Bruno Carazza: Governar é inaugurar estradas

Ajuste fiscal da PEC emergencial foi esvaziado

Coribe (BA), Propriá (SE), Cascavel (PR), Florianópolis (SC), Alcântara (MA), Sertânia (PE), Campinas (SP), Rio Branco (AC), Foz do Iguaçu (PR), Tianguá (CE) e Fortaleza (CE). Nos últimos 40 dias, o presidente da República visitou 12 cidades brasileiras. Além das críticas à promoção de aglomerações no período em que a pandemia atinge seu ápice, o roteiro também deixa claro que Bolsonaro já está em campanha para ser reeleito em 2022.

Com a exceção de Rio Branco, para onde se dirigiu com os justos propósitos de sobrevoar as áreas atingidas pelas enchentes e acompanhar a ação das Forças Armadas e dos órgãos de Defesa Civil, os outros deslocamentos tiveram motivação meramente política.

Reagindo à queda de popularidade e aos ataques intensos que vem recebendo pela condução do país durante a crise de covid-19, Bolsonaro botou o pé na estrada. Afinal, é preciso manter o entusiasmo em regiões que o apoiaram massivamente em 2018 (como Santa Catarina e o oeste do Paraná) e prestigiar grupos cativos como os militares, ainda que a visita seja apenas para desejar boa sorte a novos cadetes no seu curso de formação em Campinas.

Todavia, chama a atenção o destino preferencial de suas viagens. Em cinco das últimas seis semanas o presidente voou para inaugurar obras no Nordeste, seu calcanhar de Aquiles nas últimas eleições e onde ele tem seu pior desempenho nas pesquisas. Não por acaso, na maioria das vezes ele aterrissou em Estados governados por partidos que lhe fazem oposição.

Entregar trechos de estradas, pontes e ações contra a seca faz parte do jogo político. Como todos os seus antecessores desde que Fernando Henrique Cardoso inventou a reeleição, Bolsonaro está utilizando os recursos de que dispõe como chefe do Poder Executivo para agradar eleitores cativos e ampliar sua base de apoio visando se manter no poder até 2026.

Essa antecipação do clima eleitoral, porém, emite sinais claros a respeito de como será conduzida a economia na metade final de seu primeiro mandato. Tanto a teoria quanto nossa história indicam que é bastante improvável que um governante resolva adotar políticas fiscais restritivas quando está em campanha.

A vitória de Arthur Lira e Rodrigo Pacheco para as presidências da Câmara e do Senado foram comemoradas por muitos no mercado como um indicativo de que o governo passaria a ter à sua disposição uma ampla base capaz de aprovar uma agenda econômica mais ambiciosa.

As muitas semelhanças e afinidades entre Jair Messias e a maioria dos parlamentares que compõem essa massa amorfa que chamamos de Centrão deram esperança de que as propostas fiscais de Paulo Guedes poderiam avançar de modo mais fluido. A hipótese faz sentido; pena que as condições para a sua concretização estavam presentes há dois anos - e foram desperdiçadas.

Reformas econômicas abrangentes, que rompam estruturas, são implementadas mais facilmente em início de mandato, quando ainda não se verifica o desgaste natural de todo presidente. Além disso, precisam contar com o empenho dos líderes no Congresso, de preferência se comungarem do mesmo apetite por mudanças.

Quando tomou posse, Bolsonaro tinha em mãos todos esses ingredientes: um alto índice de popularidade, um Congresso que é a sua cara e, na presidência na Câmara, Rodrigo Maia, que desde o governo Temer conduzia uma agenda liberalizante, com a aprovação do teto de gastos e a reforma trabalhista. A rápida aprovação das novas regras da Previdência mostrou que essa parceria poderia render, mas depois disso a química com Maia desandou - e as propostas foram colocadas em banho-maria.

O contexto atual é bastante diferente, a começar pela interminável pandemia, que exige cada vez mais recursos para lidar com seus imensos custos sociais e econômicos.

Bolsonaro também não é mais o mesmo, pois em exatos dois anos, sua desaprovação subiu de 17% para 42%, segundo a última pesquisa XP/Ipespe. Essa piora tem literalmente um preço: além de todas as emendas extraordinárias liberadas para eleger seus aliados para a presidência do Congresso, o envio da nova MP da Eletrobras trouxe consigo um agrado de R$ 8,75 bilhões para as bancadas do Nordeste, da Amazônia e de Minas Gerais destravarem o processo de privatização. Outras faturas virão.

A maior prova, porém, de que o novo arranjo entre Bolsonaro, Lira e Pacheco não resultará em medidas econômicas de impacto está no novo relatório da PEC emergencial, apresentado na semana passada pelo senador Márcio Bittar (MDB-AC).

Comparando-se o substitutivo do relator com a proposta inicial, encaminhada por Paulo Guedes, a PEC nº 186/2019 foi bastante desfigurada. Além de autorizar, sem parâmetros ou limites, uma nova rodada do auxílio emergencial, Bittar busca cristalizar na Constituição um regime fiscal extraordinário para calamidades públicas, suspendendo-se travas relativas a contratação de pessoal, obras e serviços, abrindo-se a possibilidade de se criar despesas sem prévia previsão orçamentária e dispensando a observância da regra de ouro do endividamento público.

Para contrabalançar, o substitutivo propõe compensar o aumento de despesas seguindo a velha tática de impor ônus sociais em lugar de desagradar grupos de interesses bem identificados.

O acordo entre Bittar e a equipe de Paulo Guedes (ou seja, entre o Centrão e Bolsonaro) tem uma lógica clara. De um lado, desobriga o Estado de gastar um percentual mínimo com educação e saúde; de outro, preserva os servidores públicos de terem seus salários reduzidos e blinda os empresários que se aproveitam dos benefícios fiscais da Zona Franca de Manaus, do Simples, das entidades sem fins lucrativos, dos produtores de bens da cesta básica e da bolsa empresário dos fundos de desenvolvimento.

Com Bolsonaro em clima eleitoral e o Centrão no comando do Congresso, é muito pouco provável que uma reforma fiscal de verdade seja aprovada antes de 2023. De emergencial, só sobrou o auxílio.

*Bruno Carazza é mestre em economia, doutor em direito e autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro”.


Carlos Melo: Um ano de pandemia - Um poço sem fundo

O coronavírus se espalhou pelo planeta, causou incomensurável número de mortes de indivíduos e destruição de famílias, além do prejuízo econômico. Afetou a percepção das pessoas em relação a governos. Todavia, no Brasil, seus efeitos sobre os planos de Jair Bolsonaro precisam ser relativizados.

Problemas preexistiam. A crise econômica, por exemplo, após um ano de governo, em 2020, persistia sem solução; o extremismo político, a incapacidade de lidar com a democracia são desde sempre traços estruturais do bolsonarismo. Logo, a pandemia, mais do que criar problemas, os aprofundou; explicitou o mal-estar, talvez, difuso.

E, assim, acelerou o processo de conflitos e desacertos, fazendo disparar o tempo político e eleitoral. O ano de 2020 se desenvolveu como avalanche que invadiu 2021, atravessando-o e lançando o país diretamente em 2022: antecipou a disputa eleitoral, que só não está nas ruas porque as ruas estão forçosamente vazias.

Verdade que o presidente nunca desceu do palanque. Mas, desconfiado e competitivo ao extremo, tornou-se mais ansioso, temeroso e temerário. Desprezando efeitos previsíveis da proliferação do vírus, reforçou sua propensão ao voluntarismo e à beligerância diante de inimigos imaginários e adversários reais. Brigou com a ciência, governadores, instituições públicas e organizações civis; calcinou o discurso moralista e o liberalismo de ocasião, ostentados em 2018. Blindado pelo Centrão, é incapaz de afirmar quem é mesmo base de quem.

Também para parcela da sociedade o tempo acelerou. Se não como ação coordenada, de frente política, pelo menos pelo convencimento a respeito dos problemas do país. Desinteligências explicitadas serviram de alerta para instituições como o STF, por exemplo. Ainda há dispersão, mas já se pode notar disposição – e pressão social – para que se evite fragmentação política e eleitoral para além do inevitável, em 2022. A pandemia mostrou que poço, às vezes, não tem fundo; e que é preciso encontrar um modo urgente de tampá-lo.

