O Estado de S. Paulo: Bolsonaro escolhe médico Marcelo Queiroga como ministro da Saúde

Médico, que entra no lugar do general Pazuello, será o quarto nome a assumir a pasta desde o início da pandemia

Marcelo de Moraes e Mateus Vargas, O Estado de S.Paulo

BRASÍLIA – Sob pressão para conter o avanço do novo coronavírus no País, o presidente Jair Bolsonaro decidiu nomear o médico Marcelo Queiroga para o Ministério da Saúde. O presidente da Sociedade Brasileira de Cardiologia vai substituir o general Eduardo Pazuello, demitido depois de acumular desgastes, como a demora para a compra de vacinas e falta de coordenação com Estados no combate à covid-19, e das quase 280 mil mortes causadas pela doença. Queiroga, que é pró-isolamento, será o quarto a assumir o comando da pasta desde o início da pandemia, há um ano.

Ao escolher o cardiologista, Bolsonaro segue uma indicação feita pelo senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ), seu filho mais velho, após a recusa da médica Ludhmila Hajjar, que era o nome preferido do Centrão e de ministros do Supremo Tribunal Federal, muitos dos quais foram seus pacientes.

Horas antes de o próprio presidente anunciar a troca no pior momento da pandemia, Pazuello fez um desabafo em entrevista virtual na sede da pasta. “Eu não vou pedir para ir embora. Não é da minha característica. Isso não é um jogo, uma brincadeira (para dizer) ‘quero ir embora’. Isso é sério, a pandemia, é o Ministério da Saúde”, disse o general, que havia assumido o cargo em maio do ano passado.

A grande dúvida, agora, é se Queiroga terá autonomia para gerenciar a ação do ministério no enfrentamento da pandemia ou se repetirá o comportamento de Pazuello, que obedeceu às ordens sem questionamento. Embora afirme que seus auxiliares têm liberdade, na área da Saúde o presidente tem atuado como se ele fosse o ministro. Os outros médicos que passaram pelo posto, Luiz Henrique Mandetta e Nelson Teich, deixaram o cargo justamente por não aceitarem a interferência de Bolsonaro. 

A escolha de Queiroga foi anunciada por Bolsonaro após os dois se reunirem no Palácio do Planalto. “Já o conhecia há alguns anos. Não é uma pessoa que tomei conhecimento há alguns dias. Tem tudo, ao meu entender, para fazer um bom trabalho, dando prosseguimento ao que Pazuello fez até hoje”, disse o presidente ao falar com apoiadores em frente ao Palácio da Alvorada. “Paralelamente a tudo isso, o senhor Marcelo Queiroga, médico, também gestor, mas muito mais entendido na questão de saúde”, acrescentou. 

Queiroga foi o plano B de Bolsonaro. Só foi escolhido depois da desastrada operação feita para tentar convencer a médica Ludhmila Hajjar a aceitar o cargo. Chamada no domingo para conversar com o presidente no Palácio da Alvorada, a médica passou por uma espécie de sabatina de quase três horas comandada por Bolsonaro, pelo deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) e por Pazuello. O ministro já sabia que tinha sido rifado pelo presidente. 

Na conversa, Ludhmila passou por momentos constrangedores. Foi questionada sobre defesa de tratamento precoce, incluindo o uso de cloroquina, e ouviu críticas sobre o lockdown praticado pelos governadores. Discordou frontalmente da posição do presidente. Mas precisou falar até mesmo sobre sua posição em relação às armas, numa pergunta feita por Eduardo. 

Depois do segundo e rápido encontro que sacramentou a recusa, o governo não esperava que Ludhmila fosse à imprensa e contasse com riqueza de detalhes as razões da não aceitação do convite. A leitura dos aliados do presidente é de que a médica passou a ideia de que recusou o convite porque Bolsonaro seguia intransigente na defesa das suas práticas.

Ligações

O acerto com Queiroga foi mais fácil pela sua proximidade com o clã Bolsonaro. Ele é amigo de Flávio e já havia sido indicado para uma vaga de diretor na Agência Nacional de Saúde Suplementar, mas a nomeação estava parada no Senado. Também fez parte da equipe de transição do governo após a eleição de Bolsonaro, em 2018.

Na prática, a escolha técnica que Bolsonaro fez para o Ministério da Saúde passa por laços familiares. Os três principais nomes cotados para o cargo integram a diretoria da SBC. E lá são colegas de diretoria de Hélio Roque Figueira, sogro de Flávio. Nessa espécie de “clube do coração”, Queiroga é o presidente da SBC, Ludhmila é coordenadora de Ciência, Tecnologia e Inovações e Figueira é coordenador de Assuntos Estratégicos. 

Mesmo elogiado pelo presidente na saída, Pazuello sabe que agora precisará lidar com as consequências de sua gestão. Suas ações são investigadas pelo Supremo Tribunal Federal, que apura seus atos e eventuais responsabilidades pela crise generalizada no sistema de saúde. Além disso, fora do ministério, o general perde o foro privilegiado e o caso vai para a primeira instância.

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Caro leitor,

a crise sanitária, as críticas à gestão de Jair Bolsonaro do combate à covid-19 e a decisão do ministro Edson Fachin de anular as sentenças que condenaram o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva reacenderam em generais desvinculados de Jair Bolsonaro o receio do retorno da esquerda ao poder. Alguns procuram se afastar do estigma de terem apoiado um governo que a oposição ora compara ao de Chaves, o coronel que governou a Venezuela, ora ao de outro militar, o general Leopoldo Galtieri, da Argentina.

Jair Bolsonaro
O presidente Jair Bolsonaro durante sua 'live' semanal nas redes sociais na quinta, dia 11 Foto: Reprodução/Facebook

O prócer do Exército argentino foi responsável por uma das maiores desmoralizações armadas do século passado: a derrota na Guerra da Malvinas. Esse desastre nacional retirou os militares da política do país, depois de a terem dominado por mais de 50 anos, de forma quase ininterrupta. Era 1982. Galtieri lançou mão de uma aposta: a invasão das Ilhas Falkland galvanizaria o país, unindo a nação vizinha em torno de seu governo. Não contava com a resposta britânica. Assim como os coronéis gregos não esperavam a reação turca quando, em 1974, resolveram se envolver na política cipriota.

Na análise dos descontentes com o governo, Bolsonaro e os generais que o apoiam criaram as condições para a crise quando trataram as decisões da Saúde como se nelas houvesse espaço para palpiteiros desinformados e inconsequentes. Nomearam um general amigo, paraquedista como Bolsonaro e tantos outros do Planalto, para cuidar do desafio. A manobra do grupo de amigos da Brigada Paraquedista parecia imaginar que o protagonismo de Eduardo Pazuello daria o crédito pela vitória sobre a pandemia a um general, inaugurando-lhe  – quem sabe? – um futuro político, como senador ou governador. 

Faltou combinar com o vírus. O Sars-Cov-2 não perdoou o descaso bolsonarista com a doença. Não são poucos os oficiais que se queixam do fato de que mantém em suas unidades protocolos rigorosos de segurança sanitária – ignorados no Planalto pelo presidente e seu entourage. Após um ano de pandemia, dificilmente, cada militar não conhece alguém – familiar ou não – que tenha sido atingido de forma grave pela doença.

Muitos tiveram colegas, amigos e familiares mortos; outros que sobreviveram ao coronavírus estão sequelados, com as perdas parciais da audição, do olfato ou do paladar, além do comprometimento da capacidade pulmonar e de locomoção. O coronel Ubiratan Ângelo, ex-comandante da PM do Rio, perdeu 70% da audição após passar 47 dias internado em razão da covid. Existe quem entrou em coma e dele não saiu até hoje. No Exército, entre os militares da ativa, o total de mortos é de cerca de 40. Mas quem suporta o maior peso da pandemia são os seus 77 mil homens da reserva.

Foi o caso do coronel Fanoel Santos, cavalariano da turma de 1981 da Academia Militar das Agulhas Negras. Ele é lembrado por seus ex-alunos do Centro de Preparação de Oficiais da Reserva (CPOR), de São Paulo, como um instrutor  respeitado, duro, mas que estava sempre ao lado deles nos acampamentos e sabia o que estava fazendo. Com chuva ou frio, motivava a todos em suas “voltas pelo mundo”, da sede do CPOR à marginal do Tietê até retonar ao quartel, em Santana. “Ele era um cara que dava a cara a bater. Isso é uma tristeza para todos que o conheceram”, contou o jornalista Wilson Baldini Júnior, repórter do Estadão que teve Fanoel como seu instrutor em 1986. 

