Elio Gaspari: A radioatividade do capitão
Bolsonaro e Hugo Chávez assemelharam-se na largada
Quando o senador Tasso Jereissati disse que até a eleição do ano que vem “as instituições precisam ser fortes, trincar os dentes”, ele sabia do que estava falando. Semanas depois dessa advertência, o capitão fritou de forma espalhafatosa o presidente da Petrobras, com as consequências que são conhecidas.
Como escreveu o economista Gustavo Franco: “Boa tarde, Venezuela”. Bolsonaro e Hugo Chávez assemelharam-se na largada. Ambos foram militares indisciplinados, ambos mantiveram relações agrestes com as instituições e ambos encantaram-se com o apoio de modalidades milicianas. Se Chávez foi para a esquerda, esse oportunismo vem a ser irrelevante. Nos dois casos, a mola propulsora era a busca e a manutenção do poder.
Com a fritura de Roberto Castello Branco, o capitão mostrou sua forma rombuda de governar. Na sua sala de troféus estão as cabeças de Gustavo Bebianno, o advogado que se juntou a ele quando os bolsonaristas cabiam numa Kombi. (Foi Bebianno quem levou Paulo Guedes ao deputado.) Ao lado dessa cabeça estão as de Sergio Moro, Luiz Henrique Mandetta e a do general Carlos Alberto dos Santos Cruz. Dispensar colaboradores faz parte do jogo, e o general francês Charles De Gaulle ensinou que a ingratidão é um dever do governante. Espalhafato e falta de argumentos racionais nada têm a ver com isso, sobretudo quando se vê o equilíbrio com que Bolsonaro e seus filhos tratam o miliciano Fabrício Queiroz.
Seria injusto, contudo, atribuir apenas à radioatividade de Bolsonaro o desfecho das crises que alimenta. Todos os colaboradores que dispensou eram maiores de idade quando foram para o aglomerado contagiante de seu governo, inclusive o superministro Paulo Guedes, que lá continua, de máscara.
O ectoplasma que se denomina “mercado” mostra-se perplexo com a conduta de seu capitão. Há hipocrisia nisso. Enquanto fritava Castello Branco, Bolsonaro nomeava Paulo Skaf, presidente da Fiesp, para o Conselho da República. O andar de cima acreditou na própria esperteza e deu-se mal. Esqueceram que, em 1999, o deputado Jair Bolsonaro defendeu o fuzilamento do presidente Fernando Henrique Cardoso e o fechamento do Congresso.
Frias, a alma da ‘Folha’
Boa parte da alma dos jornais vem da alma de seus donos. A “Folha de S. Paulo” comemorou seu primeiro centenário e, num pequeno e delicado artigo, a jornalista Ana Cristina Rosa retratou a alma de Octávio Frias de Oliveira, seu dono de 1962 a 2007. Quando Frias morreu, a empreitada ficou com seus filhos.
A história contada por Ana Cristina Rosa diz tudo. Há 20 anos, ela era uma jovem jornalista e, ansiosa e insegura, foi entrevistar o Frias (ele tinha horror a que o chamassem de “senhor”). Na saída, presenteou a moça com um livro e, na dedicatória, chamou-a de “terrível inquisidora”.
Ela agradeceu:
— Esse seu ‘terrível’ tem duplo sentido, mas vou tomar como elogio. Obrigada. Ah, e vou guardar bem este livro para apresentar aqui na ‘Folha’ quando eu precisar de emprego.
Frias respondeu:
— O sentido é único e está bem claro. Quanto ao emprego, é seu quando quiser. E não precisa trazer o livro.
Esse era Frias. Gentil, abertamente afetuoso e, acima de tudo, atento. Sua alma ficou no jornal.
Cristiano Romero: Desvinculação pode fortalecer democracia
Pandemia não mudou viés liberal da agenda econômica
Em novembro de 2018, definida a vitória de Jair Bolsonaro na eleição presidencial, Paulo Guedes, escolhido para ser o ministro da Economia do novo governo, foi a Brasília tomar pé da real situação fiscal do país. Foi recebido no Palácio do Planalto pelo então presidente Michel Temer, o ministro Moreira Franco (articulação política), o presidente do Senado, Eunício Oliveira (MDB-CE) e o líder do governo no Senado, Romero Jucá (MDB-RR). Temer queria saber de Guedes que plano ele tinha para a então 7 economia do planeta.
Os encontros não se limitaram aos integrantes da cúpula do governo e do Congresso. O atual ministro se reuniu também, na ocasião, com o presidente do Supremo Tribunal Federal, Dias Toffoli. Com o entusiasmo típico de quem chega a Brasília achando que, a bordo de suas (boas) ideias, a Ilha de Vera Cruz finalmente saltará do século XIX para o XXI, Guedes disse a todos, com sinceridade desconcertante, o que discorrera a Temer.
"Olha, vocês têm uma vida muito difícil hoje porque 96% do orçamento está carimbado. Vocês são eleitos, têm que tentar pegar cargos nas estatais para desviar recursos para financiamento de campanha, que é assim que financiamento político é feito no Brasil. Aí, vocês têm que fugir do [juiz] Sérgio Moro por dois, três, quatro anos. Se tudo der certo, vocês são reeleitos. Quando vocês são reeleitos, o jogo político é 'voltem para a casa 1 [do tabuleiro]'. Vocês, então, começam tudo de novo. Mas, aí, no terceiro ou quarto mandato, serão presos", observou Guedes, segundo depoimento de participantes daqueles convescotes.
"Por exemplo, o Aécio Neves, a Dilma Rousseff e o Lula estão acossados. Quase pegaram o senhor, presidente Temer. Os senhores acham que essa é uma forma razoável de viver?", indagou o ministro para, na sequência, expor aos interlocutores seu plano mais ambicioso. "O que nós queremos é devolver os orçamentos e a responsabilidade dos orçamentos para a classe política. Para quê? Para não ter que fazer um financiamento lateral [de campanha], tortuoso, todo equivocado. Vocês têm que ser eleitos porque fizeram boas coisas com suas decisões e não porque desviaram mais recursos [públicos] para seus financiamentos de campanha", prosseguiu Guedes, colhendo dos poucos espectadores um silêncio profundo, "ensurdecedor" para quem não acha palavras nem argumentos racionais que desembaracem o constrangimento generalizado.
Temer, o mais eloquente dos ouvintes, disse apenas: "Ousado. Teria todo o meu apoio se eu estivesse aqui". Quebrando um liturgia do cargo de primeiro mandatário da República, o entãio presidente levou Paulo Guedes ao elevador e o acompanhou até o térreo.
Três dias depois, Guedes foi convidado para almoçar com os então presidentes do TCU, José Múcio Monteiro, do STF, Dias Toffoli, e do STJ, João Otávio Noronha. O ministro repetiu sua pregação pela desvinculação das receitas _ como obriga a Constituição nos casos da saúde e da educação _ e a desindexação das despesas, como os benefícios da previdência.
Guedes expôs, então, a ideia de criação do Conselho Nacional da República, que reuniria, a cada três meses, os chefes do três poderes da República para discutir a situação fiscal do país, uma ideia, de fato, fabulosa, embora inexequível para país dominado por uma chaga secular chamada "pa-tri-mo-ni-a-lis-mo", a mais vil de todas as correntes da corrupção e a mais intocada, aceita e defendida de peito aberto pelos donos do poder nesta Ilha de Vera Cruz desde a invasão dos europeus, em 1500.
Nota do redator: se alguém necessita de desenho para entender o que é patrimonialismo, segue aqui humilde sugestão _ é a ideia de os usuários do poder, em todas as suas categorias (funcionalismo público, políticos, empregados de estatais, sindicatos patronais e de trabalhadores e empresas privadas fornecedoras de bens e serviços para o Estado), sejam _ ou se sintam e se comportem como _ donos da coisa pública. Sãos os donos, literalmente, daquilo que chamamos de República.
