Luiz Werneck Vianna: O imprevisto, o Centrão e a política
Quando algo é natural, se for banido da sala, ele volta com força redobrada pela janela, clássico aforismo que serve como uma luva para retratar a nossa situação atual, quando se constata o retorno de instituições e de tradições que dois anos de governo Bolsonaro se empenharam em destruir como projeto político, tal como nos casos das suas arremetidas contra os poderes legislativos, e, principalmente, o judiciário. Esse tipo de experiência é uma velha conhecida, praticada com sucesso nos anos 1930 pela ditadura estadonovista, que fechou o Congresso e emasculou o Supremo Tribunal Federal, e foi reiterada pelo regime militar do AI-5, com as cassações de mandatos parlamentares e o expurgo de juízes da nossa mais alta corte. Nos dois casos, como sabido, frustraram-se os desígnios autocráticos e essas duas instituições renasceram com maior vigor.
Países, tal como os indivíduos, observava Tocqueville em “Democracia na América”, têm sua história marcada pela forma com que vieram ao mundo, na linguagem dos contemporâneos o DNA que trazem de suas origens marcam suas trajetórias futuras. Nosso estado-nação recebeu sua primeira configuração de uma assembleia parlamentar, e o parlamento foi a instituição-chave com que se edificou as estruturas do Estado, o modo de inscrição do país no cenário internacional e a preservação num imenso território da unidade nacional. Para esse último fim, foi determinante o papel desempenhado pelas instituições judiciais, em particular pelos magistrados, disseminados em rede capilar que atava regiões e rincões remotos aos desígnios do Estado.A mesma corporação cumprirá papel igualmente estratégico a partir do processo de modernização que se inicia com a revolução de 1930 que desloca o eixo agrário, até então dominante, para o urbano sob a condução do Estado e de suas políticas de indução da industrialização. Por meio da criação da CLT, da Justiça Trabalhista e do Ministério do Trabalho, o “ministério da Revolução”, se cria um mercado nacional de trabalho, regulado pelo direito e pelos novos agentes que emergem nesse processo, entre os quais, destacadamente, os juízes trabalhistas.
Aqui, não se chegará ao moderno e à industrialização pelas mãos do mercado, mas pelas do Estado, e será por essa via, que nosso longo processo de modernização, variando os regimes políticos, terá seu curso. Daí que, entre nós, o “natural” conheça essas marcas de origem, refratárias às intervenções que visem erradicá-las, propósitos declarados do governo que aí está. Não por acaso o governo de orientação neoliberal de Bolsonaro, cultor do trumpismo, tenha como projeto a submissão do Poder Judiciário e do Legislativo que impõem freios, ainda que débeis, à realização de suas agendas programáticas liberticidas.
Não é que a política seja o reino do imprevisto, mas é certo que ele atua nela, como agora testemunha a crise institucional que se avizinha, provocada por um obscuro parlamentar bolsonarista, marginal em sua grei, que numa ação solitária (tudo indica), investiu pesadamente contra o Poder Judiciário e a ordem constitucional, obrigando o STF a uma resposta à altura com a ordem da sua prisão. Com P. Bourdieu aprende-se que as instituições “pensam”, logo que criadas e institucionalizadas elas se investem de uma lógica própria de difícil erradicação, como o caso brasileiro é mais um exemplo na forte reação às atuais investidas contra elas.
Assim, um episódio provocado para agredi-las suscitou um movimento que as reforça e tende a devolver o andamento da política ao seu leito natural da democracia representativa, pois é na Câmara dos Deputados, sob uma maioria alinhada ao Centrão, agrupamento de políticos em geral pouco afeitos a convicções democráticas, que se encontrou a fórmula de superação de uma grave ameaça ao ordenamento constitucional. Tal feliz solução não se esgota topicamente com a recusa a afrontar o STF suspendendo a prisão do agente agressor, na medida em que deixa como lastro o isolamento das forças que tramam em favor da interrupção da vida democrática no país, a ser certificada pela sua punição exemplar no próprio âmbito do Parlamento.
O mundo gira e a Lusitana roda, e está aí o Centrão em papel propositivo, inédito em sua história de comportamentos meramente reativos, não por que o tenha procurado e sim em razão da trama profunda tecida ao longo da nossa vida institucional que o obrigou, em ato de legítima defesa, a superar suas limitações e agir em favor do interesse geral. Ele também não teria como escapar do naufrágio do nosso Titanic.
Nesses dois anos de governo Bolsonaro a democracia e suas instituições têm experimentado sobressaltos, já naturalizados em nosso cotidiano, e sob esse signo perturbador, em meio a uma cruel pandemia, contavam-se os dias que nos aproximam da decisiva eleição de 22. A pandemia continua, mas, ao menos, pudemos exorcizar as ameaças malévolas de retorno dos anos sombrios do AI-5. Ditadura nunca mais, bradou um ministro do STF no auge da recente crise, sem que fosse replicado.
Deve-se sempre se manter em guarda com as ilusões que podem nos toldar a vista, mas a essa altura é inevitável nosso encontro marcado com o destino na próxima sucessão presidencial. Temos tempo para nos preparar para ele, e devemos aprender com os recentes acontecimentos que, no mundo da política, o melhor ator é o que se guia pelas variações da fortuna e não aspira a lhe impor sua vontade. O imprevisto faz parte da sua lógica, aí está o Centrão não como mero coadjuvante, mas com fumaças de protagonismo, mais uma peça no tabuleiro a ser considerada pela esquerda democrática ao conceber seu xeque-mate à aventura golpista que visou atalhar nossa história.