Fanoel lutava contra a covid-19 desde dezembro. Tinha 62 anos e apoiava Bolsonaro. A doença o levou há uma semana. Há mortos e feridos aos borbotões pelo País e um general na Saúde e um capitão no Planalto que não visitam os hospitais para agradecer aos médicos e levar conforto aos doentes. Até o general Patton – aquele que esbofeteou um soldado com shell shock e foi interpretado no cinema por George C. Scott – visitava enfermarias para honrar seus heróis. E quem enfrentou o vírus, como pedia o presidente? Que palavra receberam do presidente? Um ‘e daí’? Um ‘eu não sou coveiro’. Eles merecem indiferença? Um líder não pode fazer pouco da vida de seus compatriotas. 

Apoiadores de Bolsonaro lotam ruas, festas e praias para depois encher hospitais. Ocupam os mesmos leitos que tratam de quem se contaminou no trabalho ou pelo contato familiar. Ao ver o presidente comparecer de máscara a uma reunião no Planalto, na quarta-feira, um general ouvido pela coluna comemorou. Pensou que, talvez, a novidade sinalizasse para uma Presidência que procuraria a moderação, a fim de recuperar apoios que ameaçam cair no colo de sua nêmesis, o petista Lula. Sua ilusão durou algumas horas. A reação de Eduardo Bolsonaro ao aconselhar um uso heterodoxo das máscaras desvelou outra vez a natureza do governo. É conhecido o brocardo: o fruto não cai longe da árvore. 

Se os militares sabem o que esperar de um governo Bolsonaro – aumentos salariais, verbas blindadas, diretorias de estatais e prestígio –, as incertezas sobre o seu futuro fazem com que se interessem sobre o que pensam as outras forças políticas que disputarão com o presidente a eleição de 2022. No PSDB, encontram a defesa da criação de uma Guarda Nacional, o que levaria ao afastamento das Forças Armadas de parte das operações de Garantia de Lei e Ordem. Fernando Henrique Cardoso também já deixou claro que considera um privilégio a manutenção da integralidade e da paridade nas aposentadorias.  

E o PT? Em artigo recente, o ex-deputado federal José Genoino afirmou que não “há como separar as Forças Armadas da catástrofe que é o governo Bolsonaro”. Ele defendeu a introdução de uma regra de quarentena  para que militares possam ocupar cargos públicos – a medida seria extensiva a juízes e promotores. Ela impediria, por exemplo, não só que Pazuello fosse ministro ainda sendo general da ativa, mas o obrigaria a estar um certo tempo na reserva antes de ocupar a função. A medida encontra apoio de outros líderes do partido, como o ex-governador mineiro Fernando Pimentel

Não só. Genoino defende a adoção do modelo americano, com cada Força tendo um chefe de Estado-Maior subordinado ao ministro da Defesa, e a criação de uma Guarda Costeira e de uma polícia de fronteiras – como nos EUA –, para retirar as Forças Armadas das ações de Garantia de Lei e Ordem. Há ainda receios entre os petistas de que Bolsonaro se radicalize diante da perspectiva de derrota para um candidato do centro ou de esquerda em 2022. O próprio presidente reforça esse temor, como o leitor viu no editorial Nem o Diabo, publicado na edição de domingo do Estadão.

A crise na Saúde pode não ser suficiente para derrotar Bolsonaro. O desastre militar fez Galtieri perder o poder. Entregar a cabeça de Pazuello para se salvar do pesadelo que seu nome evoca não fará diferença para um presidente que não sabe a distinção entre comandar e governar. É verdade que a retirada do general da Saúde agradaria aos colegas que se incomodam com sua presença no ministério –há semanas já havia até no Planalto quem reconhecesse o erro do governo com as vacinas. Mas isso não encerra a novela, assim como o torpedeamento do cruzador Belgrano não concluiu o drama das Malvinas. 

É que Bolsonaro continuará à frente de um governo sem propor nada para deter o vírus que ameaça os brasileiros, além da vacinação atrasada. Resta saber se os generais vão acompanhar o presidente até o fim, apoiando tratamentos sem eficácia científica comprovada e o boicote ao distanciamento social e ao uso de máscaras. O erro nas vacinas causou demora na imunização, abrindo espaço para  milhares de novas mortes. Já são quase 300 mil. Não há ministro novo que possa remediá-las. O cardeal Richelieu dizia ser preciso ouvir muito e falar pouco para se agir bem no governo. Definitivamente, este não é o caso de Bolsonaro.

*Marcelo Godoy é jornalista formado em 1991, está no Estadão desde 1998. As relações entre o poder Civil e o poder Militar estão na ordem do dia desse repórter, desde que escreveu o livro A Casa da Vovó, prêmios Jabuti (2015) e Sérgio Buarque de Holanda, da Biblioteca Nacional (2015).


Pedro Doria: Caso da ex-futura ministra da Saúde mostra como opera a rede bolsonarista

O episódio que expôs a médica Ludhmila Hajjar à sede de sangue nas redes sociais de direita ilustra como o lado raiz do bolsonarismo opera. Após a onda de cancelamento digital a qual foi submetida, Hajjar vai informar ao presidente Jair Bolsonaro que não aceitará o convite que lhe foi feito para assumir o Ministério da Saúde, conta Lauro Jardim. Mas até esta sua decisão, vale retomar o que ocorreu.

A notícia de que o ministro Eduardo Pazuello estava de saída já circulava quando Hajjar chegou domingo a Brasília, no início da tarde, para se encontrar com o presidente no Palácio do Alvorada. Ela estava conversando com Bolsonaro quando o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, se manifestou publicamente no Twitter defendendo sua indicação para o cargo.

E foi durante a conversa, também, que, numa onda, começaram a pipocar, a partir de perfis bolsonaristas, imagens de Hajjar com o ex-presidente da Câmara Rodrigo Maia, com o ministro do Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes, o vídeo de uma live no Instagram em que ela conversava com a ex-presidente Dilma Rousseff, e o áudio, que tudo indica ser falso, no qual, ainda no início da pandemia, a médica teria chamado o presidente de “psicopata”.

Esta onda não acontece simultaneamente sem ser planejada. É preciso fazer a pesquisa das imagens, o que leva tempo e exige quantidade de pessoas dedicadas nos sites de busca. O áudio, que teria circulado por WhatsApp, é ainda mais difícil de ser localizado. E, se falso, como garante a médica, precisa ser fabricado. O nome da cardiologista, sugerido pelo Centrão como resposta do governo ao discurso pró-ciência do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, não podia ser recusado de bate-pronto. Era preciso criar uma situação que o tornasse inviável.

Foi o que as redes que o presidente controla fizeram. E fizeram num momento em que ela, reunida com o próprio Jair Bolsonaro, não poderia se defender.

O método de fritura agressiva tem consequências políticas que, com o desgaste do governo neste momento agudo da pandemia, se tornam maiores. O presidente da Câmara dos Deputados se expôs em defesa da cardiologista. Ali está um recado de como Bolsonaro deseja construir o relacionamento com o Centrão. Se não gostar de um dos nomes sugeridos, vai trabalhar para uma humilhação pública. Indicados pelo Centrão, em alguns casos, poderão ver a citação de seus nomes como um presente de gregos para troianos — não sinal de prestígio, mas uma maldição que pode lhes custar caro em suas carreiras.

Só que Bolsonaro precisa mais do Centrão do que o Centrão de Bolsonaro. O método é, politicamente, suicida.


Folha de S. Paulo: Evangélicos liderados por Malafaia vão a Bolsonaro para dar recado anti-Lula

A ideia dos líderes religiosos é oferecer apoio espiritual ao presidente em um período turbulento do país

Anna Virginia Balloussier, Folha de S. Paulo

Silas Malafaia checa o Grupo Aliança, que reúne no WhatsApp nomes conhecidos do pastorado nacional. É quinta (11), dia seguinte ao primeiro discurso que Lula (PT) deu após saber que, ao menos por ora, nenhum empecilho judicial o impede de concorrer à Presidência em 2022.

