Existem figuras que não veem e figuras que não querem ver. Quando chamou o golpe militar de “movimento de 1964”, o ministro Dias Toffoli não padecia de cegueira histórica. Estava distorcendo os fatos para agradar Jair Bolsonaro, então favorito na eleição presidencial.
Toffoli deixa o comando do Supremo Tribunal Federal na próxima quinta-feira. Em sua gestão, o governo atacou e ameaçou a Corte de forma inédita desde o fim da ditadura. O ministro fingiu não perceber o que ocorria. Calou-se diante das ofensas e se comportou como um aliado do capitão.
A Constituição afirma que os Poderes devem funcionar de forma independente e harmônica. Toffoli ignorou a independência e radicalizou na harmonia. Chegou a se outorgar um certo “papel moderador”, a pretexto de “oferecer soluções em momentos de crise”. A oferta só serviu à família presidencial, que encontrou proteção jurídica nas horas de aperto.
No início do mandato de Bolsonaro, o presidente do Supremo anunciou um “pacto” entre Poderes. Ele se voluntariou a favor de reformas que poderiam ter sua legalidade questionada no tribunal. Um despropósito que irritou ministros mais preocupados com a autonomia da Corte.
Em julho de 2019, Toffoli suspendeu as investigações sobre o senador Flávio Bolsonaro, suspeito de desviar verbas na Assembleia Legislativa do Rio. A canetada aliviou o Zero Um e paralisou centenas de outros inquéritos que usavam dados da Receita e do antigo Coaf.
O refresco ajudou o primeiro-filho a escapar da polícia e do Ministério Público do Rio. Enquanto Flávio aproveitava a blindagem de Toffoli, seu amigo Fabrício Queiroz se escondia na chácara do advogado do clã.
Em 20 meses no poder, Bolsonaro fez quase tudo para minar a autoridade do Supremo. Ofendeu ministros, ameaçou descumprir decisões e participou de manifestações que pediam o fechamento da Corte. Em maio, o deputado Eduardo Bolsonaro declarou que uma “ruptura” era apenas questão de tempo. Seu pai sugeriu o mesmo em falas públicas e reuniões privadas.
Diante do silêncio de Toffoli, o decano Celso de Mello liderou a defesa do Judiciário. Em mensagem enviada aos colegas, ele descreveu a ofensiva autoritária e avisou que o “ovo da serpente” parecia “prestes a eclodir no Brasil”. O presidente do Supremo desprezou o alerta e manteve a linha colaboracionista. Há cinco dias, ele voltou ao Planalto para uma cerimônia que prometia levar cabos de fibra ótica à Região Norte. Seu discurso estava afinado com a propaganda do governo.
Na sexta, o ministro usou uma entrevista coletiva para enaltecer a própria gestão e se gabar do “diálogo intenso” com o chefe do Executivo. “De todo o relacionamento que tive com o presidente Jair Bolsonaro e com seus ministros de Estado, nunca vi diretamente da parte deles nenhuma atitude contra a democracia”, disse.
O golpe passou na janela, e só Toffoli não viu.