O Estado de S. Paulo: Fachin anula todas as condenações de Lula na Lava Jato e torna ex-presidente elegível
Relator da Operação no Supremo incompetência da 13ª Vara Federal de Curitiba para o processo e julgamento de quatro ações contra o petista e determinou a remessa dos autos dos processos à Justiça Federal do Distrito Federal, que vai decidir 'acerca da possibilidade da convalidação dos atos instrutórios'
Pepita Ortega, Paulo Roberto Netto e Fausto Macedo, O Estado de S. Paulo
O ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal, declarou a incompetência da 13ª Vara Federal de Curitiba para o processo e julgamento das quatro ações da Operação Lava Jato contra o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva – triplex do Guarujá, sítio de Atibaia e sede do Instituto Lula e doações da Odebrecht – , anulando todas as decisões daquele juízo nos respectivos casos, desde o recebimento das denúncias até as condenações – o que torna o petista elegível e apto a disputar as eleições presidenciais de 2022.
O relator da operação no Supremo determinou a remessa dos autos dos processos à Justiça Federal do Distrito Federal, que vai decidir ‘acerca da possibilidade da convalidação dos atos instrutórios’.
Em razão do entendimento, o ministro ainda declarou a perda de objeto de dez habeas corpus e quatro reclamações apresentadas à corte pela defesa do petista. Entre tais recursos está o habeas corpus em que os advogados de Lula alegavam a suspeição do ex-juiz Sérgio Moro.
Documento
Em decisão de 46 páginas, o ministro Edson Fachin apontou que, na ação penal do tríplex, o único ponto de ‘intersecção entre os fatos narrados’ na denúncia contra Lula e a competência de Curitiba foi o pertencimento do grupo OAS ao cartel de empreiteiras que atuava de forma ilícita nas contratações da Petrobrás.
“Não cuida a exordial acusatória de atribuir ao paciente uma relação de causa e efeito entre a sua atuação como Presidente da República e determinada contratação realizada pelo Grupo OAS com a Petrobras S/A, em decorrência da qual se tenha acertado o pagamento da vantagem indevida”, anotou Fachin.
Ao estender a decisão para as outras três ações penais – sítio de Atibaia, terreno do Instituto Lula e doações da Odebrecht – o ministro afirmou que existem as mesmas problemáticas.
“Em todos os casos, as denúncias foram estruturadas da mesma forma daquela ofertada nos autos da Ação Penal n. 5046512-94.2016.4.04.7000/PR, ou seja, atribuindo-lhe o papel de figura central do grupo criminoso organizado, com ampla atuação nos diversos órgãos pelos quais se espalharam a prática de ilicitudes, sendo a Petrobras S/A apenas um deles”, registrou o ministro.
Em nota divulgada junto da decisão, Fachin ainda destacou que nas ações penais envolvendo Lula, assim como em outros processos julgados pelo Plenário e pela Segunda Turma, ‘verificou-se que os supostos atos ilícitos não envolviam diretamente apenas a Petrobras, mas, ainda outros órgãos da administração pública’. Nessa linha, o ministro frisou que ‘especificamente em relação a outros agentes políticos que o Ministério Público acusou de adotar um modus operandi semelhante ao que teria sido adotado pelo ex-presidente, a Segunda Turma tem deslocado o feito para a Justiça Federal do Distrito Federal’.
“As regras de competência, ao concretizarem o princípio do juiz natural, servem para garantir a imparcialidade da atuação jurisdicional: respostas análogas a casos análogos. Com as recentes decisões proferidas no âmbito do Supremo Tribunal Federal, não há como sustentar que apenas o caso do ora paciente deva ter a jurisdição prestada pela 13ª Vara
Federal de Curitiba. No contexto da macrocorrupção política, tão importante quanto ser imparcial é ser apartidário”, registrou o ministro em sua decisão.
Documento
- A NOTA DE FACHIN PDF
O texto divulgado pelo gabinete do ministro do STF diz ainda que a questão da competência já havia sido suscitada pela defesa de Lula em outros momentos, mas que é a ‘primeira vez que o argumento reúne condições processuais de ser examinado, diante do aprofundamento e aperfeiçoamento da matéria pelo Supremo Tribunal Federal.
NOTÍCIAS RELACIONADAS
Fernando Gabeira: Uma visita à mansão Bolsonaro
Flávio Bolsonaro comprou mansão de R$ 6 milhões em Brasília. Raramente me interesso por pessoas cujas casas têm banheiros com mármore de Carrara, espaço gourmet, iluminação LED na piscina, home theater e toda essa papagaiada.
No entanto os teóricos do bolsonarismo, entre eles Steve Bannon e o chanceler Ernesto Araújo, sempre afirmam que sua luta é contra o materialismo decadente, que dará lugar a uma sociedade dominada pelos símbolos e povoada por sacerdotes.
Uma das formas de combater essa posição é apontar a distância entre as palavras e a realidade. Bannon vive como um homem rico, e a mansão do primogênito de Bolsonaro é mais uma demonstração de que seu grande projeto na vida é enriquecer.
Existem, no entanto, outras formas de contestar os teóricos do bolsonarismo, embora quase ninguém se importe com isso, por achar que eles são autoconstestáveis.
Gosto dessas discussões, pois, afinal, são parte da minha vida. Nas poucas visitas a Londres, sempre dedicava meu tempo a passear na querida Charing Cross Road, rua famosa por suas livrarias, que talvez nem existam mais como antes.
Foi na Charing Cross que comprei cinco volumes de uma pesquisa realizada pela Fundação Europeia de Ciência, sob o título de “Crenças no governo”. O quarto deles foi o que mais me interessou. Chama-se “O impacto dos valores”.
Toda vez que vejo teóricos da “alt-right” afirmarem que vivemos numa sociedade materialista decadente, lembro-me desse livro.
Segundo ele, os pontos da decadência materialista que mais incomodam, o feminismo, a luta contra o racismo, a ecologia, são na verdade valores que surgiram precisamente no pós-materialismo, a partir dos anos 60.
A passagem dos valores materialistas para uma nova fase significa a superação dos anos de dificuldades econômicas e inseguranças, abrindo espaço para as necessidades de autoexpressão, pertencimento, satisfação estética, cuidados ambientais, nesse caso uma ética para com as novas gerações.
Tudo isso surgiu de mudanças profundas na sociedade. Não houve um processo de perda de valores, mas sim de câmbio de valores.
As feministas questionam valores patriarcais, os negros questionam a supremacia branca, tão cara à alt-right, os intelectuais pós-materialistas condenam uma ideia de felicidade que consiste na acumulação de riquezas.
Os teóricos do bolsonarismo, ao se apegar a uma religiosidade popular, são apenas nostálgicos, pois não examinam as próprias mudanças no interior da religião, provocadas pelo avanço da racionalidade ocidental, aquilo que os sociólogos chamam de desencantamento do mundo.
Steve Bannon dá a impressão de que leu Heidegger. Duvido que tenha feito bom proveito. Segundo o filosofo alemão, somos um ser no mundo, impossível descuidar dele.
Trump e Bolsonaro destroem o meio ambiente em nome de um materialismo vulgar, que supõe que somos senhores do mundo e o controlamos de uma posição exterior.
Não quero dizer que as lutas modernas são perfeitas, nem negar que às vezes se excedem. Também não acredito que a questão identitária possa substituir uma consciência que envolva o problema de todos.
Quero apenas acentuar que os líderes espirituais da extrema-direita buscam reviver um passado que não existe mais e, mesmo quando essa ilusão leva a uma vitória eleitoral, é completamente incapaz de conduzir o presente. Por isso, volto à mansão do senador Flávio Bolsonaro e encontro nela um espaço mais adequado para traduzir os anseios de um grupo político que apenas se aproveita da religiosidade popular para atender aos anseios de acumular riquezas.
Não é por acaso que o grande líder mundial dessa corrente é Donald Trump. E seu correspondente tropical entope o país com armas, em confronto com a própria religião.
Demétrio Magnoli: Lockdown, só usa quem pode
Bolsonaro afirmou que lockdowns “não funcionaram em lugar nenhum do mundo”. É cascata, como tudo que escorre da boca do presidente. Doria retrocedeu São Paulo para a “fase vermelha”. Atenção: não é, nem de longe, lockdown. Brasil afora, em meio à escalada da pandemia, governadores e prefeitos tornaram-se alvo de um bombardeio de críticas por não declararem lockdowns. No caso, os gestores têm razão: lockdown, só usa quem pode.
Lockdown é um extensivo congelamento da economia e da sociedade. Só os setores mais essenciais são autorizados a funcionar. A circulação de pessoas é restringida ao máximo. Funciona, pois a drástica redução de interações sociais ao longo de dois a três meses diminui radicalmente a taxa de transmissão do vírus. Não é, porém, uma varinha mágica. Como persiste alguma mobilidade social, e o vírus atravessa, impávido, a porta das residências, continuam a ocorrer contágios. Lockdowns não substituem a imunização coletiva.
A Nova Zelândia eliminou o vírus combinando lockdowns com fechamento de fronteiras. O sucesso, replicado por raros países, deve-se à circunstância de que, na etapa inicial (e oculta) da pandemia, as ilhas neozelandesas não experimentaram elevadas taxas de contágio. Hoje, porém, a reabertura de fronteiras depende da vacinação em massa da população. Na Europa, os lockdowns só conseguiram achatar temporariamente as curvas pandêmicas, impondo repetições do traumático processo.
O lockdown tem impactos políticos, econômicos, sociais e psicossociais devastadores. A restrição de direitos e liberdades, as perdas de negócios e renda, a insegurança e a solidão que provocam não devem ser menosprezados. Como a amputação, lockdown é um recurso extremo destinado a salvar o bem mais precioso — no caso, a funcionalidade do sistema hospitalar. Bolsonaro é incapaz de entender isso, mas as sociedades modernas proíbem-se, moralmente, de assistir à morte de pacientes sem atendimento.
Estados totalitários, como a China, podem deflagrar lockdowns à vontade. Basta girar a chave do maquinário estabelecido de controle social. Nas nações democráticas, há pré-condições indispensáveis para implantar o lockdown: um consenso político mínimo, um nível razoável de coesão social e o monopólio estatal do uso da força. Os EUA jamais aplicaram um lockdown nacional pela ausência da primeira dessas condições. No Brasil, faltam as três.
O voto tem consequências, acima e abaixo do Equador. Bolsonaro ainda comanda cerca de um terço dos eleitores e conta com um apoio amorfo de uma maioria parlamentar, como ficou evidenciado na eleição das mesas do Congresso. Nas esferas estadual e municipal, o bolsonarismo representa uma força política significativa. Não se fará lockdown sob o atual governo. O Brasil vive — e morre — com suas escolhas democráticas.