O pastor da Assembleia de Deus Vitória em Cristo tinha compartilhado um vídeo em que desanca a decisão do ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal, de anular as condenações da Lava Jato contra o ex-presidente.

Estevam Hernandes, líder da Renascer em Cristo e idealizador da Marcha para Jesus, responde com emojis de aplausos, mesma reação de Abner Ferreira, à frente de uma das maiores alas da Assembleias de Deus, a Madureira, e Rina, apóstolo da Bola de Neve.

Malafaia tritura as chances de o petista se reaproximar de pastores que, como ele, foram aliados seus no passado. "Lula está ferrado com os evangélicos!"

Nesta segunda-feira (15), boa parte daquele grupo será recebida no Palácio do Planalto por Jair Bolsonaro: Malafaia, Estevam, Abner, Rene Terra Nova (pastor influente no Norte) e outros. A ideia, dizem, é oferecer apoio espiritual à mais alta autoridade política num período turbulento do país.

Também será uma amostra da resistência que Lula terá com líderes que, exceto um ou outro, alinharam-se em peso ao PT em eleições anteriores.

O mau humor aumentou com a fala do ex-presidente na quarta (10). Um trecho em particular foi mal digerido: "Muitas mortes poderiam ter sido evitadas, muitas mortes. E que o papel das igrejas é ajudar para orientar as pessoas, não é vender grão de feijão ou fazer culto cheio de gente sem máscara, dizendo que tem o remédio pra sarar".

Desde o começo da pandemia, a maioria das denominações argumenta que templos, por ofertarem socorro espiritual em tempos difíceis, devem permanecer abertos, seguindo o protocolo sanitário.

"Lava a boca pra falar da igreja, cachaceiro!!!", publicou em suas redes sociais o deputado Sóstenes Cavalcante (DEM-RJ), integrante da tropa de choque de Malafaia no Legislativo. O post ecoou a irritação desses líderes com Lula, que em janeiro de 2020 orientou o PT a melhorar a comunicação com evangélicos.

"Quero até fazer discussão com eles. Quero mostrar quem foi o presidente que mais os tratou com respeito", afirmou à TV do Trabalhador. Na mesma entrevista, brincou que teria até "jeitão de ser pastor, tô de cabelo branco".

Esse canal, contudo, fechou. Ao menos por enquanto.

"A grande maioria dos que apoiaram Lula no passado sofreram grande decepção diante de tanta corrupção e também com as medidas ideológicas que vão contra os nossos princípios", diz o apóstolo Cesar Augusto, fundador da Igreja Fonte da Vida e parte da comitiva que estará com Bolsonaro —alguém que, em sua visão, "soube interpretar os anseios do cidadão comum brasileiro, de todos que valorizam a família, o patriotismo e a fé alheia".

A projeção dos votos evangélicos no segundo turno de 2006, quando Lula venceu Geraldo Alckmin (PSDB), ilustra como a predileção pelo petismo já imperou nesta parcela religiosa do eleitorado: seis em cada dez evangélicos optaram por reelegê-lo naquele ano.

A maré mudou em 2014. Aécio Neves (PSDB) obteve uma leve preferência do grupo contra Dilma (53% a 47%), segundo o Datafolha. O ponto de inflexão começava aí para engatar de vez na vitória de Bolsonaro, quando cerca de 70% dos evangélicos o preferiram a Fernando Haddad (PT).

"Pela primeira vez, quase 100% dos líderes cristãos importantes apoiaram um único candidato. Há uma pequena ala que, independentemente do cenário, estará alinhada aos pensamentos dos partidos de esquerda e consequentemente com Lula", diz Rina, da Bola de Neve.

"Os demais que apoiaram Lula antes não o fizeram por convicção política ou cumplicidade ideológica. Talvez por conveniência, talvez por ignorância."

Para ele, "o fenômeno que ocorre hoje surgiu do fato de estar muito claro e evidente, para esta mesma liderança, a abismal incompatibilidade entre a ideologia marxista e os princípios e valores cristãos".

Em 2018, um áudio de Rina circulou no WhatsApp como se fosse do padre Fábio de Mello. Dizia o pastor que, "quando vejo quem são os inimigos do Bolsonaro, eu falo 'eu tô escolhendo o cara certo para votar'".

À Folha Rina afirma que, desde o resgate das eleições diretas, o Brasil evangélico nunca contou "com um candidato realmente de direita". Até 2018.

pastor Samuel Câmara, também aguardado em Brasília, diz que ladeou com Lula até sua reeleição. Não mais. É mais flexível do que colegas sobre as chances do petista se reabilitar com a liderança evangélica: "Irreversível ou impossível, não. Difícil, sim".

Câmara é presidente da chamada Igreja Mãe das Assembleias de Deus no Brasil, a sede pioneira da denominação, fundada há 110 anos, em Belém (PA).

Questionado se vê alguma margem para conciliação com Lula, responde com um provérbio bíblico: "É mais difícil ganhar de novo a amizade de um amigo ofendido do que conquistar uma fortaleza".

Petistas reconhecem a robustez eleitoral dos evangélicos, mas se dividem sobre como agir. Por um lado, alguns lembram que a maioria desses líderes que hoje defenestram o partido já foram aliados, assim como se juntaram a todos os governos pós-redemocratização.

Ou seja, estariam onde o poder está. E não daria para abrir mão dos fiéis que os escutam —Malafaia sozinho acumula 7,5 milhões de seguidores nas três principais redes sociais no Brasil, não muito atrás dos 9 milhões que Lula soma.

Por outro lado, há quem analise que a ruptura com o PT foi violenta demais para fazer as pazes agora. "Chance zero", diz Marco Feliciano (Republicanos-SP), deputado com trânsito no gabinete presidencial.

Em 2010, ele exaltava Lula como "alguém que desperta a esperança no coração do povo". Hoje diz que não repetirá o erro. "Os evangélicos estarão com Bolsonaro, pois estamos certos de três coisas: a pauta de perversão dos costumes continuará paralisada, teremos um ministro evangélico no Supremo Tribunal Federal e a embaixada brasileira estará em Jerusalém."

As duas últimas são promessas feitas a evangélicos que ainda não se concretizaram ainda no governo atual. Já a agenda conservadora caminha a passos lentos no Congresso.

Feliciano encara como certa a polarização entre Lula e Bolsonaro em 2022. "Todas as demais candidaturas viraram pó, pois é impossível que os dois não estejam no segundo turno."

Malafaia vê o cenário com mais cautela: "[Sergio] Moro pode ser um nome a despontar . A política é muito dinâmica e dá muitas voltas", diz o pastor que, em 2002, chegou a aparecer na propaganda eleitoral de Lula.


Mônica Bergamo: Ludhmila diz a Bolsonaro que não aceita Ministério da Saúde

Ministros e parlamentares defendiam o nome dela, mas não houve consenso

A cardiologista Ludhmila Hajjar comunicou na manhã desta segunda (15) ao presidente Jair Bolsonaro que não aceita o convite dele para comandar o Ministério da Saúde.

Os outros nomes cotados para o cargo agora passam a ser os do cardiologista Marcelo Queiroga e o do deputado federal Luiz Antonio Teixeira Jr. (PP-RJ), o "Doutor Luizinho". Ele precise a comissão especial do Congresso que acompanha a Covid-19.

Ludhmila se reuniu no domingo (14) por quase três horas com o presidente. O atual comandante da pasta, Eduardo Pazuello, participou do encontro, em que a médica foi consultada se aceitaria suceder o general.

Depois que a coluna divulgou que os dois conversavam, Ludhmila passou a ser alvo de ataques ferozes de bolsonaristas no próprio domingo. Eles não concordam com o apoio dela a medidas de isolamento social, à vacinação em massa de brasileiros e à constatação de que até hoje nenhum estudo confirmou a eficácia de medicamentos como a cloroquina no tratamento da doença.

Foram divulgadas também declarações críticas dela à condução da epidemia no país e um vídeo de uma live que ela fez com a ex-presidente Dilma Rousseff, além de um suposto áudio em que a médica teria se referido a Bolsonaro como "psicopata". Ela nega a veracidade do áudio.

