. Agora, querendo ou não, é um lugar de poder. Sempre comento que a sociedade discrimina alguém por ser Babalawô e ser negro, mas ser pós-doutor é outra história. Porque entrou-se naquela lógica do mérito, já que são poucos os que vão para esse lugar. A questão é como se exerce este lugar, esta capacidade como intelectual. Nem todos os acadêmicos são intelectuais. Normalmente, são reprodutores de meros conhecimentos, uma boa parte deles. Não é à toa que eles não topam certos debates porque não dominam, pois a academia não é uma verdade absoluta. Ela tem várias verdades. A academia não é para dar respostas. Na verdade, surge para criar novas perguntas, e perguntas interessantes. Isto é dialética. Quando acha a resposta e acha que a resposta é a verdade absoluta, você engessa e não compreende a dinâmica social. Sou acadêmico, historiador, mas, antes de tudo, sou um negro, militante, candomblecista, militante pela questão racial e direitos humanos. Não sou só um acadêmico. Porque, ao se observar a trajetória de todos nós [negros], todo mundo vem de família pobre, em que a mãe era empregada doméstica, ou o pai, operário. Raros são aqueles que tiveram famílias na classe média. Marechal do Exército João Baptista de Mattos, primeiro negro a ocupar esse posto nas Forças Armadas, era filho de mãe solteira. Se pegar a história dele e observar como se dá a sua ascensão, verá um filho de mãe solteira, extremamente discriminado. Os filhos viraram da classe média depois porque ele virou marechal, general, oficial do Exército, mas quase ninguém assim nasce na classe média. Uma pessoa comprometida e brilhante que nasceu na classe média é Heleno Teodoro. O pai já era uma pessoa importante do Partidão, inclusive, na administração, já era contador, formado em economia, e a mãe era professora tradutora, mas são raros [esses casos]. A maioria absoluta dos intelectuais negros hoje, apesar de não unanimidade, veio das esferas populares. Na minha família, somos a terceira geração, a partir de mim, de universitários. Tenho dois filhos que fazem mestrados, outros são formados. Meus dois netos mais velhos estão na universidade. Meu pai era um mecânico que tinha que se virar. Então, é preciso entender essas histórias. As novas gerações estão tendo possibilidades, e as pessoas não podem se deslumbrar com a academia, que tem uma diversidade muito grande. Saber levantar esse debate a partir dessa diversidade é o grande barato. É o que os negros hoje em dia têm feito na academia porque pode nascer uma academia mais voltada para a compreensão brasileira. A academia que tem hoje [no Brasil] é europeia, digamos francesa, ou dos Estados Unidos. Quem é valorizado é quem tem algum doutorado ou mestrado fora. Os grandes debates acadêmicos vêm desses dois grandes centros e se conhece muito pouco da Ásia e da própria África. Há muita produção na África que dialoga muito mais com a nossa realidade social, com a nossa possibilidade, do que a dos europeus. Muitos europeus progressistas que achamos fora se inspiraram nos africanos. Há muita gente da África que foi até esses centros e os questionou. Muitos africanos questionaram, a partir do acesso que a colônia tinha como privilégio, como o próprio Amílcar Cabral e muitos outros nomes brilhantes. É isso que temos que fazer também aqui no Brasil, criar uma possibilidade de um pensamento intelectual acadêmico que reflita mais os de baixo no nosso país. Mesmo aqueles que falaram do povo brasileiro deixaram uma lacuna enorme para entender a questão racial até do ponto de vista acadêmico. Sérgio Buarque, assim como muitos outros, foi brilhante. A esquerda o tem como referência importante, mas há lacunas enormes a partir das nossas perspectivas. Não quer dizer que você vai desqualificar essa produção, pelo contrário, mas tem que fazer um diálogo crítico com ela e criar novas perguntas que levem a novas possibilidades.
Confira, a seguir, galeria:
PD: Como o senhor vê a possibilidade de se fazer uma grande mobilização para garantir a segurança alimentar da população negra e dos povos tradicionais como um todo?