Entusiasmadíssimo com a explanação do futuro ministro da Economia, Toffoli reagiu da seguinte maneira: "Nós vamos para a História se tivermos essa coragem. Vamos dormir no Brasil e acordar nos Estados Unidos, na Alemanha, em qualquer país desenvolvido do mundo porque é isso o que acontece”.
O Plano Guedes, que já foi chamado de Plano Mansueto, morreu com a pandemia, mas renasce agora com a vontade política decisiva de um presidente da Câmara, Arthur Lira, disposto a brigar por ideias polêmicas.
Ontem, na “Live do Valor”, Lira detalhou a agenda econômica ambiciosa que pretende votar até o fim deste ano. Entre os temas mencionados, constam, nesta ordem de importância, a PEC Emergencial que institui regras para o "shutdown" da União, dos Estados e municípios, isto é, os mecanismos que os entes da Federação poderão usar para enfrentar crises fiscais provocadas, por exemplo, por situações de calamidade pública, como a pandemia.
O ponto mais importante e polêmico da PEC, porém, é a proposta de desvinculação de receitas _ como as existentes na educação e na saúde, fixadas na Constituição _ e a desindexação de algumas despesas. Lira tem convicção de que a desvinculação, que vem sendo debatida desde o governo Collor (1990-1992) _ tem chance de ser aprovada pelo Senado, onde tramita a emenda neste momento, e depois pela Câmara.
O presidente da Câmara sustentou que a rigidez orçamentária, decorrente da vinculação de receitas, provoca ineficiência nos gastos, e a educação comprovaria isso, uma vez que o país desembolsa hoje algo em torno de 6% do PIB, mas a qualidade do ensino público básico e fundamental só piora.
O deputado informou que, se o Senado aprovar a PEC ainda nesta semana, a Câmara poderá usar rito sumário para votar a PEC, uma vez que as comissões da Casa ainda não foram instaladas _ o regimento permite que, neste caso, a matéria (a PEC) possa ser votada sem ter que percorrer todo o caminho tradicional (admissibilidade pela Comissão de Constituição e Justiça, apreciação por comissão especial criada para essa finalidade etc).
Bruno Boghossian: Clã Bolsonaro tem alívio nos tribunais, mas 'rachadinha' já é uma marca política
País já conhece depósitos fracionados, dinheiro vivo e cheques na conta da primeira-dama
O clã Bolsonaro fez o diabo para fugir do fantasma da "rachadinha". Flávio foi ao STF para tirar o caso da Justiça do Rio. O Planalto organizou uma reunião com o chefe da Abin em busca de brechas para anular as investigações. E o presidente tentou intimidar investigadores ao lançar suspeitas de tráfico de drogas contra o filho de um promotor.
As apurações que cercavam a família presidencial meteram medo em Jair e companhia. Não à toa, a prisão de Fabrício Queiroz, em junho de 2020, é considerada uma linha divisória: logo depois que o operador do esquema passou um tempo na cadeia, o presidente baixou as armas contra o Supremo e foi ao altar com o centrão, em busca de blindagem.
Bolsonaro está perto de se livrar desse pesadelo no campo judicial. A decisão do Superior Tribunal de Justiça de anular a quebra de sigilo de Flávio e outros 94 investigados, nesta terça (23), obriga a investigação a voltar uma dezena de casas no tabuleiro e pode livrar a família de responder pelas acusações de desvio de dinheiro em seus gabinetes.
O caso pode ser praticamente enterrado na próxima semana, quando o STJ deve decidir se invalida também os relatórios financeiros que deram origem à apuração. A defesa das duas anulações tem como porta-voz o ministro João Otávio de Noronha, por quem Bolsonaro já disse ter sentido "amor à primeira vista".
Apesar do provável alívio nos tribunais, Queiroz e a "rachadinha" já são uma marca política do clã, mesmo que as provas não sejam usadas em processos. Os depósitos fracionados, a fortuna gasta pelo filho do presidente em dinheiro vivo e os cheques na conta da primeira-dama contaram uma história que Bolsonaro gostaria de esconder.
A fantasia do discurso anticorrupção já havia ficado pelo caminho antes que o presidente chegasse ao Planalto. Ainda que consiga contornar o cerco judicial com base em aspectos técnicos, Bolsonaro pagará o preço político dessas suspeitas. Agora, o país conhece os métodos da família em décadas de vida pública.
Conrado Hübner Mendes: Imunidade parlamentar não é passaporte para a delinquência política
A democracia deve se defender e observar 'quem' está falando
Quem pergunta se a liberdade de expressão tem limites ou está mal informado ou mal intencionado. Quem invoca essa liberdade como mantra encantatório que valida moral e juridicamente qualquer estupidez falada não entendeu nada. Ou dissimula.
Se pudesse formular uma pílula de conhecimento cívico para vacinar cidadãos contra a ignorância sobre liberdade de expressão, eu não começaria pela máxima "nenhum direito fundamental é absoluto" ou "a liberdade de expressão tem limites", lugares-comuns que deixam muito a dever. Sugeriria uma pílula alternativa: "Os limites da liberdade de expressão não se referem só a o 'quê' se fala em cada ocasião, mas a 'quem' fala". Daí começamos melhor.
Você pode cometer crime pelo "quê" fala se: caluniar, difamar, injuriar, ameaçar, fazer apologia de crime, incitar, praticar ou induzir discriminação, impedir livre exercício dos Poderes. Estão espalhadas por diversas normas (Constituição, Código Penal, Lei Caó e etc.). E a violação ainda pode gerar o dever de pagar indenização por danos morais.
Mas a vida não é simples assim. A aplicação desses verbos a casos concretos se depara com muitas pedras pelo caminho. Saber, por exemplo, se piada de humorista somente ofendeu ou se cruzou linha proibida a ponto de humilhar e incitar discriminação é das responsabilidades maiores de duas senhoras: a jurisprudência e a doutrina jurídica. Elas não oferecem fórmula matemática nem algoritmo, mas critérios que vão ganhando densidade caso após caso.
Essas senhoras cambaleantes da cultura jurídica brasileira precisam construir previsibilidade e coerência. Devem notar nuances, indicar diferenças que importam. Sem isso não podemos separar o joio do trigo. Vira um tudo ou nada, um "acho que sim, acho que não", um duelo ilusório entre liberdade e autoritarismo. É no raciocínio binário que mora a burrice jurídica.
Para complicar, importa "quem" fala. A liberdade de autoridades públicas não é a mesma de um cidadão da esquina.
Não é a mesma coisa quando: presidente diz que te odeia e vai te enviar para a ponta da praia; vice-presidente diz que índio é preguiçoso; deputado defende tortura e ditadura; juiz do STF palestra sobre cleptocracia do PT e saúda a Lava Jato (e dois anos depois a chama de "organização criminosa"); promotor classifica críticos da Lava Jato de "juristas da orcrim".
Não é a mesma coisa quando: general tuíta homenagem a Ustra, e clube de generais espalha notícia falsa; policial vira youtuber, filma operações de guerra e celebra suas "balas perdidas"; dirigente de agência reguladora como a Anvisa participa de aglomeração sem máscara ao lado do presidente.
Agentes de Estado se sujeitam a regime diverso da liberdade de expressão. É por intermédio deles que o Estado fala —do presidente ao guarda da rua, do juiz ao militar. É por meio da conduta desses agentes que instituições buscam se despersonalizar, se despolitizar e se despartidarizar.
Precisam seguir rituais de imparcialidade, liturgias e padrões de decoro. Cidadãos comuns, não. Assumem compromisso ético e performativo. Sua conduta pública educa ou deseduca pelo exemplo, encoraja ou desencoraja. Estão sujeitos, por isso, a regulações e sanções extras: crime de responsabilidade, quebra de decoro, violação da ética profissional e etc.