Bolsonaro, por sua vez, resiste a aderir a um discurso a favor do isolamento. E segue insistindo que o tratamento precoce funciona.

Ministros, auxiliares do presidente e políticos que defendiam a cardiologista no Ministério da Saúde tentaram reverter a situação nesta manhã. Em vão.

Havia uma crença de que ela acabaria aceitando o convite, por ter se entusiasmado, num primeiro momento, com a possibilidade de ir para o governo quando foi convidada para conversar com Bolsonaro.

Ela teria projetos e clareza do que acredita ser necessário fazer para frear a epidemia e evitar um colapso geral no Brasil. Os ministros acreditam que o sonho de ser ministra pode acabar pesando mais do que as divergências abissais que ela tem com o presidente em relação ao combate à Covid-19.

No diálogo de domingo, todos os temas da epidemia da Covid-19 foram tratados, especialmente a necessidade de apoio a medidas duras de isolamento social para frear a epidemia do novo coronavírus, a urgência da vacinação em massa da população brasileira e tratamentos precoces, defendidos por Bolsonaro mas ainda não confirmados por estudos científicos.

A médica tem sido uma defensora da necessidade de vacinação urgente, participou de estudos que desmentiram a eficácia de algumas drogas e apoia o isolamento social.

Não houve, no encontro, consenso sobre como o Ministério da Saúde poderia passar a tratar desses temas e gerir as políticas para o combate à Covid-19.

A conversa começou tranquila. Mas passou a ficar tensa na medida em que não se chegava a um consenso. E terminou de forma inconclusiva. Bolsonaro e Ludhmila ficaram de se encontrar novamente nesta segunda (15).

Bolsonaro segue inflexível em suas críticas a medidas de isolamento social. E não dá sinais de que vai arrefecer na defesa de tratamentos precoces.

A decisão da cardiologista de não aceitar o convite já foi comunicada por ela a políticos que a apoiam.

O nome dela era defendido de forma enfática pelo presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, por outros parlamentares, por diversos ministros do governo Bolsonaro e por magistrados do STF (Supremo Tribunal Federal).

​Ludhmila é cardiologista e se especializou no tratamento da Covid-19.

Na unidade da rede Vila Nova Star em Brasília, ela estreitou relacionamento com dezenas de autoridades que se trataram da Covid-19.

A cardiologista atendeu, por exemplo, o próprio Pazuello quando ele foi infectado pelo novo coronavírus.

Tratou também o atual presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, o procurador-geral da República, Augusto Aras, o ministro Fábio Faria, das Comunicações, o ministro Tarcísio de Freitas, da Infraestrutura, ministros do STJ (Superior Tribunal de Justiça), o ministro Dias Toffoli quando presidia o Supremo, e também os ex-presidentes da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, e do Senado, Davi Alcolumbre.

Caso Ludhmila tivesse aceitado o cargo, reforçaria o discurso da necessidade de vacinação em massa no Brasil. E deixaria em segundo plano qualquer tipo de propaganda de tratamento precoce da doença —​até hoje, nenhuma medicação testada contra a Covid-19 e acessível ao grande público teve resultados efetivos confirmados por estudos definitivos.

Os ataques de bolsonaristas à cardiologista no domingo (14) irritaram ministros e autoridades que apoiam o presidente. Eles acreditavam que a médica poderia imprimir um novo tom e reverter o desgaste do governo, mal avaliado na condução da epidemia.

Ludhmila é graduada em medicina pela Universidade de Brasília (Unb), doutora em Ciências-Anestesiologia, professora associada de cardiologia da Faculdade de Medicina da USP e já coordenou a UTI cardiológica de diversos hospitais de ponta do país.

Outros nomes estão no páreo para o cargo, como o do cardiologista Marcelo Queiroga, que também foi chamado para conversar. Ele é presidente da Sociedade Brasileira de Cardiologia (SBC).

O deputado federal Luiz Antonio Teixeira Jr. (PP-RJ), que é conhecido como "Dr. Luizinho", também é lembrado e tem chance de ser escolhido por Bolsonaro.

Ele é aliado do presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira. Preside a Comissão Especial da Covid-19 no parlamento e assumiu nesta semana a Comissão de Seguridade Social e Família da Câmara.

Ele é médico e foi secretário da Saúde do Rio de Janeiro.

Marcelo Queiroga é formado pela Universidade Federal da Paraíba e fez residência médica no Hospital Adventista Silvestre, do Rio de Janeiro, além de treinamento em Hemodinâmica e Cardiologia Intervencionista na Beneficência Portuguesa, em SP.

Sempre teve atuação intensa em entidades representativas dos médicos, como a Associação Médica Brasileira (AMB) e na Sociedade Brasileira de Hemodinâmica e Cardiologia Intervencionista (SBHCI), que também presidiu.


Oliver Stuenkel: Brasil fora da nova construção da ordem global pós-coronavírus

Visto como ameaça tanto no âmbito ambiental quanto no da saúde global, o país vive colapso inédito da sua reputação e influência

Cada geração vivencia momentos históricos que transformam a política global, fechando uma era ou abrindo um novo ciclo geopolítico. Eventos como o colapso da União Soviética e o fim da Guerra Fria, os atentados do 11 de setembro, a entrada da China na OMC e a crise financeira global de 2008 rearranjaram o tabuleiro global, tanto dando mais espaço a países que conseguiram, por inteligência estratégica ou mera sorte, se adaptar melhor à nova realidade, quanto reduzindo a influência daqueles que não souberam aproveitar o novo contexto. Em momentos nos quais o mundo está em transição, países com lideranças bem-preparadas podem aproveitar para galgar posições, enquanto outros correm o risco de perder relevância.

Com a pandemia do novo coronavírus não será diferente, e já se percebe que alguns países mostram-se mais ágeis e resilientes no combate à covid-19 do que outros. Enquanto Tailândia, Vietnã e Nova Zelândia conseguiram evitar elevadas taxas de infecção, outros, como China e Rússia, estão aumentando sua influência global por meio da “diplomacia da vacina”, oferecendo doses a países em desenvolvimento mesmo antes de completar a vacinação de suas próprias populações.

O Brasil, pelo que tudo indica, é um dos grandes perdedores geopolíticos do momento atual: não apenas saiu da lista das 10 maiores economias do mundo durante a pandemia, mas também vive um colapso inédito de sua imagem diante da estratégia negacionista de seu presidente, abalando a confiabilidade que o país tinha entre seus tradicionais aliados. A reputação brasileira de país com um dos maiores e melhores sistemas públicos de saúde no mundo em desenvolvimento, arduamente construída ao longo de anos, se desfez, ofuscada por um presidente que ocupa regularmente manchetes dos maiores jornais do planeta por seus ataques contra a ciência.

Ainda é cedo para se ter uma noção clara de todas as consequências geopolíticas da pandemia, mas algumas tendências já se destacam. Três questões merecem atenção.

Em primeiro lugar, não há dúvidas de que a saúde global se consolidará como um tema-chave no âmbito multilateral, seja pelo fortalecimento da Organização Mundial da Saúde (OMS), seja pela criação de uma estrutura nova para monitorar o surgimento de futuras pandemias e o desenvolvimento e a distribuição de outras vacinas. Além de se buscar prevenir e combater o surgimento de um novo vírus, cresce a preocupação com as chamadas superbactérias, que resistem a antibióticos e poderiam, segundo estudo encomendado há alguns anos pelo governo britânico, matar milhões de pessoas e “levar a medicina à era das trevas”, como disse Jim O’Neill, coordenador da pesquisa e criador do termo BRICS. Tanto os principais fornecedores de vacinas quanto países que responderam melhor a pandemia devem liderar esse debate. O Brasil, que é visto como uma ameaça global e um possível celeiro de variantes por não controlar a transmissão do vírus, dificilmente terá voz.

Em segundo lugar, uma das tendências mais transformadoras da política global nos próximos anos será a influência do enfrentamento da mudança do clima na política externa das grandes potências —inclusive da China. O atual debate sobre o ecocídio ser ou não considerado um crime internacional, como é o caso do genocídio, é apenas o princípio de uma transformação que mudará a maneira como países pensam seus interesses nacionais e as principais ameaças que enfrentam. Enquanto lideranças políticas brasileiras e das Forças Armadas do Brasil se destacam pelo negacionismo, as Forças Armadas de outros países discutem o tema de maneira frequente há anos —inclusive porque o desmatamento pode aumentar o risco do surgimento de novas pandemias. Da mesma forma que no debate sobre saúde global, o Brasil corre o risco de ser visto como ameaça pela comunidade internacional, reduzindo a possibilidade de tornar-se interlocutor qualificado, consolidando, assim, seu papel de pária.