Primeiro, ampliando o apoio à produção de alimentos necessários. Todo mundo acha que a África é fome para todo mundo. As pessoas conhecem as áreas de crise na África, onde o povo, de fato, às vezes, por questões climáticas ou de dificuldades de agricultura ou de conflitos, não tem o que comer, mas a África tem o que comer. Na Guiné-Bissau, há alimento e pesca. Em países que têm a pesca como ponto fundamental e onde não entrou a ideia do lucro em si, excessivo, a produção é mais coletiva, e é isso que tem que ser feito no Brasil, nas comunidades quilombolas. Como se constrói uma rede de produção nas áreas tradicionais que resulte em preços mais baratos nas favelas? A gente não tem uma rede de comunicação, porque o agronegócio e os grandes empresários dos mercados dominam essas áreas. Até nas dos quilombolas, eles financiam a produção, mas como se transforma a lógica de produção de alimento para alimentar quem está no campo, mas também quem está na cidade? São desafios, mas essas áreas podem produzir alimentos de qualidade. Na Nigéria, há produção de inhame, que é a base da comida nigeriana. Há grandes mercados populares de rua com comércio de inhame, pimenta, dendê, peixe, batata doce e laranja. Há comida farta. Todo mundo acha que não há na África, mas existe. Fome Zero não é só, na minha opinião, dar o cartão para o pessoal adquirir o alimento no mercado, mas criar um processo de produção e escoamento de alimentos para que cheguem a uma rede mais barata e a quem mais precisa.
Sobre o entrevistado
Professor Babalawô Ivanir dos Santos é doutor em História Comparada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); membro da Associação Brasileira de Pesquisadores Negros (ABPN); pesquisador do Laboratório de História das Experiências Religiosas (LHER-UFRJ) e do Laboratório de Estudos de História Atlântica das sociedades coloniais pós coloniais (LEHA-UFRJ); coordenador da Coordenadoria de Religiões Tradicionais Africanas, Afro-brasileira, Racismo e Intolerância Religiosa (ERARIR/LHER/UFRJ); conselheiro Estratégico do Centro de Articulações de População Marginalizada (CEAP); interlocutor da Comissão de Combate à Intolerância Religiosa (CCIR).
** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de novembro de 2022 (49ª edição), editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.
*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na Revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores. Por isso, não refletem, necessariamente, as opiniões da publicação.
Equipe de entrevista
Jane Monteiro Neves participou como entrevistadora da 48ª edição da revista Política Democrática online. É professora da Universidade do Estado do Pará (Uepa), especialista em processos educacionais (2012 a 2013 – IEP/Sírio Libanês). Foi diretora de extensão e coordenadora do curso de graduação em Enfermagem da UEPA. Também é diretora de Atenção Primária (Atenção à Saúde) da Secretaria de Estado de Saúde Pública do Estado do Pará e diretora executiva da Fundação Astrojildo Pereira.
Sionei Leão participou como entrevistador da 48ª edição da revista Política Democrática online. É jornalista, pesquisador e autor de Kamba’Race: afrodescendências no Exército Brasileiro, resultado de uma pesquisa de 20 anos.
Cleomar Almeida participou como entrevistador da 48ª edição da revista Política Democrática online. É jornalista e coordenador de Publicações da Fundação Astrojildo Pereira.
João Rodrigues participou como entrevistador da 48ª edição da revista Política Democrática online. É jornalista e coordenador de Audiovisual da Fundação Astrojildo Pereira.
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Especialistas debatem o futuro das regras fiscais no país
29 de novembro de 2022futuro,EF-destaque,webinar,especialistas,público,participaçãoFAP,evento
Luciara Ferreira*, com edição da coordenadora das Mídias Sociais da FAP, Nívia Cerqueira
Mediado pelo diretor-geral da Fundação Astrojildo Pereira, Marco Aurélio Marrafon, o webinar: O futuro das regras fiscais no Brasil será transmitido nesta quarta-feira (30/11), a partir das 18h30, nas redes sociais e portal da entidade. O debate contará com a participação dos economistas Benito Salomão, Fábio Terra, Manoel Pires e Leonardo Ribeiro.
"O evento vai abordar as regras fiscais, que estabelecem os limites até onde os políticos podem ir e a partir dos quais os custos macroeconômicos são relevantes", diz Benito.
De acordo com o economista, o assunto vem à tona com o governo eleito para escancarar a voracidade da elite política brasileira sobre o gasto público.
Confira webinar
Serviço
Webinário: O futuro das regras fiscais no Brasil
Realização: Fundação Astrojildo Pereira
Data: 30/11, às 18h30
Transmissão no YouTube e Facebook da FAP
*Integrante do programa de estágio da FAP sob supervisão.
Nas entrelinhas: PEC mantém Bolsa Família fora do teto por quatro anos
29 de novembro de 2022FAP,PH-destaque
Luiz Carlos Azedo | Nas Entrelinhas
Depois de muitas negociações, o presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva (PT) decidiu mesmo propor que o Bolsa Família fique fora do teto de gastos por quatro anos. Ontem, o senador Marcelo Castro (MDB-PI) protocolou a PEC da Transição, que mantém o pagamento de R$ 600 do Auxílio Brasil, rebatizado como Bolsa Família, seu nome de origem.
Pela proposta, o valor referente ao programa fica fora do cálculo do teto de gastos entre 2023 e 2026. A proposta de emenda à Constituição retira do Orçamento da União até R$ 175 bilhões do programa de transferência de renda para não estourar o teto de gastos. Castro levou em conta o projeto inicial elaborado pela equipe de transição de Lula.