A imunidade parlamentar dá ao deputado liberdade de expressão qualificada, não ilimitada. Ajuda a democracia a produzir melhores debates, não o deputado a delinquir. E a condição de deputado também traz restrições qualificadas à sua liberdade de expressão: não é a mesma coisa um deputado e o fulano do bar defender a ditadura e a tortura. Parlamentar pode mais ou pode menos que um cidadão comum, conforme o caso.
Calibrar a liberdade é o feijão com arroz rotineiro dos direitos fundamentais. Isso se faz por justificativa pública e juridicamente fina, exercício liberal e republicano, não autoritário (equívoco de Catarina Rochamonte e Atila Iamarino em colunas recentes). Bem diferente de restringir a liberdade arbitrariamente, por ato irracional de força bruta. Valores, objetivos e direitos constitucionais se chocam. Nem sempre a liberdade deve triunfar sem qualquer tempero.
A democracia começa na liberdade de expressão. A democracia termina no abuso da liberdade de expressão. A democracia deve se defender desse risco e observar "quem" está falando.
*Conrado Hübner Mendes, Professor de direito constitucional da USP, é doutor em direito e ciência política e embaixador científico da Fundação Alexander von Humboldt.
Dias Toffoli: 130 anos da 1ª Constituição da República
Suprema Corte tem como guias a segurança jurídica e o federalismo
A primeira Constituição republicana, de 24 de fevereiro de 1891, realizou profundas mudanças na estrutura do Estado brasileiro. Inspirada pela experiência norte-americana e pela visão de Rui Barbosa, assumiu o modelo federativo e instituiu o Supremo Tribunal Federal (STF) —denominação adotada na Constituição Provisória de 1890, decreto nº 510—, instalado quatro dias após sua promulgação.
À semelhança da Suprema Corte dos Estados Unidos, concebeu o STF como Tribunal da Federação e última instância para resolução de conflitos públicos e privados, uma espécie de poder moderador, destinado a manter o equilíbrio entre os Poderes e os entes federativos. A Carta adotou ainda a clássica tripartição dos Poderes, separou Estado e igreja e consagrou liberdades (como de reunião, culto e expressão) e garantias (ex. juiz natural, ampla defesa e habeas corpus).
Ao longo de sua história, o Brasil enfrentou desafios na consolidação da cultura política federativa. A ausência de uma elite nacional e o fato de que o Estado nasceu antes da organização da sociedade civil geraram uma lógica pendular entre movimentos de centralização e descentralização de poder —ora disperso entre as elites e entes locais, ora retido pelo governo central.
O amadurecimento da República no Brasil foi forjado nesse movimento pendular, marcado por tensões federativas e alternâncias entre experiências democráticas e autoritárias. O professor e ministro Ricardo Lewandowski ensina que nosso federalismo padece de um “pecado original”: nossa Federação surgiu do desmembramento de um Estado unitário, e não da união de entidades federativas soberanas, como nos Estados Unidos. A permanente tensão entre poder nacional e oligarquias regionais resultou em crises, estados de sítio, intervenções militares e convulsões políticas e sociais.
Após mais de 20 anos de regime militar, a Constituição de 1988 sacramentou o papel originalmente atribuído ao Supremo pela Carta de 1891. Temos um Judiciário fortalecido e independente, garantidor da autoridade da Constituição. Trouxe, também, uma gama de direitos e garantias individuais, albergando minorias e grupos sociais historicamente excluídos.
Desde então, o Brasil vive o mais longo período de convivência democrática da história republicana, e o STF vem moderando os conflitos políticos, sociais, culturais e econômicos pelas vias institucionais democráticas. Como Tribunal da Federação, ao julgar casos concretos e interpretar um sistema constitucional complexo de repartição de receitas e competências entre União, estados, Distrito Federal e municípios, a Corte tem como guias a segurança jurídica e o federalismo de equilíbrio e cooperação.
A pandemia de Covid-19 exigiu do STF, uma vez mais, o cumprimento desse papel moderador na República, tendo em vista a existência de conflitos federativos, políticos e sociais —e, até mesmo, de orquestrações antidemocráticas. Às tentativas de ecoar discursos autoritários do passado, a corte respondeu com a defesa intransigente da democracia. Repudiou o ódio e a intolerância e garantiu o debate fidedigno e plural. Rechaçou ataques contra instituições democráticas sem descurar do enfrentamento da pandemia e do respeito aos direitos à saúde, à renda e ao pleno emprego dos brasileiros.
Entre suas mais de 8.700 decisões sobre o tema, julgou, por exemplo, ações sobre o “orçamento de guerra”, esteio do auxílio emergencial. Firmou, ainda, critérios de competência dos entes federados no enfrentamento da grave crise de saúde, ressaltando a relevância da atuação dos entes locais, estaduais e distritais e a imprescindibilidade de uma coordenação nacional.
Passados 130 anos da primeira Constituição da República e da criação do STF, novos são os desafios para manter o vigor de nosso Estado republicano e democrático. As urgências das demandas por desenvolvimento econômico e sustentável e por superação das desigualdades regionais e sociais requerem de nossas lideranças a formação de consensos não apenas em torno de reformas prioritárias, mas também na construção de uma sociedade mais livre, justa e solidária, com a promoção do bem de todos, sem preconceitos ou quaisquer formas de discriminação.
Cabem à atual e às futuras gerações, por meio da democracia, reafirmarem, com novos avanços e sem retrocessos, os legados de nossa República.
*Dias Toffoli, ministro do Supremo Tribunal Federal
Ricardo Noblat: Um caso de amor correspondido livra Flávio Bolsonaro do pior
Dois anos de suplício e de muita galhardia
Em 29 de abril último, ao dar posse a André Mendonça, o sucessor do ex-juiz Sergio Moro no Ministério da Justiça, o presidente Jair Bolsonaro assim referiu-se a João Otávio de Noronha, presidente do Superior Tribunal de Justiça, presente à cerimônia:
– Prezado Noronha. Eu confesso que a primeira vez que o vi foi um amor à primeira vista. Me simpatizei com Vossa Excelência.
Menos de três meses depois, Noronha aproveitou as férias do Judiciário para soltar Fabrício Queiroz. Mandou-o para prisão domiciliar. Para não parecer pouco, estendeu o benefício à mulher de Queiroz, que havia fugido. A ela caberia cuidar do marido.
O caso de amor à primeira vista entre o presidente e o juiz culminou com a decisão tomada pela Quinta Turma do tribunal de anular a quebra do sigilo fiscal e bancário do senador Flávio Bolsonaro (Patriotas), acusado de desvio de dinheiro público.
Noronha foi o primeiro dos quatro votos favoráveis ao filho mais velho de Bolsonaro. O voto do relator da ação foi contra. Flávio celebrou a decisão ao lado do seu advogado, Frederico Wassef, em cuja casa, no interior de São Paulo, Queiroz fora preso.
Em seu voto, que deixou eufórico o presidente da República, Noronha acusou o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), órgão vinculado ao Banco Central, de promover “indevida intromissão na devida intimidade e privacidade” de Flávio.
O Coaf monitora atividades financeiras consideradas suspeitas. Foi com base num relatório seu que o Ministério Público do Rio denunciou Flávio por peculato, lavagem de dinheiro e organização criminosa. Um esquema que lhe rendeu 6 milhões de reais.
O mutirão para tirar Flávio do sufoco envolveu muita gente dos três Poderes da República. A saída de Moro do governo deveu-se à interferência de Bolsonaro na Polícia Federal, segundo o ex-ministro. A Agência Brasileira de Inteligência deu uma mão.
A Receita Federal foi pressionada para que não criasse problemas. O Conselho de Ética do Senado ficou desativado para não ter que examinar pedidos de abertura de processos contra Flávio por quebra de decoro. Até o Supremo Tribunal Federal ajudou.