Nas nações europeias, formadas por extensas classes médias, os lockdowns sustentaram-se sobre o pilar do Estado de Bem-Estar. As duras restrições foram compensadas por políticas de preservação das empresas e dos empregos. Nada disso evitou a eclosão de manifestações de massa contrárias às medidas sanitárias emergenciais. No Brasil, porém, a extensão da pobreza e da informalidade exigiria, para a imposição de lockdown nas nossas derramadas periferias urbanas, a mobilização generalizada dos aparatos de repressão. Os gestores, felizmente, não se engajarão em desvarios desse tipo. Nota importante: a esquerda que clama por lockdown seria a primeira voz a condenar as violências policiais decorrentes.
O Brasil não é Araraquara. Há tempos, o Estado brasileiro perdeu o controle sobre a totalidade do território nacional. No Rio de Janeiro, um lockdown exigiria negociações das autoridades com chefes de milícias e do narcotráfico, algo que também seria necessário em favelas fincadas noutras metrópoles. Quando Eduardo Paes descarta a alternativa, não opta pela morte, mas meramente pelo realismo.
Compreendo o desespero dos epidemiologistas que exigem lockdown. Desconfio do discernimento dos comentaristas políticos que ecoam o mantra desses dias sombrios.
Sergio Lamucci: Economia caminha para um semestre perdido
Primeira metade do ano deverá ser marcada pela combinação de atividade fraca e inflação ainda elevada
A economia brasileira terá mais um ano difícil em 2021, especialmente no primeiro semestre, marcado pela combinação de atividade fraca e inflação ainda elevada. Com o avanço do número de casos e mortes pela covid-19 e a vacinação lenta, a adoção de medidas mais rigorosas de isolamento social se tornou necessária em muitos Estados e municípios, o que vai afetar especialmente o setor de serviços. Além disso, a volta do auxílio emergencial demorou, prejudicando a demanda nos primeiros três meses do ano, e não foi acompanhada de iniciativas mais firmes para controlar a expansão dos gastos públicos obrigatórios, o que mantém o câmbio sob pressão, num momento de alta dos preços de commodities. Em resposta à inflação mais elevada, o Banco Central (BC) deverá começar neste mês um ciclo de aumento dos juros, apesar da falta de fôlego da economia.
Além do ambiente doméstico difícil, o cenário externo pode ficar menos favorável para países emergentes como o Brasil. A alta das taxas de retorno dos títulos de 10 anos do Tesouro americano aponta para um quadro complicado para esse grupo de economias. A expectativa de um ritmo forte de crescimento nos EUA pode resultar numa elevação precoce da inflação, levando o Federal Reserve a retirar parte dos estímulos monetários antecipadamente, ainda que esse não seja o cenário com que trabalham os dirigentes do BC americano. O risco de um quadro externo mais adverso é causar uma desvalorização adicional do real, que segue muito mais depreciado do que sugerem fatores como os termos de troca (a diferença entre preços de exportação e importação) e a situação das contas externas.
O governo federal é o grande responsável pelo cenário negativo. A economia só terá chance de deslanchar com a vacinação em ritmo acelerado. Com a falta de planejamento na compra de imunizantes pelo Ministério da Saúde, o processo avança lentamente, custando milhares de vidas e atrasando a normalização da economia. Na semana passada, o país teve mais de 10 mil mortes por covid-19. Enquanto isso, o presidente Jair Bolsonaro minimiza a gravidade da crise sanitária, desdenha de medidas como o uso de máscaras e se opõe a decisões de maior isolamento social, apesar da escalada do número de casos e de óbitos, num momento em que o sistema de saúde de diversos Estados se aproxima do colapso.
A Tendências Consultoria projeta um crescimento de 2,9% em 2021, menos que a herança estatística que o ano passado deixou para este ano, de 3,6%. Isso significa que, se PIB não crescer nada em relação ao fim de 2020, a expansão será da magnitude do carregamento estatístico. “Ainda estamos trabalhando nos números trimestrais, mas a projeção de 2,9% embute a perspectiva de contração no primeiro semestre”, diz a economista Alessandra Ribeiro, sócia e diretora de macroeconomia e análise setorial da consultoria.
Em relatório da Tendências, os economistas Thiago Xavier e Lucas Assis destacam os fatores que contribuem para interromper a retomada da economia no começo do ano. “Do ponto de vista qualitativo, o contexto é de elevação de casos de covid-19, já superando os patamares registrados no auge do contágio em 2020, de redução do arsenal de políticas fiscal e monetária anticíclicas e de persistência da relativa pressão inflacionária corrente.” Segundo eles, é um ambiente especialmente difícil para os vetores fundamentais para a recuperação sustentável da economia no curto prazo, como a demanda das famílias, a atividade de serviços, o mercado de trabalho e a confiança do consumidor.
Os dois notam que a suspensão do auxílio emergencial desde janeiro é “uma limitação importante” para o consumo das famílias e para o PIB. O benefício vai voltar, mas num valor mais baixo e para um público menor, devendo vigorar por um período de quatro meses. O volume total do auxílio em 2020 superou R$ 293 bilhões, o que representa 4% do PIB total e 6% do PIB das famílias, observam os analistas da Tendências. Em tese, o auxílio neste ano estará limitado a R$ 44 bilhões, dadas as restrições fiscais.
O cenário para o investimento também se turva. O descontrole da doença gera tanto efeitos diretos, ao impedir a retomada do mercado de trabalho da construção civil e limitar a demanda por bens industriais, quanto efeitos indiretos, uma vez que a persistência de um quadro complicado para a pandemia é fonte expressiva de incertezas, afetando as decisões das empresas de investir, dizem Xavier e Assis. “Ao final, não há saída na direção de uma recuperação econômica sem superar inevitavelmente a pandemia da covid-19”, resumem eles.
Também atrapalham a retomada a taxa de câmbio excessivamente desvalorizada e os juros futuros elevados, pressionados pelas incertezas no campo fiscal e por fatores como a atitude mais intervencionista de Bolsonaro na economia. A volta do auxílio é necessária, mas deveria ser acompanhada por medidas mais consistentes de ajuste das contas públicas, como de controle dos gastos com pessoal. A versão da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) Emergencial aprovada na sexta-feira pelo Senado não tirou o Bolsa Família do teto de gastos, mas não embute regras mais duras de consolidação fiscal num prazo mais curto. Nesta semana, a Câmara dos Deputados deverá analisar o texto.
O dólar está próximo de R$ 5,70, afetando a inflação num quadro de alta forte das commodities. Para piorar, as taxas mais elevadas dos títulos de longo prazo dos EUA são preocupantes para emergentes como o Brasil - o rendimento dos papéis do Tesouro americano de 10 anos está perto de 1,6% ao ano, depois de começar 2021 em 0,93%. A aprovação do pacote de estímulo fiscal nos EUA, de US$ 1,9 trilhão, deve ajudar a manter essas taxas em nível alto.
Ao comentar o ambiente externo, Alessandra diz que, “de um lado, há crescimento mais expressivo nas principais economias e alta de commodities, o que seria positivo para o Brasil”, mas, de outro, há uma expectativa antecipada de aumento dos juros, com o receio de inflação maior. “Esse cenário pode ser mais difícil para emergentes, em especial para aqueles com fundamentos mais frágeis”, afirma ela. “No Brasil, o risco é um câmbio mais depreciado, maiores pressões inflacionárias, alta mais expressiva dos juros futuros e o BC tendo que ser mais agressivo no processo de normalização da política monetária”. Se concretizado, esse quadro vai afetar ainda mais o ritmo da economia brasileira, minando uma eventual retomada no segundo semestre, que depende primordialmente de um processo mais rápido de vacinação.
Bruno Carazza: São todos coniventes
O silêncio cúmplice dos pré-candidatos diante da pandemia
Há exatamente um ano, 45 pessoas - incluindo ministros, assessores, parlamentares e empresários - acompanharam o encontro de Jair Bolsonaro com o então presidente dos Estados Unidos Donald Trump.
O jantar no famoso resort de Mar-a-Lago, na Flórida, não trouxe nenhum resultado concreto em termos diplomáticos ou comerciais. Em compensação, 23 integrantes da comitiva brasileira retornaram contaminados com o novo coronavírus. Começava ali uma longa história de negativa da doença, dos seus efeitos e dos métodos cientificamente comprovados para combatê-la.
Bolsonaro é insensível à morte. Ao ordenar, na quinta-feira, “chega de frescura e mimimi”, nosso governante mais uma vez desrespeitou o luto nacional permanente em que vivemos desde o início do ano passado.
Logo no dia seguinte, porém, ao sair do Palácio do Alvorada, assegurou: “Até o final do ano acabou o vírus já, com toda a certeza". Essa frase deixa claro que há um cálculo bastante racional por trás de toda a sua psicopatia.
Na lógica macabra do presidente, mais dia, menos dia a maioria da população será vacinada e em outubro de 2022 o pior terá passado. Com um pouco de sorte - a manutenção das baixas taxas de juros internacionais, um novo boom de commodities e um generoso bônus estatístico depois das quedas de 2020 e do primeiro semestre de 2021 -, o candidato à reeleição poderá até se vangloriar de uma boa taxa de crescimento do PIB durante a campanha.
Com um exército de milhões de seguidores nas redes sociais e uma teia de grupos de WhatsApp com capilaridade em todo o Brasil, editoriais da imprensa, manchetes negativas na TV e notas de repúdio não o comovem - pelo contrário, lhe servem de alimento e incentivo.
Adorado por 30% do eleitorado, blindado pelo Ministério Público e com o Supremo Tribunal Federal acuado, não lhe interessa se morrem a cada dia mil, duas mil ou cinco mil pessoas.
Na sua desastrosa gestão da pandemia, só houve um episódio em que o presidente foi obrigado a recuar na irresponsabilidade. No início do ano, ameaçado duplamente pela possibilidade, ainda que remota, de aceitação de um pedido de impeachment por Rodrigo Maia e pelo marketing agressivo de João Doria com a vacina do Butantã, optou por moderar o discurso e tratou de acelerar os processos de aprovação e obtenção dos imunizantes.
Contudo, afastado o risco político com a vitória de Lira e Pacheco no Congresso e vislumbrando que Doria não decolou nas pesquisas, a morbidez voltou a ditar o rumo das ações presidenciais.
Esse episódio demonstra que Bolsonaro não se importa se ao final serão 300, 400 ou 500 mil brasileiros mortos - o que o move é o instinto de sobrevivência para permanecer no Palácio do Planalto até 2026.
Está cada vez mais claro que não há outro caminho para o governo adotar um comportamento responsável no combate à covid-19 se não for pela política. E tão chocante quanto a postura de Bolsonaro é a inação dos seus potenciais adversários nas próximas eleições.
No PT, Lula e Haddad concentram todos os seus esforços na reversão das condenações dos integrantes do partido na Lava-Jato. Enquanto isso, Ciro Gomes atira em todas as direções com o objetivo único de ser a alternativa da esquerda num eventual segundo turno em 2022.
Sergio Moro, por sua vez, submergiu diante das novas atividades profissionais como diretor de empresa que presta consultoria jurídica para empreiteiras envolvidas com corrupção.