A terceira grande tendência política no mundo pós-covid-19 será a chegada da chamada guerra tecnológica —a competição tecnológica global entre EUA e China, que se tornou mais visível no Brasil depois de o Governo Bolsonaro sofrer pressão dos EUA para excluir a empresa chinesa Huawei entre as opções de fornecedores na construção da rede 5G. A pressão norte-americana foi seguida de alertas de Pequim, para a qual tal posição seria interpretada como um ato hostil ao governo chinês. Gerenciada de maneira perspicaz, a crescente atuação chinesa na América Latina poderia ajudar o Brasil na gestão da relação com os EUA e vice-versa. Afinal, sempre convém ter alternativas. Porém, como as tensões entre Pequim e Washington no âmbito tecnológico podem levar à criação de duas esferas tecnológicas, uma liderada pelos EUA e outra pela China, manter relações amistosas demandará sofisticação diplomática por parte do Brasil. O Governo Bolsonaro, no entanto, escolheu o pior dos mundos: depois de Bolsonaro se posicionar publicamente a favor dos EUA, viu-se obrigado a permitir, de última hora, a participação da Huawei na corrida pela rede 5G quando aumentou a pressão pública por ganhar acesso a vacinas chinesas contra a covid-19. Tanto em Washington quanto em Pequim, observadores ficaram com a impressão de que a atuação externa do governo Bolsonaro não se baseia em um planejamento estratégico, mas é curto-prazista e imprevisível. O presidente conseguiu a proeza de ter saído do episódio com a relação abalada tanto com Washington quanto com Pequim.

Em meio a essas transformações que moldarão os fundamentos da era pós-pandemia, está nascendo uma ordem global diferente, produto de decisões das principais lideranças da atualidade. Enquanto os EUA pagavam um preço desproporcional por ter uma liderança incapaz de gerenciar a pandemia até recentemente, a atual administração já está conseguindo conter os danos, implementando um dos melhores programas de vacinação do mundo. No caso brasileiro, a troca do atual presidente em 2022 seria o primeiro passo para começar a controlar o prejuízo e reverter o colapso inédito da reputação e influência brasileira no mundo.

Oliver Stuenkel é doutor em Ciências Política e professor de Relações Internacionais na FGV em São Paulo. É o autor de O Mundo Pós-Ocidental (Zahar) e BRICS e o Futuro da Ordem Global (Paz e Terra). Twitter: @oliverstuenkel


Monica de Bolle: Os desafios do Brasil aquém e além da pandemia

Ou se aceita que a escolha de gastar para salvar vidas requer abrir mão do que se reconhece como sendo fiscalmente responsável, ou se permite o alinhamento com bolsonaristas

Os desafios a que me refiro no título deste artigo não são nem os da saúde pública, que são imensos, nem os econômicos, também enormes. Em momento sombrio da história brasileira, dou um passo para trás em um esforço para perceber mais claramente os desafios que a sociedade brasileira já havia criado para si com a eleição de Bolsonaro em 2018 e que foram agravados pela pandemia. Podemos dividir o país em dois campos, como é mais habitual: de um lado, figuram os bolsonaristas; de outro os que a elem se opõem. Mas vale tentar ir além do binarismo, para contemplar nuances que já eram visíveis em 2018 e ficaram mais explícitas no decorrer do último ano.

Há os bolsonaristas. Eles possuem uma linguagem própria, e este elemento merece atenção porque o bolsonarismo se define menos por uma ideologia do que por estratégias de comunicação que ou apresentam a violência ou repõem a sua potencialidade. Não menos importante, o bolsonarismo é antipluralista. É antipluralista em relação à vida social, como fica claro quando contemplamos a sua relação com minorias; na política, como podemos ver, sugere a ilegitimidade de seus adversários, desde a sua perspectiva; nos valores, o que notamos quando atentamos para os seus operadores (”cidadão de bem”, “humanos direitos”, “a família brasileira”) e no plano das ideias. Falas bolsonaristas, como são as do presidente, deixam ver práticas patriarcais longamente constituídas. Para ilustrar com uma manifestação recente: contestando medidas que governadores tentam implementar, o presidente afirmou em uma mídia social que “atividade social é toda aquela necessária para um chefe de família levar o pão dentro de casa”. O viés do bolsonarismo também é nitidamente colonialista, como se nota em sua relação com povos indígenas, com esboços de defesa ou justificação do desmatamento em nome do “desenvolvimento”.

Se o bolsonarismo é antipluralista, o antibolsonarismo seria pluralista. compreende o antirracismo, o feminismo e sua luta mais que secular no Brasil pelos direitos das mulheres, a igualdade de todos os seres independentemente de gênero ou orientação sexual, o rechaço à desigualdade e a contestação de uma democracia universal na forma, mas restrita na vida, em que negros e pobres são tratados como não-cidadãos, ou cidadãos de segunda classe. O pluralismo percebe o traço autoritário na operação de uma lógica absolutista e que instrumentaliza a razão em causa própria. A razão assim instrumentalizada é cerceada. Ser pluralista, ao contrário, é manter-se aberto aos conflitos trazidos pela abertura ao real e os questionamentos dos pressupostos que a realidade suscita. O pluralismo supõe uma abertura que é antagônica a tudo o que é estático.

O antagonismo do pluralismo ao que é estático ficou em evidência maior na pandemia, um evento cujo ineditismo não permite que permaneçamos apegados a conhecimentos estabelecidos e formas de ordenar o mundo informadas por experiências passadas. A pandemia fez ver. Fez ver o tamanho da desigualdade, a inadequação da política econômica, o desconhecimento científico da população, o sofrimento, a vida e a morte. Esses aspectos da realidade brasileira ficaram tão visíveis, tão despidos de construções e fantasias, que o inaceitável ―para o campo pluralista― passou a ser permitir que o mundo não fosse visto por determinados grupos da sociedade.

Mas, nas fraturas da sociedade brasileira, há ainda outro grupo: aquele formado por pessoas que se declaram antibolsonaristas, mas, ao encontro com o real, não resistem a se agarrar a um conhecimento estabelecido, mantendo intactos os seus pressupostos, sem reexaminá-los. É o que chamo, hoje, de relação absolutista com a racionalidade, que faz certa razão aparecer como antipluralista. Esses atores políticos percebem a importância das causas do pluralismo e as abraçam. Porém, o antipluralismo embutido na forma como entendem a relação de especialistas com o público torna algumas de suas práticas compatíveis com o bolsonarismo. Sendo preciso dar-lhes um nome, proponho chamá-los de “anti-anti”.

Eles estão presentes na economia, mas não só: os antibolsonaristas e antipluralistas aparecem à luz do público, eventualmente. São pessoas bem intencionadas, de diferentes gerações, que defendem causas a meu ver justas, tais como a renda básica, a redução da pobreza e das desigualdades, mas que ao mesmo tempo não se dão conta de que defendê-las pode implicar abrir mão de certas crenças e pressupostos. Na economia, o pressuposto mais hostil a dúvidas, e proveniente do conhecimento estabelecido a partir de experiências passadas, é o de que a responsabilidade fiscal é um valor inegociável, ainda que a realidade o exija, em uma crise humanitária e com um governo que atua por ação e omissão para deixar morrer e fazer morrer. No mundo dos anti-anti, a defesa da igualdade de acesso e o inevitável choque com aquilo que consideram fiscalmente responsável estão em planos distintos, correm em paralelo. Mas a realidade não permite que se opere em planos paralelos. Ao contrário, ela coloca esses planos em rota de colisão: ou se aceita que a escolha de gastar para salvar vidas requer abrir mão do que se reconhece como sendo fiscalmente responsável, ou se permite o alinhamento com bolsonaristas.