*Luiz Werneck Vianna, sociólogo PUC-Rio
O Estado de S. Paulo: Poeta e letrista Capinan faz 80 anos e será tema de série documental
'O Silêncio que Canta por Liberdade' tem Úrsula Corona e vai estrear no canal Music Box Brazil no segundo semestre
Eliana Silva de Souza, O Estado de S.Paulo
O poeta e letrista José Carlos Capinan, ou simplesmente Capian, que completa 80 anos nesta sexta-feira, 19, serátema central da série documental O Silêncio que Canta por Liberdade. Com estreia programada para o segundo semestre, no canal Music Box Brazil, produção resgatará sua trajetória artística do letrista durante a ditadura militar.
Dirigida pela atriz Úrsula Corona e idealizado por Omar Marzagão, série terá oito episódios e contará com documentos originais, imagens de arquivos e depoimentos sobre censura e repressão imposta na música nordestina no período da ditadura no Brasil.
O Silêncio que Canta por Liberdade traz depoimentos de produtores, instrumentistas e intérpretes, como Gal Costa e Gilberto Gil. Mas é o próprio Capinan que aparece para falar, por exemplo, sobre o surgimento do samba e suas raízes nos porões dos navios negreiros.
Um dos nomes de destaque do Tropicalismo, Capinan assinou a letra de canções que se tornaram populares pelo Brasil afora, mas que, muitas vezes, não tem seu nome citado. Ponteio marca sua parceria com Edu Lobo, que ganhou o Festival da Canção de 1967. Entre outras composições, só para citar algumas, que ele colocou sua poesia, tem Água de Meninos, parceria com Gilberto Gil; O Acaso não Tem Pressa, com Paulinho da Viola; Cidadão, com Moraes Moreira; Moça Bonita, com Geraldo Azevedo; Movimento dos Barcos, com Jards Macalé; Papel Marchê, com João Bosco; Pitanga, com Marlui Miranda.
O Tempo e o Rio
(Edu Lobo e Capian)
O tempo é como o rio
Onde banhei o cabelo
Da minha amada
Água limpa
Que não volta
Como não volta aquela antiga madrugada
Meu amor, passaram as flores
E o brilho das estrelas passou
No fundo de teus olhos
Cheios de sombra, meu amor
Mas o tempo é como um rio
Que caminha para o mar
Passa, como passa o passarinho
Passa o vento e o desespero
Passa como passa a agonia
Passa a noite, passa o dia
Mesmo o dia derradeiro
Ah, todo o tempo há de passar
Como passa a mão e o rio
Que lavaram teu cabelo
Meu amor não tenhas medo
Me dê a mão e o coração, me dê
Quem vive, luta partindo
Para um tempo de alegria
Que a dor de nosso tempo
É o caminho
Para a manhã que em seus olhos se anuncia
Apesar de tanta sombra, apesar de tanto medo
Apesar de tanta sombra, apesar de tanto medo
Míriam Leitão: Bolsonaro quer demitir presidente da Petrobras, mas só o Conselho pode
O presidente Jair Bolsonaro quer demitir o presidente da Petrobras, Roberto Castello Branco, mas o problema é que ele só pode fazer isso com a concordância do conselho de administração. Por isso fez a declaração na quinta-feira na transmissão em rede social, criticando o dirigente da empresa, para provocar um pedido de demissão do próprio Castello Branco. O problema é que o atual dirigente da estatal não tem essa intenção.
A informação que apurei é que há risco de o conselho de administração renunciar. E mais: se a pressão continuar e o presidente da Petrobras for demitido, a diretoria também sairá. O impasse se torna aí mais forte. A Companhia deve anunciar no próximo dia 24 um excelente resultado. A tensão é crescente entre a empresa e o governo.Para Bolsonaro, a saída pode não ser fácil e suas declarações de quinta à noite criticando diretamente o presidente da Petrobras e deixando no ar essa frase enigmática de que “alguma coisa vai acontecer” vai provocar muita volatilidade no mercado nas ações da empresa.
Bolsonaro quer com isso agradar aos caminhoneiros que voltam a falar de greve como informado aqui no blog. O presidente tem tido uma crise de raiva a cada aumento que a Petrobras anuncia, o problema é que o que ele quer controlar os preços da empresa e voltar ao tempo do congelamento como houve no governo Dilma e que levou a um prejuízo bilionário. A administração de Roberto Castello Branco tem reduzido o maior problema que é o alto endividamento da empresa. E a intenção na empresa é continuar seguindo a paridade internacional dos preços.
O corte nos impostos vai significar R$ 3 bilhões ou mais só a zeragem por dois meses dos impostos federais, e pode chegar a R$ 5 bi somando com a suspensão até o fim do ano dos tributos sobre gás de cozinha, como foi dito aqui. O governo terá que dizer de onde vai tirar, de acordo com o ordenamento fiscal do país e isso tem que ser dito hoje pela equipe econômica. Aliás a equipe está tentando cortar R$ 10 bi em orçamento que sequer foi aprovado e ele ja está criando mais despesas.