Em setembro próximo, com a aposentadoria de Marco Aurélio Mello, será aberta uma vaga de ministro no Supremo. Noronha sonha com ela, mas também Mendonça, Augusto Aras, Procurador-Geral da República, e outros nomes menos cotados.
Aras já tem quem o substitua na Procuradoria-Geral: Lindôra Araújo, a procuradora que com muito orgulho não esconde os telefonemas que recebe de Bolsonaro. Ela liderou a investigação que resultou na queda de Wilson Witzel, governador do Rio.
O Superior Tribunal de Justiça voltará a julgar a partir da próxima terça-feira novas ações movidas pela defesa de Flávio. A tendência é aceitar todas. E assim será posto um ponto final no suplício de dois anos vivido com galhardia pela família presidencial brasileira.
Lucrar com a divulgação de informações falsas é pecado mortal
A imprensa e o seu labirinto
Se foi por descuido, um descuido grave, os jornais que publicaram o informe publicitário deveriam reconhecer o erro e devolver o dinheiro. Se foi porque entenderam que era expressão de pensamento, desataram um debate que não lhes dará razão.
Um grupo chamado Médicos pela Vida publicou nos principais jornais impressos do país um manifesto em defesa do “tratamento precoce” contra a Covid-19. O texto usa informações falsas ao citar hidroxicloroquina, azitromicina, ivermectina e outras drogas.
Segundo o informe, haveria evidências científicas que comprovam os benefícios do uso desses remédios, mas não há qualquer estudo de metodologia rigorosa que tenha chegado a essa conclusão. É isso que a mídia brasileira e mundial tem dito com rara insistência.
Como é possível criticar dia sim, e o outro também, o governo e quem mais recomenda um ineficaz tratamento precoce à base de drogas receitadas para outras doenças e, na contramão dos fatos, lucrar com a publicação de um informe mentiroso?
Com a palavra, os jornais. Em seu site, o grupo Médicos pela Vida se define como um movimento civil apartidário que luta contra o aborto e divulga fotos de manifestações políticas promovidas na Avenida Paulista, em São Paulo.
Luiz Carlos Azedo: Avante para o passado
Há uma evidente contradição entre a retórica do ministro Paulo Guedes e as ideias positivistas e nacionalistas que caracterizam a mentalidade dos militares brasileiros
Onde foi que o Brasil perdeu o rumo? Essa pergunta tem muitas respostas, que variam de acordo com a ideologia do interlocutor. Mas, se olharmos para o passado, veremos na morte do presidente Tancredo, eleito pelo colégio eleitoral em 1985, depois de grandes mobilizações populares em seu apoio, o momento em que um projeto liberal com ampla base política e social foi abortado. O 21 de abril daquele ano, contraditoriamente, foi a morte do projeto liberal. Nunca mais houve no país uma correlação de forças como aquela, que lhe desse sustentação para fazer coincidir a democratização do país com a ultrapassagem do modelo nacional desenvolvimentista, que havia se esgotado.
Vice eleito, José Sarney, oriundo da Arena, ao assumir a Presidência, se viu contingenciado pelo liberalismo social de Ulysses Guimarães e por forças políticas social-democratas, trabalhistas, socialistas e comunistas, à sua esquerda, que derrotaram o Centrão na Constituinte. A sucessão de planos econômicos de seu governo, a começar pelo Plano Cruzado, que resultou na hiperinflação, foi resultado direto do experimentalismo econômico desenvolvimentista, que buscava alternativas para recidiva de um modelo econômico que já tinha dado o que tinha que dar. Em que pese suas críticas ao caráter social da Constituição de 1988, o máximo de liberalismo a que o governo Sarney chegou foi a política “feijão com arroz” do seu último ministro da Fazenda, Maílson da Nobrega.
Outra oportunidade para a agenda liberal foi a eleição de Fernando Collor de Mello, que fez campanha com um programa dessa natureza, mas, tão logo assumiu a Presidência, deu um cavalo de pau e lançou um plano que também naufragou, no qual o confisco da poupança lhe surrupiou o apoio da classe média. Seu legado foi a abertura comercial da economia, que não é pouca coisa, se levarmos em conta a política de reserva de mercado adotada pelo regime militar, desde o chamado “milagre econômico”, na década de 70, do qual herdamos o atual modelo de transporte rodoviário, o atraso tecnológico na área de informática e um sistema de saneamento que não trata o esgoto e multiplica as caixas d’água.
Talvez, a mais engenhosa política econômica de nossa história republicana, desde o Acordo de Taubaté, tenha sido o Plano Real, lançado no governo Itamar Franco, pelo então ministro da Fazenda, Fernando Henrique Cardoso, que viria a governar o país por dois mandatos. É falsa a ideia de que era um plano neoliberal, disseminada pelo PT até hoje. A própria existência de uma disputa entre social-liberais e desenvolvimentistas no governo tucano é a prova disso. Houve, sim, uma reforma bancária que consolidou nosso sistema financeiro e uma reforma patrimonial que privatizou a maior parte do setor produtivo estatal, em áreas que estavam em obsolescência industrial, como mineração e siderurgia, e de serviços, sobretudo a telefonia, que era um entrave à produtividade da economia. Mesmo se quisesse, não havia como financiar a modernização desses setores.
Social-liberal
A política de “focalização” do gasto social nas camadas mais pobres da população é social-liberal. Foi adotada no governo FHC e mantida pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, com a diferença de escala na transferência de renda, com o Bolsa Família, que beneficiou 50 milhões de pessoas. A guinada nacional-desenvolvimentista na política econômica somente veio a ocorrer no segundo mandato de Lula, sob comando do ex-ministro da Fazenda Guido Mantega e a influência direta da então chefe da Casa Civil, Dilma Rousseff, o “poste de saias” que sucedeu Lula. A nova matriz econômica surgiu com medidas anticíclicas, para enfrentar a crise do mercado financeiro americano de 2008, mas acabou virando estratégia de desenvolvimento, que fez renascer das cinzas o velho modelo nacional desenvolvimentista, tendo por eixo as empresas estatais, os investimentos em infraestrutura e a política de “campeões nacionais” do BNDES. Os resultados, todos conhecem: a economia entrou em colapso, a inflação disparou, o escândalo da corrupção na Petrobras desmoralizou o governo petista. Dilma acabou apeada do poder pelo impeachment.
O vice Michel Temer, ao assumir o governo, foi o último presidente da República a apresentar um projeto liberal com começo, meio e fim, a chamada “Ponte para o futuro”. Entretanto, não tinha tempo para implementá-lo, diante da recessão e da necessidade de domar a inflação, além da falta de perspectiva política provocada pelas denúncias do procurador-geral Rodrigo Janot, com base na delação premiada da JBS. Quem agarrou a bandeira da agenda liberal com as duas mãos foi Jair Bolsonaro, eleito presidente da República em 2018, com o atual ministro da Economia, Paulo Guedes, como garoto propaganda. Mas há uma evidente contradição entre a retórica do ministro e as ideias positivistas e nacionalistas que caracterizam a mentalidade dos militares brasileiros.
Essa contradição se tornou cristalina neste episódio de mudança de comando na Petrobras, com a substituição de Roberto Castelo Branco, um executivo civil, pelo general Silva e Luna, prontamente apoiada pelo ex-senador Aloizio Mercadante (PT-SP), por se tratar de um “nacionalista”. É evidente a fritura de Guedes, cada vez mais enfraquecido. Na economia, sempre houve certa convergência entre as concepções nacionalistas dos militares e as ideias anti-imperialistas da esquerda tradicional. Com Bolsonaro no poder, é possível desenhar um cenário para as eleições de 2022 no qual essas forças se confrontarão novamente, como em 2018. Ainda não surgiu um político capaz de articular a agenda liberal e galvanizar o apoio popular, como Tancredo Neves.