Evidente na economia, tal absolutismo é difuso. No jornalismo opinativo ―nos editoriais ou nas colunas de opinião― a construção de um mundo que não tem relação com a realidade está igualmente presente. Constroem-se argumentos para sustentar essa ou aquela tese com base em uma dissociação da realidade. Temas que tentam reconstituir uma realidade que deixou de ser com a pandemia dão a tônica à representatividade dos veículos de comunicação. Aceita-se de bom grado o absolutismo econômico, científico, ou seja lá qual for, ainda que se manifeste uma opinião contra o Governo, contra o presidente da República. A imprensa que se permite tratar o mundo real com demasiada maleabilidade, ou negligenciá-lo, para habitar esse outro construído valida o bolsonarismo sem querer fazê-lo: é anti-anti pelo que deixa ver, pelo que faz não ver.

Está posta, assim, a tragédia do Brasil atual: atores importantes da sociedade não enxergam, em suas construções e atitudes, pontes para a perpetuação do antipluralismo bolsonarista. Esses grupos preferem desqualificar aqueles que estão com os pés na realidade, tentando dar conta de um mundo repleto de fraturas, de descontinuidades, que requer novas ideias e o livre pensar, ou o que Hannah Arendt chamou de pensar sem corrimão. Preferem tudo isso a enxergar insuficiências e inadequações do conhecimento que nos foi legado. No limite, e nós nos encontramos em alguns limites, tornam-se facilitadores, conscientes ou desavisados, da franca decadência moral que marca um país que se recusa a chorar pelos seus mortos, seus doentes, seus destituídos.

Monica de Bolle é economista, PhD pela London School of Economics e especializada em medicina pela Harvard Medical School. É professora da Universidade Johns Hopkins, pesquisadora-Sênior do Peterson Institute for International Economics e mestranda em Imunologia e Microbiologia na Georgetown University.


O Estado de S. Paulo: Médica Ludhmila Hajjar diz a aliados que deve recusar convite para assumir Ministério da Saúde

Cardiologista tem visão oposta à de Bolsonaro sobre a resposta à covid-19; presidente defende medicamentos sem eficácia, como a cloroquina

Mateus Vargas, O Estado de S.Paulo

BRASÍLIA - A cardiologista Ludhmila Hajjar não deve se tornar a quarta chefe do Ministério da Saúde em plena pandemia. Após reunião com o presidente Jair Bolsonaro, na tarde de domingo, 14, a médica informou a autoridades próximas que acompanham as tratativas que deve recusar um convite para o cargo de ministra.

Na reunião, segundo estes interlocutores, ficou claro que Bolsonaro e Hajjar têm visões opostas sobre a resposta à covid-19. O presidente é um defensor de medicamentos sem eficácia, como a cloroquina, tratamento que a médica critica abertamente. Para aceitar o cargo, ela também tinha a intenção de montar uma equipe própria na pasta, mas o presidente mantém controle sobre as ações da saúde na pandemia.

As conversas sobre a substituição do atual ministro, Eduardo Pazuello, ganharam força no fim de semana. Hajjar recebeu apoio do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), e de outras autoridades do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Tribunal de Contas da União (TCU). Auxiliares do presidente viram a nomeação da cardiologista como uma chance de mudar a narrativa sobre a pandemia. O governo está sob pressão pela alta de mortes, explosão de internações e atrasos na campanha de vacinação.

Ainda são cotados para o cargo o deputado Dr. Luizinho (PP-RJ), aliado de Lira, e o médico Marcelo Queiroga, presidente da Sociedade Brasileira de Cardiologia (SBC). A leitura de uma autoridade que acompanha as discussões é que ambos devem receber apoio do Congresso e de auxiliares do presidente, mas podem parar no filtro de Bolsonaro ao cargo, pois também têm opiniões distintas às do mandatário sobre o combate à pandemia.

A saída de Pazuello da Saúde foi um dos pontos tratados em reunião de Bolsonaro com o próprio general, além dos ministros Braga Neto, da Casa Civil, Luiz Eduardo Ramos, da Secretaria de Governo, e Fernando Azevedo, da Defesa, no sábado, 13.

Para além da pressão do Congresso, a inviabilidade de Pazuello no cargo passa, ainda, pelas investigações do Supremo Tribunal Federal, que apura seus atos e eventuais responsabilidades pela crise generalizada no sistema de saúde. Ao deixar de ser ministro, Pazuello perde, inclusive, o foro privilegiado e o caso deverá ser encaminhado para a primeira instância da Justiça Federal.

Oficialmente, o governo deve alegar que Pazuello está cansado e que pediu para ser substituído. Em nota no fim da tarde de ontem, porém, o general disse que segue ministro e que não está “doente”: “Não estou doente, não entreguei o meu cargo e o presidente não o pediu, mas o entregarei assim que o presidente solicitar. Sigo como ministro da Saúde no combate ao coronavírus e salvando mais vidas”.


Luiz Carlos Trabuco Cappi: A relevância do senso de urgência

No Brasil, o mais previsível é que o imprevisível sempre pode acontecer

Um prognóstico coincidente entre os líderes do Congresso, parlamentares, equipe econômica e analistas aponta, desde já, como é atípico este 2021 – e não somente pela questão do ritmo da vacinação e a resistência da pandemia com as novas variantes da covid-19. Em declarações públicas, protagonistas da vida brasileira indicam que o ano legislativo deverá ter calendário curto, por conta das articulações antecipadas, e já iniciadas, para as eleições gerais de 2022.

Deputados e senadores voltarão seu foco para as bases em seus Estados e as negociações da formação das chapas para a sucessão presidencial passarão a ser o centro da preocupação dos partidos e classe política, gradualmente.

Essa previsão se sustenta no ritmo dos acontecimentos e no ciclo eleitoral natural, que coroa a democracia brasileira de dois em dois anos, com as eleições municipais e as eleições gerais acontecendo de forma intercalada. Trata-se, pois, de sermos realistas para esse cenário de limitações de calendário em relação às expectativas sobre reformas econômicas e de modernização do Estado brasileiro.

Entretanto, não se deve olhar essa combinação de presente e futuro imediato de maneira apressadamente pessimista.

Os congressistas, em trabalho articulado com a equipe econômica, podem fazer muito neste período concentrado de votações. O principal estímulo é a própria situação emergencial vivida pelo Brasil, que registrou PIB negativo de 4% em 2020, o maior tombo em 30 anos, tem 14 milhões de desempregados e vive o pior momento da pandemia.

As lideranças do Congresso demonstram clareza sobre o tamanho de sua responsabilidade perante a sociedade brasileira neste início de ano. O desejado senso de urgência, porém, ainda não se fez presente no conjunto do Congresso, como se viu na votação da PEC Emergencial e no encaminhamento do Orçamento da União.

Mas é preciso criar expectativas positivas em relação à pauta que pode definir a recuperação econômica, resumida em três pontos: vacinação intensa, reforma tributária e reforma administrativa.

Não há como acelerar o crescimento sem injetar confiança econômica. E tudo começa por meio de medidas legislativas novas, que permitam ao governo instrumentos para uma gestão eficiente das suas contas, e livrar a sociedade de amarras burocráticas e obrigações em excesso pelo pandemônio tributário atual.

A questão tributária e a falta de eficiência do setor público explicam o baixo investimento na economia, o que se refletiu nos dados de PIB dos últimos anos pré-pandemia. O crescimento patinou pouco acima do 1% de 2017 a 2019. Com o dado de 2020, o Brasil andou para trás e saiu da lista das dez maiores economias do mundo. 

Nenhum cenário é imune a crises – o lançamento de um amplo programa de vacinação em massa, igualitário, intenso e rápido, por exemplo, ainda é um desafio.

Não teremos projetos no feitio dos sonhos de todos, não devemos nos iludir. Mas apenas a sinalização de que é possível o início de uma nova etapa virtuosa para a economia pela aprovação desta pauta básica é um grande alento.

Bem aproveitados pelo Congresso, sem a tentação de sobrepor assuntos não econômicos que possam atrasar o andamento da agenda legislativa, esses próximos meses podem ser um atalho de muitos anos para o desenvolvimento e prosperidade do Brasil.

O período eleitoral promete trazer volatilidade aos mercados, como sempre acontece. Mas seu efeito será tanto menor quanto maior forem os avanços na pauta das reformas em 2021. É a garantia de maior estabilidade futura, tanto para o governo quanto para a oposição. Ou seja, uma vez bem encaminhadas as reformas fundamentais, a projetada antecipação do debate eleitoral não vai prejudicar a vida das empresas, os planos de investimentos, a criação de empregos e a atração de capital estrangeiro. 