*Carlos Melo, cientista político. Professor do Insper.


Catarina Rochamonte: O privilégio da impunidade

Arthur Lira tentou aprovar a toque de caixa proposta para adulterar a imunidade parlamentar

Devido à forte rejeição da opinião pública e oposição firme de alguns poucos parlamentares, foi momentaneamente frustrada a trama conduzida pelo presidente da Câmara, Arthur Lira, para aprovar a toque de caixa —e atropelando os ritos processuais— uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC 3/2021) para adulterar a imunidade parlamentar já assegurada pela Constituição.

No seu teor original, a indecorosa proposta —apelidada de PEC da Impunidade e PEC da blindagem—, dentre outras extravagâncias, limita o alcance da Lei de Ficha Limpa, restringe a prisão em flagrante de parlamentar e dispõe que ações judiciais contra eles ficam condicionadas à decisão do plenário do Supremo. Além disso, o deputado ou senador preso em flagrante ficará sob custódia do próprio Poder Legislativo esperando decisão dos colegas acerca do seu futuro. Em suma, a PEC 3/2021 tem o claro propósito de dificultar ao extremo a ação do Judiciário sobre os parlamentares, tornando-os, na prática, inimputáveis.

Em discurso na Alesp, Janaína Paschoal caracterizou a proposta como retrocesso no combate ao crime, ao peculato e ao abuso de poder: “Eles estão criando um arcabouço para proteger os maus”, asseverou a deputada. É, de fato, espantoso que, no pior momento de uma devastadora pandemia, deputados adotem a atitude corporativista, indecente e imoral de legislar em causa própria no intuito de se colocarem acima da lei.

A PEC da Impunidade, porém, não é um ponto fora da curva; faz parte de um processo de acumulação de privilégios no Parlamento. Recorde-se que, durante a presidência de Rodrigo Maia na Câmara, além dos privilégios tradicionais, prosperaram as novas benesses financeiras do Fundo Partidário e do Fundo Eleitoral.

São muitos os privilégios dos nobres parlamentares, mas o privilégio da impunidade é o mais valioso, porque garante os demais. É isso o que muitos deputados —vários deles na mira da Justiça— buscam sofregamente por meio da PEC 3/2021.


Celso Rocha de Barros: Brasil morre, Brasília foge, e Faria Lima vende

Bolsonaro permanece impune, em troca nenhum político será preso

A semana passada deve ter sido a pior do século 21 brasileiro. Enquanto os primeiros países a se vacinarem já discutem a volta à normalidade, as mortes por Covid-19 crescem aceleradamente no Brasil.

As mortes já começaram a cair em países que também se saíram mal no combate à pandemia, como o México e os Estados Unidos, mas continuam a crescer no Brasil.

Em Manaus, pacientes intubados precisam ser amarrados para suportar a agonia porque a anestesia acabou, como antes havia acabado o oxigênio.

O governo Bolsonaro mandou as vacinas do Amazonas para o Amapá porque errou a sigla. Em várias regiões do Brasil a ocupação de UTIs se aproxima de 100%.

No célebre hospital Albert Einstein, o preferido do presidente, já está em 104%. Se Bolsonaro fosse esfaqueado por Adélio Bispo hoje, morreria sangrando na sala de espera.

Enquanto isso, o auxílio emergencial acabou, e a população brasileira mergulhou na mais profunda miséria.Sem perspectiva de vacinação, não há cenário de crescimento econômico que empregue essa gente toda.
Passaremos a recuperação da economia mundial doentes, morrendo, pobres, deixados para trás pelas nações que não elegem Bolsonaros.

O que as elites política e econômica brasileiras estavam fazendo durante tudo isso? Em um país funcional, teriam apoiado e promovido impeachment e prisão dos responsáveis por tudo isso.

Um governo de união nacional estaria já implementando a nova política de sustentação de renda. Todos os esforços estariam focados em conseguir vacinas desde o impeachment de maio de 2020.

Ao invés disso, na pior semana do século, as pautas em Brasília eram as seguintes: o Congresso passou tempo precioso tentando tornar mais difícil que parlamentares sejam presos.

O governo inventou um pacote de medidas liberalizantes projetadas nas coxas para acalmar o mercado depois da intervenção na Petrobras (cujas ações voltaram a cair).

Bolsonaro conseguiu que o Superior Tribunal de Justiça aliviasse para seu filho Flávio, criando jurisprudência que será usada por todos os acusados de corrupção de agora em diante. Na quinta-feira, o presidente da República foi à internet para mentir que máscaras não funcionam para combater a Covid-19.

A Brasília que sustenta Bolsonaro resolveu deixar o resto do Brasil morrer enquanto eles todos, como o primeiro-filho Flávio, fogem da polícia.

O acordo é esse: Jair Bolsonaro, o responsável por muitas milhares de mortes durante a pandemia, mantém seu cargo e permanece impune pelas mortes que causou. Em troca, nenhum político será preso pelo dinheiro que roubou.

E os ricos? Até a semana passada, apoiavam isso tudo.

Desde a intervenção na Petrobras, estão em dúvida: discutem se Bolsonaro, que mudou de Palmeiras para Flamengo no dia seguinte à decisão do Campeonato Brasileiro, tem convicções liberais firmes. Se concluírem que tem, voltam a apoiar. Enquanto discutem, a bolsa cai.

Na pior semana do século brasileiro, Brasília fugiu da polícia, e a Faria Lima vendeu Petrobras. Se já houve mecanismo capaz de fazer as duas trabalharem pelo Brasil, parece ter parado de funcionar.


Veja: ‘Chegou a hora de regular as redes sociais’, diz Anne Applebaum

A jornalista e historiadora americana adverte que o radicalismo é capaz de matar

Por Marcelo Marthe, Revista Veja

A americana Anne Applebaum, de 56 anos, é estrela indisputável da intelectualidade conservadora. Como jornalista, foi editora de dois tradicionais baluartes, as revistas The Economist e The Spectator. Mas foi como historiadora que consolidou seu prestígio. Seus estudos sobre os gulags, as temidas prisões soviéticas, e a fome da Ucrânia nos anos 30 renderam-lhe prêmios e expuseram os horrores do stalinismo. Em seu novo livro, O Crepúsculo da Democracia (Record), narra em tom pessoal um novo fenômeno: a adesão de muitos intelectuais às ideias autoritárias de governos populistas, dos Estados Unidos à Polônia — seu marido, Radoslaw Sikorski, é um político e ex-ministro do país europeu. Nesta entrevista a VEJA, ela fala sobre temas como as consequências da queda de Donald Trump, a sobrevivência dos líderes populistas na pandemia e a chamada cultura do cancelamento.

Em O Crepúsculo da Democracia, a senhora alerta sobre a escalada do populismo e do autoritarismo no mundo. A derrota de Donald Trump não sinaliza justamente o declínio dessa onda? 

É cedo para comemorar. A eleição de Trump, em 2016, refletiu uma insatisfação latente com muitas coisas, inclusive com a democracia e o sistema político. Apesar de sua derrota em 2020, o desapontamento com a democracia ainda está vivo nos Estados Unidos, na Europa e em muitos outros países com eleições livres, até mesmo no Brasil. As ideias autoritárias se alimentam de uma insatisfação profunda de muitas pessoas com os rumos da vida moderna e as dramáticas mudanças sociais e demográficas das últimas décadas. Esse mal-estar não sumirá com a queda de Trump.

Por que a democracia liberal, que trouxe tanto progresso ao Ocidente, passou a ser questionada? 

Por diversos motivos. Nos Estados Unidos, existe a frustração de parte da população com as complicações para aprovar novas leis, e isso dá a sensação de que o Congresso é inoperante. A polarização de nosso sistema político também amplia a percepção de que o Estado não tem força. Se tudo se encontra paralisado, por que não cogitar que uma liderança centralizada e autoritária possa fazer o que os políticos não conseguem? Na maioria das democracias liberais, as pessoas também passaram a achar que seus líderes, de quem esperam atitudes de mudança, não detêm o controle do governo.