Quanto a Luciano Huck, há quatro anos continua seu chove-não-molha de tuítes e artigos publicados em jornais, repletos de belas palavras e ótimas ideias, mas carentes da coragem de assumir-se como um verdadeiro político.
Cada um à sua maneira, todos parecem apostar na velha estratégia do “quanto pior, melhor”. Ao torcerem para a pandemia e a crise econômica corroerem a popularidade de Bolsonaro até as eleições, indiretamente Lula, Haddad, Ciro, Moro e Huck se mostram coniventes com as centenas de milhares de mortes pela covid-19.
O caos que se dissemina nas ruas, hospitais e cemitérios de todo o país exige que cada eventual candidato saia do conforto das suas contas de Twitter, onde criticam os descalabros do atual mandatário para seus seguidores, e assumam desde já a postura de liderança que prometem exercer a partir de 1º de janeiro de 2023.
Não se trata aqui da defesa de uma utópica formação de uma “frente ampla” com a definição antecipada de uma chapa única para concorrer à Presidência em 2022.
Há várias ações que os principais pré-candidatos poderiam tomar em conjunto para encurralar Bolsonaro politicamente e, assim, forçá-lo a combater seriamente a pandemia, a começar por uma intensa campanha na mídia tradicional e nas redes sociais em que todos se colocariam lado a lado na defesa da vacinação, do uso de máscaras e de ações efetivas de distanciamento social.
No Congresso, os pré-candidatos também poderiam se lançar num processo articulado com vistas, pelo menos, à aprovação de uma CPI mista para investigar as responsabilidades do governo federal pelas mortes pela covid.
Unidos, os aspirantes ao Planalto também poderiam empreender um giro internacional buscando alertar os demais países da gravidade da situação brasileira e dos riscos que ela representa para o mundo em termos de novas variantes do vírus, tentando assim acelerar a obtenção de novas doses das vacinas.
Em botânica, existe um outro sentido para o termo “conivente”. Trata-se de estruturas que na base são separadas, mas cujos ápices se inclinam e se aproximam até se contactarem, mas sem se fundir - como certas flores, em que filetes independentes se unem para tornar mais eficiente o processo de polinização.
Lula, Haddad, Ciro, Moro, Huck, Doria e qualquer um que queira se lançar candidato no ano que vem têm diante de si a escolha de qual significado darão para sua “conivência”: se, pela omissão, serão sócios de Bolsonaro na morte de outros milhares de brasileiros ou se, juntos, abrem mão de diferenças pessoais e ideológicas para pressionar o governo a pôr fim ao estado de calamidade em que nos encontramos.
*Bruno Carazza é mestre em economia, doutor em direito e autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro”.
Almir Pazzianotto Pinto: O presidente e a reeleição
À semelhança da ditadura chavista, tudo será feito para repetir o regime militar
É inevitável a antecipação da campanha para as eleições presidenciais de 2022. O presidente Jair Bolsonaro lançou-se candidato à reeleição ao iniciar o governo. Renegou compromisso de campanha quando declarou que não tentaria reeleger-se. Seria honesto, mas tolo ou fracassado, se deixasse de fazê-lo. Ninguém abdica do poder, escreveu Maquiavel.
Ademais, promessa de candidato só compromete quem ouve. A frase, cujo autor ignoro, corresponde ao que há de mais mesquinho na política brasileira. Como os partidos não passam de legendas sem ideologia, promessas e programas de governo são redigidos para dar ao povo crédulo a sensação de que serão executados. Prometer algo que não se vai cumprir é estelionato eleitoral. Fosse punido, a maioria da classe política estaria na cadeia.
Jair Bolsonaro será candidato em 2022. Por qual partido ou coligação partidária não interessa. Será candidato graças ao instituto da reeleição, enxertado no Direito Constitucional brasileiro pela Emenda n.º 16, de 5 de junho de 1996, promulgada no primeiro mandato do presidente Fernando Henrique Cardoso. Não subestimem o capitão. Apesar de autoritário e rústico é esperto. Em seus planos deve estar o de filiação a legenda inexpressiva. Precisará apenas da legenda. Recursos e adesões serão obtidos pelo exercício abusivo do poder. Terá o apoio da ultradireita conservadora. Em cada quartel, clube de tiro e loja de armas encontrará aguerrido comitê eleitoral.
Quem busca a reeleição disputa uma corrida de obstáculos, com larga vantagem sobre os demais competidores. Ao ser dada a partida, terá a favor parcela apática do eleitorado. O elevado número de candidatos provoca, entretanto, dispersão dos votos e torna inevitável a segunda rodada de votação. No primeiro turno, os eleitores votam no candidato preferido. No segundo as possibilidades se igualam, pois a escolha é determinada pela rejeição.
São vários os nomes em circulação na bolsa de valores eleitorais. A quase certeza da derrota não evitará que partidos nanicos disputem com candidatura própria, ou em coligação.
Entre os grandes, no PSDB se apresenta o governador João Doria, mas depende da direção nacional, pois corre por fora o governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite. O insistente Ciro Gomes tentará pelo PDT. Fernando Haddad deve ser o preferido do PT, salvo se Lula resolver o problema da inelegibilidade. Guilherme Boulos virá pelo PSOL ou como vice do PT. O outrora poderoso MDB terá dificuldade para encontrar alguém apto a participar da prova. O melhor nome, deputado Baleia Rossi, é jovem e foi derrotado como candidato à presidência da Câmara dos Deputados.
Sergio Moro e Luciano Huck produzem ruído, mas falta-lhes cacife para jogar o pôquer eleitoral. Com os espaços congestionados, não será fácil para eles encontrar legenda, salvo se concordarem em concorrer à Vice-Presidência ou ao Senado.
Sob que panorama econômico e social serão disputadas as eleições de 2022? Essa é a questão. A vacinação em massa, boicotada por Jair Bolsonaro, será decisiva para o controle da pandemia. Não bastará, porém, para resolver os problemas da desindustrialização, do desemprego, da expansão da informalidade, do empobrecimento da classe média e da crescente miséria.
É possível e desejável que até o segundo semestre do próximo ano a pandemia tenha sido debelada. Dela, porém, ficarão terríveis marcas da morte de centenas de milhares de infectados. O tempo e o esquecimento cobrirão de silêncio a destrambelhada política do negacionista defensor das aglomerações e da cloroquina? Creio que não.
A política suicida do presidente Jair Bolsonaro, exposta pela maneira como conduziu o Ministério da Saúde, ao nomear para dirigi-lo general intendente do Exército, será relembrada por familiares dos mortos, infectados e precariamente tratados por falta de vacinas, de oxigênio, de vagas hospitalares.
Quanto à economia, dizem os pesquisadores ser provável que haja deterioração ainda maior neste e no próximo ano. A responsabilidade, na opinião de especialistas, cabe à falta de foco do governo e à incapacidade de avançar com agenda econômica liberal destinada a destravar os obstáculos enfrentados pelo País.
Como a oposição lidará com o problema e se organizará em frente única, é difícil saber. Afinal, os adversários do presidente Jair Bolsonaro revelaram, nos dois primeiros anos de mandato, total incapacidade de comunicação com a opinião pública. Não se ouviu na Câmara dos Deputados e no Senado um só discurso viril contra a criminosa maneira de o governo se conduzir diante da pandemia.
Há em curso projeto de permanência no poder a qualquer preço. À semelhança da ditadura chavista, tudo será feito para repetir o regime militar, desta vez com segunda eleição. Fica a advertência.
Com as vantagens asseguradas pelo exercício do cargo, controle do Tesouro Nacional e pacto com o “Centrão”, não será impossível nova emenda ao artigo 14, parágrafo 5.º, da Constituição.
*Advogado. Foi ministro do Trabalho e presidente do Tribunal Superior do Trabalho
Gil Alessi: No auge da pandemia, Governo Bolsonaro censura professores e acelera desmonte ambiental e de direitos humanos
Após facilitar acesso a armas e munições no começo do ano, gestão volta a fragilizar fiscalização ambiental e coloca em xeque o futuro do Programa Nacional de Direitos Humanos. Na última sexta, ofício circular constrangeu servidores do IPEA
Em meio a recordes de morte pela covid-19 no Brasil, atraso na vacinação e resultados pífios no desempenho econômico, o Governo de Jair Bolsonaro continua centrando sua artilharia em algumas de suas principais bandeiras desde o início do mandato, em acenos claros à sua base eleitoral mais ideológica. Após uma série de decretos ampliando acesso e compra de armas de fogo e munições no início do ano, agora a gestão investe na desregulamentação ambiental —a “passada da boiada” antecipada pelo ministro do Meio Ambiente, Ricado Salles—, e em medidas que, na visão das ONGs do setor, atacam os direitos humanos. Na última semana, dois episódios também acenderam o alerta: a Controladoria Geral da República, subordinada à Presidência, abriu procedimento contra dois professores que haviam criticado Bolsonaro enquanto uma circular constrangeu pesquisadores do IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), ligado à pasta da Economia, a não divulgar nada sem a estrita supervisão da cúpula.
Na área ambiental o novo golpe veio com a nomeação, feita pelo ministro Salles e publicada no Diário Oficial da União na quarta-feira, da advogada Helen de Freitas Cavalcante como superintendente do Ibama no Acre, um Estado-chave para a preservação da floresta amazônica. As credenciais da indicada para o cargo, no entanto, contrariam a finalidade do órgão, que é o responsável pela fiscalização e preservação dos ecossistemas brasileiros. Cavalcante fez carreira advogando em prol de infratores ambientais que eram autuados não apenas pelo Ibama, mas também pelo Instituto Chico Mendes de Biodiversidade (ICMBio).
A defensora divulga vídeos em suas redes sociais nos quais vende seus serviços como uma maneira de evitar que os produtores rurais sejam alvo de multas e outras sanções por parte da fiscalização. “Com uma assistência jurídica especializada não será a Justiça que lhe citará como um executado em (...) multa do Ibama, mas você como autor de uma ação anulatória do auto [de infração] do Ibama, mandará citar o Ibama”, diz Cavalcante. Em outro trecho, ela indaga: “Você que já recebeu aquela multinha do Ibama, aquela que vai de 100.000 reais pra frente? E pensa que é só isso? Mas esse é só o início da sua saga. Você se vê respondendo aqui: na Justiça Federal. Se você tiver um bom advogado, você vai ser autor [de um processo contra o órgão]”.
Após ter a nomeação criticada por ambientalistas e partidos de oposição, a nova superintendente divulgou nota afirmando que sua atuação à frente da entidade se pautará pelos “ditames da legalidade observando as leis e diretrizes ambientais pertinentes ao órgão”. Ainda segundo o texto, Cavalcante diz que sua experiência na área “só acrescentam lisura aos atos perpetrados, pois é necessário um pessoa tecnicamente preparada para a condução do órgão”.