O presidente se irritou até com a forma como o presidente da Petrobras chegou para a última reunião. De máscara e com óculos de EPI, para a proteção contra o coronavírus. No palácio, o uso da máscara e da rigidez das medidas protetivas é vista como uma atitude política contrária ao governo. O máximo que se faz é por a máscara, aparecer em público e depois tirar na hora de falar.
O Instituto Brasileiro do Petróleo soltou uma nota em que defende o mercado aberto. De acordo com o comunicado, o IBP afirma que somente com um mercado aberto, competitivo, dinâmico, ético, com segurança jurídica e previsibilidade regulatória, "o segmento será capaz de atrair novos atores e investimentos, de médio e longo prazo, em infraestrutura logística, produção de combustíveis e derivados, além da garantia do abastecimento nacional".
Ainda de acordo com a nota, a "dinâmica de preços livres deve ser preservada, com alinhamento à paridade internacional, equilibrando a oferta e a demanda".
Hélio Schwartsman: O que a Folha me ensinou
Errando e acertando, é jornalismo o que a Folha procura fazer
A Folha faz nesta sexta (19) 100 anos de existência. Eu, dentro de um par de meses, farei 33 anos de Folha. Foi meu primeiro e único emprego, ao qual cheguei por acidente.
É verdade que desde pequeno eu lia o jornal. Meu pai assinava a Folha e o Estado, e foi sobre o diário da alameda Barão de Limeira que minha atenção naturalmente recaiu. A Folha era visivelmente menos sisuda que o Estado na segunda metade dos anos 70. Nunca, porém, imaginei que um dia trabalharia no jornal.
A guinada veio em 1988. Recém-formado, em busca de algo para fazer antes de me dedicar integralmente ao que seria uma tese sobre a verdade em Platão, respondi a um anúncio da Folha em que ela recrutava tradutores. Não era bem assim. A vaga, na realidade, era para uma posição de redator na editoria de Exterior. Fiz a prova, a entrevista, fui chamado, aceitei e estou no jornal até hoje. Jornalismo vicia. A tese nunca foi escrita.
Esses 33 anos me ensinaram duas lições ontológicas. A primeira é sobre o papel do acaso, muito maior do que estamos dispostos a admitir. Uma edição de jornal nada mais é do que o catálogo dos principais acontecimentos fortuitos do dia anterior, do sorteio da Mega-Sena aos terremotos e acidentes. Assim como o acaso foi decisivo para a minha carreira, o é para tudo.
A outra é sobre a verdade. Cada um tem a sua. Platão estava errado. Mas, mesmo admitindo que objetividade e imparcialidade sejam uma quimera, não precisamos necessariamente concluir que o jornalismo é a realização diária de uma impossibilidade teórica.
Entre o dogmatismo com tons religiosos e o cinismo niilista, sobra bastante espaço para relatos que, sem a pretensão de verdade acabada, procuram honestamente estar tão perto dos fatos quanto possível.
Errando e acertando, é o que chamamos de jornalismo, e é o que a Folha procura fazer. Ao menos foi isso o que testemunhei ao longo de 1/3 dos 100 anos desta Folha.
Bruno Boghossian: Aos 100, Folha encara missão de expor investidas contra a democracia
Informação é pedra no sapato de autoridades que têm algo a esconder ou querem extinguir contestação
Quando um governante decide dar um passeio fora dos limites da democracia, alguns de seus primeiros alvos costumam ser os tribunais e a imprensa. O autocrata tenta intimidar as cortes porque sabe que juízes conseguem impor um freio imediato a medidas autoritárias. O jornalismo não tem esse poder nas mãos, mas é um obstáculo diante de candidatos a ditador.
Um público bem informado é uma pedra no sapato para autoridades que têm algo a esconder ou que precisam extinguir focos de contestação. Ditaduras não convivem bem com uma imprensa livre porque a circulação de informações estimula o país a discutir e decidir seus próprios rumos –algo que um tirano não consegue suportar.
É normal que um político fique incomodado com o que lê nos jornais. Pode reclamar da postura crítica de um veículo, de uma reportagem que teve um peso maior do que ele gostaria ou até de uma informação errada. Ainda que jornalistas possam ficar contrariados, esse debate faz parte das regras democráticas. O problema ocorre quando as autoridades preferem jogar outro jogo.
O mundo tem um punhado de populistas que se intitulam democratas, mas dizem que “o certo é tirar de circulação” jornais que os deixam aborrecidos. Fazem ataques virulentos à imprensa quase todos os dias e tentam classificar qualquer informação desconfortável como falsa.
Governantes dessa natureza usam a desinformação como arma política. De um lado, exploram o peso da máquina dos governos para torpedear a credibilidade do jornalismo profissional e reduzir o alcance de notícias verdadeiras. De outro, empunham o megafone de seus cargos para espalhar mentiras e convencer o país dos maiores absurdos ou apenas tumultuar o ambiente.
A imprensa livre ajuda a sustentar a democracia porque expõe investidas como essas e mostra que os fatos não se dobram aos desejos de qualquer autoridade do momento. Ao completar seu centenário, a Folha continua a encarar essa missão.