A invasão do Capitólio por apoiadores de Trump representou um risco real à democracia americana? 

A invasão do Capitólio foi uma consequência palpável, e perigosa, da polarização política. Aquela gente falava a sério ao proclamar que desejava matar integrantes do Congresso. Eles não obtiveram êxito, felizmente, mas restaram cinco mortos ao fim do caos. Não se tratava de republicanos atacando democratas, mas de uma horda de loucos antissistema que tinham as instituições como alvo. Foi uma explosão de toda a raiva insuflada ao longo de anos de polarização nas redes sociais.

Como restaurar os velhos dias de debate civilizado e racional? 

Não há caminho de volta ao passado. Os países democráticos terão de reinventar o modo como se faz política. Mas é interessante notar que essa chaga da polarização causa estragos não apenas nos Estados Unidos, mas também no Brasil, na Polônia e nas Filipinas. Como todos esses países não comungam a mesma cultura, fica claro que o fenômeno que une a todos nas divisões radicais são as mudanças no ecossistema da informação — mais especificamente, a influência das redes sociais.

“Chegou a hora de encarar a necessidade de uma regulação das redes sociais. Não se trata de censurar conteúdos, mas de adequar os algoritmos ao interesse público”

Como lidar com os extremismos nas redes? 

Já chegou a hora de encarar a necessidade de uma regulação pública das redes. Não se trata de remover ou censurar conteúdos, mas de apoiar um crescente movimento pela adequação dos algoritmos das plataformas ao interesse público. Hoje, a lógica das redes é dar relevância a qualquer conteúdo que traga engajamento, e por isso viraram o paraíso das fake news e dos discursos irracionais. Os algoritmos estimulam os usuários a fazer coisas deprimentes que vemos hoje na internet. É preciso inverter a lógica, dando mais relevância àquilo que nos une e à informação confiável.

Não há risco de um controle indesejado sobre a circulação de ideias? 

É claro que essa regulação teria de ser feita por órgãos independentes, evitando o risco de manipulação política, como fazem governos autoritários na Rússia e na China. Talvez seja o momento, aliás, de pensar: por que, ao lado das redes que já existem, não pode haver serviços públicos do gênero? Taiwan criou fóruns públicos de debate sobre problemas que galvanizam a população, e a resposta das pessoas tem sido excelente.

Após a invasão do Congresso americano, o Twitter baniu o ex-presidente Trump. Foi censura? 

É uma questão dificílima. O Twitter tem regras claras sobre as condutas na plataforma. Já fazia tempo que Trump quebrava sistematicamente as regras. Trump, porém, redobrou suas violações e chegou a um ponto inaceitável na invasão do Capitólio. Um modo de auferir como prevaleceram o bom senso e a justiça é verificar o que ocorreu depois que Trump foi banido: a veiculação de fake news sobre fraude nas eleições americanas baixou dramaticamente. A democracia saiu ganhando.

Como a pandemia afeta o projeto de poder dos líderes populistas? 

A resposta depende do grau de aceitação da sociedade à aposta do governante. Nos Estados Unidos, Trump investiu no caos e no negacionismo, e errou feio. Em outros lugares, a pandemia serviu de desculpa para ampliar as políticas autoritárias — foi o que fez Viktor Orbán na Hungria. Agora, os líderes passaram a ser cobrados por sua capacidade de responder ao clamor por vacinas. Alguns populistas, no entanto, tiram proveito do fato de que nem todas as pessoas pensam assim — e isso se aplica ao Brasil.

Por quê? 

Seria ingênuo subestimar que parte da população vibra quando Trump ou Jair Bolsonaro conclamam a se ignorar a pandemia e a se rebelar contra as máscaras. A mensagem é “não ouçam os médicos, é tudo bobagem”. Se você está com medo de ficar doente e perder o emprego, traz alívio ouvir que é só uma gripe e logo passará. É uma fuga da realidade.

O negacionismo, então, não é uma escolha impensada? 

Longe disso. O negacionismo pode ser popular. Ninguém quer ouvir que pode morrer, ou que terá de passar meses trancado em casa e cancelar a festa de casamento. Instintivamente, Trump captou o apelo disso. Como a maioria dos eleitores americanos pensava diferente, ele acabou derrotado na eleição. Mas os negacionistas continuam sendo uma parcela ruidosa da população. É trágico ver a insistência de Trump e Bolsonaro no uso da cloroquina. No meio do horror das mortes, tudo o que ofereciam às pessoas era a crendice em uma droga milagrosa. Não é à toa que o estrago do vírus tenha sido tão forte nos Estados Unidos e no Brasil.

Por que as teorias conspiratórias e as fake news são tão usadas por políticos autoritários? 

As teorias conspiratórias e a desinformação são úteis para os populistas porque minam a fé das pessoas nas instituições, na imprensa e na sociedade civil. Elas têm especial apelo para uma parte da população que se sente esmagada pelo turbilhão de informações despejado pela internet. Vivemos numa era em que as pessoas ouvem, leem e assistem a muita coisa sem saber como separar fatos de mentiras. Elas buscam desesperadamente quem simplifique o que não lhes faz sentido, e se tornam presas das campanhas de ódio.

Em contraponto ao populismo de extrema direita, vemos hoje um radicalismo dos movimentos identitários ligados à esquerda. Os extremos ideológicos se atraem? 

Sem dúvida. Estamos diante de uma espiral de extremismos: o radicalismo da direita atiça o radicalismo na esquerda, e ambas redobram sua intolerância. Os radicais fizeram da política um terreno de debates irreconciliáveis, em vez de focar no essencial, as pautas que unam as pessoas.

Seus amigos intelectuais, políticos e jornalistas na Polônia foram da euforia pós-comunista, nos anos 1990, à radicalização odiosa em questão de vinte anos. O que provocou a mudança? 

Assim como os Estados Unidos e o Brasil, a Polônia passou por tumultuadas mudanças econômicas, sociológicas e nas formas de comunicação. E lá o caldo da polarização ganhou um veneno extra: o ressentimento de intelectuais, pensadores e jornalistas que não se sentiam aquinhoados na democracia. Muitos deixaram sua respeitável carreira para se tornar ideólogos do governo de extrema direita do partido Lei e Justiça. É como se os perdedores tivessem de repente sua vingança. O que os tornava ressentidos era a ausência de reconhecimento pelo status quo acadêmico, e o fato de estarem à margem do poder. Deixei de ser amiga de muitos.

“O radicalismo da direita atiça o da esquerda, e ambas redobram sua intolerância. Os radicais fizeram da política um terreno de debates irreconciliáveis, em vez de focar no essencial”

Pessoalmente, foi difícil enfrentar essa radicalização? 

Eu me desapontei com muitos intelectuais que eram perfeitamente razoáveis e se converteram em estridentes ideólogos do fundamentalismo católico que hoje domina a Polônia — o partido Lei e Justiça praticamente eliminou qualquer chance de as mulheres fazerem aborto legalmente e ataca a população LGBT. Há uma ex-conhecida acadêmica que tem um filho gay e hoje, na condição de pensadora do regime, abraça a homofobia. É melancólico ver uma mãe lutando por ideias que farão o próprio filho ser cada vez mais discriminado na Polônia. Não consigo entender.

A senhora foi signatária da carta aberta dos intelectuais americanos condenando a chamada cultura do cancelamento. Por que se engajou nisso? 

Porque é muito feio o comportamento das gangues que perseguem as pessoas na internet. É comum se apontar o cancelamento como um fenômeno da esquerda, que ataca quem sai da linha politicamente correta, mas o fato é que ele existe também, de forma até mais deletéria, na direita. E é assustador constatar que a violência on-line pode descambar para agressões reais. Nos Estados Unidos, as ameaças radicais pró-Trump levaram um congressista crítico do ex-presidente, Adam Kinzinger, a andar armado por temer pela própria vida.

A senhora já foi cancelada? 