Affonso Celso Pastore: 'Acabou a ilusão do liberalismo de Bolsonaro'
Para economista, demissão de Roberto Castello Branco da Petrobrás mostra que o presidente ‘não tem nenhum compromisso com a democracia’
Sonia Racy, O Estado de S.Paulo
A decisão do presidente Jair Bolsonaro de demitir Roberto Castello Branco do comando da Petrobrás “acabou com a ilusão de que o suposto liberalismo econômico do governo levaria à retomada do crescimento”. A conclusão é do economista e consultor Affonso Celso Pastore*, e vem com uma ironia: “Fixar preço de petróleo não é como fixar o preço do misto-quente”.
O presidente, diz ele, mostrou que “não tem nenhum compromisso com a democracia, com o Brasil e com a melhoria das condições de vida da população. Visa, apenas, a votos para a sua reeleição em 2022”. Com um olhar veterano – 81 anos, tendo passado, entre outros, pelo comando do Banco Central e da Secretaria da Fazenda paulista –, o professor e doutor em Economia pela USP adverte para duas prioridades que o País tem hoje: vacinar, vacinar, vacinar e buscar com urgência o equilíbrio fiscal.
No entanto, nesta entrevista para o programa Cenários, parceria do Estadão com o Banco Safra, o que temos hoje é “uma política fiscal completamente aleatória e errada” – e o resultado disso é que os dólares de que o Brasil tanto precisa, em investimentos, “estão indo para outros países emergentes”. A seguir, os principais trechos da conversa.
Como o sr. avalia a decisão de Bolsonaro de demitir o presidente da Petrobrás?
Com a demissão de Roberto Castello Branco da Petrobrás acabou-se a ilusão de um suposto “liberalismo econômico” do governo Bolsonaro que levaria à retomada do crescimento. Fixar o preço do petróleo não é como fixar o preço de um misto-quente. Ao repassar para os preços domésticos as variações do preço internacional do petróleo, a Petrobrás elevava os lucros e atraía capitais externos, o que ajudava a recuperar a economia. Se o governo ainda tivesse uma pálida sombra do liberalismo que propagava durante a campanha eleitoral, teria de deixar a empresa livre para fixar os preços no mercado interno, respondendo às variações internacionais.
E que impacto essa mudança trará para a política e a economia do País?
Bolsonaro não é liberal, e sim um populista, semelhante a Viktor Orbán, na Hungria, (Recep) Erdogan, da Turquia, (Vladimir) Putin, na Rússia, com propensão a ser um ditador, como (Nicolás) Maduro, na Venezuela. Não tem nenhum compromisso com a democracia, com a melhoria das condições de vida da população. Visa, apenas, à sua reeleição em 2022 e proteger-se contra o impeachment.
Como ex-presidente do Banco Central, nos anos 80, de que forma avalia a nova norma que cria um BC realmente independente?
Essa independência agora aprovada é no sentido de que seus diretores têm mandato fixo e não coincidente com o do presidente da República. Há um outro conceito de independência – que aqui já existe –, estabelecido muitos anos atrás pelo (economista) Stanley Fisher e que enfatiza a independência no uso dos instrumentos. O que isso quer dizer? Que para um BC poder cuidar da política monetária, tem de ter liberdade total para mexer na taxa de juros. Quando o Arminio Fraga presidiu o banco (1999 a 2003), e entramos no regime de metas de inflação, o governo deu informalmente essa liberdade ao BC. Mas o presidente do banco continuava passível de demissão pelo presidente da República.
E para que isso serve, na prática?
Isso significa que o BC pode fazer a política monetária, que é condição essencial para que o País cresça. O controle da inflação é fundamental. A propósito, quero lembrar que o Roberto Campos criou – no governo Castelo Branco – o BC independente, em que seu presidente teria mandato fixo e não coincidente com o do presidente da República. Mas aí colocou o Dênio Nogueira na sua presidência e usou todos os argumentos possíveis para convencer o sucessor de Castelo, o general Costa e Silva, a manter o Dênio. Não conseguiu. Como ele conta no seu livro A Lanterna na Popa, o sucessor lhe perguntou por que deveria manter o Dênio e o BC independente. “Porque ele é o guardião da moeda”, disse Campos. Eu presumo que Costa e Silva tenha batido no peito e dito: “O guardião da moeda sou eu!”. E a independência do BC foi jogada às urtigas e a diretoria toda demitida. Queriam, sim, interferir na política monetária.
Houve alguma época em que o Brasil praticou de fato o equilíbrio fiscal?
Houve, e começou em 2002. Quando ocorreu o Plano Real, o BC emitia moeda para financiar déficits – e a dívida pública já era muito alta. O FHC e o Pedro Malan, ministro da Fazenda, compreenderam isso e decidiram criar aquele regime do “tripé da política econômica”. Metas de inflação e metas de superávit primário de modo a estabilizar ou reduzir a relação dívida/PIB. Eles cumpriram isso, mas não para o controle dos gastos.
E aí vieram os aumentos de impostos
Sim, aumento de impostos. E isso tem um custo econômico, pois, a cada imposto ou alíquota que você cria, prejudica a eficiência econômica e reduz o crescimento. Aquele regime de metas durou até 2014. Aí a Dilma decidiu sair do regime de superávit primário, gastou e gerou déficits. Resultado: o Brasil, já promovido a grau de investimento, perdeu essa classificação em 2015.
É possível fazer hoje uma projeção do crescimento da economia mundial?
Você não tem uma resposta para isso. Você nunca viveu antes uma pandemia. O que sabemos, e é muito pouco, é que a pandemia atua do lado da oferta e do lado da procura. Da oferta, botou todo mundo em casa, impediu fábricas de funcionar, mexeu na demanda e na oferta. Nos modelos econômicos, esse fenômeno não é conhecido por ninguém.
Tem algum caminho para que o País possa voltar a crescer?
Para isso precisamos de duas coisas. Uma, a vacinação eficaz, rápida, pra que se possa voltar ao mais próximo possível de uma vida normal. A segunda coisa: precisamos de estímulos econômicos. Mas estamos falhando na vacinação e, com o desequilíbrio fiscal que temos, não podemos pensar num pacote fiscal como o dos Estados Unidos. Eles chegaram a US$ 1,9 trilhão, 10% do PIB. Podem fazer isso porque não têm o problema da sustentabilidade da dívida.
Mas que medidas deveriam ser tomadas no curto prazo?
Vacinar, vacinar. Mas o presidente e o ministro da Saúde foram negligentes, negacionistas nessa questão da vacina. A segunda coisa a fazer é tomar cuidado com a política fiscal. E mais: é impossível, com desemprego alto e a distribuição de renda assimétrica que temos, não ter uma ajuda emergencial para as pessoas atingidas.
Qual a possibilidade de uma CPMF digital? O governo brasileiro jamais conseguiu, na sua história, cortar custos.
Fizemos a reforma da Previdência. Ela cortou. E precisamos de uma reforma administrativa. Ela também corta. Quanto à uma nova CPMF, a única vantagem é que é fácil de recolher. Mas é injusta, impopular. O que precisamos é de um consenso político. Para isso, no entanto, se precisa de uma liderança política. Coisa que o nosso presidente, infelizmente, não tem.
Não tem, de fato.
Ele perde as estribeiras, xinga as pessoas, diz que é preciso ser macho para enfrentar a pandemia... As coisas não se resolvem com essas bravatas. Resolvem-se com planejamento, articulação política, diagnóstico. É como o médico. Médico não sai dando remédio ao paciente a torto e a direito, primeiro faz um diagnóstico da doença. E só depois começa a executar.
Existe alguma brecha, algo que possa trazer um alento ao País? O excesso de liquidez, o capital procurando algum lugar para aterrissar...