Rogério Furquim Werneck: Jair, Guedes e Lira
Não falta agora quem queira se convencer que, com sua nova escalação, o governo passará a funcionar como um relógio suíço. E a verdade é que nem mesmo se sabe para que lado girará o relógio. Para vislumbrar com mais clareza divergências que terão de ser enfrentadas, é preciso perceber que Guedes, o Centrão e Bolsonaro acalentam visões muito distintas do que será possível extrair de 2021.
Há 12 meses, Guedes esperava que, na esteira da reforma da Previdência, 2020 fosse o ano do aprofundamento da consolidação fiscal, em que seriam aprovadas as três PECs que o governo submetera ao Congresso no final de 2019. É bem sabido que nada disso aconteceu. E, pior, entregue ao negacionismo, diante da eclosão da pandemia, o governo acabou levado de roldão por pressões políticas em favor da adoção de medidas de amenização dos desdobramentos socioeconômicos da disseminação da covid-19. E, tendo em vista a pressa e a improvisação com que foram concebidas, as medidas afinal aprovadas acabaram tendo impacto primário de mais de 8% do PIB nas contas do governo central, no ano passado.
O esforço de consolidação fiscal que agora se faz necessário afigura-se incomparavelmente mais difícil do que parecia em fevereiro do ano passado. E é mais que natural, portanto, que o ministro da Economia acalente a esperança de transformar 2021 num ano de vigorosa retomada do esforço de consolidação fiscal que teve de ser abandonado em 2020.
No final do ano passado, Guedes contentou-se em ressaltar que a não prorrogação do auxílio emergencial havia sido um sinal importante de compromisso do governo com a responsabilidade fiscal. Comemoração um tanto precipitada. O recrudescimento da pandemia, as novas cepas do vírus e o desalento com o avanço da campanha de vacinação, em um quadro de desemprego ainda muito elevado e perspectiva de recuperação mais lenta da economia, vêm dando força redobrada às pressões políticas em favor da restauração do auxílio emergencial.
O ministro já se viu obrigado a recuar para posição mais conciliatória. Declara-se, agora, até disposto a conceder mais três ou quatro meses de auxílio emergencial se, em contrapartida, o Congresso lhe der condições de levar adiante o esforço de ajuste fiscal que se faz necessário. Quer vincular a concessão de novo auxílio à aprovação de gatilhos de contração de gastos que seriam a disparados na medida do agravamento da situação fiscal.
Tendo afinal se apossado da presidência da Câmara, com apoio ostensivo do Planalto, o que espera o Centrão de 2021? Que uso pretende dar ao temível poder de barganha com que agora poderá contar nas suas relações com o governo?
O agrupamento parece, de fato, um saco de gatos. A argamassa que lhe dá coesão é a visão comum, que seus integrantes compartilham, do que constitui a essência da atividade política: um processo de infindável extração de benesses do Estado para atendimento de interesses especiais. A ascensão de Arthur Lira à presidência da Câmara não caiu do céu. Foi fruto de longa campanha no Congresso. Sobram promessas de campanha a pagar.
É improvável que o Centrão não faça pleno uso da posição de força que agora detém para avançar para valer na ordenha do Estado. E se disponha a entregar a Guedes as chaves do acionamento de gatilhos que garantiriam o programa de corte de gastos públicos que o ministro contempla. Não entregará mais do que o estritamente necessário para livrar as autoridades fazendárias e o presidente da República do risco de responsabilização pela expansão fiscal que advirá da restauração do auxílio emergencial. E para manter as contas públicas em seu nível atual de precariedade.
Não será um desfecho que desagradará a Bolsonaro. Tendo solapado o avanço de todos os esforços mais sérios de ajuste fiscal no ano passado, o presidente tem outros planos para o Centrão. Proteção contra o impeachment e, na medida do possível, avanço da sua velha pauta conservadora no Congresso. Restaurado o auxílio emergencial, é o que, por ora, o mobiliza.
Reinaldo Azevedo: Silveira sequestra turma do miolo mole. Ou: a nossa moral e a deles
Senhores da oposição, tomem cuidado com uma eventual cassação que poderia servir à impunidade do criminoso Daniel Silveira
O lugar de Daniel Silveira é a cadeia. Agora e depois. É preciso cuidado para não oferecer a ele uma tábua de salvação. Se cassado, seu caso vai para a primeira instância, com o risco de o desfecho ficar para as calendas gregas, aquele tempo sem tempo. A Procuradoria-Geral da República já o denunciou ao Supremo com base nos artigos 344 do Código Penal e 18 e 23 da Lei de Segurança Nacional. Que se torne logo réu.
Que seja julgado, condenado e preso em regime fechado, com consequentes perda de mandato e inelegibilidade. Tudo de acordo com o devido processo legal. Ele sonha com surras públicas de gato morto em ministros do Supremo e convoca uma guerra não só contra os magistrados, mas também contra um Poder da República. A propósito: o general Eduardo Villas Bôas e pares se deram conta da qualidade dos aliados que mobilizam? É com esses Bombadões de Plutarco que pretendem construir a terra dos "homens de bem", sobre uma montanha de quase 250 mil cadáveres? Atenham-se aos quartéis.