A nomeação de uma advogada que defendia infratores ambientais é mais um capítulo na novela do desmonte e flexibilização de políticas conservacionistas pelo Governo Bolsonaro, que já o colocou em rota de colisão com diversos países europeus e mais recentemente com o recém-empossado presidente dos Estados Unidos, Joe Biden. O mandatário americano já havia afirmado durante a campanha que a preservação da Amazônia é um ponto central de sua política. Ainda não está claro quais mecanismos ele deve usar para pressionar o Planalto a mudar suas diretrizes na área, mas existe a expectativa de que a floresta deve entrar na pauta das relações bilaterais entre os países.
O outro front de embate do Governo é ideológico, e envolve a ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves. Ela criou em fevereiro um grupo de trabalho com a finalidade de rever e analisar as políticas da pasta, e em especial o Programa Nacional de Direitos Humanos 3 (PNDH-3). O documento foi aprovado em 2009 durante o segundo mandato do então presidente Luiz Inácio Lula da Silva, e é considerado um plano progressista. Ligada a grupos evangélicos e com uma atuação marcada por acenos à base conservadora do bolsonarismo, Damares foi criticada por entidades da sociedade civil por excluí-los das discussões sobre o tema. Como pano de fundo existe o temor de que pontos do programa ligados a diversidade, gênero e até mesmo educação sexual sejam excluídos ou alterados pelo ministério sem o devido debate.
Em um vídeo de quatro minutos publicado na última segunda-feira, Damares se defende e ataca “a esquerda” e ministros de Governos anteriores. “Sabe por que deu esse barulho [confusão]? Porque os ex-ministros e a esquerda, que já deixaram o poder, disseram que vamos mexer no Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3). É claro que vamos rever e avaliar esse plano”, afirma a ministra. De acordo com ela, a avaliação será “tão transparente e participativa que será conduzida pela Escola Nacional de Administração Pública’'. “E nessa avaliação todos vocês vão participar!”. Até o momento, o grupo criado pela ministra conta com 14 integrantes, todos de sua pasta.
A Human Rights Watch divulgou nota na qual insta o Governo de Bolsonaro a “garantir que quaisquer discussões sobre mudanças das políticas de Direitos Humanos no país ocorram de forma transparente, com amplo debate e participação da sociedade civil e dos grupos envolvidos”. A diretora da entidade no Brasil, Maria Laura Canineu, destacou também que o Planalto “vem promovendo uma agenda antidireitos”, e que agora planeja mudar o PNDH-3 “em segredo absoluto e sem a participação de qualquer um que discordar de suas políticas”.
Por fim, dois episódios acendem alerta para táticas do Governo para silenciar seus críticos. Nesta semana, a Controladoria Geral da União, subordinada à Presidência, lançou uma ofensiva contra dois professores da Universidade Federal de Pelotas (Ufpel), no Rio Grande do Sul. Na linha pregada pelo movimento Escola Sem Partido, que visa monitorar e tolher a liberdade de expressão dos docentes nas escolas, o órgão subordinado ao Planalto fez com que o epidemiologista e ex-reitor da Universidade Pedro Rodrigues Curi Hallal e Eraldo dos Santos Pinheiro tivessem que assinar um termo de ajustamento de conduta. Ambos haviam criticado Bolsonaro durante uma transmissão ao vivo em janeiro. O deputado federal Bibo Nunes (PSL-RS) acionou a CGU pedindo a exoneração dos dois —o que ainda não conseguiu. Agora eles terão que ficar dois anos seguindo à risca a lei 8.112, que veta a funcionários públicos ”promover manifestação de apreço ou desapreço no recinto da repartição”, sob pena de sofrerem sanções mais graves.
Eu sua conta no Twitter, o professor Hallal resumiu nesta quinta-feira seu ponto de vista sobre o ocorrido. “Existe um ditado alemão que diz: ‘Se há dez pessoas numa mesa, um nazista chega e se senta, e nenhuma pessoa se levanta, então existem onze nazistas numa mesa. Não se pode tolerar o intolerável”, escreveu. Ao EL PAÍS, o ex-reitor que coordenou o maior estudo epidemiológico do país sobre a covid-19, disse: “Não me lembro de nada do tipo partindo diretamente do Governo Federal. Processos disciplinares acontecem com frequência, envolvendo acusações de assédio, prestação de contas errada e uso inadequado de recursos. Agora um processo disparado por um deputado ligado ao presidente da República diretamente contra um professor, é a primeira vez que eu vejo”.
Nesta sexta, os pesquisadores do IPEA foram surpreendidos por um ofício assinado pelo presidente do órgão, Carlos Von Doellinger, que lembra a todos que os estudos e pesquisas “são direito patrimonial do Ipea” e que a divulgação “pode ocorrer após sua conclusão e aprovação definitiva, devendo serem seguidos normais, protocolos e rotinas internas, inclusive quanto à interação com os órgãos de imprensa”. O texto lembra que, caso a ordem não for seguida, pode haver punições. Ainda que a normativa se baseei em regras internas do órgão, subordinado ao Ministério da Economia, o ofício foi visto como intimidatório pelos funcionários. Circula internamente que o detonador do ofício, classificado de “lei da mordaça” e “censura prévia” pelo sindicato do IPEA, foi a publicação de um trabalho ainda em andamento do economista Marcos Hecksher pela BBC Brasil. Segundo a estudo, “o risco de morrer de covid-19 no Brasil foi mais de 3 vezes maior que no resto do mundo. Constrangimentos no órgão não são exatamente novidade ―em 2014, pesquisadores relataram ter sofrido pressão do Governo Dilma Rousseff para não publicar um estudo que falava sobre a alta da pobreza extrema―, mas a percepção é de que a atual cúpula foi além com a determinação de que as pesquisas são “propriedade” do IPEA.
O Estado de S. Paulo: Para os EUA, descontrole da pandemia no Brasil e variante ameaçam o mundo
Autoridades da saúde e do governo americano estão em estado de alerta e afirmam que nenhum país estará seguro enquanto a disseminação do coronavírus continuar a crescer, pelo risco de surgirem novas variantes, mais transmissíveis e também agressivas
Beatriz Bulla* e Giovana Girardi, O Estado de S. Paulo
*Correspondente em Washington
Uma ameaça para o mundo. É assim que a imprensa americana retrata a atual situação da pandemia de coronavírus no Brasil, ecoando a preocupação de cientistas, autoridades da área de saúde e do governo americano sobre os efeitos do descontrole da propagação de uma nova variante do Sars-CoV-2 no País.
Nos EUA, a população já discute quando a vida poderá voltar ao normal, diante da aceleração do ritmo de vacinação e da indicação de que até o fim de maio o país terá doses de imunizante para todos. Depois de um ano como epicentro da pandemia, os EUA agora veem uma luz no fim do túnel e a ameaça do lado de fora. Mais especificamente no Brasil.
“Há uma sensação de alarme sobre a natureza não controlada da pandemia no Brasil e o ritmo lento da vacinação – especialmente agora que o Brasil é a fonte de uma nova e preocupante variante da covid-19”, afirma Anya Prusia, do Brazil Institute do Centro de Estudos Wilson Center, em Washington. “A atenção aqui está voltada para a disseminação dessa cepa mais contagiosa, a P.1, que se originou em Manaus.”
Os primeiros dois casos da variante P.1 foram registrados nos EUA em janeiro, horas depois de o presidente Joe Biden revogar uma decisão de Donald Trump e recolocar a restrição de viagens do Brasil aos EUA.
Duas pessoas que estiveram no Brasil foram diagnosticadas com a nova cepa em Minnesota. Até agora, os EUA registraram 13 casos da mutação, em ao menos sete Estados. Mas ainda não há transmissão comunitária, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS).
Mas não foi a chegada nos EUA da cepa de Manaus que alarmou os americanos e sim a recente situação da pandemia no Brasil, que tem batido recorde de mortes. “Enquanto a pandemia continuar a crescer, ninguém estará a salvo”, disse o porta-voz do Departamento de Estado americano, Ned Price, em coletiva de imprensa.
Em pronunciamentos e entrevistas recentes, o principal infectologista do governo americano, Anthony Fauci, tem ressaltado que a cepa P.1 está associada a uma maior transmissibilidade e à preocupação de que a mutação possa interromper a imunidade induzida naturalmente e pela vacina.
Há cerca de um mês, Fauci afirmou que isso preocupa os americanos, que não devem derrubar tão cedo o bloqueio de passageiros que estiveram no Brasil. Nesta semana, ele voltou ao tema. “O Brasil está numa situação muito difícil. A melhor coisa é vacinar o maior número de pessoas o mais rápido possível”, disse Fauci, que chegou a dizer que os EUA poderiam ajudar os brasileiros.
O ritmo de vacinação nacional, porém, não anima. O Washington Post descreveu a vacinação brasileira como um processo de “escassez e atrasos”, enquanto o The New York Times reporta uma vacinação lenta e sem sinalização de melhora.
“O país atingiu o pior momento. Surgiram variantes que parecem mais mortais para pessoas saudáveis, e os cientistas documentaram coinfecção por múltiplas variantes”, escreveu Kevin Ivers, vice-presidente da consultoria americana DCI Group, em relatório. “A preocupação é que a disseminação acelere essas coinfecções no Brasil e leve a uma explosão de novas variantes mais agressivas.”
A situação brasileira foi definida pelo Washington Post, no dia 4, como “terreno fértil” para outras variantes. O risco foi mencionado também por cientistas, como Bill Hanage, epidemiologista da Faculdade de Saúde Pública da Universidade Harvard (leia a entrevista aqui).
Nas redes sociais, o também epidemiologista e economista da área da saúde Eric Feigl-Ding, membro da Federação de Cientistas Americanos, postou que o Brasil precisa da ajuda de líderes estrangeiros. “A epidemia descontrolada do Brasil será uma ameaça ao mundo, mas ainda não é muito tarde”, disse ao Estadão. “Mas é preciso ter sequenciamento genético, controle de fronteiras, quarentenas e testagem em massa.”
Para a epidemiologista brasileira Denise Garrett, vice-presidente do Sabin Vaccine Institute, com base em Washington, se o Brasil não for capaz de controlar a situação, os bloqueios de viajantes devem se intensificar.
O neurocientista brasileiro Miguel Nicolelis, pesquisador da Universidade Duke, que nos últimos dias ganhou espaço em jornais estrangeiros pedindo uma pressão de outras nações sobre o Brasil, chama a atenção para a “geopolítica da pandemia”. “É a diplomacia do século 21. Já tem países trocando mercadorias por vacinas”, afirmou. “Se o fluxo ficar desimpedido, a doença desse país vai migrar para os outros.”
Falta de liderança
Na imprensa e entre analistas americanos, Jair Bolsonaro é o presidente que propaga desinformação, é cético sobre a vacina e está em choque com governadores. “Como aconteceu com Trump, o vácuo de liderança de Bolsonaro deu ao vírus abertura para se espalhar”, disse o Washington Post. Um dia antes, o The New York Times colocou a preocupação com o Brasil em sua capa.
A crise no País já chamou a atenção no ano passado, com as imagens de cemitérios lotados em Manaus e São Paulo. Desta vez, a preocupação é diferente, porque o que acontece no Brasil, segundo os americanos, pode colocar em xeque os avanços do resto do mundo.