Eu preparei um trabalho pegando 20 países emergentes, o Brasil entre eles. Há uma arrogância de gente afirmando que essa liquidez só pode vir para um lugar, o Brasil... Ela foi provocada pelos Estados Unidos, que em maio de 2020 baixaram os juros a zero e compraram US$ 2,5 trilhões em títulos públicos. Pois eu acompanhei a taxa de câmbio do Brasil e a desses emergentes, que – com exceção de Turquia e África do Sul – seguiram o dólar. Aí, o dólar enfraqueceu, eles se fortaleceram. O real só se depreciou de lá para cá. E tem capital que está saindo daqui. Para onde? Para outros países emergentes.
E o que isso significa?
Estamos vivendo com um real fraco, hoje em torno de R$ 5,40 (por dólar). Isso reflete a percepção de risco da nossa economia. E qual é a origem desse risco? É o fato de termos uma política fiscal completamente aleatória e errada. Se consertarmos, não tenho dúvida de que esses capitais vão voltar, comprando ações, imóveis. O que exige coordenação política e liderança – mas estamos bem longe disso.
Em suma, temos um quadro com o mundo se recuperando aos poucos e o Brasil ficando para trás?
Há alguns dias o FMI publicou umas projeções de crescimento. Na China, o PIB caiu só por um trimestre e agora eles crescem. Ainda na Ásia, você olha para Japão, Coreia do Sul, Austrália, Nova Zelândia, aquela área ganhou de 10 a 0 dos Estados Unidos. Neste ano, veio o Joe Biden, com uma visão a favor de um apoio fiscal, ‘tá’ fazendo um impulso enorme. A Europa, liderada pela Angela Merkel, aprovou um pacote de investimentos para aumentar a produtividade dos menos desenvolvidos, como Polônia, Espanha, Itália. A América Latina está atrasada em relação ao resto do planeta, e o Brasil junto com ela.
O que o sr. considera relevante aí pela frente, para dizer aos mercados financeiros e para o governo?
Em um livro que estou acabando de ler, Radical Uncertainty, os autores, Mervyn King (ex-BC americano) e John Kay, tratam da incerteza. A pandemia, tipicamente, foi uma incerteza radical. Os empresários aceitam o desafio da incerteza. Mas eles têm de sair da casca e começar a gritar no plano político.
Não estão começando a fazer isso?
Vejo hoje uma retração como nunca vi antes. O sujeito escreve um artigo dizendo “olha, não chacoalha muito, um dia o Bolsonaro vai embora...” O empresariado tem de se posicionar, olhar para o futuro do País. Não só o dele, o da empresa. Acho que é preciso um pouco mais de proatividade no campo político para que a gente construa um País melhor. A superação do desafio não vem sozinha.
*DIRETOR DO DEPTO. DE ECONOMIA DA USP, FOI PRESIDENTE DO BANCO CENTRAL (1983-85) E SECRETÁRIO DA FAZENDA DE SP (1979-83). É SÓCIO-FUNDADOR DA A.C.PASTORE & ASSOCIADOS.
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BBC Brasil: Brasil de Bolsonaro tem maior proporção de militares como ministros do que Venezuela
O Brasil de Jair Bolsonaro já tem, proporcionalmente, mais militares como ministros do que a vizinha Venezuela, onde há muito tempo as Forças Armadas abdicaram da neutralidade e se tornaram fiadoras da permanência de Nicolás Maduro no poder
Luis Barrucho, BBC News Brasil em Londres
Para especialistas ouvidos pela BBC News Brasil, essa presença expressiva de militares, especialmente da ativa, atuando dentro do governo, contribui para a ideologização de uma instituição que deveria ser neutra.
Fortalece esse argumento a recente fala do ministro-chefe do GSI (Gabinete de Segurança Institucional), general Augusto Heleno, que chamou o Congresso de "chantagista".
A declaração de Heleno inspirou a convocação de manifestações contra o Congresso para o próximo dia 15 de março. Em um áudio captado durante uma transmissão em rede social, o ministro foi flagrado dizendo que Bolsonaro não poderia aceitar que o Legislativo queira avançar sobre o dinheiro do Executivo.
"Não podemos aceitar esses caras chantageando a gente. F*da-se", disse aos ministros da Economia, Paulo Guedes e da Secretaria de Governo, general Luiz Eduardo Ramos.
Bolsonaro encaminhou a amigos um vídeo que convoca a população a ir às ruas para defendê-lo. Lideranças políticas, como os ex-presidentes Luiz Inácio Lula da Silva e Fernando Henrique Cardoso, criticaram o presidente e falaram sobre "crise constitucional".
"As evidências históricas nos mostram que a democracia tem uma sobrevida maior quando há um controle civil das Forças Armadas. Ainda que, por ora não se veja um movimento mais efetivo dos militares no sentido de gerar desgaste democrático, trata-se de uma mudança na correlação de forças que gera preocupação e, se não houver esse controle, certamente representa uma das fontes de risco para a democracia", diz à BBC News Brasil Rafael Cortez, cientista político da Tendências Consultoria Integrada.
"Os regimes políticos são mais instáveis quando não há esse controle. Gerir o monopólio da força não é trivial e não é por um acaso que boa parte dos regimes autoritários do mundo ou regimes com forte instabilidade tem um papel político dos militares bastante efetivo", acrescenta.
Para Christoph Harig, pesquisador da Universidade Helmut Schmidt, em Hamburgo, na Alemanha, e doutor em Estudos de Segurança na Universidade King's College, em Londres, onde estudou Brasil, "já é problemático ter vários militares da reserva no governo, mas convidar aqueles da ativa afeta diretamente as Forças Armadas como instituição e evidentemente ridiculariza seu suposto papel 'não partidário' na democracia brasileira".
Composição ministerial
Atualmente, os militares controlam oito dos 22 ministérios do governo de Jair Bolsonaro (36,36%). Com a recente nomeação do general Walter Souza Braga Netto para a Casa Civil, o Palácio do Planalto ficou totalmente 'militarizado', embora Jorge de Oliveira Francisco, da Secretaria-Geral da Presidência, não seja egresso das Forças Armadas — ele é major da Polícia Militar do Distrito Federal.
Os militares que estão no governo atual, além de Braga Netto, são: tenente-coronel da reserva Marcos Pontes (Ciência e Tecnologia), general da reserva Augusto Heleno (Gabinete de Segurança Institucional), general da reserva Fernando Azevedo e Silva (Defesa), general Luiz Eduardo Ramos (Secretaria de Governo), almirante Bento Costa Lima (Minas e Energia), capitão da reserva Wagner Rosário (Controladoria-Geral da União) e capitão da reserva Tarcísio Freitas (Infraestrutura). Braga Netto e Ramos ainda estão na ativa, embora o primeiro, pressionado, tenha decidido antecipar sua ida à reserva, marcada para o meio deste ano.
Já no caso da Venezuela, militares comandam dez dos 34 ministérios (29,4%), a cifra mais baixa dos últimos anos, segundo a ONG venezuelana Control Ciudadano. São eles: coronel Jorge Elieser Márquez (Despacho da Presidência e Continuação da Gestão do Governo), major-general Néstor Reverol (Relações Interiores, Justiça e Paz), general Vladimir Padrino López (Defesa), coronel Wilmar Castro Soteldo (Agricultura Produtiva e Terras), general Ildemaro Moisés Villarroel Arismendi (Habitação e Moradia), major-general Manuel Quevedo (Petróleo), major-general Carlos Leal Tellería (Alimentação), general de divisão Raúl Alfonso Paredes (Obras Públicas), Almirante Gilberto Pinto Blanco (Desenvolvimento de Mineração Ecológica) e major-general Gerardo Izquierdo Torres (Nova Fronteira de Paz).
O número de militares como ministros no governo de Jair Bolsonaro também é superior a três dos cinco presidentes da ditadura militar (Emílio Garrastazu Médici, Ernesto Geisel e João Figueiredo) — cada um deles tinha na composição de seus ministérios sete nomes das Forças Armadas. Na mesma base de comparação, o governo de Bolsonaro empata com o de Costa e Silva, mas ainda está atrás de Castelo Branco, que tinha doze militares como ministros.