A correta decisão do STF gerou mais debate entre advogados do que entre os pares de Silveira. Pois é. O que une os livros "Como as Democracias Morrem" (Steven Levitsky e Daniel Ziblatt), "O Povo contra a Democracia" (Yascha Mounk) e "Fascismo "“ Um Alerta" (Madeleine Albright), com olhares e ângulos às vezes bastante diversos? Os três registram a inércia dos regimes democráticos quando confrontados com a subversão reacionária.
Os Estados democráticos estão preparados para se defender de uma improvável disrupção revolucionária, mas não têm sabido responder, em tempos de redes sociais, ao devotado ódio dos extremistas de direita à democracia. Eles se apropriam de seus códigos para destruí-la. E podem encontrar aliados improváveis entre os ditos "progressistas" e liberais do miolo mole.
Confundir os crimes de Silveira com imunidade parlamentar —ou liberdade de expressão— corresponde a permitir que garantias constitucionais que protegem a democracia sejam usadas para solapá-la. Não há filigranas retóricas nem excertos supostamente sapientes que contestem essa evidência. Assim é no mundo.
No Brasil, a questão já passou pelo crivo do STF: a prerrogativa não acoberta crimes —e só por isso Jair Bolsonaro é réu duas vezes no tribunal. Ou se deveria, então, ter considerado a apologia do estupro protegida pela imunidade? Nesse caso, "progressistas" não fizeram coro aos bolsonaristas. Devem ter ficado com receio da vigilante militância feminista. Inexistem militantes "esseteefistas", né?
Flagrante discutível? Discutíveis são comida japonesa, o "Bolero de Ravel" e "single malt" defumado. O flagrante não. O artigo 302 do Código de Processo Penal define as condições da flagrância. O caso se encaixa à perfeição no inciso III do dito-cujo. Leiam lá. O CPP é de 1941, pré-YouTube, e veio à luz na forma do decreto-lei 3.689. A propósito: junto com o Código Penal, compõe o que alguns chamariam por aí de "arsenal da ditadura" —no caso, a do Estado Novo... Devemos evitá-los?
Defendo, noto, que a Lei de Segurança Nacional seja substituída pela Lei de Defesa do Estado Democrático, projeto do deputado Paulo Teixeira (PT-SP), em parceria com juristas, liderados por Pedro Serrano e Lenio Streck. Mas não perderei a vida por delicadeza, como escreveu o poeta. Não combaterei o uso contra Silveira de uma "lei da ditadura", como dizem, para que ele possa esculhambar a República e defender o AI-5.
Será que eles podem, em nome de sua moral, pregar golpe de Estado, ameaçar as instituições, perseguir minorias, sabotar os esforços coletivos contra a Covid-19 etc.? E nós, os democratas, em nome da nossa —que compreende a defesa da liberdade de expressão— estaríamos impedidos de reagir, deixando, então, que nos engulam?
Ah, não sou peru de Natal de fascistoide. Não morro de véspera. Por isso, senhores da oposição, tomem cuidado com uma eventual cassação que serviria à impunidade. Silveira, como deputado, tem de ser julgado pelo Supremo. Segundo as mais severas regras do devido processo legal.
Ricardo Noblat: Sinceros votos de que o deputado Daniel Silveira dê-se mal
Para que sirva de exemplo
Não basta que logo mais à tarde a Câmara confirme a decisão unânime do Supremo Tribunal Federal de mandar prender o deputado Daniel Silveira (PSL-RJ) que atentou contra o Estado de Direito em vídeo que ele mesmo gravou e postou nas redes sociais.
Para que provas a mais do seu crime? O vídeo é prova cabal, indesmentível de que ele é um criminoso confesso. Nunca antes na história democrática deste país um parlamentar pregou tão acintosamente o desrespeito à Constituição e aos seus zeladores.
Nem basta que na próxima semana o Conselho de Ética da Câmara, inativo há tantos meses, conclua que Silveira feriu o decoro parlamentar e deve ter seu mandato cassado. É preciso que o plenário da Câmara casse o mandato e que a Justiça o condene.
O tratamento dado a Silveira deve servir de exemplo aos que conspiram para cancelar mais uma vez a democracia, sejam eles vivandeiras de quartéis ou militares. Um traço no chão para além do qual ninguém se arrisque a ir imaginando que ficará impune.
Foi o bolsonarismo que pariu um feto mal formado como é Silveira. Com o agravante, no seu caso, de que ele acabou se elegendo deputado federal apesar da folha corrida repleta de antecedentes criminais. Não serviu para vestir a farda da polícia.
Por que serviria para ganhar um assento no Congresso? Atos de violência física pontuaram toda a sua trajetória até aqui. Ousou dar um salto mortal, sem rede, ao enveredar pelo caminho estranho para ele da violência verbal. Está aí um corpo estendido no chão.
Faltaram a Silveira a cultura, a sutileza, o domínio das palavras e, principalmente, a farda que permitiram ao general Villas Bôas, à época comandante do Exército, interferir com sucesso no resultado de um julgamento do Supremo. Foi em abril de 2018.
Tanto o deputado quanto o general afrontaram a Constituição. A diferença é que um tinha tropas bem armadas para atender ao seu chamado – o outro tinha nada. Por ignorante, acreditou que o direito à livre manifestação o liberava para dizer o que quisesse.