NOTÍCIAS RELACIONADAS
- Média de mortes por covid-19 é recorde pelo nono dia seguido no Brasil
- Governadores preparam pacto nacional para conter a covid-19
O Estado de S. Paulo: Ofensiva na Câmara pode atenuar leis anticorrupção
Nos bastidores, as medidas são chamadas de “pacote da impunidade” por adversários do presidente da Casa, Arthur Lira (Progressistas-AL)
Felipe Frazão, O Estado de S.Paulo
Depois de fracassar na tentativa de blindar parlamentares da prisão, a Câmara se prepara para enfrentar, nas próximas semanas, uma série de discussões com potencial para afrouxar leis anticorrupção e dificultar investigações. Nos bastidores, as medidas são chamadas de “pacote da impunidade” por adversários do presidente da Câmara, Arthur Lira (Progressistas-AL). A ofensiva reúne propostas que vão de mudanças nas leis de Improbidade Administrativa, Ficha Limpa, lavagem de dinheiro e proteção de dados para fins penais até a inviolabilidade de escritórios de advocacia.
A agenda é de interesse do Centrão, bloco de partidos que voltou ao comando da Câmara com a eleição de Lira. Logo no primeiro mês à frente da Casa, ele tentou aprovar a jato uma nova Proposta de Emenda à Constituição nesse pacote: a PEC da Blindagem, que amplia a imunidade parlamentar e restringe a possibilidade de prisão de deputados e senadores.
Foi uma resposta corporativa à prisão de Daniel Silveira (PSL-RJ), determinada no dia 16 pelo ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), após o deputado bolsonarista divulgar um vídeo nas redes sociais com ofensas à Corte e apologia à ditadura militar. A manobra para aprovar a PEC sem passar pelo crivo de uma comissão só não vingou por pressão do Supremo e críticas de eleitores.
Diante do desgaste provocado na imagem do Congresso com a tentativa de autoproteção em um momento de agravamento da pandemia, os partidos se dividiram e Lira foi obrigado a recuar, enviando a PEC para análise de uma comissão especial.
O presidente da Câmara rejeita o carimbo atribuído à iniciativa. “Não há impunidade nem blindagem. Nossa prioridade é não permitir que a gente viva nesse contexto de crise institucional semanal”, disse Lira em recente live promovida pelo grupo Prerrogativas, que reúne advogados. “Não vai faltar coragem para debater os temas necessários, que tenham clamor.”
Na semana passada, a Mesa Diretora da Casa liberou o funcionamento das comissões, que estavam paralisadas, entre elas o Conselho de Ética. À exceção da PEC da Blindagem e da ideia em negociação de apresentar uma proposta separada para alterar a Lei da Ficha Limpa, as demais proposições do “pacote” foram herdadas do período em que Rodrigo Maia (DEM-RJ) era presidente da Câmara. Algumas estão sendo preparadas desde 2019 e passaram por comissões especiais de juristas.
É o caso da proposta de criação da Lei Geral de Proteção de Dados Penal (LGPD-Penal) e da reforma da Lei de Lavagem de Capitais. Propostas feitas nessas comissões indicam que há risco de entraves às investigações e abrandamento de penas. Em 2020, o ritmo foi lento e nenhuma delas chegou a ser votada, apesar da derradeira tentativa de emplacar a proibição para ações de busca e apreensão em escritórios de advogados com base apenas na palavra de delatores.
“Tem comissões trabalhando há bastante tempo, que ainda não deram resultado. Outras estão mais adiantadas, como é o caso da que trata da improbidade. (A análise) vai ser muito no caso a caso, mas não vai haver corte em tudo”, afirmou Margarete Coelho (Progressistas-PI), que faz parte do núcleo de confiança de Lira. Foi ela a relatora da PEC da Blindagem, que amplia a imunidade parlamentar, e a deputada integra a maior parte dessas comissões.
Suspiro. O deputado Lafayette Andrada (Republicanos-MG), relator do projeto de prerrogativas dos advogados, disse que, “como houve uma série de atropelos”, Lira ainda não teve tempo para se debruçar sobre todas as propostas: “Quando houver um suspiro, essas pautas vão andar. Essas comissões voltarão ao normal, elas não morreram”.
Na Câmara, além da comissão da improbidade, a que está mais adiantada é a que trata da prisão após condenação em segunda instância. As duas já têm relatórios finais. Com as revelações da Operação Spoofing, mostrando a troca de mensagens entre procuradores e o ex-juiz Sérgio Moro no processo do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, os parlamentares que costumam defender a Lava Jato temem ser derrotados. A portas fechadas, muitos manifestam receio de que o momento político favoreça acabe afrouxando a norma.
No caso da improbidade administrativa, sete dos atuais 24 integrantes da comissão especial criada na Câmara podem ser beneficiados por mudanças na lei, como revelou o Estadão. Eles respondem a processos , e as alterações propostas podem livrá-los de eventuais punições.
Recentemente, o presidente Jair Bolsonaro disse que a atual Lei de Improbidade é burocrática e “engessa o prefeito”. Já o líder do governo, Ricardo Barros (Progressistas-PR), defendeu a liberação da contratação de parentes no serviço público. Ou seja, quer autorizar o nepotismo, hoje proibido pela Lei de Improbidade e também pelo Supremo.
Ficha Limpa. Criada em 2010 inspirada nos movimentos anticorrupção, a Lei da Ficha Limpa, por sua vez, também deve sofrer modificações, assim que a pandemia arrefecer, como mostrou o Estadão. A proposta chegou a entrar na PEC da Blindagem, mas foi retirada na frustrada tentativa de votar o texto a toque de caixa.
Agora, a ideia do PT e de partidos do Centrão, como o Progressistas e o Republicanos, é apresentar uma PEC separada, prevendo a possibilidade de novos recursos judiciais para salvar a candidatura de políticos hoje proibidos de disputar eleições porque foram condenados por decisões colegiadas. Para Lira, a Lei da Ficha Limpa “não pode ser uma prisão perpétua”. Condenado na Lava Jato, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva ficou inelegível em virtude dessa lei.
Para o deputado Aliel Machado (PSB-PR), a Câmara não deve se precipitar em votações polêmicas sem ter certeza de que terá apoio: “Lira me disse que todas as discussões devem ser decididas no plenário, não vai segurar nada”. Machado assume em breve a presidência da comissão especial da PEC que analisa a prisão em segunda instância. O Supremo derrubou, no fim de 2019, a possibilidade de execução antecipada de pena. A medida era um dos pilares da Lava Jato e a decisão permitiu a libertação de Lula.
Agora, a Câmara pode alterar a Constituição e prever a execução antecipada da pena. Em conversas reservadas, porém, parlamentares admitem que a chance de uma reviravolta assim ocorrer é próxima de zero. Machado acredita que o texto pode ir a plenário em 45 dias, mas não quer se precipitar. “Pautar a prisão em segunda instância de um dia para o outro, como aconteceu com a PEC da imunidade, pode fazer com que se perca todo o trabalho”, disse o parlamentar.
Lula: 'Falta que a gente tenha uma próxima eleição para medirmos força com Bolsonaro'
Petista vê chances de o seu partido ganhar a presidência em 2022, seja com ele ou com Haddad, ou o nome da esquerda que se sobressaia até lá. “Me contento em ir para a rua fazer campanha para um aliado nosso”. Para ele, a realidade vai se impor e Bolsonaro vai perder a disputa
Jan Martínez Ahrens e Carla Jiménez, El País
Luiz Inácio Lula da Silva vive um momento de energia em estado puro. Tem 75 anos, superou o câncer, o coronavírus e a prisão, e diz se sentir “com 30 anos.” Aparece na entrevista feita por Zoom em uma camisa de mangas e se posiciona de pé diante da câmera do computador. Parece estar à vontade; é sexta-feira, no último dia 5, e fala da sua casa em São Bernardo do Campo, na Grande São Paulo, onde vive com Rosângela Silva, a Janja, socióloga por quem se apaixonou quando estava preso em Curitiba. Às suas costas aparecem alguns poucos livros de capa mole e uma bandeira vermelha, de mesa, que exibe a sigla do PT e que, por causa de uma estranha corrente de ar, parece se movimentar em uníssono com Lula, como num comício, quando ele entra em ebulição. Algo que ocorre com frequência ao longo da entrevista.
É um fenômeno que vai crescendo. Primeiro Lula tira os óculos (quadrados e ostensivamente grandes), depois acelera o ritmo da resposta e, à medida que os minutos passam, dá rédea solta ao tigre político que habita nele. Fala, ri e ruge; agita os braços, bate na mesa. Lula ―e esta é uma das chaves da sua extraordinária capacidade de atração― transita de forma incessante pelos muitos Lulas que ele já foi. Ao longo de uma hora e meia de conversa, se sucedem, numa tela que fica cada vez menor, o homem que um dia foi pobre e que sabe se dirigir a outros interlocutores pobres, o torneiro mecânico simpático, o sindicalista que enfrentou a ditadura militar, o candidato dos grandes comícios e até o presidente (2003-2011) que deu ao Brasil anos de grandeza. Mas também o homem que foi preso e se revolta contra sua condenação, o político cassado que busca limpar seu nome. Lula passou 580 dias preso por corrupção e lavagem de dinheiro. E já recebeu outra sentença por crimes semelhantes no sítio de Atibaia. Esse rochedo o esmaga, e contra ele volta agora todas as suas energias.
“Aprendi com uma mãe analfabeta que não podemos viver ressentidos, que devemos ser firmes e acreditar que a vida pode melhorar. Tenho muito otimismo”, diz, em um dos raros momentos em que fica quieto (e a bandeirinha também). É só um instante. Depois continuará disparando para todos os lados, pisando fundo no acelerador de um motor que nunca se esgota e que fez dele uma lenda, tão querida quanto odiada, da esquerda latino-americana. Seu otimismo o deixa seguro de que o PT tem chances de voltar ao poder, seja com ele ou outro nome. Neste domingo, uma pesquisa publicada no jornal O Estado de S. Paulo reforçou sua ambição. Levantamento do Ipecmostra que 50% dos entrevistados votariam nele outra vez em 2022, contra 28% de presidente Jair Bolsonaro ―e 31% de Sergio Moro. Pela enésima vez, ele volta ao centro do debate político.
Pergunta. Como tem levado o confinamento, alguém inquieto como o senhor. Estaria na rua?
Resposta. Me sinto mal ficando em casa. Não me contento em ficar definhando. Vai te matando dentro. Apesar de estar namorando e apaixonado, preciso sair para a rua, respirar liberdade, falar com o povo. Toda vez que sinto falta de ar, não é o coronavírus, é a necessidade de falar com o povo, aprender com eles. Nasci em porta de fábrica. Por ora vou me cuidar e respeitar a ciência. Quando tomar a vacina e for autorizado eu saio.