Além disso, o Palácio do Planalto conta com cargos de destaque ocupados por egressos das Forças Armadas, como o próprio presidente, que é capitão reformado do Exército, o vice-presidente Hamilton Mourão, general da reserva, além do porta-voz da Presidência, Otávio do Rêgo Barros, também general da reserva.
No último dia 14 de fevereiro, Bolsonaro também nomeou o almirante Flávio Augusto Viana Rocha para comandar a Secretaria de Assuntos Estratégicos (SAE), que ganhou novas funções e agora está subordinada diretamente ao presidente. Oficial-general da ativa da Marinha, Rocha estava à frente do 1º Distrito Naval. A SAE estava ligada anteriormente à Secretaria-Geral da Presidência, uma das quatro pastas com status de ministério que funciona no Palácio do Planalto.
'Neutralidade'
Segundo Cortez, da Tendências Consultoria Integrada, o papel das Forças Armadas deveria ser "apolítico".
"A partir do momento em que os militares passam a exercer um papel mais político, sofrem desgaste e passam a ser percebidos como atores políticos, não só os da reserva como os da ativa. Isso gera um choque entre mundos: um que funciona como base na hierarquia e disciplina e outro com base em relações mais horizontais. Não há uma escala formal no universo da política. São dois modus operandi bastante complicados", diz.
"Quando os militares passam a fazer parte do governo, politiza-se a instituição e essa separação vai se tornando mais difícil, especialmente quando se combinam membros da reserva e da ativa. Essas relações vão se tornando mais delicadas e mais complexas. Boa parte da legitimidade das Forças Armadas é ter esse papel não político", acrescenta.
Christoph Harig, da Universidade Helmut Schmidt, concorda. Ele relembra o caso do general da reserva Carlos Alberto dos Santos Cruz, que foi ministro-chefe da Secretaria de Governo e deixou o cargo em junho do ano passado, seis meses depois de ser empossado, após se envolver em uma crise com o filho do presidente, Carlos Bolsonaro, e o escritor Olavo de Carvalho, guru ideológico de Bolsonaro.
Santos Cruz se tornou, então, crítico do governo.
"Não acho que isso (presença de militares no governo) enfraqueça diretamente o conceito de democracia, mas levanta questões sobre responsabilidade e relações civil-militares (especialmente porque alguns são da ativa que foram apenas 'emprestados' ao governo federal). Os militares insistem que a instituição não se envolve na política do governo e que quem integra o governo não representa os militares como instituição."
"Mas essas linhas divisórias estão cada vez mais embaçadas, especialmente se os militares puderem retornar à ativa posteriormente. Eles podem dizer que estão sempre agindo no melhor interesse do país, mas os militares estão cada vez mais sendo identificados como parte do governo Bolsonaro", acrescenta.
"Basta comparar com os EUA, onde o presidente Donald Trump agora critica Kelly (general da reserva John Kelly, ex-chefe de gabinete de Trump) por se manifestar depois de deixar o governo: se, hipoteticamente, alguém como Braga Netto brigasse com Bolsonaro (como Santos Cruz 'brigou'), ele seria capaz de retornar à suposta atividade apartidária como oficial militar?", questiona.
'Diversas fases'
Cortez lembra que a relação de Bolsonaro com os militares passou por diversas fases.
"Não há dúvida de que parte do processo de legitimização da candidatura de Bolsonaro passou por esse apoio dos militares", diz.
Mas, uma vez iniciado o mandato, houve atritos. Além de Santos Cruz, o vice-presidente, general Hamilton Mourão, também foi alvo de críticas.
"Num primeiro momento, houve um ativismo do vice-presidente, general Hamilton Mourão, bastante relevante de equilibrar e olhar com cuidado determinadas ações presidenciais. E isso perdeu fôlego ao longo de 2019", diz Cortez.
"Havia uma expectativa que me parece que não condiz tanto com a realidade de que as Forças Armadas iriam controlar eventuais abusos do presidente Bolsonaro, que imprimiriam um pragmatismo na administração do governo, que também é muito marcada por certa guerra ideológica. Os militares seriam assim um grupo que exerceriam esse poder de veto desses excessos. Essa expectativa não se confirmou", acrescenta.
Para Cortez, mais recentemente, ocorreu "uma segunda etapa desse papel mais ativo dos militares de ocuparem pastas mais importantes".
"A ideia de se cercar de militares reforça o mandato Bolsonaro diante de um conjunto bem relevante de críticas do estilo bolsonarista. É um movimento estratégico", diz.
Outro risco da atuação política de militares dentro do governo, também apontado por especialistas, é a contaminação da caserna, cuja simpatia ao bolsonarismo é amplamente conhecida. Soldados poderiam sentir-se assim 'avalizados' em possíveis reivindicações pelo posicionamento ideológico de seus superiores.
Recentemente, motins ilegais de policiais militares se espalharam por todo o Brasil.
"Ao trazer as Forças Armadas para o debate político, isso gera desgaste. Preservar o papel institucional passa por esse distanciamento. Toda essa conjuntura vai gerar um dilema para a instituição", conclui Cortez.
Rosângela Bittar: Tome que a culpa é sua
Bolsonaro só admite a seu lado colaboradores que vão além da subordinação formal
Sempre se disse que só apelando a Freud era possível ter uma explicação sobre quem é Jair Bolsonaro. Principalmente a personalidade no exercício do poder. Traço marcante: só admite a permanência a seu lado de colaboradores que vão além da subordinação formal, curvando-se, invertebrados, aos seus caprichos primários. Ou amortecendo seus triplos carpados.
Quem diria em que se transformou o ícone da campanha eleitoral, hoje exposto à condição de símbolo das frustrações com que o governo desafia seus eleitores. O ministro da Economia, Paulo Guedes, tantas vezes já esteve na situação em que se encontra agora, a do tanto faz se sai, tanto faz se fica, que perdeu todos os traços da imagem projetada um dia.
As justificativas mais constantes são imprecisas: ora ele permanece porque interessa ao mercado financeiro ter um dos seus dentro da engrenagem; ora porque o poder o emociona. Talvez tenham razão os que avaliam o permanente dia do fico com a explicação de que o ministro aprecia um bom sapo.
Na verdade, a Bolsonaro interessa que fique. Sem Guedes, seria dele a culpa pelo fracasso do plano liberal e mais uma penca de problemas econômicos aprofundados pela crise sanitária da pandemia. Além de não ter, à mão, outro especialista em montagem de gambiarras para conter os efeitos de suas diatribes para destruir reputações e estatais em processo de reconstrução.
O caso de Eduardo Pazuello é ainda mais cruel. Todo o desastre que provocou se deveu à execução de ordens expressas de Bolsonaro. Da imposição da cloroquina à omissão na compra de vacinas, incluindo as mortes por falta de oxigênio. O que fez ou não fez se deve ao presidente, ele já confessou que só cumpre ordens. Como a gestão do governo Bolsonaro na pandemia é a pior do mundo, o ministro, seu agente, é o pior do mundo. Mas fica no cargo segurando a culpa e os processos judiciais.
Uns fazem questão de assumir e ficam com prazer, como é o caso do ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo. Ele desperdiça o título de chanceler sem o menor constrangimento.
Outros, como Ricardo Salles, do Meio Ambiente, são casos de mimetismo explícito. Tornou-se um campeão recordista do negativismo ambiental.
Os governadores e prefeitos, que estão no front da crise generalizada e não podem contemporizar com o morticínio, sofrem a inexistência de uma liderança federal, mas sentem a presença da culpa transferida.
O descalabro orçamentário é culpa do Congresso. Bem como a inexistência de reformas estruturais. Derrubar a CPI da pandemia, barrar a CPI da rede de mentiras, tirar as verbas carimbadas da Educação e da Saúde (onde estiver, pode-se imaginar o desapontamento do velho senador capixaba João Calmon) figuram entre os mais graves atentados do bolsonarismo à sociedade por intermédio do Parlamento.