De nada adiantou a Jair Bolsonaro invocar o direito à livre manifestação e a imunidade parlamentar para se livrar de ações no Supremo. Ali, ele é duas vezes réu por incitamento ao estupro. Os processos voltarão a andar depois que deixar a presidência.
O gato escaldado tem medo de água fria. Bolsonaro já quis confusão com o Supremo, não quer mais. Por ser réu e porque seus filhos investigados poderão ser promovidos à igual condição. Daí o seu silêncio exemplar e barulhento quanto à sorte de Silveira.
Pedro Doria: O deputado, o Centrão e o algoritmo
Há uma lógica diretamente ligada à estrutura das redes sociais no vídeo que custou a prisão ao deputado federal Daniel Silveira (PSL-RJ). Silveira é, dentre os bolsonaristas, um tipo ainda mais agressivo do que o padrão do grupo, já uns tantos tons acima do normal. Mas, neste vídeo em que deseja uma surra aos ministros do Supremo embalado por atos institucionais da ditadura, sua agressividade não é apenas um ato político antidemocrático. É, também, uma técnica conhecida de fazer com que a audiência potencial do filmete seja maior. A intenção lá atrás, quando se tornou conhecido pelo gesto de quebrar a placa da vereadora assassinada Marielle Franco durante a campanha, também era a mesma.
O algoritmo, o código de computador que seleciona quem será exposto a que foto, texto, vídeo, compreende muito da natureza humana. É uma inteligência artificial que compreende nossas fraquezas. E uma delas é que, quando a pressão sobe, e a adrenalina corre, ligamos o alerta. Ficamos mais atentos quando as emoções são fortes. Quem nos deixa mais indignados, nas redes sociais, ganha mais pontos para aparecer mais.
Silveira sabe disso, como sabe Carlos Bolsonaro quando opera as contas de seu pai, o presidente da República. Como, aliás, sabem quaisquer influenciadores.
A esperança que a internet trazia quando surgiu é que o debate político seria democratizado. Não seria mais necessário ter uma verba imensa para contratar as melhores pesquisas, as mais capazes equipes de vídeo e, assim, costurar publicidade eleitoral de primeira. O mercado de ideias enfim se realizaria, utopicamente, permitindo que, nos diálogos constantes da praça digital, as melhores emergissem pela criação de consensos. A democracia é tão bonita nos livros e tão difícil na prática. Pois a entrada da inteligência artificial no jogo confirmou as previsões só pela metade. Não é preciso mais dinheiro para se sobressair. Mas as regras do jogo fazem com que, no mercado real das ideias, sejam os mais radicais que chamem a atenção.
Para prender Silveira, o ministro Alexandre de Moraes fez uma leitura perigosa do princípio de flagrante. Se o vídeo está no YouTube, e pessoas estão constantemente expostas a ele, então o crime é continuado. Como já disse alguém, se isso for verdade, quem tem Twitter, tem medo. Tudo o que já se escreveu na rede e ficou pode ser usado para criar o flagrante.
Mas, interpretação à parte, Moraes — e os outros dez ministros do Supremo que unanimemente concordaram com a decisão de prender o deputado — estão certos em se preocupar. Nada é mais radical politicamente do que um ataque à democracia. É defender o rompimento do regime, o fim da liberdade, da igualdade de direitos.
A violência, afinal, pode começar retórica, pode ser um truque para deslumbrar o algoritmo e, assim, conquistar mais curtires e visitas. Mas ela não fica só aí. A violência retórica, o discurso contra a democracia, ilude eleitores e constrói eleitorado. Nós, os brasileiros, entendemos de ditadura — só na República tivemos três. A de Deodoro e Floriano, a de Vargas e a dos generais. Podemos dizer com tranquilidade que não entregam países melhores. A última nos deixou um legado de analfabetos e hiperinflação que custou à democracia uma década para resolver. Ainda assim, mesmo porque, no tempo das fake news, até a história é falsificada, tem gente convencida de que ditadura é bom jogo.
A lição que os EUA de Donald Trump nos deixaram é que a violência iniciada no algoritmo tampouco para na conquista de um nicho de eleitorado. Ela vai além, se torna real e invade Parlamentos. O Centrão que abra o olho — é com eles também.
Bernardo Mello Franco: Bolsonarismo tenta usar armas da democracia para matá-la
Na denúncia apresentada ao Supremo, a Procuradoria-Geral da República descreve Daniel Silveira como “um ex-soldado da Polícia Militar do Rio, instituição na qual se notabilizou pelo mau comportamento”. O deputado fez da indisciplina um trampolim para trocar o quartel pelo palanque. Não é sua única semelhança com Jair Bolsonaro.
A exemplo do capitão, o ex-soldado usa a misoginia para se promover. Bolsonaro atraiu holofotes quando chamou uma colega de “vagabunda” e disse que ela “não merecia” ser estuprada. Silveira se projetou ao vandalizar uma homenagem a Marielle Franco, vereadora executada pela milícia.
Os dois descobriram que a truculência pode render votos. O mau militar enfileirou sete mandatos até chegar ao Planalto. O mau policial foi premiado com uma cadeira na Câmara.
O caso do deputado marombado impõe um teste à democracia brasileira. Desde que subiu a rampa com Bolsonaro, a extrema direita mantém as instituições sob ataque permanente. Agora surgiu uma oportunidade de frear a escalada autoritária.