P. O Brasil, diferente de outros países da região, está no pior momento da pandemia. A quantidade de mortes é terrível e a vacinação é lenta. Como vê a situação do Brasil, como ex-presidente e cidadão?
R. O Brasil vive um acidente de percurso da nossa democracia e da nossa civilidade por conta do presidente Bolsonaro. Ele tem demonstrado não ter nenhuma preocupação com a seriedade, seja para tratar a covid, a economia, a educação ou a sua relação internacional. O Brasil sempre foi o país que não tinha problemas com país nenhum no mundo. O vírus é uma coisa da natureza. Enfrentar o vírus é da responsabilidade das políticas públicas dos governantes no mundo. Aqui no Brasil, o presidente desrespeita a ciência, receita remédio, não tem solidariedade, nem respeito pela vida. Se o Brasil vivesse um momento de democracia efetivamente, o Bolsonaro já tinha sofrido o impeachment. Deixamos de comprar vacina quando poderia, vacinar quando deveria, e ele continua fazendo campanha contra o isolamento. É quase um genocida no tratamento da pandemia. O Brasil não merece isso.
P. Contudo, Bolsonaro continua com 30% de apoio popular e ainda num momento de economia ruim. Como se explica?
R. No mundo inteiro, você sempre tem entre 15% e 20% da sociedade que não querem votar, não gosta de política. Aquela parte da sociedade ultraconservadora, que defende pena de morte, que as pessoas tenham armas ao invés de empregos e livros, que defende a violência, são contra negros, mulheres, LGBTs, quilombolas, sindicatos. Essa gente existe. Muitos ex-militares aposentados, milicianos da guarda privada, gente que depende do Bolsonaro. O fato dele ter esse apoio significa que tem 70% que não concordam. E são esses 70% que vão garantir a democracia. Que na hora da decisão, vão se manifestar.
P. Mas, neste momento, não há uma oposição forte no país. Os últimos resultados eleitorais do seu partido PT foram ruins. Não falta uma nova liderança? O que falta para que o PT recupere força?
R. Falta que a gente tenha uma próxima eleição para medirmos força [na urna]. Eu lembro que quando o [partido espanhol] Podemos [junto com grupos à esquerda do PSOE] ganhou as eleições da prefeitura [de Madri], muita gente falou que o PSOE tinha acabado. Quem governa a Espanha hoje é o PSOE. O PT continua sendo o maior partido do Brasil, a força política mais organizada do país. O PT tem sido vítima de uma campanha de destruição enorme, com [a operação] Lava Jato. A minha inocência está provada e a culpabilidade do Ministério Público, do [Sérgio] Moro e da Polícia Federal está mais do que provada. Em 2016, na minha defesa, a gente já dizia tudo que está sendo publicado agora, os documentos oficiais liberados pela Suprema Corte. Houve um conluio para evitar que o Lula pudesse voltar à presidência do Brasil. Mentiu uma parte da Justiça, uma parte do Ministério Público, da Polícia Federal. Envolveram muita gente numa mentira, reforçada pelos meios de comunicação. Agora que sabem a verdade, como vão dizer para a sociedade que, durante 5 anos, condenaram uma pessoa inocente?
P. Se conseguir vencer a batalha judicial, se apresentaria como candidato?
R. Eu necessariamente não preciso ser candidato a presidente, porque eu já fui. Estou com 75 anos, com muita saúde, mas descobri que o [Joe] Biden é mais velho do que eu e governa os EUA. Quando eu chegar em 2022, eu vou estar apenas com 77 anos, um jovem. Se chegar na época e os partidos de esquerda entenderem que eu posso representá-los, eu não tenho problema. Mas o PT tem outras opções, tem o Fernando Haddad, outros governadores. E a esquerda também tem: Flávio Dino, o [Guilherme] Boulos... Na hora que tiver que decidir, vamos ver quem tem mais condições de ganhar. A única possibilidade que eu tenho de ser, porque eu não disputarei com ninguém, é se as pessoas entenderem que eu sou o melhor nome. Se não, me contentarei em ir para a rua fazer campanha para um aliado nosso. Pedi ao Fernando Haddad começar a lutar pelo Brasil, porque ele tem um passaporte diplomático de 47 milhões de votos conquistados em 2018, ele não pode ficar parado em casa. Tem que ir pra rua conversar sobre educação, emprego, sobre salário, custo de vida. E sobre coronavírus, precisamos exigir todo dia que esse país consiga comprar as vacinas para que o povo possa ter tranquilidade em viver dignamente.
P. O senhor tem dialogado com lideranças da esquerda e da direita sobre a eleição?
R. Você sabe que eu não tenho problema em conversar com ninguém. Às vezes eu vejo a imprensa ficar impressionada porque os conservadores ganharam a Câmara. Eles nunca perderam. Na Constituinte, em 1988, o Centrão percebeu que a gente estava crescendo e fazendo coisas demais, eles se reorganizaram e fizeram mais que nós. Toda vez que tem algo importante para votar, se constrói a maioria. A direita sempre foi maioria, a esquerda nunca. Acontece que a democracia é boa por conta disso. Não parecia que o Podemos era inimigo do PSOE na Espanha? E não se juntaram para governar? O [ultradireita] AfD não está junto com a Merkel? A política é boa por conta disso. Você vai construindo aquilo em que você acredita que é bom e aí a realidade te empurra para algo que não esperava.
P. E com Ciro Gomes?
R. Não tenho problema com Ciro Gomes. Gosto dele de graça, como disse outras vezes. Mas ele está equivocado e precisa compreender. Ele resolveu engrossar o discurso antipetista achando que vai ganhar votos da direita. Não vai. Isso que é grave. Não adianta falar mal do PT e da esquerda achando que vai ganhar voto do Doria. Se continuar discurso xenófobo contra o PT ele vai perder gente da base dele. Se teve 12% na última eleição ele pode cair. E eu acho que o Ciro Gomes é importante para o Brasil. Mas ele precisa acertar na política. Ele pode não ter no PT o maior aliado porque o PT não o apoiou. Mas ele não pode considerar PT inimigo.
P. Hoje o Bolsonaro está alinhado ao Congresso reformista, com a agenda de teto de gastos. Não é pouco tempo para acreditar que o PT pode mudar a mentalidade no Brasil?
R. O PT pode e deve. Todo o combate ao coronavírus, ele se dá mais corretamente nos países onde o Estado tem políticas públicas de saúde. Aqui no Brasil, o SUS foi atacado pela elite brasileira desde que foi criado em 1988. Agora com o coronavírus, todo mundo começa a reconhecer que se não fosse o SUS o Brasil estaria muito pior. Por que é o sistema público de saúde invejável. E do qual eles cortaram muito dinheiro e que salva milhões de pessoas neste país. É o profissional do SUS, a estrutura do SUS que tem salvo o Brasil, que faz com que não esteja pior do que está.
P. Quando o senhor governou a China começava a investir muito, um momento favorável.
R. Quero desfazer esse equívoco que às vezes vocês cometem. “Ah porque teve um boom de commodities” [nos anos do PT]. Boom de commodities tem hoje. O problema é saber onde você vai gastar o dinheiro no país, aonde é que o pobre vai entrar na economia. Nós fizemos uma inclusão bancária de 76 milhões de pessoas, levamos energia de graça na casa de 15 milhões de pessoas, cisternas. Viajei muito pelo mundo, vendia a capacidade intelectual e produtiva do Brasil.
P. Mas agora nosso endividamento está perigoso.
R. O Brasil é muito grande e pode voltar a ser. Tenho a impressão de que o povo vai começar a perceber o que aconteceu no Brasil. Obrigatoriamente vai ter que comparar o que era no governo do PT e o que é o Brasil no governo do Bolsonaro, e dos outros.
P. Falando agora de Estados Unidos, eles tinham o presidente Donald Trump, muito parecido com o Bolsonaro. Seu último ato foi fomentar a invasão do Capitólio. Acredita que pode acontecer algo parecido se Bolsonaro perder as eleições?
R. Eu acho que o Bolsonaro vai perder as eleições, e a vitória será para alguém progressista, espero que seja para o PT. Acho que ele está armando o povo. Quem quer comprar arma, não é o trabalhador. O metalúrgico, o químico, o professor. As pessoas querem comprar comida, emprego. O Bolsonaro está vendendo armas para quem? Para uma elite, agrícola, ex-policiais, milicianos que lhe dão segurança, para a turma que matou Marielle. Se o PT voltar a ganhar as eleições, a gente vai desarmar o povo e recuperar o humanismo da sociedade brasileira, deixar esse ódio de lado. Só tem um remédio para este país: fortalecer a democracia. Tenho clareza absoluta que a gente pode ganhar outra vez. Aqui no Brasil o que parece impossível hoje vai ser possível amanhã. Este país é poderoso. O que ele tem é uma elite perversa, que acha que tudo é para ela. Precisamos de uma sociedade solidária, em que o humanismo prevaleça sobre a chamada inteligência artificial. Não quero virar algoritmo. Não quero que a sociedade vote num Trump ou num troglodita como o Bolsonaro nunca mais. As pessoas precisam votar em homens que pensam o bem.
P. Ou mulheres, não presidente? Não só homens.
R. Se tem uma pessoa que apostou na conquista das mulheres é este seu amigo aqui. No PF tivemos uma presidente mulher, 50% do meu partido são mulheres.
P. E tem uma mulher despontando como potencial candidata, cogitada até pelo PT, que é a empresária Luiza Trajano, nome inclusive de fora da política. Como o senhor a vê?
R. Conheço e adoro a Luiza Trajano como mulher, pessoa humana e empresária. Acontece que o mundo da política é insano, não é uma coisa fácil. Uma coisa é dirigir uma coisa sua, uma rede, uma fábrica. Outra é um Estado, um país, em que você presta conta para empresa, sindicato, Parlamento. Não tem curso universitário para preparar político. A política é difícil, é tomada de posição e não é ciência exata sempre. Você tem que decidir de que lado você está sempre, para quem quer fazer o bem. Atender uma [parte] e ferir a outra. Toda vez que se nega a política o que acontece é um Bolsonaro.
P. Em que se diferencia o Lula que assumiu o poder em 2003 e o Lula de agora? Qual experiência lhe trouxe a prisão?
R. O Lula de hoje não é diferente do Lula de 2002. Sou mais experiente, um pouco mais velho, mas continuo com a mesma vontade e a mesma certeza que é possível mudar o Brasil. Sonhava em possível construir um bloco econômico forte na América do Sul. Hoje, com a União Europeia, não dá pra você ficar negociando sozinho. Vamos ser francos, [meu tempo] foi o melhor momento da América Latina desde Colombo. Acho que o continente precisa se convencer que não pode continuar no século XXI sendo a parte do mundo que tem mais desemprego, mais miséria e mais violência. Sou a prova que o Brasil foi convidado para quase todas as reuniões do G-8, e virou protagonista internacional e é isso que os americanos não querem. Não querem competição. Por exemplo, não é assimilável que o Trump queira invadir a Venezuela e que países europeus reconhecerem o [Juan] Guaidó como presidente. Como reconhecer um impostor, alguém que não concorreu à presidência? A Europa é que desapareceu da política. Tudo é comissão. Tem comissão daquilo, de meio ambiente, tudo burocrata. Os governantes são eleitos e desaparecem. É preciso que a política volte a assumir o seu papel, tomar grandes decisões.