O ex-ministro da Educação Abraham Weintraub é pioneiro de ataques ao STF e vanguarda da surpreendente escalada antidemocrática do governo Bolsonaro. O modelo que a crônica internacional tipifica como terrorismo político. Tipos como este agridem a Constituição em nome da qual desfrutam o poder, sendo desproporcional a existência de apenas um preso por tais delitos. Ele não age sozinho.
Os ex-ministros Sérgio Moro (Justiça), Luiz Henrique Mandetta e Nelson Teich (Saúde) deixaram os cargos quando perceberam o truque. Demitindo-se, livraram-se da culpa pela interferência política na Polícia Federal e pelas 250 mil mortes de brasileiros por infecção do coronavírus.
A patologia freudiana em Bolsonaro leva a marca dupla do desprezo pela vida e de violentas fixações. Para quem irá a culpa pelo crescimento do crime com a irresponsável legislação armamentista? Quatro sugestões de resposta: dirigentes de clubes de tiros, fabricantes de revólveres, milícias e filhos. Jair Bolsonaro fica também fora desta.
Raul Jungmann: ‘Armar população fere papel constitucional das Forças Armadas’
Em carta, ex-ministro da Defesa e da Segurança Pública pede que Supremo barre iniciativas do presidente que flexibilizam acesso de cidadãos a armamento
Pedro Venceslau, O Estado de S.Paulo
Após pedir, em carta aberta aos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), uma reação da Corte à flexibilização da política de armas no Brasil, o ex-ministro da Defesa e Segurança do governo Michel Temer, Raul Jungmann, disse ao Estadão que há preocupação nas Forças Armadas em relação à ofensiva do Palácio do Planalto. “O armamento da população significa também ferir o papel constitucional das Forças Armadas, o que é da maior gravidade. Cria-se outro polo de violência”, afirmou. Afastado da política, o ex-ministro atua no setor privado na área de tecnologia da informação.
Por que a flexibilização do porte de armas pode significar uma lesão ao sistema democrático?
Até aqui o debate sobre armamento, desarmamento e controles se dava no âmbito da segurança pública. O presidente transpôs esse campo e levou para a política no momento em que defende o armamento dos brasileiros para defesa da liberdade. Não vejo ameaça real ou imaginária. Ao mesmo tempo, ele consubstancia esse seu desejo com mais de 30 regulamentações, seja através de lei, decreto ou portaria. Estamos diante de um fato muito preocupante para todos nós.
Por quê?
A certidão de nascimento do Estado nacional é exatamente o monopólio da violência legal. A primeira que preocupa muito é a quebra desse monopólio. Quem dá suporte a esse monopólio, que é fundamental para a sobrevivência do estado democrático, são as Forças Armadas. O armamento da população significa também ferir o papel constitucional das Forças Armadas, o que é da maior gravidade. Cria-se outro polo de violência. Por último, na medida em que não se vê ameaça externa sobre a Nação, isso só pode apontar para um conflito de brasileiros contra brasileiros. Um cenário horripilante de um flagelo maior, até uma guerra civil. Essa é uma preocupação que precisa de uma resposta da parte dos demais poderes, do Supremo Tribunal Federal e do Congresso Nacional. Caso contrário, pode se repetir aqui o que aconteceu nos Estados Unidos, no Capitólio, lembrando que temos eleições em 2022. Se cada brasileiro é responsável pela própria segurança, então não precisamos de segurança pública e força policial.
Como o sr. avalia a proposta do excludente de ilicitude?
Só agrava o que está ocorrendo. Reduz os controles sobre a força policial, lembrando que o Código Penal já tem os instrumentos necessários para lidar com essa questão. Toda nação democrática tem regulamentos rígidos para a concessão do direito à posse e ao porte de arma. Não estou me posicionando contrário ao cidadão que cumpriu as regras e, de acordo com a lei, tem a posse ou porte de armas. Não se trata de negar o direito a esse cidadão, mas, quando se fala em armar a população, estão dizendo outra coisa. Estão falando em uma situação que pode descambar para um clima de violência generalizada. É isso que temos que exorcizar.
Não é contraditório que um presidente tão ligado às Forças Armadas e com tantos militares no governo tenha adotado uma bandeira que ameaça a instituição?
Não represento as Forças Armadas, mas sei que existe uma preocupação com isso. Recentemente, o Departamento de Fiscalização de Produtos Controlados do Exército baixou duas normas que visavam ao rastreamento de armas e munições. Isso é fundamental para o esclarecimento e redução da violência. Por determinação do Executivo, essas duas normas foram revogadas. O general que cuidava desse departamento pediu exoneração. Fica claro que a disposição das Forças Armadas é pela rigidez no controle. O Executivo está jogando no sentido contrário. Mas, de fato, há apreensão.
Como foi a repercussão da carta do sr. ao Supremo?
A resposta de todos os ministros do Supremo com os quais eu tenho acesso e me comunico foi no sentido de que há uma preocupação.
Como avalia o argumento de que arma é garantia de liberdade da população?
A garantia da liberdade está na democracia, no respeito à Constituição e aos poderes. Não há ameaça pesando sobre a liberdade dos brasileiros e brasileiras, real ou imaginária. Isso atende muito mais a uma preocupação política e ideológica de atender aqueles que são sua base eleitoral. Esse armamento pode nos levar a uma tragédia. Quanto mais se liberam armas, mais corremos risco que ocorra aqui o que ocorreu no Capitólio.
Argumenta-se que a compra de armas é para caçadores e colecionadores, mas eles usam fuzis para essa prática?
Fuzil é uma arma de uso restrito. Não é uma arma para colecionador ou para clubes esportivos de tiro. Fuzil é uma arma exclusivamente voltada para o combate ao crime pesado e ao uso na guerra. Não faz nenhum sentido essa liberalização, pelo contrário.
Há pressão da indústria das armas?
Ela sempre existiu. Sempre lidamos com ela.
Como vê o argumento de que os brasileiros têm o direito de se proteger e, se muitos possuírem armas, o criminoso pensaria duas vezes antes de agir?
A legislação já permite isso. Comprovada a necessidade e a capacidade técnica e psicológica, o brasileiro que cumprir os mandamentos legais tem direito a isso. É uma falácia. A primeira vítima é a própria pessoa. Onde você vai guardar uma arma em casa? Na gaveta? Embaixo da cama? Todo bandido tem a vantagem da surpresa. E, se for para cada brasileiro dar conta da própria segurança, para que segurança pública? Quando uma população é armada vemos o que acontece na Síria, Iraque e Venezuela. Há uma tragédia nacional.
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FAP realiza webinar sobre os desafios da sustentabilidade no Brasil
Participaram do evento online Anivaldo Miranda, George Gurgel e Elimar Nascimento
Cleomar Almeida, assessoria de comunicação da FAP
A FAP (Fundação Astrojildo Pereira) realizou, nesta terça-feira (23), o webinar sobre os desafios da sustentabilidade no Brasil. O evento online foi transmitido ao vivo, a partir das 19h, na página da entidade no Facebook.
Confira o vídeo!
Participaram do webinar o presidente do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco, o jornalista e ambientalista Anivaldo Miranda, e o professor da UFBA (universidade Federal da Bahia) George Gurgel, que também é integrante da oficina da cátedra da Unesco e do Conselho do Instituto Politécnico da Bahia.
O público também pôde debater o tema com o professor da UnB (Universidade de Brasília) e cientista socioambiental Elimar Nascimento. Ele também é autor do livro Um mundo de riscos e desafios: conquistar a sustentabilidade, reinventar a democracia, e eliminar a nova exclusão social, lançado pela FAP.
O webinar, segundo os organizadores, é parte das atividades da FAP, que, conforme ressaltam, mantém aceso o seu compromisso com o debate público, plural e democrático sobre assuntos de interesse da sociedade.