Enegreci a TV: agora sou rosto, cabelo, corpo e, principalmente, cor
Basília Rodrigues, Analista de política da CNN Brasil
A imagem de uma mulher preta que analisa política é inusitada, tanto quanto rara, ainda mais quando coroada por seu black power. Por 12 anos cobri política pelo rádio, mas, em uma daquelas mudanças que dividem a vida entre o antes e o depois, decidi fazer televisão. Tudo isso ainda sem saber que faltavam poucos dias para o início do pior momento das nossas vidas: uma pandemia.
Do contato diário pela voz com a notícia, agora sou um rosto, um cabelo, um corpo e, principalmente, uma cor. Enegreci a TV, e a editoria é de política —e não aquela em que negra é a cor padrão da tragédia brasileira.
Agora, prazer, na condição de espectador da notícia, pergunto-lhe: você é racista? Muito provavelmente, após uma rápida reflexão, responderá que não. Obrigada. Não somente eu, mas a sociedade de mais de 200 milhões de pessoas negras e brancas agradece.
Há 132 anos fechamos um capítulo da história em que negros eram vistos como objetos, e tudo o que os define era feio e inadequado em todos os horários da programação. Porém, essa pergunta não estará no cadastro da vaga de emprego que pleiteia, ou na seleção de vestibular, nem na agremiação do seu clube predileto. Ainda mais porque se houvesse um critério tão fácil de seleção sobre quem é racista e quem não é optaríamos, provavelmente, por não nos relacionar com um racista.
A resposta é mais difícil que a pergunta, neste caso. Altamente impossível de ser aferida totalmente certa ou errada; digo isso em ambientes comuns, em que se presume o mínimo de trato social.
Eis a dura realidade, porque esta nunca falha: não sabemos onde os racistas estão, mas estão em todos os lugares. Sendo assim, não é descartável dizer que pessoas certificadas como não racistas também podem reproduzir ações racistas.
Lá vem a sutileza do racismo, que de leve não tem nada. Ele distancia, afunda e invalida oportunidades, ao mesmo tempo em que é capaz de não ser visto. Um vírus sem vacina, apesar dos inúmeros casos.
Ninguém vê, mas olha ele ali contribuindo com mortes, desemprego, pobreza e deterioração do ambiente de trabalho.
Recentemente, o site Alma Preta divulgou que recebeu relatos de funcionários que seriam da CNN Brasil sobre um sentimento muito ruim. O assunto é tratado como prioridade pela empresa, que manifestou apoio e apura a situação. Não há materialidade nem culpados, mas vítimas. Ninguém vê, mas olha ele ali pesando o clima, criando situações ruins e incomodando quem o sente.
Uma hora todo balde cheio transborda. Você pode até fingir que não viu ou pensar que, enquanto existir a cultura do “se fosse loira e de olhos azuis, você não estaria enchendo o saco dela”, sempre haverá dúvidas derramando sobre o ambiente. Essa frase teria sido dita ao sinal de que algo “racista” poderia estar em curso: a redução do espaço de uma negra em sua tela de trabalho.
Não seja racista. Mas também não pareça racista, nem deixe margem do que pode ser apenas uma impressão. Observe-se. Já que não vê o que chamam de racismo, olhe para si. Ficar somente olhando o mal-estar acontecer pode sensivelmente colocar as pessoas em situações constrangedoras. E o mundo, este mesmo doente com uma pandemia, não é mais dos passivos.