Na Polônia, fui alvo de campanhas muito ativas de difamação. A TV estatal volta e meia propaga ataques contra mim e meu marido. Espalharam até a falácia de que eu faria lobby contra os interesses do país no exterior. Já me incomodei, mas aprendi a viver assim. Parei de me importar.

Publicado em VEJA de 3 de março de 2021, edição nº 2727


Fernando Gabeira: Bolsonaro e a construção do caos

Na semana em que as mortes pela pandemia atingem a marca de 255 mil, toda a atmosfera política parece sombria. Não é caso de desespero, apenas a constatação de que vivemos um momento especialmente difícil.

Enquanto sonhamos com a imunização do povo contra a Covid-19, quem recebe vacinas é Flávio Bolsonaro, filho do presidente, e os congressistas do Brasil. Flávio ganhou uma vacina contra a punição no caso das rachadinhas. Os congressistas foram mais longe e produziram um projeto que os vacina contra a prisão em flagrante.

Impressionante ver como o populismo de direita se associa aos políticos tradicionais para criar uma intransponível blindagem para toda sorte de crimes.

E logo eles, os populistas de direita, que afirmam a decadência de um mundo materialista, distante dos valores espirituais que pretendem restaurar.

Acabo de ler “Guerra pela eternidade”, um livro de Benjamin Teitelbaum. O livro fala do retorno do tradicionalismo e da ascensão da direita populista. Infelizmente, não posso fazer uma resenha aqui, senão meu espaço iria para o espaço, se me perdoam o jogo de palavras.

Teitelbaum é etnógrafo, e seu método de pesquisa consiste em observar e interagir com as pessoas que estuda. Dois personagens, entre outros, se destacam em seu livro: Steve Bannon e Olavo de Carvalho. A leitura do livro me ensinou alguma coisa sobre o pensamento da direita, embora a tese central não tenha me parecido muito sólida. Ele tenta enquadrar Steve Bannon e Olavo de Carvalho no figurino do tradicionalismo, mas algumas partes do corpo ficam do lado de fora, não cabem exatamente.

O tradicionalismo tem uma visão circular do tempo. As épocas se sucedem da Idade do Ouro, o tempo dos sacerdotes, passando pelos guerreiros e comerciantes, até o dos escravos, a decadência que se vive hoje no mundo material, globalizado, dominado por uma aliança entre o liberalismo e a China.

Steve Bannon e Olavo de Carvalho sonham com um novo mundo, em que os moradores das áreas rurais americanas e o povo religioso do Brasil (no caso de Olavo) aparecem como as forças novas que vão restaurá-lo.

É um pouco parecido, num outro plano, com a visão romântica dos comunistas, que viam a redenção na classe operária. O mais importante, no entanto, é que, assim como a velha extrema esquerda, Bannon quer implodir as instituições existentes.

Isso explica, no governo Trump, a escolha de uma secretária de Educação que distribuía vouchers para usarem em escolas particulares, anulando o ensino público. Ou mesmo a escolha de um diretor da agência ambiental cujo grande objetivo era acabar com seu ativismo.

Há correspondência dessas escolhas no Brasil. Ricardo Salles foi apontado para destruir o trabalho legal pelo meio ambiente. Ernesto Araújo, para realizar uma diplomacia que rompe com as práticas tradicionais.

Araújo não se importa que o Brasil se transforme num pária. Num mundo decadente, isso é um elogio: significa que há um papel na nova idade do ouro, em que os símbolos superam a razão.

Não tenho espaço para as contradições. Lembro apenas que Bannon se diz espiritualista, mas recebia um salário de US$ 1 milhão de um bilionário chinês e foi acusado de desviar dinheiro destinado a construir o muro na fronteira com o México.

O ponto central é que essas ideias influenciam o governo Bolsonaro. Ele mesmo é uma espécie de antipresidente, alguém destinado a explodir a instituição. O caos é algo promissor para quem julga antever a aurora de uma nova era.

É assim que entendo sua intervenção na Petrobrás e os decretos para armar o povo. Na verdade, foi assim que li as principais declaracões dos quadros da alt-right, a direita alternativa.A tática parece muito com as velhas teorias revolucionárias , só que com o sinal trocado.


Tasso Jereissati: ‘Pacheco terá teste com CPI da covid’

Senador tucano cobra do presidente da Casa a instalação de comissão para apurar a conduta do governo na pandemia

Daniel Weterman, O Estado de S. Paulo

BRASÍLIA - O senador Tasso Jereissati (PSDB-CE) pressiona o presidente do SenadoRodrigo Pacheco (DEM-MG), a instalar uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para investigar a conduta do presidente Jair Bolsonaro na crise de covid-19. O senador é um dos autores do pedido para abertura da investigação no Congresso que vai apurar a condução do combate à pandemia por autoridades públicas, incluindo o chefe do Planalto.

A instalação depende de Pacheco, apoiado por Bolsonaro na eleição para o comando da Casa e também pela oposição. “Esse vai ser o grande teste do Rodrigo, se ele realmente é independente como está dizendo ou se para ganhar se comprometeu até à alma com o Bolsonaro” afirmou o tucano em entrevista ao Estadão.

Na sexta-feira passada, Bolsonaro visitou as obras de duplicação da BR-222, em Caucaia (CE), e, mais uma vez, cumprimentou simpatizantes sem respeitar as medidas de contenção da covid-19, na semana em o que País atingiu novo recorde diário de mortes pela doença. “É preciso parar esse cara”, disse Tasso. A aglomeração ocorreu após o governador do Estado, Camilo Santana (PT), decretar toque de recolher e reduzir o funcionamento de atividades em função do avanço do novo coronavírus. Confira os principais trechos da entrevista:

Como o senhor avalia a recente visita do presidente Jair Bolsonaro ao Ceará?

Dois dias antes, o governador e o secretário da saúde anunciaram toque de recolher e outras medidas. Tudo isso porque estamos pertinho do colapso e com tendência de crescimento da pandemia muito grande. Chega o presidente aqui e vai a um município, junta gente, aglomera gente sem máscara, depois vai para outro e conclama a população a sair de casa. Além de conclamar, joga uma ameaça: aquele governador que fechar agora tem que pagar o auxílio emergencial. É um esforço enorme para conscientizar a população e o cara vem e conclama o contrário. 

Por que o senhor defende a instalação da CPI no Senado?

Estou pedindo ao Senado, com receio de que teremos dificuldade porque não sei qual vai ser a posição do presidente Rodrigo Pacheco, que instale a CPI da covid-19. Ele colocou meio na gaveta, fez aquela audiência com Pazuello, que foi um desastre, para empurrar com a barriga. É preciso parar esse cara (Bolsonaro). O intuito da instalação da CPI não é nem para punir, mas é para pelo menos parar essa insanidade. Por ser presidente da República, não pode conclamar a população inteira a correr risco de morte sem nenhum tipo de punição.

Que medida prática a CPI faria? Pode encaminhar uma denúncia ao Ministério Público?

Denúncia ao Ministério Público. Primeiro, há crime contra a saúde pública, isso é claro. Segundo, há crime contra a federação, porque está conclamando a população a fazer o contrário do decreto de um governador do Estado e ainda ameaçando governadores que fizerem isso. 

O senhor advoga a tese do impeachment?

Eu só quero parar com isso, que o presidente caia em si. Acho que impeachment vai criar uma crise sem tamanho. E, outra coisa, ele tem seguidores. Vai piorar a coisa. Temos que conscientizar o presidente pelos seus puxa-sacos que isso tem consequências legais e ele vai ter que pagar por isso um dia. Não é assim. Dentro da CPI da covid-19, vamos levantar quem é responsável. 

O presidente do Senado está segurando a CPI. Qual é a viabilidade de ele autorizar?

O pedido de CPI está na mesa do presidente do Senado com as assinaturas. O que eles podem fazer é pedir que senadores retirem assinaturas. Se não, vai ser mais cedo ou mais tarde obrigado a implantar. Esse vai ser o grande teste do Rodrigo, se ele realmente é independente como está dizendo – e eu espero que seja – ou se para ganhar se comprometeu até à alma com o Bolsonaro.