Na Quarta-feira de Cinzas, o Supremo esqueceu as divisões internas e manteve a prisão de Silveira por 11 a 0. Hoje será a vez de a Câmara decidir o futuro do extremista.
O bolsonarismo não disfarça. Seu projeto envolve o aliciamento das polícias, a cooptação do Legislativo e a submissão do Judiciário. O deputado Eduardo Bolsonaro já havia sugerido fechar o Supremo com “um soldado e um cabo”. Silveira propôs uma solução mais violenta: espancar, cassar e prender os ministros da Corte.
Os golpistas tentam usar as armas da democracia para matá-la. O ex-PM evoca a imunidade parlamentar para defender a ditadura. Exalta o AI-5, mas quer liberdade de expressão para conspirar. Por ironia, ele foi enquadrado na Lei de Segurança Nacional, um entulho autoritário do regime dos generais.
A Câmara tem sido conivente com a pregação fascista desde 1999, quando um deputado exaltou a ditadura e defendeu o fuzilamento do presidente Fernando Henrique Cardoso. Na época, os parlamentares optaram por deixar o extremista falando sozinho. A experiência mostra que a omissão foi um erro grave. Agora o Congresso pode começar a repará-lo.
Eliane Cantanhêde: ‘Nova política’, vade retro!
Bolsonarista Daniel Silveira empurra os três poderes para um acordão e enterra a ‘nova política’
O presidente Jair Bolsonaro e o Exército fecharam a boca, os três poderes se articularam e prevaleceu o bom senso para evitar uma crise institucional e superar o episódio “Daniel, como é mesmo o nome dele?”. O Supremo cumpriu sua função, o Congresso reagiu com maturidade, o Planalto não atrapalhou e o resultado é que o deputado bolsonarista Daniel Silveira (PSL-RJ) passa uns dias em cana e está isolado na Câmara.
O ministro Alexandre de Moraes decretou a prisão em flagrante de Silveira, que faz apologia do AI-5 e agride violentamente os ministros do Supremo; o plenário da Corte ratificou a prisão por unanimidade e em tempo recorde; o presidente da Câmara, Arthur Lira, ouviu Planalto, Senado e líderes partidários e articulou o acordão com o próprio Supremo. Duas coisas podem atrapalhar tudo: as ligações do deputado com a milícia e os dois celulares encontrados com ele.
Pelo acordo, a Câmara mantém a prisão, Moraes dá um tempo e depois usa a denúncia apresentada pela Procuradoria-Geral da República (PGR) para relaxar a prisão e trocá-la por tornozeleira eletrônica. Resta saber o que de fato acontecerá com o bolsonarista Silveira, que é uma ameaça à democracia e à sociedade. Ele será investigado pelo Supremo e pelo Conselho de Ética da Câmara. Pode ser suspenso, cassado ou... nada.
Por isso o STF não aceitou a primeira proposta do Congresso: a Câmara derrubaria a prisão, mas com o compromisso de abrir processo contra Silveira no Conselho de Ética. Como confiar, se o conselho lava as mãos até para a deputada e pastora Flordelis, condenada pelo assassinato do marido?
Enquanto os poderes têm de perder tempo e energia com gente assim, vale refletir em que contexto Daniel Silveira foi eleito deputado federal, depois de expelido da Polícia Militar do Rio por 26 dias de prisão, 54 de detenção, 14 repreensões e duas advertências. Com esse currículo, ele só pôde ser eleito na onda Jair Bolsonaro, ele próprio um militar que saiu cedo do Exército por insubordinação.
Essa onda da “nova política” tirou do Congresso (e de legislativos e governos estaduais) políticos experientes e de bons serviços prestados em comissões, lideranças e relatorias de temas essenciais. E pôs no lugar policiais, bombeiros, militares, procuradores – entre eles, toda uma gente que sempre passou ao largo da política. Pior: com horror à política e à negociação, diálogo, contraditório. Para não dizer democracia e instituições. Ao destruir a placa para a vereadora assassinada Marielle Franco, Daniel Silveira atacou o que ela representava: a política (entrou nela para destruí-la por dentro), mulheres, negros, gays, inclusão social, justiça e humanidade.
Agora, ele está preso e foi abandonado, mas não fala sozinho. O deputado Eduardo Bolsonaro já defendeu a volta do AI-5, o mais feroz instrumento da ditadura militar, e que “basta um cabo e um soldado para fechar o STF”. E o presidente da República, além de ouvir em silêncio o então ministro da Educação propor a prisão dos membros do Supremo, atiçou e participou de atos contra as instituições.
A “nova política”, porém, envelheceu rapidamente, com Wilson Witzel afastado do governo Rio por desvios, governadores do PSL e do PSC em apuros, a deputada Bia Kicis (PSL-DF) rejeitada por multidões para a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), um bando deles respondendo no Supremo por fake news e movimentos golpistas.
O próprio Bolsonaro está saindo de fininho, abraçado à “velha política” e ao Centrão e empenhado na aproximação com o Supremo. Os filhos que votem como bem entenderem sobre a prisão de Silveira, um bolsonarista raiz, porque papai Jair está mais preocupado em se dar bem no Congresso e no Supremo. Para os Silveiras e o resto, migalhas. Ou armas e munições à vontade.