P. Mas o que mudou pessoalmente, com a prisão? Poucos políticos viveram isso. O que isso mudou do ponto de vista pessoal?
R. Se eu dissesse que eu não tenho mágoa de algumas pessoas eu estaria mentindo. Mas nunca na minha vida trabalhei com meus rancores. Quando a gente tem ódio a gente dorme mal, faz digestão mal. Como eu sempre tive consciência do que estava acontecendo comigo, eu nunca tive dúvida. Quando eu estava detido na Polícia Federal, houve uma tentativa de que eu fosse libertado e viesse para casa e utilizasse tornozeleira. O que eu disse? ‘Eu não troco minha dignidade pela minha liberdade’. Eles procuravam um motivo para me prender. Preciso agora deixar de ser refém, que a Suprema corte vote e decida. Só quero um julgamento honesto, eu não vou mais xingar o Moro, nem o Ministério Público. Todo político que rouba se esconde, submerge. E eles pela primeira vez enfrentaram um político que não tem medo deles porque sou inocente. É preciso saber quando o Supremo vai tomar a decisão porque ao me colocar como inocente eles vão ter que dizer que os outros mentiram, que a rede Globo mentiu, que a imprensa toda mentiu. Será o dia do perdão. Fico imaginando o dia em que o William Bonner abrirá o Jornal Nacional dizendo: “Boa Noite, hoje nós queremos pedir desculpas para o ex presidente Luiz Inácio Lula da Silva porque acreditamos nas mentiras do Dallagnol e do Moro”.
P. É utopia, né, presidente?
R. Você acha impossível, mas eu acho que vai acontecer. Eles pediram desculpas porque não cobriram as [manifestações pelas] eleições diretas depois de 30 anos. Os americanos admitiram que interferiram no golpe [de 1964] depois de 50 anos. Não sei se vou estar vivo mas mesmo que eu estiver no túmulo eu levantarei por alguns segundos de alegria por que finalmente a verdade aconteceu.
P. Deixaria um dia a política?
R. Não, não penso. A política está no meu DNA, é uma célula no meu corpo. Quando somente essa célula parar de produzir e eu morrer é que eu pararei de fazer política. Não tem saída para humanidade fora da política, para a democracia, para o crescimento econômico e a distribuição de riqueza. Tudo depende da política. Em 1978 eu dizia: “Eu não gosto de política e não gosto de quem gosta de política.” Hoje eu digo, eu gosto de política e toda sociedade deveria gostar.
Folha de S. Paulo: Pazuello agora pede ajuda, e Congresso é pressionado a assumir combate a Covid-19
O plano é que o grupo criado com governadores na semana passada concentre as principais ações do país contra o avanço do vírus diante da omissão de Bolsonaro
Coluna Painel, Folha de S. Paulo
Em meio à omissão, ineficiência e negacionismo de Jair Bolsonaro em um ano de pandemia, articula-se em Brasília um arranjo para colocar a cúpula do Congresso no comando do combate à crise da Covid-19, com o respaldo de governadores e até a participação do próprio ministro da Saúde. Após dez meses de submissão à cartilha bolsonarista e agora sob investigação, Eduardo Pazuello tem sinalizado com pedido de ajuda a gestores.
A costura tem sido feita nos bastidores e com cuidado para não provocar a ira do presidente.
A articulação envolvendo o Congresso parte de dois entendimentos em meio ao colapso nacional da saúde. Primeiro, os governadores querem evitar o desgaste de atuar sozinhos no pico da pandemia. Segundo, a polarização de Bolsonaro com eles chegou a um ponto em que a única forma de ter uma ação nacional é com o Legislativo junto.
Aliados de Arthur Lira (PP-AL) e Rodrigo Pacheco (DEM-MG) tentam tratar o assunto como uma pacificação entre os Poderes e não como um atropelo ao governo federal. O discurso é que Bolsonaro está ciente que deve agir e uma participação do ministério mostrará esse comprometimento.
O plano é que um grupo criado por Lira com governadores na semana passada concentre as principais ações do país contra o avanço da Covid-19, coordenando a atuação do ministério e esvaziando as ordens negacionistas de Bolsonaro. A ideia é colocar mais pessoas nesse comitê, como secretários de saúde, parlamentares, especialistas, médicos. O Supremo foi procurado para dar apoio à iniciativa.
Os principais pontos a serem comandados: fabricação e compra de vacinas, leitos de UTI, equipamentos suficientes para hospitais, e medidas de restrição para frear a transmissão.
Depois de quase dez meses obedecendo todas as diretrizes do presidente, Pazuello passou a indicar a gestores nos últimos dias que não consegue tomar as medidas que lhe são cobradas por não ter respaldo no Palácio do Planalto.
Apesar de políticos criticarem a atuação do ministro e o chamarem de incompetente nos bastidores, a leitura é a de que não é possível tirá-lo agora nem tirar a pasta da linha de frente do combate à pandemia, inclusive por questões legais (assinatura de documentos, divisão de dinheiro, etc).
Para pessoas que falaram com o general nos últimos dias, a impressão é a de que a sinalização dele agora é reflexo da preocupação com a investigação de que é alvo em meio ao crescente número de mortes, que não para de bater recordes.
A Folha revelou neste domingo (8) que a White Martins pediu transporte de oxigênio a coronéis que assessoram Pazuello e não foi atendida. O jornal também mostrou que o Brasil rejeitou no ano passado proposta da farmacêutica Pfizer que previa 70 milhões de doses de vacinas até dezembro deste ano.
O ministro acumula erros e acusações na condução da Saúde. As reclamações se dão também por ele ter chegado com o status de um especialista em logística, área que apresentou diversas falhas desde então, como as confusões em voos na entrega de vacinas, etc.
Entre governadores, há quem defenda que a mobilização deveria isolar completamente o governo federal, deixando inclusive Pazuello de fora. João Doria (PSDB-SP) escreveu no grupo de WhatsApp dos gestores que é contra qualquer relação com genocídas, mentirosos e incompetentes, segundo suas palavras.
Outra parte, porém, entende que a participação da União é obrigatória, inclusive para divisão de responsabilidades.
“Se o governo federal não quiser participar, vamos ao Supremo para obrigá-lo. Entre os direitos de quem exerce a presidência da República não está o de se omitir criminosamente”, disse Flávio Dino (PCdoB-MA) ao Painel.
Paulo Fábio Dantas Neto: Ciência e política, amantes do possível
O possível não é um dado. É um tesouro a ser encontrado. Quem acusa de inação os buscadores do possível engana-se, ou tenta despistar. O possível está num futuro que depende das circunstâncias do presente. Ele não tem compromisso prévio com a correção de erros do passado nem com a realização de intenções das mentes dos atores sociais. O possível não é conservador nem progressista, ele apenas será o resultado, sempre incerto, de um encontro, ou desencontro, entre a razão e a experiência. Dessa alternativa depende boa parte do que será felicidade ou tragédia, nesse futuro possível.
A busca do possível requer um passo prévio: reconhecer o impossível para fazer dele uma baliza, em vez de objetivo da busca. Substituir um prévio intento pela aposta em nova possibilidade que reanima e contenta é dar um passo além, não só da impotência que nos incute culpa, como da resignação, que frustra e deprime. Falando assim pode parecer um convite a um passeio, mas a decisão por essa busca é processo dilacerante quando se dá em meio a uma situação crítica, que pode se tornar agonística.
O Brasil vive intensamente nada menos que duas dessas situações críticas. Parafraseando Jobim, não é para amadores lidar com Bolsonaro e Covid ao mesmo tempo. Os dois infortúnios se retroalimentam e isso pode nos fazer crer que um é causa do outro. Mas não é assim. Com ou sem Bolsonaro teríamos que recorrer à ciência para lidar com a pandemia. Com ou sem ela, teríamos que recorrer à política para lidar com Bolsonaro. Política não é vacina contra o vírus. E a ciência não derrotará Bolsonaro. A saída de cena de um não nos livra, necessariamente, do outro. Ciência e política, cada qual deve fazer sua parte. Para isso não precisam, nem devem brigar. E podem atuar de modo complementar.
A ciência, nesse caso, obteve um assombroso sucesso quando ofereceu ao mundo vacinas seguras em tempo recorde contra um vírus desconhecido. A humanidade vê aumentar sua dívida para com ela. O sentido de urgência da ação mais complexa foi atendido porque, desde logo, a comunidade da ciência compreendeu que não havia a solução simples de medicamentos que atalhassem o tratamento. A busca do possível não foi adiada porque se detectou e afastou o impossível do horizonte. A má notícia, acolhida com realismo, em vez de desespero ou depressão, produziu ação. No mundo todo, incluído o Brasil, que, graças à ciência que aqui também habita, está, sob forte tempestade, produzindo vacina.
Os resultados da ação política no mundo são mais controversos (se não o fossem estaríamos falando de outra coisa, não de política) e seus êxitos, menos universais. Para serem avaliados exigem lupas sobre múltiplas realidades nacionais, para o que não há espaço na coluna nem informação em meu poder. É visível, no entanto, a atitude da grande maioria dos dirigentes dos países de alta e média relevância (deixo de me referir aos de baixa relevância não por desprezo, mas por desinformação) de não querer matar a mensageira da má noticia, no caso, a ciência. Aqui é redundante, até enfadonho, assinalar o governo federal brasileiro como uma desonrosa exceção. Sem malhar em ferro já quente, pode-se dizer que, através de suas ações e inações, matou-se e ainda se mata muito mais que apenas a mensageira.
Mas um inventário da ação da política brasileira em relação à pandemia não pode se resumir aos desmandos e crimes do Executivo Federal e muito particularmente daquele que é seu chefe nominal. Além de equívoco, seria injustiça ocultar serviços prestados pela política nessa quadra difícil. Governadores e prefeitos têm agido, com forte apoio do Judiciário, dando respostas, de um modo geral (quem quiser encontrar flagrantes do oposto, claro que achará), em patamar acima do potencial que a elite política subnacional parecia deter. Expertise em atuar na adversidade é um capital institucional inesperado que ela está a acumular, efeito colateral do treinamento político e social a que esse desafio a está submetendo. Do Congresso Nacional não se pode falar diferente, sendo digno de nota que os conflitos políticos recentes, especialmente na Câmara, não fizeram as duas casas se afastarem do centro da cena do combate à pandemia. Seguem construindo consensos amplos para votarem medidas cruciais de apoio a estados e municípios e de combate a efeitos sociais da pandemia e da crise econômica.