O senhor acredita que Pacheco será independente? A comissão de acompanhamento que ele autorizou é para empurrar com a barriga?

Estamos com a possibilidade enorme de ter um caos no Brasil inteiro. Eu acredito que o presidente do Senado é um homem que tem consciência disso. A comissão de acompanhamento funciona bem, mas não tem consequência nenhuma. CPI é que mostra que tem consequência. O objetivo da CPI não é criar crise, é mostrar que o presidente da República não pode fazer e dizer o que quer, que tem consequências e que vai ser responsabilizado. 

O funcionamento remoto do Senado em função da covid-19 pode servir como justificativa para não instalar a CPI?

Justificativa não, pode servir de desculpa. Vai ter argumentação de que é difícil fazer virtualmente. A instalação tem de ser já, mesmo remotamente. Não podemos ficar quietos. Não estamos funcionando remotamente para outras coisas de muita responsabilidade? Não tá a PEC Emergencial aí agora? Não tá a PEC da imunidade na Câmara? 


Felipe Salto: Sem auxílio e sem ajuste

O caminho é resolver a emergência e avançar a sério no debate fiscal. Não no tapetão

O debate sobre a Proposta de Emenda à Constituição n.º 186, a PEC Emergencial, ressurgiu em meio à urgência de um novo programa de auxílio social. A vinculação do programa a reformas fiscais constitucionais não é uma boa estratégia, mas é possível endereçar as duas questões tempestivamente. Responsabilidade fiscal e sensibilidade social andam de mãos dadas.

É preocupante que pareça ser necessário bater na responsabilidade fiscal para obter legitimidade na defesa de um gasto social urgente. Ou você banca o durão e defende a ideia de que só será possível pagar R$ 250 a famílias que estão à míngua se houver compensações ou abraça a lassidão fiscal. É preferível o caminho da ponderação.

As simulações consideradas pela Instituição Fiscal Independente (IFI) mostram que o auxílio emergencial poderia custar R$ 34,2 bilhões se destinado a 45 milhões de pessoas, com quatro cotas mensais de R$ 250. Essa conta já é líquida dos pagamentos aos beneficiários do Programa Bolsa Família, que receberiam apenas a diferença entre o valor do novo auxílio e a transferência atual.

Esse gasto não é pequeno, mas a PEC Emergencial não é condição para pagar essa despesa. Ao lado da aceleração do programa de vacinação, o auxílio se impõe. Agora, não se afirme ser impossível compensar o gasto sem antes olhar o Orçamento de 2021. Em meu último artigo neste espaço, mostrei uma lista de cortes e medidas possíveis.

Os reajustes salariais dos militares correspondem a R$ 7,1 bilhões; os concursos públicos programados, a R$ 2,4 bilhões; e os subsídios sujeitos ao teto de gastos, a R$ 14 bilhões – que poderiam ser reduzidos em R$ 4 bilhões. Além disso, a revisão das renúncias tributárias poderia colaborar com R$ 20 bilhões, totalizando R$ 33,5 bilhões. Se a primeira medida se mostrar impossível, em razão da lei que garante os reajustes, a economia ainda seria de R$ 26,4 bilhões.

Portanto, as medidas de ajuste fiscal previstas na PEC não seriam condições necessárias para pagar o auxílio. Bastaria cortar o Orçamento. Mas isso não significa que ela não contenha tópicos importantes. São assuntos complexos, que demandam debate técnico e político adequado, com tempo suficiente para não se promover uma virada de mesa na Constituição. Separe-se o joio do trigo.

A PEC Emergencial fixa a sustentabilidade da dívida como uma dimensão inescapável na fixação de limites e metas fiscais, obriga a administração pública a avaliar políticas públicas, propõe a extinção de fundos públicos, manda reduzir gastos tributários, estabelece as regras para a despesa com o novo auxílio social, cria novos instrumentos de ajuste para os Estados e municípios e estabelece uma nova forma de acionar os gatilhos – medidas automáticas de ajuste – no âmbito da regra do teto de gastos.

Mas ela também acaba com os pisos constitucionais da saúde e da educação. Melhor seria consolidar os dois valores, dando maior liberdade aos gestores, sobretudo municipais e estaduais, na alocação dos recursos públicos para essas duas áreas essenciais.

A inclusão do auxílio no texto da PEC, por sua vez, tem que ver com o receio do Ministério da Economia de editar um crédito extraordinário para pagar a nova transferência social sem conseguir justificar a imprevisibilidade, exigência da Constituição. Vale dizer, os dispositivos que tratam do auxílio são independentes do resto da proposta, um convite ao Congresso para fatiá-la. É curioso notar que a intenção do ministro Paulo Guedes é o simétrico oposto: incentivar a aprovação das medidas de ajuste como condição para o auxílio.

Quanto ao teto de gastos, sabe-se que a Emenda Constitucional n.º 95 impossibilita o acionamento dos gatilhos (medidas de ajuste), ao menos sob a interpretação jurídica majoritária. A propósito, essa foi a motivação original da PEC, em 2019: tornar viável o acionamento das medidas automáticas de ajuste no caso de rompimento do teto.

Então, à guisa de solucionar esse problema, a PEC determina que, quando as despesas obrigatórias sujeitas ao teto atingirem 95% das despesas primárias totais (também limitadas ao teto), a lista de gatilhos será ativada. Incluem-se, aí, a proibição dos reajustes salariais e das chamadas progressões automáticas no serviço público. O efeito fiscal poderia chegar a 1% do produto interno bruto (PIB) até o quinto ano.

Vincular o debate sobre regras fiscais à concessão do auxílio, mesmo abandonados os outros tópicos da PEC, prejudica as duas coisas: nem o dinheiro é liberado nem a proposta de ajuste fiscal alcança o consenso político suficiente. Segue indefinida a estratégia para recobrar a sustentabilidade das contas públicas.

O caminho é resolver a emergência do auxílio e avançar a sério no debate fiscal. Não no tapetão. As prioridades orçamentárias têm de ser expostas, o lado da receita tem de entrar no jogo e os privilégios dos estamentos estatais têm de ser combatidos. Que tal começar pelo Orçamento de 2021?

Ou isso ou seguiremos postergando o auxílio e o ajuste fiscal.

*Diretor Executivo da IFI, é professor do IDP


Cristovam Buarque: Um órfão chamado Brasil

O Brasil está órfão: sem oxigênio, sem responsável para cuidar do tratamento que precisa, nem tem quem lhe assegure vacina. Não teve um responsável que alertasse com autoridade que a doença era grave. Não recebeu as recomendações preventivas, nem os cuidados no período inicial. O Brasil não teve um responsável que lhe alertasse dos riscos. Ao contrário, ouviu “não fique em casa”, “vá para a rua”, “é uma gripezinha”. O oposto do que dizem pai e mãe preocupados com filho.

O Brasil não teve um responsável, um líder, um governante que o protegesse da doença e estivesse atento para obter e aplicar a vacina. Qualquer pai ou mãe ou tio ou padrinho protege o filho, natural ou adotado, cuida para ele ficar em casa, usar máscara, álcool em gel, e o leva para tomar a vacina.  O Brasil não tem quem cuide dele neste momento em que está sofrendo os horrores de uma epidemia. A orfandade não decorre apenas da falta de governante que cuide dele com amor e competência neste momento de epidemia. O atual governante não cuida do presente, nem formula rumos para o futuro.

O Brasil está órfão. Mas a orfandade é anterior. Se o Brasil não fosse órfão antes, não teria preferido o atual governante. Foi o órfão que buscou ser adotado por ele, com o voto de milhões de eleitores descontentes. O Brasil sentia-se abandonado: 12 milhões de analfabetos, 100 milhões sem rede de esgoto, 35 milhões sem água, 12 milhões de desempregados, a mesma concentração de renda e persistência da pobreza de que sofre desde sua origem.