Segundo o ex-ministro Nelson Barbosa, um dos economistas de equipe de transição, a estratégia adotada foi definida pelos senadores e deputados petistas. “Vamos ver a evolução da PEC”, disse. O texto precisa ser aprovado a tempo de ser incluído no Orçamento da União de 2003. “É a estratégia que foi considerada mais viável do ponto de vista político”, explicou Barbosa.
A PEC da Transição precisa ser aprovada no Congresso até 10 de dezembro para que haja tempo hábil para os parlamentares analisarem o Orçamento de 2023, que precisa ser aprovado ainda este ano.
“O texto apresentado excepcionaliza do teto de gastos o valor necessário para dar continuidade ao pagamento dos R$ 600 do Bolsa Família, mais R$ 150 por criança de até seis anos de idade. E, ainda, recompõe o Orçamento de 2023, que está deficitário em diversas áreas imprescindíveis para o funcionamento do Brasil. Esperamos aprovar a PEC, nas duas Casas, o mais rápido possível”, avalia Castro.
Apesar do otimismo de Castro, aprovar a PEC com prazo de vigência de quatro anos é uma missão quase impossível. Foi apresentada com esse prazo para uma negociação que envolve também a manutenção do orçamento secreto, que o Centrão pretende incluir na Constituição, o que é um absurdo. Por dois motivos:
1) o orçamento secreto pulveriza recursos de investimento do Orçamento, que deveriam ser destinados a projetos prioritários, como os de infraestrutura, por exemplo, em vez de servir de instrumento para o clientelismo mais rastaquera; 2) a falta de transparência na distribuição dos recursos, sem que se saiba quem são seus verdadeiros autores, facilita a formação de caixa dois eleitoral e o abuso de poder econômico pelos detentores de mandato, desequilibrando a paridade de armas na disputa.
O problema é que são poucos os parlamentares, inclusive os de oposição, que não se beneficiaram das chamadas emendas do relator, eufemismo usado para mascarar o orçamento secreto. Embora o PT e o PSB devem anunciar, hoje, o apoio à reeleição do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), essa não seria uma moeda de troca para manter o Bolsa Família fora do teto por quatro anos. O Centrão e seus aliados preferem barganhar cargos e verbas todo ano para manter o programa criado por Lula fora do teto. Um bom acordo seria aprová-lo por dois anos, mas a moeda de troca é a manutenção do orçamento secreto.
Ministério
O que não falta são especulações sobre os nomes dos futuros ministros de Lula. Se o time já está escalado, o que não parece ser o caso ainda, somente o presidente eleito sabe qual será a composição. Dois problemas estão na ordem do dia e pressionam para que ele anuncie logo os ministros. Primeiro, a situação da economia e a ambiguidade da equipe econômica.
O mercado quer que Lula indique logo o futuro ministro da Fazenda por uma questão de previsibilidade em relação à política econômica. Um nome sinalizaria o rumo do próximo governo, o que é fundamental para os investidores apostarem seus recursos no Brasil.
Essa é a cobrança. A dificuldade de Lula é ter alguém de sua absoluta confiança política na pasta, o que faz a banca de apostas tender para o ex-prefeito de São Paulo Fernando Haddad. Será ele?
Outra área estratégia que não pode esperar muito é a Defesa. Diante de uma evidente conspiração golpista, que faz ruidosa agitação à porta dos quartéis, Lula precisa escolher o novo ministro da pasta. Sua intenção é ter um civil no cargo, que seja capaz de manter um bom relacionamento com os comandantes militares.
Não é uma operação simples, porque os militares não querem perder as posições no ministério — são milhares em cargos comissionados na Esplanada. A escolha do nome é estratégica. A tendência de Lula é pôr no cargo alguém que tenha bom trânsito com os generais e seja de sua absoluta confiança. Fala-se, por exemplo, em Aloízio Mercadante. É filho de general, mas isso não significa amplo trânsito nas Forças Armadas.
São decisões urgentes, que estão na esfera da cota pessoal de Lula. Mais complexa é a montagem da equipe ministerial em forma de governo de ampla coalizão, ou seja, com uma maioria no Congresso. A forma como será feita a composição é ainda uma incógnita, porque existe uma equipe de transição que funciona como um embrião do futuro governo, com muitas disputas por espaços, e uma tendência dos partidos a querer o controle das pastas com “porteira fechada” — como se diz no jargão do Congresso.
Os partidos de esquerda não têm muita dificuldade para compartilhar os ministérios, mas o mesmo não acontece com grandes legendas de centro, como o MDB, o PSD e PSDB.