Esse o papel positivo que a política vem podendo exercer, no combate à pandemia, em condições extremamente adversas, maximizadas pela conduta do presidente e pela influência que ele exerce sobre agências do governo e sobre parcelas da população. Papel reforçado depois da detecção do impossível e do seu devido afastamento do horizonte de objetivos da ação. Assim como a consciência de que não havia remédio pronto para tratar a covid incitou a ciência a descobrir vacinas, a consciência de que é impossível, neste momento, afastar Bolsonaro, incitou o sistema político e judiciário a protegerem a democracia dos seus ataques frontais e a fornecer um mínimo de governabilidade ao País. Penso que os moderados resultados alcançados com essa atitude prudente resultam da ambiguidade própria da situação e não podem ser confundidos com intenções de conivência. Essa a imputação feita, a granel, a partidos e a dirigentes de instituições, cavalgando, por ingenuidade ou demagogia, na baixa simpatia popular de que gozam. Não houve até aqui sinais de ambivalência desses dois poderes da República nem quanto à crise sanitária, nem quanto à defesa das instituições democráticas.
Quanto ao enfrentamento político de Bolsonaro, é obvio que a ambivalência predomina. Mas quem quer acabar com ela, cobrando que o sistema político se oponha ao presidente, está em busca do possível? Ou ainda não afastou o impossível do rol de seus objetivos? Percebo que cobram da política que ela não apenas aja, como tem agido, em acordo com a ciência, mas que adote, em sua conduta prática, a ética da ciência e aí não só das ciências médicas e biológicas, mas a das ciências humanas e sociais, quando elas, por algumas de suas vertentes teóricas, se impõem a missão de compreender e também transformar o mundo. Para quem assim se posta palavras políticas chave são movimento e vanguarda. É complicado querer que sejam palavras-chave da ação de quem atua institucionalmente como elite especializada, em arenas racionalizadas de competição política ou de estabilidade judiciária. Num momento crítico de alta tensão e angústia sociais, em que pretensões de protagonismo de movimentos estão limitadas por inclinações conservadoras do eleitorado e atrofiadas pelo rigor da pandemia, esses apelos e cobranças de que instituições funcionem como movimentos chega aos limites da exasperação. Peço licença para fazer uma digressão um pouco longa, em torno da própria ciência social, no intuito de argumentar pela insensatez dessa pretensão. Quem estiver convencido nem precisa se deter nesse ponto da leitura.
“A ciência como vocação” e “A política como vocação” são dois dos mais contundentes textos de Max Weber sobre os paradoxos da modernidade. Em ambos, ele trata de vocação como dedicação a uma profissão. E da tensão entre a aceitação realista de um condicionamento social e a aposta na possibilidade de ação para o sujeito individual. A condição social inescapável é o desencantado mundo moderno, onde impera a racionalização de meios e fins; a possibilidade do sujeito é a escolha de um agir que conecte meio e fim a determinada “causa”.
Como Raymond Aron chama a atenção, aqui temos, também, um problema existencial: delimitar em que espaços da sociedade a racionalização para objetivos ainda permite algum lugar a outros tipos de ação. A ciência e a política, mobilizáveis, também, por valores, são (ainda podem ser) espaços desse tipo. Desde que o exercício dessas vocações não se insurja contra o que há de inexorável na racionalização que, afinal, também alcança as duas áreas, como todas as demais.
O fato social e o ato individual são - para usar um lugar comum - facas de dois gumes. A racionalização (uma esquina onde se encontram a vontade de emancipação e práticas de instrumentalização) exacerba-se a ponto de reduzir e amesquinhar a razão. A decisão do ator (esquina da aspiração de autonomia com tentações de despotismo) devolve à razão sua amplitude e grandeza, mas ao risco de transpor as fronteiras do irracional. Diante do imprevisível, na ciência e na política persiste, ao menos, o dilema valorativo entre conservar uma estabilidade medíocre, depressiva, ou promover mudança, ao custo de uma insegurança ansiosa. Em outras áreas esse dilema sequer aparece. Foi resolvido em favor da razão instrumental. Ciência e política sobrevivem como domínios onde é possível o agir criativo.
Eis o relevante ponto weberiano que ambos os textos exprimem: o sujeito que adota a política ou a ciência como vocação é, em certo sentido, um sobrevivente no exercício de uma autonomia, mas por ter escolhido uma das duas, nem por isso escapa da condição de mover-se num fio de navalha.
Mas quanto às distinções entre ciência e política? Elas cabem na distinção, feita pelo próprio Weber, entre a “ética da convicção” e a “ética da responsabilidade”? Quem pensa nessa dicotomia – apresentada na parte final de “A política como vocação” - como uma chave para compreender as distintas vocações da ciência e da política, surpreende-se ao não encontrar em “A ciência como vocação” um contraponto à ética da responsabilidade. Esta orienta, claramente, o político por vocação, mas não se constata clareza equivalente na correspondência entre o profissional da ciência e a ética da convicção. A ambiguidade ética da vida política infiltra-se no agir científico, impondo também ao cientista uma negociação com demônios. Sua ética vai além das convicções. Sem isso não nasce a pesquisa científica. Assim como faz a ética da política – e de modo diferente dela – a ética da ciência também contrasta a fé religiosa, certamente valiosa, para outros fins humanos e conforme outros valores. Mas nos dois textos de Weber lemos que ambas (ciência e política) estão expostas a visitas do irracional. São visitas insólitas, que trazem ideais de perfeição. A ideologia, quando fé, faz ciência e política perderem suas razões de ser. Entre as respectivas razões há convergências que balizam a exploração de diferenças e até contrastes entre as vocações da ciência e da política, sem criar um abismo ético entre elas. Numa palavra, compreender as razões e a experiência da política institucional como distintas das razões e da experiência do movimento social e ver essa distinção com simpatia não coloca ninguém na contramão da ciência. Apenas arma a consciência para não ver a “classe política”, nem mesmo o que se apelidou de centrão, como inapelável aliada de Bolsonaro e do que ele representa. É interlocutora, não adversária.
A política tem sua ética, ainda que no mundo real predominem simulacros, no centrão e nas “melhores” famílias ideológicas. Weber fala em política como causa que sustenta uma vocação (profissão) e avisa sobre a impossibilidade de estender à política uma ética única, de fora dela. Essa pretensão é tão irrealista quanto afirmar que a ética da politica não possui nexos com qualquer outra ética (supor políticos santos é tão irrealista quanto supor que todo político é aético). Sim, a ética da responsabilidade (o norte da política) põe em risco a salvação da alma e a ética dos últimos fins põe em risco as metas, por ausência de responsabilidade pelas consequências. As duas éticas orientam diferentes condutas diante de noções de bem e de mal e da irracionalidade do mundo: “O mundo é estúpido e mesquinho, eu não” (ética dos últimos fins); “Eis-me aqui. Não posso fazer de outro modo” (ética da responsabilidade). E arremata: “A política é como a perfuração lenta de tábuas duras (...) somente quem tem a vocação da política terá certeza de não desmoronar quando o mundo, do seu ponto de vista, for demasiado estúpido e mesquinho para o que ele lhe deseja oferecer. Somente quem, frente a tudo isso, pode dizer “apesar de tudo!” tem a vocação para a política”. A reflexão vale como metáfora institucional, por mais que no caso do político beltrano seja descrição veraz e no de sicrano, doce ilusão.
A que serve tanta digressão? Para dizer que, sim, a situação extremamente crítica que vivemos no Brasil com a associação entre Bolsonaro e Covid pode ser enfrentada pelas gramáticas da ciência e da política. Culpa, vergonha, covardia são repertório léxico funcional ao universo bolsonarista, incapaz de explicar o buraco, menos capaz ainda de nos tirar dele, embora essas palavras brotem do desespero de pessoas de várias condições sociais. São autoexplicáveis cobranças de ação contundente e resultados imediatos por parte de quem se vê direta ou potencialmente implicado nas ameaças e delitos diários. A parte da sociedade que tem consciência das dimensões da tragédia desconfia da fina camada de proteção que as instituições construíram contra as investidas autocráticas, ainda mais se a compara com a jaula em que está trancada, por medo da doença e falta de horizonte. Mas será mesmo uma jaboticaba brasileira?
Essa interpretação sempre se apresenta quando se alega os quatro séculos de escravidão. A lembrança atiça o açoite masoquista. Ajoelharemos no milho por outros quatro séculos e ainda não será bastante para apagar a vergonha que somos como país. Temos tão cronicamente vergonhosas elites civis que cumpre duvidar de tentativas não governamentais concretas de fazer, em hora critica, algo socialmente justo, apesar do governo. São inconfiáveis como parte desse legado espúrio, tanto quanto as iniciativas políticas que tentam levar o governo a assumir seus deveres por caminhos diversos ao da contestação. Quanto ao povo, coitado, se foi capaz de votar em Bolsonaro e de continuar em boa parte crendo nele a caminho do extermínio, dele não se pode esperar nada a não ser que se arrependa da condição de bicho solto e passe a ser guiado por uma vanguarda onisciente que o redimirá para a civilização do dever.
Pois bem, como se sentia e movia metade dos norte-americanos durante os quatro anos de Trump, o ultimo deles passado em interação com a pandemia? E a outra quase metade que seguiu fiel ao mito até as urnas desse ano? Até a invasão do Capitólio não se viu, da parte das instituições da ciência e da política daquele país outras atitudes que não a marcação cotidiana para conter a fera, a esgrima de bastidores e escaramuças públicas pontuais, enquanto movimentos de cidadãos preparavam o acerto de contas eleitoral do qual ascendeu um político convencional e moderado. A opção por pacificação revelou-se rota não só virtuosa, como eficaz. Se devemos fazer de outro modo é preciso dizer o porquê.
Penso que a política brasileira precisa saltar sobre a tardança, não a carregar, como fardo expiatório. Sem sentar sobre ela, nem a ruminar, seguir buscando as vacinas que a ciência produziu, tentando encurtar o tempo, protegendo como possível as pessoas mais vulneráveis durante a inevitável espera e marcando em cima, fungando no cangote do governo, para que não ceda a novas sabotagens do presidente e do seu grupo palaciano, militares incluídos. Se algum plano cabe além desse é o de chegarmos de pé a 2022 para o acerto de contas entre Bolsonaro e a democracia.
A sociedade, partidos de oposição, movimentos políticos e sociais podem buscar formas de expressão contundentes de indignação e contestação. Ao mesmo tempo é importante que cúpulas das instituições continuem a jogar o xadrez político discreto de cada dia, para que a corda não se parta e, com ela, liames que, ainda em pé, ligam o estado e a sociedade emersa ao mundo bruto em que vive o cidadão comum.
Para isso precisaremos vencer a tentação da ética da não aceitação do impossível como tal. Evitar chamar de impotência (uma disfunção) a busca de soluções possíveis, que é o sentido mais próprio da política. Antes que alguém se engane: o que estou dizendo nada tem a ver com resignação, aceitação meramente racional do impossível como tal. Falo é da consciência do impossível ser chave de buscas individuais e coletiva pelo possível. Porque ele, o possível, é o único terreno em que se pode VIVER.
* Cientista político e professor da UFBA