Os moradores da periferia das grandes cidades já estavam órfãos há décadas, os jovens sem perspectiva, as crianças sem escolas de qualidade. Desde a escravidão, a população negra é órfã. Os desempregados, as vítimas de violência, os doentes sem dinheiro, todos são partes do órfão chamado Brasil. Seus líderes o deixaram órfão de ética, diante da corrupção. O Brasil é órfão por falta das reformas em suas estruturas arcaicas, que persistem desde a escravidão.

De todos os erros e crimes cometidos pelos políticos, o mais grave foi não perceber e não agir para impedir que o Brasil escolhesse o atual governo. E agora cometem erro ainda maior ao não apresentar aos eleitores uma alternativa que empolgue, que mereça confiança e mais: que impeça a continuação da orfandade atual. Em vez de reconhecerem os erros e pedirem desculpas aos brasileiros, de se apresentarem unidos com uma proposta alternativa, nossos líderes estão se acusando mutuamente. Parecem imaginar que o erro foi dos eleitores em 2018. Como se o órfão fosse culpado da escolha que fez na busca por quem o adotasse.

Todos que ocupamos cargos ao longo dos 130 anos da República, temos parte de responsabilidade, por omissão, por incompetência ou por corrupção nas prioridades ou no comportamento. Sobretudo, responsabilidade pela eleição do atual governo que aprofunda a orfandade por seu comportamento que nega a ciência, desmoraliza o país no exterior, degrada o meio ambiente, descuida das prioridades do povo, defende o armamentismo e consequente violência, regride no respeito aos direitos humanos, ameaça as conquistas democráticas.

O Brasil precisa de líderes que cuidem dele com novas ideias, propostas e comportamento. Não teria sido difícil acabar com a orfandade do Brasil: bastaria adotar uma geração de suas crianças, de todas as raças, em todos os endereços e de todas as rendas. Esta geração adotada adotaria depois o Brasil com competência e ética. A orfandade do Brasil começa na orfandade como suas crianças pobres são tratadas.

Mas o momento é para levarmos à Presidência alguém comprometido com a continuação das conquistas democráticas das últimas décadas. Para isso, é preciso barrar a marcha ao desastre de mais quatro anos desta orfandade desastrosa. Para isso, os que desejam um novo rumo precisam entender que a hora é de coesão. Em tempo de tormenta, a âncora é mais importante que a bússola e a vela.

Precisamos unir os democratas, já no primeiro turno de 2022, com um candidato que transmita ao eleitor a capacidade de unir e manter as conquistas democráticas e presidir o debate dos candidatos que em 2026 apontarão suas propostas para o eleitor escolher o rumo que o Brasil deve seguir em direção ao futuro democrático, eficiente, justo, sustentável.

*Cristovam Buarque, professor Emérito da Universidade de Brasília (UnB)


Splash: Alê Youssef diz que cultura segue sob ataque e projeta calendário de 2022

Guilherme Lucio da Rocha, Splash

O secretário municipal de Cultura de São Paulo, Alê Youssef, acredita que o setor "entrou em 2021 levando porrada e sofrendo ataques". Ele vê muita ideologização em relação à cultura por parte do governo federal, sob a gestão do presidente Jair Bolsonaro  (sem partido).

Acumulando duas passagens na pasta da maior cidade do país desde 2019, Youssef recebeu Splash com exclusividade em seu gabinete para conversar sobre suas ações e as dificuldades neste período de pandemia, em que o setor cultural foi o primeiro a sentir os impactos das medidas restritivas e deve ser o último a conseguir voltar à normalidade em 100%.

"Eu vejo 2021 como um período com os desafios que vêm desse processo pandêmico permanente, desse início de esperança [por conta da vacinação], mas de incerteza. A cultura foi a primeira a entrar e será a última a sair."

O secretário da gestão Bruno Covas (PSDB) já foi filiado ao PT e ao PV e mantém boas relações com diversas frentes políticas. Ele se diz preocupado com o "imbróglio ideológico" promovido pelo governo federal. A melhor maneira de explicar isso é citando o post do deputado preso Daniel Silveira e do Mário Frias [secretário de Cultura do governo Bolsonaro] falando sobre a estratégia para defenestrar a cultura e misturando-a com a esquerda. O vídeo em questão, postado por Silveira (PSL-RJ) em seu Instagram e já excluído, falava sobre um controle de verbas da pasta federal para "financiar projetos nefastos" desse "câncer chamado esquerda".

Contraponto
A maior cidade do país acabou se tornando uma espécie de contraponto às medidas do governo federal em relação à cultura. Um dos principais exemplos disso foi o festival "Verão Sem Censura", realizado no início de 2020 (época pré-pandemia). O evento reuniu peças teatrais, intervenções e shows musicais de artistas que sofreram com censura ou tiveram seus trabalhos rejeitados pela União. O secretário afirma que a atuação do governo federal é de "ataque", e que São Paulo deve ser uma voz de resistência.

Quando você tem pilhas de projetos da Ancine e da Lei Rouanet parados, é quase que uma censura prévia. Você desliga o motor que faz a engrenagem girar. Além disso, tem a exclusão das pessoas e personalidades da Fundação Palmares. Como alguém, por pura arbitrariedade, exclui pessoas tão emblemáticas, históricas, de uma hora para outra? A cultura é fundamental no processo antirracista.

Um dos pontos de possível diálogo entre governo federal e secretaria de Cultura de São Paulo é a Cinemateca. O local, que fica em São Paulo, mas é de responsabilidade do governo federal, não recebeu repasse de verbas em 2019 nem em 2020, colocando em risco parte de seu acervo histórico.

"Estamos tentando [um diálogo]. Precisamos achar uma solução. Para nós, além de ser uma responsabilidade em relação ao acervo nacional, tem a ver com um espaço emblemático da cidade."

Carnaval na pandemia
A trajetória de Alê Youssef está muito ligada ao bloco Acadêmicos do Baixo Augusta, do qual o secretário é um dos fundadores. Por conta da pandemia, não houve comemoração oficial neste ano, e o prejuízo vai além da questão afetiva: em 2020, o  Carnaval movimentou quase R$ 3 bilhões na cidade. A gente estava numa crescente e, em 2021, teria um número ainda maior do que em 2020. Óbvio também que existiram as festas clandestinas, mas acho que demos uma demonstração de maturidade. Os grandes protagonistas do Carnaval [blocos de rua e escolas de samba] respeitaram o momento.

Sobre o Carnaval de 2020, o Ministério Público de São Paulo ofereceu denúncia  contra Youssef, a SPTuris e seu presidente, Osvaldo Arvate Junior, além de outros funcionários da administração pública e a Ambev. Segundo o MP-SP, o contrato firmado entre prefeitura e a empresa para o patrocínio da festa de rua foi "extremamente vago".

"Recebi a denúncia perplexo, mas fiquei também tranquilo quando li os argumentos. Estamos preparando a defesa. Tenho muita consciência dos ritos que tomamos, acho que faz parte do exercício da atividade pública esse tipo de questionamentos. E temos o dever de responder no tempo certo."

Periferia modernista
Tentando manter a cultura viva em 2021, com políticas de resgate e apoio aos profissionais da área, a esperança é que 2022, pós vacinação, seja histórico. O ano marca o centenário da Semana de Arte Moderna, que marcou a era modernista no Brasil e foi um marco para a cidade de São Paulo.

Youssef revela que o prefeito Bruno Covas deve anunciar detalhes das celebrações mais para a frente, mas já adianta que o grande destaque será a valorização da cultura periférica. "Nós encaramos o centenário de 2022 como um grande reencontro da cidade consigo mesma. E ele se dá a partir da percepção de que o novo modernismo é concentrado na cultura da periferia. Ela é a protagonista."

O discurso encontra reflexo em seu gabinete. Desde janeiro, a secretária-adjunta da pasta é a produtora cultural Ingrid Soares, articuladora que tem ligações com as periferias da cidade. "Precisamos ter um olhar estratégico de valorização da cultura periférica. É o olhar para a formação cultural, o quanto a cultura tem que estar próxima das nossas crianças".

