Arlindo Fernandes de Oliveira*, especial para a revista Política Democrática online
Como se esperava, uma grande quantidade de agentes políticos valeu-se da licença legal chamada “janela partidária”, também conhecida como “janela de infidelidade”, para trocar de partido durante o mês de março deste ano de 2022.
Vale breve memória sobre como o tema vem sendo tratado pela lei e sua leitura judicial: no ano de 2007, o Poder Judiciário havia decidido que o mandato eletivo obtido nas eleições proporcionais pertence ao partido pelo qual o mandatário foi candidato. Na época, a decisão foi saudada como algo muito positivo e inovador, pois “finalmente alguém coloca alguma ordem nesta barafunda partidária”.
Perde o mandato quem alterar sua filiação partidária, decidiu, sob aplausos, o Supremo Tribunal Federal (STF). No caso, a decisão veio em respaldo à outra, adotada pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Havia a ressalva da justa causa, e sua definição. Depois esse entendimento foi, por pouco tempo, estendido aos mandatos obtidos pelo sistema majoritário.
Em seguida, aos poucos, vieram as mitigações desse entendimento: decidiu-se, em 2010, excluir do dever de fidelidade partidária quem houvesse sido eleito pelo sistema majoritário, vale dizer, prefeito, governador e presidente, e, no plano legislativo, senador. São agentes políticos que recebem um voto também pessoal, alegou-se então.
Quanto aos eleitos pelo sistema proporcional, a Lei dos Partidos havia sido alterada para ensejar, na forma como definira o TSE, que também estaria autorizado à infidelidade, isento de qualquer pena, quem saísse de um partido para participar da criação de outro. Essa decisão foi, certamente, um dos principais motores da proliferação de partidos políticos que veio a ocorrer na década seguinte.
Daí termos, por algum tempo, poucas situações em que o detentor de mandato eletivo pudesse alterar sua filiação partidária sem ônus jurídico: caso detentor de mandato majoritário; caso participasse de criação de novo partido; caso seu partido participasse de processo de fusão ou incorporação; na hipótese de mudança substancial ou desvio reiterado da sigla do programa partidário original; e, finalmente, caso fosse reconhecida pela Justiça Eleitoral uma situação de perseguição dentro do partido.
Na chamada Lei da Minirreforma Eleitoral (n° 13.615, de 2015), acrescentou-se nova norma à Lei dos Partidos para permitir ao parlamentar alterar sua filiação partidária, sem necessidade de justificação, no prazo de 30 dias, seis meses antes das eleições, ou seja, até o mesmo prazo exigido de filiação partidária e domicílio eleitoral para concorrer ao pleito. O chamado “transfugismo partidário” passou a dispor de uma nova e ampla licença.
No mesmo momento, foram excluídas da Lei Partidária duas hipóteses permissivas de mudança de filiação sem ônus jurídico da perda do mando, a participação em fusão ou incorporação ou a criação de novo partido.
Os parlamentares passaram a contar, portanto, com um mês a cada quatro anos para pular a janela da fidelidade partidária, na bem-humorada definição dos jornalistas que cobriam o Congresso.
No texto da lei, somente poderia alterar a filiação partidária, em tese, aqueles parlamentares que ocupam um dos cargos que estará em disputa nas eleições seis meses depois, ou seja, deputados federais e deputados estaduais/distritais. Entretanto, neste ano de 2022, detentores do cargo de vereador, que não estarão em disputa no pleito de outubro, valeram-se da licença legal para também mudar de partido. Desconhecemos questionamentos judiciais a esse respeito.
Chamam muito a atenção do observador, na análise do período da janela de infidelidade do mês de março de 2022, dois aspectos muito relevantes e pouco comentados: em primeiro lugar, praticamente desaparecem os questionamentos de natureza ética ou moral sobre a incoerência político-ideológica, o desrespeito ao eleitor e a fraude contra sua vontade de quem altera a filiação partidária como quem muda de camisa.
Como esse comportamento, antes famigerado e denunciado como imoral e antiético troca-troca, promovido à custa de manipulações e corrupção, passou a ser do interesse de grupos políticos governantes, esse fato, de súbito, começa a ser descrito como algo inevitável, como se evento da natureza fosse observado por muitos de forma desprovida de qualquer senso crítico.
O segundo aspecto a considerar é que as análises respectivas ao processo se limitaram a uma descrição aritmética sobre quem ganha e quem perde nas bancadas, especialmente na Câmara dos Deputados, sem apreciar outros aspectos desse contexto, os efeitos legais inclusive, como os denominadores e os divisores dos recursos dos fundos partidário e eleitoral e do tempo de propaganda no rádio e na TV.
Por exemplo, um partido que elegeu 60 deputados federais em 2018 e perdeu 20 no troca-troca de 2022 é visto como perdedor, por ver diminuída sua bancada na Câmara. Não se vê, por exemplo, que as mudanças produzem um efeito bastante limitado na definição dos recursos do Fundo Eleitoral, e nenhum efeito na definição do volume de recursos do Fundo Partidário, que tem como referência a votação para deputado federal obtida pelo partido no pleito de 2018. Ou seja, na prática, os 40 deputados que remanesceram nesse partido terão a seu dispor os recursos que correspondem à bancada de 60 federais, pois os deputados que saíram não carregam consigo os recursos respectivos ao seu mandato (Fundo Eleitoral) ou aos votos (Fundo Partidário).
O mesmo ocorre com relação do tempo de propaganda eleitoral na televisão e no rádio: o tempo é repartido de duas formas, 10% igual para todos os partidos e 90% na proporção da bancada de cada partido na Câmara dos Deputados, que, neste caso, é a bancada resultante da eleição anterior.
Ou seja, ganha, em ambas as situações, o deputado federal ou o candidato a deputado federal (ou a qualquer outro cargo) que permaneceu filiado ao partido original, pois haverá um contexto de menos candidatos à reeleição com mais recursos e mais tempo de antena, ao passo que os que pularam a janela da infidelidade afluíram normalmente para partidos com bancadas mais numerosas. Serão, ao fim das contas, candidatos com menos recursos e menos tempo de TV e de rádio para suas campanhas.
Faz sentido. Alguma coisa, afinal, deve haver para prestigiar quem se manteve coerente com o mandato partidário que a cidadania lhe concedeu.
Saiba mais sobre o autor
*Arlindo Fernandes de Oliveira é consultor do Senado e especialista em Direito Eleitoral
** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática online de abril de 2022 (42ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.
*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores. Por isso, não reflete, necessariamente, as opiniões da publicação.
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