E as eleições serão, outra vez, a festa imponente da democracia – com a economia direcionada para um novo ciclo de crescimento.

Porque, no Brasil, o mais previsível é que o imprevisível sempre pode acontecer.

*PRESIDENTE DO CONSELHO DE ADMINISTRAÇÃO DO BRADESCO 


Bruno Carazza: Mais próximo do que se imagina

Autonomia exige cautela de presidente do BC

No seu discurso de fênix na quarta (10/03), Lula disse não saber por que o mercado deveria ter medo de sua volta ao poder, diante de tudo o que ele e o PT fizeram pelo empresariado. Em resposta à repórter Cristiane Agostine, do Valor, porém, deixou explícita uma exceção: “Eu era e sou contra a autonomia do Banco Central. É melhor o Banco Central estar na mão do governo do que estar na mão do mercado. [...] A quem interessa essa autonomia? Não é ao trabalhador urbano, não é ao sindicalista, é ao sistema financeiro”.

Embora real, o risco de captura de órgãos reguladores por representantes de empresas é difícil de ser comprovado. Seguir os caminhos do dinheiro, mapeando doações de campanhas, ajuda bastante. Monitorar agendas públicas e verificar com quem eles se sentam à mesa também. Outra estratégia que costuma funcionar é observar o movimento das portas giratórias da administração pública, quando agentes do mercado são nomeados para cargos nas agências reguladoras e, depois de um tempo, retornam aos antigos empregadores.

O pesquisador David Finer, da Chicago Booth School of Business, deu um passo além. Utilizando a Lei de Acesso à Informação de Nova York, teve acesso a dados anônimos de mais de um bilhão de viagens de táxi ocorridas na maior cidade dos Estados Unidos entre 2009 e 2014, incluindo as coordenadas de GPS, data e horário do início e do fim de cada deslocamento.

Interessado em mapear o relacionamento entre funcionários do Banco Central americano e executivos das grandes instituições financeiras, Finer analisou cuidadosamente os padrões dos trajetos dos famosos táxis amarelos entre o prédio do FED, na 33 Liberty Street, e as sedes de gigantes como Bank of America, Citigroup, Goldman Sachs e Morgan Stanley. Lembrando que os encontros também podem se dar fora dos escritórios, o pesquisador incluiu no seu rastreamento as viagens que partiam de ambos os endereços para um terceiro destino (que poderia ser um restaurante ou um bar, por exemplo) num curto espaço de tempo.

Buscando minimizar o risco de vazamento de informações que podem abalar o mercado (e enriquecer muita gente), o FED impõe restrições a seus diretores e funcionários, como um período de silêncio em que são proibidas reuniões com o público externo e declarações à imprensa nos dias que antecedem os encontros do Comitê de Política Monetária (o FOMC, na sigla em inglês).

Após garimpar uma montanha de dados, Finer obteve evidências de que as movimentações entre as sedes do FED e dos bancos, ou de ambos para centros de lazer e alimentação, se intensificam na proximidade das datas em que as taxas de juros básicas são estabelecidas, particularmente no horário de almoço. Há também um aumento atípico nas corridas entre os mesmos destinos nas primeiras horas da madrugada após o encerramento do período de silêncio - o que sugere uma busca de integrantes do mercado por explicações sobre as decisões tomadas pela autoridade monetária.

Com uma metodologia inovadora, a pesquisa de David Finer aponta para a necessidade de se aprofundar os instrumentos para que a independência dos Bancos Centrais seja para valer e valha para ambos os lados - perante o governo e o mercado.

No Brasil, depois de pelo menos duas décadas de discussão legislativa, somente no final do mês passado a autonomia operacional do Bacen virou lei. Embora nosso Banco Central já tenha incorporado muitas das melhores práticas internacionais, como o próprio período de silêncio antes das decisões do Copom, ainda temos um longo caminho a percorrer para torná-la efetiva.

Não é preciso GPS para observar que são cada vez mais frequentes os deslocamentos feitos pelo presidente Roberto Campos Neto entre o Setor Bancário Sul, onde se localiza a sede do Banco Central, e a Praça dos Três Poderes, para atender a chamados de Jair Bolsonaro, Arthur Lira e Rodrigo Pacheco.

É bem verdade que o BC brasileiro possui atribuições que extrapolam aquelas típicas de uma autoridade monetária - como a regulação e a fiscalização do sistema financeiro - e a nova Lei Complementar nº 179/2021 ainda exige que a instituição zele para suavizar as flutuações da atividade econômica e fomente o pleno emprego, ao lado de manter a inflação sob controle. Tudo isso acaba exigindo que o presidente do Bacen compareça ao Palácio do Planalto ou ao Congresso Nacional para prestar contas de suas decisões.

O grande problema é que Roberto Campos Neto, pela sua capacidade técnica e habilidades interpessoais, tem entrado de cabeça na negociação política da agenda econômica do governo - e com isso tem avançado perigosamente a linha de independência exigida de um central banker.

Na semana passada, quando o governo se dividia entre as votações da PEC Emergencial e as tratativas com a farmacêutica Pfizer para a compra de um novo lote de vacinas, Roberto Campos Neto esteve duas vezes com Jair Bolsonaro no Palácio do Planalto. Além disso, visitou o presidente da Câmara em sua residência oficial para convencer diversos deputados da necessidade de aprovação de dispositivos de ajuste fiscal como contrapartida à nova rodada do auxílio emergencial.

Não há dúvidas que o presidente do BC tem um excelente trânsito com os parlamentares e tem se mostrado um ativo valioso do governo para construir pontes e aparar as arestas, muitas vezes afiadas, criadas por Paulo Guedes nas suas relações com o Congresso. Mas não pode se prestar a esse papel, sob pena de perder sua credibilidade.

Caso queira continuar contando com a capacidade técnica e o fino trato do neto de Bob Fields nas negociações de sua agenda econômica, Bolsonaro tem uma saída. O art. 8º da lei da autonomia lhe deu 90 dias para referendar a atual diretoria do Bacen e empossá-los nos novos mandatos.

Com os rumores cada vez mais constantes de que Paulo Guedes balança no cargo, de repente a solução para uma transição suave, que não assuste o mercado e ainda agrade ao Centrão, está mais próxima do que se imagina. Nem precisa chamar um táxi.


Ricardo Noblat: Efeito Lula pode custar a cabeça do general Eduardo Pazuello

Acuado, Bolsonaro procura saídas

Que condições impôs a cardiologista Ludhmila Hajjar para aceitar substituir o general Eduardo Pazuello como ministra da Saúde? Ao presidente Jair Bolsonaro, com quem se reuniu, ontem, no Palácio da Alvorada, o que ela pediu equivale ao feijão com arroz.

Em resumo, pediu autonomia para formar sua equipe e adotar à frente do ministério a política que achar adequada para, de saída, deter o agravamento da pandemia que bate recordes diários em número de mortos. Autonomia e vacina, vacina, vacina.

Mais adiante, se os resultados forem bons, se pensará no resto. Mas com o sistema público e privado de atendimento médico às vésperas de um colapso, com pacientes internados até em banheiros de hospitais, não há outra prioridade. Simples assim.

Simples para quem é do ramo, e simples de ser entendido por quem tem amor à vida alheia. Bolsonaro provou que esse não é o seu caso. Mortes não lhe importam se o preço a ser pago para diminuí-las prejudica a economia e seu projeto de reeleição.

Antes, durante e depois de conversar com a médica, Bolsonaro recebeu dos seus correspondentes ideológicos por toda parte mensagens e vídeos com declarações de Hajjar a respeito da pandemia que a desqualificam para a tarefa.

Em um dos vídeos ela aparece dizendo que até aqui o governo só tem errado no combate ao vírus. Errou por não tê-lo levado a sério desde o início, errou ao recomendar o uso de remédios sem eficácia comprovada e errou ao defender tratamento precoce.

Naturalmente, seu maior erro foi não correr cedo atrás de vacinas como outros governos fizeram. Quer dizer: Hajjar pensa o oposto de Bolsonaro. Pazuello pode pensar também, mas ele considera que manda quem pode, obedece quem tem juízo.