Se o assunto é cultura periférica de São Paulo, é preciso falar de funk e dos bailes de rua, que arrastam multidões pelos extremos da cidade. As medidas relacionadas a esses eventos costumam estar mais ligadas à pasta de Segurança Pública. No entanto, Youssef destaca o programa Funk da Hora, que visa levar infraestrutura para a realização desses eventos de forma organizada, com o aval do Estado.

Em 2015, a gestão de Fernando Haddad tentou instituir um programa similar, o Funk SP. No entanto, a medida adotada pelo petista durou cerca de um ano e recebia criticas sobre o "engessamento" das festas. Youssef argumenta que o Funk da Hora é diferente do projeto da gestão anterior e busca manter diálogo com produtores e artistas locais.

"Nossa ideia era estruturar festas públicas nas comunidades, para fazer com que a juventude e os artistas locais pudessem estar presentes nos palcos. Realizamos alguns eventos antes da pandemia, entramos em 2020 com essa agenda, era algo que levaríamos durante todo ano. Tratamos o funk como uma das principais expressões culturais da cidade."


Evandro Milet: Transformar para não quebrar

Transformação digital(TD) está na moda. E como toda moda na gestão de empresas parte de uma visão nova que faz todo sentido, mas é entendida por muitos, e aplicada, de forma superficial e equivocada, se tornando em muitos casos apenas um irrelevante modismo. O livro “Transformação Digital” de Antônio Salvador e Daniel Castello dá boas dicas para um entendimento correto do tema.

Um primeiro equívoco é achar que TD é tecnologia. TD é muito mais que tecnologia. É o redesenho da operação, da forma de gerar valor ao consumidor, do modo de pensar e da maneira de competir, bem como a capacidade de entrar em novos mercados.

A jornada da TD passa por três estágios. O primeiro é embarcar na empresa novas ferramentas, trocar processos físicos por digitais e automatizar tarefas. Por exemplo, colocar um chatbot(robô de software) para conversar com clientes no telefone, como já fazem bancos e outras empresas. O segundo é a transformação digital de funções. A adoção de tecnologias altera os papéis das pessoas nas empresas, impactando a rotina de áreas inteiras como RH, financeiro ou operações. O terceiro estágio - e o mais complexo - é a TD do negócio, que acontece quando a empresa se reinventa usando as tecnologias digitais disponíveis e os novos modelos de negócio que melhoram sua performance como um todo ou até ampliam sua atuação para outras áreas.

A TD verdadeira é mudança de cultura. TD é a possibilidade de ter processos nunca feitos antes, que eram impossíveis de imaginar, seja por limitações de comunicação ou tecnologia.

E por quê as startups têm um papel importante na TDs? Tudo na startup é ágil. Elas usam dados intensamente para entender o que está acontecendo. Confiam mais em fatos que em feeling e, claro, não têm nada a perder - nem reputação, nem uma fatia do mercado, como acontece em negócios maiores ou mais estabelecidos. Por isso tendem a assumir mais riscos. Como diz uma piada conhecida do setor de tecnologia, Deus só construiu o mundo em sete dias porque não tinha “legado”. Outras características dessas empresas: se convencem os investidores de que possuem uma boa ideia, podem ficar com tanto dinheiro em caixa quanto muitas organizações gigantes do setor; além da ausência de compromisso com o lucro durante o período de crescimento.

O livro dá algumas dicas para um processo de TD. Primeiramente, manter uma hiperatenção sobre o ambiente. É a capacidade de observar o ambiente de negócios e constantemente coletar informações para detectar mudanças ou oportunidades, inclusive no próprio negócio. E ter um senso de futurismo. Construir essa competência começa por consumir informações. Pode ser lendo notícias, vendo um documentário, fazendo um curso, conversando com especialistas, frequentando eventos, monitorando várias fontes sem estar ancorado por uma única perspectiva.

Outra dica é praticar a cultura da experimentação. Antes da era digital fazer testes custava caro, demorava, era arriscado e envolvia uma complexidade logística, pois o cliente não estava a um clique de distância. Agora, com o uso de tecnologia e dados e a possibilidade de monitorar o comportamento de pessoas em tempo real, é possível experimentar mais, de maneira mais barata e com menos risco antes de empacotar o produto.

Por fim, implementar a capacidade de execução rápida com organização de squads(pequenos grupos multidisciplinares) e a utilização de metodologias ágeis. Enfim, trazer o espírito startup para dentro das empresas.

Não é fácil fazer, mas quem não fizer arrisca o seu negócio.


José Eduardo Faria: Qual o rumo da democracia brasileira

Entre os diferentes modos de compreender o que é a democracia, em termos funcionais, destaca-se o que a encara como um regime de dispersão e neutralização de confrontos que podem colocar em risco as estruturas sociais. Nessa perspectiva, a democracia é vista como um entrechoque entre interpretações e aspirações, entre alternativas e opções, percepções e convicções, que se desenvolve em espaços públicos sujeitos a extravasamento de paixões, aspirações, reivindicações, promessas, dissimulações, maniqueísmos, agressões morais e mentiras.

Para neutralizar os riscos de corrosão do pacto social daí decorrentes e viabilizar a construção de decisões coletivas com base em diálogos construtivos, evitando o retrocesso do Estado civil para o estado da natureza, a democracia desenvolveu um sistema de freios e contrapesos — ou seja, regras e procedimentos, como o voto universal, eleições livres e o princípio da maioria, que canalizam reivindicações e desarmam insatisfações, ao mesmo tempo em que permitem construção de acordos coletivos e de deliberações públicas.

Se em vários momentos na segunda metade do século XX a democracia foi marcada por embates ideológicos profundos e acirrados, ainda que por vezes sem que os líderes políticos e partidários se desqualificassem reciprocamente no plano moral, nas duas primeiras décadas do século XXI isso mudou. Em decorrência dos avanços das tecnologias de comunicação e de informação, os partidos se fragmentaram, as linhas de demarcação que separam responsabilidades e delimitam as diferentes zonas de poder se tornam mais porosas e novos espaços políticos surgiram, intercruzando-se e se justapondo, enfraquecendo com isso a mediação parlamentar.  No mesmo sentido, a imprensa tradicional, as novas mídias e os antigos e novos espaços políticos justapostos foram sendo progressivamente envolvidos por atitudes cada vez mais polarizadas e por retóricas cada vez mais agressivas de políticos cuja identidade é forjada mais pelo que negam e agridem do que pelas ideias que defendem. Em vez de uma convivência democrática entre adversários, ao destilar o ódio e recorrer a agressões morais e à mentira sistemática uma corrente entre os novos atores converteu a política não em disputa ou competição, mas numa guerra, em cuja dinâmica quem não é amigo é inimigo e como tal tem de ser liquidado.

Foi o que se viu, por exemplo, nas atitudes do primeiro-ministro húngaro Viktor Orbán logo após sua reeleição, em 2014, descrevendo o futuro de seu país na perspectiva de um Estado autocrático, que não rejeitaria os valores da democracia liberal, mas não os adotaria como elemento estruturante da organização das instituições húngaras. Foi o que também se viu no final do governo Trump, com o triste espetáculo da invasão do Capitólio, em janeiro.

Também foi o que se viu entre nós, com a escolha de ministros civis e militares medíocres, mas que se ajustam à maneira de agir, às opiniões xenofóbicas e racistas e aos objetivos ditatoriais de Bolsonaro. É, igualmente, o que se tem visto com as sucessivas afrontas promovidas por ele e sua falange autocrática aos Poderes constituídos, com a construção de inimigos fantasiosos — como um Paulo Freire ou a TV Globo, por exemplo — para que possam radicalizar o debate político e com o progressivo aparelhamento dos mecanismos constitucionais de controle do Executivo, levando-os a fazer vistas grossas para os crimes de responsabilidade e os crimes comuns praticados pelo inquilino do Planalto. É o que se tem visto, ainda, com a militarização das várias áreas de políticas públicas e as facilidades legais para o crescente armamento do que o presidente chama de “cidadãos de bem”, mas que na prática nada mais são do que suas milícias. Tudo isso com o apoio de parlamentares abjetos oriundos da área da segurança pública que, lembrando a “dialética da malandragem” — termo cunhado por Antônio Cândido em ensaio clássico sobre Memórias de um Sargento de Milícia — não conseguem diferenciar as fronteiras entre a moralidade e a imoralidade.