Fernando Gabeira: O capitão vence no jogo da morte
Quanto mais tempo se perde por falta de vacinas, mais vidas são levadas pelo vírus
Recentemente, um grupo de cientistas publicou na revista The Lancet um estudo calculando que 40% das mortes por covid-19 nos EUA poderiam ter sido evitadas se não fosse a desastrada política de Donald Trump. Um estudo semelhante colocaria Jair Bolsonaro em situação mais difícil.
Bolsonaro é mais negacionista que Trump e na questão das vacinas se afasta radicalmente de seu ídolo americano. Afinal, Trump financiou a produção de vacinas e Bolsonaro é o único chefe de Estado do mundo que expressou uma visão negativa sobre elas.
A Confederação Nacional de Municípios lançou um documento em que registra as hesitações e os erros do governo no campo da vacinação em massa e pede a saída do ministro da Saúde, general Pazuello. Os prefeitos estão cobertos de razão. Nunca chegaremos a vacinar adequadamente os brasileiros com Pazuello à frente do processo. Ele prometeu que vacinaria metade das pessoas até junho, uma promessa tão absurda que não sei como senadores acreditam nela.
Bolsonaro negou a pandemia. No seu processo de negação, como todo populista, precisava de uma saída fácil para o problema. Optou pela hidroxicloroquina. Sempre afirmou que acreditava mais em remédios do que em vacinas, ao contrário da maioria dos governantes do mundo.
Com essa falsa premissa começou a fazer bobagens, todas elas retardando a nossa possibilidade de ter as vacinas necessárias para imunizar rapidamente e sair da crise. Outros países tiveram mais êxito. Israel, mais da metade de sua população imunizada. A Inglaterra já alcançou 15 milhões de pessoas vacinadas. Israel tem pouca gente, a Inglaterra, por sua vez, dispõe de um sistema de saúde.
Não importam tanto as características de cada um. Para ter êxito nesse processo é preciso ter vacinas. E Bolsonaro nunca pensou seriamente em comprá-las no prazo e na quantidade adequados.
Basta juntar duas declarações dele. Numa delas afirma que o Brasil, com seus mais de 200 milhões de habitantes, é um mercado superatraente para os produtores de vacinas. Passado algum tempo, ele diz: “Tenho R$ 20 bilhões para comprar vacinas, mas não consigo”. Não consegue mesmo é estabelecer relação entre as duas frases, não percebe que se enganou.
A sabotagem de Bolsonaro às vacinas teve duas vertentes distintas. A primeira talvez seja produzida pelo obscurantismo científico. A vacina da Pfizer utiliza a técnica de RNA mensageiro, expressa uma tendência da medicina genética que vai ser usada na cura de outras doenças. Mas seus aliados diziam nas redes sociais que esse tipo de vacina altera nosso código genético. Daí surgiram o medo de virar jacaré e alguns obstáculos contratuais que afastaram a Pfizer.
O obscurantismo político esteve na base das reservas quanto à Coronavac. De origem chinesa, comprada por um adversário político, João Doria, Bolsonaro lançaria inúmeros torpedos contra ela até que, reduzido a uma só alternativa, a Oxford/AstraZeneca, capitulou.
Mas suas reservas quanto à origem da vacina o cegaram também para outra possibilidade chinesa, a da Sinopharm, mais amplamente usada por lá e que acaba de fechar negócio com o Peru.
A própria Sputnik V, que despertou o interesse do Paraná e é muito parecida com a Oxford, nunca chegou a interessar ao governo, até o momento em que foi adotada por um lobby de deputados do Centrão. E com isso perdeu um pouco de sua credibilidade, apesar da eficácia reconhecida em artigos científicos.
Outra oportunidade perdida foram as vacinas do consórcio da Organização Mundial da Saúde, a Covax, que iria garantir vacinas para países que não a produzem. O Brasil poderia ter uma cota maior, correspondente a 50% da nossa população. Optou pela cota mínima, 10%.
Com uma sucessão tão robusta de erros, o governo de Jair Bolsonaro certamente iria fracassar no projeto de vacinação em massa. Isso não significa que no futuro não haja maior disponibilidade de vacinas. A tendência é do aumento da produção.
No entanto, o conceito de fracasso é associado a dois fatores: o número de contaminações evitadas num determinado período e a capacidade de repor a economia em funcionamento o mais rapidamente possível.
Na medida em que as vacinas evitam também evoluções graves e letais da doença, quanto mais tempo se perde, mais vidas são levadas pelo vírus. Por essa razão uma pesquisa de cientistas sobre o peso da política negacionista no número de mortes encontraria um resultado diferente do constatado nos Estados Unidos.
Os 40% de mortes atribuídas à política de Trump nos Estados Unidos seriam, aqui, acrescidos das mortes produzidas pelos erros na política de vacinação. Sem contar o fato de que Trump percebeu com alguma rapidez que a hidroxicloroquina era uma canoa furada e despachou os estoques para seu admirador tropical.
Nessa corrida para o troféu de mais mortes por estupidez política, Bolsonaro deverá suplantar Trump. O americano já se foi e aqui a sinistra batalha continua: faltam vacinas e uma nova variante se espalha pelo País, graças também à opção do governo de ignorá-la.