A médica tem juízo, mas quer obedecer ao que aprendeu ao longo de uma trajetória elogiada por todos os seus pares. Aí mora a diferença. Bolsonaro estará pronto para nomear ministro da Saúde ou de qualquer outra pasta quem pense diferente dele?

Logo se saberá. O que se sabe desde o final da tarde de ontem é que Pazuello está bem de saúde como mandou dizer, e que não pediu para sair. Se o presidente, que o convocou para o lugar, quiser removê-lo, Pazuello lhe baterá continência e irá embora.

Mas aparentemente quer ficar. Menos porque esteja convencido de que realizou um grande trabalho ou de que poderá realizá-lo apesar de tudo. O general está sendo investigado e receia ter que responder a dezenas de processos se for demitido.

Uma coisa seria respondê-los no exercício do cargo, o que lhe garante o direito de só ser processado pelo Supremo Tribunal Federal. Fora do cargo, os processos irão para a primeira instância e qualquer juiz, no limite, poderá prendê-lo.

Um general de quatro estrelas, da ativa, preso? No Brasil, só os generais prendem generais. Em outros países do continente, autoridades civis puseram generais atrás das grades, embora com todo conforto. E presidentes depostos. E ex-presidentes.

A desaprovação a Bolsonaro e ao seu governo está em alta. Sempre que se sente acuado, ele entrega cabeças para salvar a sua e a dos três filhos zero. Entrou em cena o quarto zero – Jair Renan Bolsonaro, lobista. É mais uma cabeça a ser preservada.

Sequer passou uma semana da estreia de Lula livre das condenações que o impediam de ser candidato, e Bolsonaro está em lençóis encharcados de suor. Não seria exagero concluir que Lula aos pouquinhos já começa a governar.

Centrão dá as cartas e o governo Bolsonaro obedece

Pelo bem do país...

Quando enxerga algo que possa render bons dividendos para o país, o senador Ciro Nogueira (PI), presidente do PP e um dos líderes mais destacados do Centrão que sustenta o governo Bolsonaro, não resiste e acaba se metendo. É o jeito dele.

Segundo a Folha, na semana passada apareceu na agenda de Tarcísio Freitas, ministro da Infraestrutura, que ele receberia o presidente da Federação Brasileira de Bancos para tratar da desburocratização do mercado de financiamento de veículos.

Nogueira foi relator do Código Nacional de Trânsito que tramitou durante dois anos no Senado. Tem especial apreço por financiamento de veículos, um mercado bilionário. Seu apreço só é maior pelas prerrogativas do Poder Legislativo.

Pois ele viu na reunião a intenção oculta do presidente da Federação de Bancos em atropelar o Legislativo, tanto mais na semana em que seria votada a emenda à Constituição que garantiria o pagamento do auxílio emergencial aos mais pobres.

O que uma coisa teria a ver com a outra não se sabe, talvez só Nogueira. Sua reclamação acabou por cancelar a reunião. O Centrão está cada vez mais poderoso, e o governo, refém dele.


Roberto Romano: O Congresso como pandemia

Mercenários? Há muitos por lá. Subornos? Ora... Preocupados com o bem público? Poucos

"Já passou a hora de pôr um fim à sua presença neste lugar que perdeu a honra pelo desprezo de todas as virtudes, contaminado por todos os vícios. Os senhores não passam de uma facção inimiga de todo bom governo, pois formam um bando de miseráveis mercenários. Seu gosto é como o de Esaú: vender seu país por um guisado e, como Judas, trair Deus por moedas. Existe uma única virtude entre os senhores e algum vício que não possuam? (...). Qual dos senhores deixou de trocar a consciência por subornos? Existiria um homem entre os senhores preocupado com o bem da Comunidade? Prostitutas sórdidas! Os senhores não infectaram este lugar sagrado e fizeram do templo divino um covil de ladrões por seus princípios imorais e práticas iníquas? Os senhores se tornaram odiosos para toda a nação pois foram postos aqui, pelo povo, para reparar suas queixas, mas se tornaram a fonte da maior queixa. Logo, o seu país apela-me para limpar esta estrebaria de Augias, pondo um ponto final nos procedimentos iníquos desta Assembleia. Com ajuda de Deus e a força que ele me deu, efetivo tal missão. Ordeno, com perigo das suas vidas, que os senhores saiam imediatamente deste lugar. Escravos venais, vão embora! Em nome de Deus, vão!"

Deixei sem aspas o trecho acima para que os informados sobre a história dos parlamentos tenham o prazer melancólico de identificar semelhanças entre o que teria ocorrido na Inglaterra do Rump Parliament e os dias de hoje, no Brasil. Cromwell, a quem se atribui a fala mencionada, se estivesse na porta do Congresso brasileiro, informado das manobras para tornar os parlamentares isentos das leis que eles mesmos devem manter, diria as mesmas palavras do parágrafo anterior. Nada falta para a similaridade entre a situação parlamentar na terra de Shakespeare (“existe algo podre no reino...”) e o Brasil de agora.

Mercenários? Existem muitos no Parlamento nacional. Praticantes de subornos? Ora... Preocupados com o bem público? Poucos.

Naqueles dias como hoje, o ambiente onde são feitas as leis ficou sujo como as estrebarias de Augias. Naquele espaço a equidade é expulsa dia a dia. Falta apenas a figura do ditador que expulsa, relho na mão, deputados que o apoiaram a preço de ouro e dos quais ele conhece a venalidade. Ele conhece seus interesses financeiros, próprios de mercadores de leis. A diferença fica por conta do personagem que fecha o Parlamento.

Cromwell assume, pelo menos de fachada, a ética protestante em seu florescer. Aqui, com muita probabilidade, o chicote nas costas dos deputados será movido por alguém sem ética ou respeito pelo bem público.

Elias Canetti em página memorável enuncia que, ao contrário da vida social marcada pela guerra de todos contra todos, no Parlamento “não deve haver mais mortos. Esta intenção é expressa (...) na imunidade parlamentar, que tem um duplo aspecto: fora, em relação ao governo e aos seus órgãos; dentro, entre os seus pares”. O sistema democrático funciona se a imunidade for garantida. O Parlamento tem como alvo criar, no meio da batalha perene da sociedade, um espaço de paz e segurança. O Legislativo é sagrado porque nele reside a única esperança de algum diálogo, algum respeito. Nele, o instrumento relevante é o voto dos representantes. As cédulas de votação (hoje, o painel eletrônico) atenuam a morte coletiva. Quem usa de modo sacrílego tais cédulas “confessa suas próprias sangrentas intenções”. Assim, cada voto pode gerar vida ou trazer morte.

“O deputado é um eleitor concentrado”, resume Canetti. Se o Legislativo age em causa própria, perverte o sistema das cédulas. O Parlamento é feito para trazer esperança ao coletivo. Se legisla em próprio benefício, sua existência perde a razão de ser. Se decidem sem ouvir os representados, os parlamentares abreviam sua própria extinção. Tomo o inimigo do sistema parlamentar, Carl Schmitt. Se por várias razões “os representantes podem decidir em vez do povo, com certeza um representante único poderia decidir em nome de todo o povo. Sem deixar de ser democrático, o argumento justifica um antiparlamentarismo”. Tal senda prepara a ditadura do “representante único”.

A humanidade sofre ameaça inédita e no Brasil os campos da morte se espalham sem controle. Seria preciso esperar do Parlamento maior zelo pela vida coletiva. Não é o que vemos.

Em clara parceria com um presidente isento de prudência e de respeito aos governados, o Congresso coloca antes e acima de medidas para preservar a saúde pública os seus privilégios e prerrogativas. E usa como desculpa a prisão de um deputado que ousa exigir o fechamento do STF e do próprio Congresso, a retomada do nefasto Ato Institucional número 5.

Quos Deus vult perdere prius dementat – aqueles a quem o divino quer desgraçar, primeiro enlouquece. Talvez seja esta a pandemia maior nas instituições brasileiras, a começar com os frangalhos do Poder Legislativo. E para tal desgraça não existe vacina, salvo a repulsa máxima da cidadania que ainda resta em nossa pátria.

 *Professor da Unicamp, é autor de ‘razões de estado e outros estados da razão’ (Perspectiva)