Em contextos como esses, o que esperar da democracia? A corrosão democrática tende a se acelerar, fundada em um discurso do ódio de gente incapaz de saber que, sem coexistência, divergências e competição não há vida política nem uma sociedade aberta? Ou as instituições democráticas resistirão? Apesar das sucessivas tensões institucionais causadas pela estratégia bolsonarista de ir testando o grau de resiliência das instituições e das liberdades públicas, talvez seja possível, com a devida prudência, apontar dois cenários possíveis.

O primeiro cenário envolve esse risco de conversão da democracia liberal em uma democracia iliberal — conceito desenvolvido por Fareed Zakaria em artigo publicado na Foreign Affairs, no ano de 1997. Os problemas por ele suscitados foram aprofundados mais recentemente por Adam Przeworski, em um importante livro sobre as crises democracia, editado em 2019. Também chamada de “democracia de baixa intensidade” ou de “autoritarismo furtivo” e entendida como processo de “desconsolidação da democracia liberal”, a democracia iliberal é um sistema de governo em que, os cidadãos votam, mas suas garantias vão sendo progressivamente esvaziadas e eles não exercem controle sobre as atividades daqueles que detêm o poder efetivo.

A democracia iliberal encontra as condições para crescer quando a economia passa por períodos de estagnação, a circulação de riquezas diminui, as receitas fiscais caem e a desigualdade aumenta. Programas sociais não atingem toda população desvalida e sem representação. Políticas públicas são canceladas em nome da austeridade fiscal e a situação de incerteza e insegurança sociais daí decorrentes abre caminho, pelo voto, para o surgimento de concepções regressivas de ordem pública e para a degradação do debate político. A progressiva ascensão de um populismo nacionalista e autoritário desenfreado menospreza a pluralidade inerente a uma sociedade democrática, desqualifica o diálogo como meio de resolução de divergências e mobiliza a população contra inimigos reais ou inventados.

Desse modo, quando votam em candidatos populistas, nacionalistas e autoritários, o eleitorado acaba, paradoxalmente, restringindo seu direito de determinar o rumo de seu país, ao mesmo tempo em que endossa propostas de resolução pela força bruta, em detrimento da segurança do direito. A democracia iliberal é, assim, um regime no qual regras e procedimentos democráticos são utilizados por grupos autoritários com o objetivo de reduzir as mediações institucionais, minar garantias fundamentais, inviabilizar juridicamente eventuais resistências e de alterar as regras democráticas com base nas quais seus candidatos se elegeram. Se de um lado a democracia iliberal recorre a instrumentos do regime democrático em busca de uma pretensa tintura de legitimidade, de outro não esconde a propensão por uma concepção de poder fundada em técnicas ardilosas de transgressão da ordem constitucional.

Em linha oposta, o segundo cenário parte das premissas de que a “desconsolidação” da democracia seria mais mito do que fato e de que a democracia liberal — uma construção política que experimenta avanços e retrocessos que variam nos graus de representatividade, liberdade e possibilidade de alternância no poder – é mais estável do que parece com relação àqueles que propagam o ódio. Aqui, a referência intelectual é o filósofo basco Daniel Innerarity, que tem discutido se a fragilidade da democracia é um fato ou apenas um mito. Doutorado na Alemanha, professor do Instituto Universitário Europeu, em Florença, e diretor do Instituto de Governança Democrática, na Espanha, ele é autor de importantes ensaios e livros sobre democracia na perspectiva da teoria dos sistemas.  “Vivemos numa época em que há muito ódio, mas pouca violência. Convém não confundir as duas coisas. Este grau de hostilidade intensa do qual padecemos hoje em nossas democracias nada tem a ver com a violência armada organizada. O ódio não é a antessala da violência, mas algo que a substitui. Não nos permitimos odiar tanto porque sabemos que — pela solidez de nossas instituições, pelo Estado de Direito ou pela ameaça ao castigo da lei — é muito improvável que esse desprezo mútuo desemboque em violência”, diz ele.

Tomando por base a democracia americana e a europeia, Innerarity afirma que um regime democrático não cai necessariamente por meio de um golpe do Estado e que eleições acirradas, agressões verbais, paralisia decisória e agressividade retórica fazem parte do jogo político. A seu ver, o que de fato vem desarranjando a democracia são formas mais sutis de degradação, como descontentamento popular, negativismo dos eleitores, oportunismo dos políticos profissionais e deslocamento dos espaços tradicionais de decisão para espaços novos — muitos deles transterritroriais – não controlados democraticamente. Por isso, personagens que ameaçam a vida democrática — como um Trump ou um Bolsonaro, por ele não nominados expressamente — são mais oportunistas do que propriamente golpistas. Se por um lado recorrem à retórica violenta para atrair atenção, por outro não sabem nem têm condições de exercer um poder expandido ou forte no âmbito de países dotado de um mínimo de complexidade.

Se a debilidade da democracia liberal decorre mais do enfraquecimento de uma cultura política baseada no sentimento de pertencimento a uma comunidade unida, diversa e aberta do que a ameaça de políticos populistas autoritários, diz Innerarity, sua força tende a aumentar à medida que forem construídas instituições que não sejam demasiadamente condicionadas por aqueles que eventualmente as dirijam. Mais precisamente, em que as regras prevaleçam sobre o voluntarismo dos dirigentes.

Em um período de aceleração do tempo, de deslocamento da produção jurídica para instâncias não legislativas, de integração dos espaços nacionais pelos meios de comunicação, de transferência da titularidade dos Legislativos para organismos intergovernamentais, a chave de resistência democrática está na criação de estruturas institucionais bem mais complexas do que as forjadas nos séculos XIX e XX, que moldaram uma democracia mais simples,  eficaz para a época, mas lenta nos períodos de crise econômica, e com jurisdição limitada às fronteiras dos Estados.

A situação hoje é outra. Em decorrência da internacionalização da decisão econômica, do advento de tecnologias mais integradas, de novas formas de comunicação e de informação, da tendência da sociedade contemporânea de subdividir em subsistemas funcionalmente diferenciados, são necessárias instituições capazes de trabalhar com sistemas mais complexos e inteligentes — o que não ocorria quando a democracia liberal emergiu no mundo moderno. Também é necessário articular robotização, automatização e digitalização com princípios de autogoverno, que constituem o núcleo normativo das estruturas democráticas, diz o autor. Essas mudanças configurariam estruturas, processos e regras que proporcionariam à democracia contemporânea um alto grau de inteligência sistêmica — uma inteligência que não está nas pessoas, mas nos componentes constitutivos de um sistema institucional mais flexível e capaz se adaptar a mudanças e inovações.

É isso que tornaria o regime democrático funcionalmente mais eficiente e resistente, frente a falhas de atores individuais, fraquezas de partidos políticos e más intenções de aventureiros populistas. Sem relativizar a importância da autorização popular que está por trás de suas decisões, a democracia só sobrevive se a própria inteligência do sistema institucional for capaz de compensar a mediocridade, a inépcia e a até má fé e a maldade dos atores políticos — conclui o autor de Una teoria de la democracia compleja – gobernar en el siglo XXI (Barcelona, Galaxia-Gutemberg).

Em princípio, esses cenários não são animadores. Diante do cenário da tendência à democracia iliberal, por meio de medidas astuciosas, porém nem sempre ilegais, e o cenário da afirmação da força de uma democracia baseada em sistemas inteligentes, é difícil apontar qual é o mais viável. A verdade é que, quanto mais nos enveredamos na análise de cada um deles, mais voltamos ao paradoxo socrático da ignorância, à medida que sabemos do quanto não sabemos qual será o destino da democracia entre nós.

*José Eduardo Faria é Professor Titular do Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP).

(Esse artigo foi originalmente publicado em Estado da Arte, revista eletrônica vinculada ao jornal O Estado de São Paulo, em 20/02/2021)