Hélio Schwartsman: Efeito Lula derruba Pazuello

É improvável que Bolsonaro deixe Queiroga fazer o que tem de ser feito

Quanto medo Bolsonaro tem de Lula? Bastante, já que o capitão resolveu demitir o general e se esforçou para convidar gente com qualificação técnica para exercer o cargo. A primeira cotada, Ludhmila Hajjar, recusou; o segundo, Marcelo Queiroga, aceitou.

As coisas, porém, são mais complicadas do que parecem. Ninguém com diploma de medicina e familiaridade mínima com o método científico pode aceitar o posto se não arrancar de Bolsonaro a promessa de que poderá mudar a política sanitária até aqui adotada, o que inclui licença para impor medidas de distanciamento social, para aposentar os delírios cloroquínicos e para investir pesadamente na vacinação. E, para o presidente fazer uma concessão dessas, ele precisa estar aterrorizado com Lula e sob muita pressão do centrão.

O problema é que, mesmo que Bolsonaro aceda agora a esse programa elementar, é improvável que deixe Queiroga fazer o que tem de ser feito. A impulsividade com tons paranoides é um traço inapagável da personalidade do presidente. Em algum momento, ele acabará recaindo em seus tresvarios sanitários e desautorizará o ministro.

Quem tem um bom olhar clínico percebe isso e nem aceita o cargo, como parece ter sido o caso de Hajjar. Já Queiroga provavelmente superestima suas capacidades como negociador. Deve acreditar que conseguirá tourear Bolsonaro e encontrar espaço para atuar. Veremos.

De todo modo, é positivo que Lula tenha entrado na equação. Ao tentar viabilizar-se como candidato que busca ganhar espaço entre eleitores do centro político, Lula não dá a Bolsonaro alternativa que não a de imitá-lo. Recoloca assim em jogo o teorema do eleitor mediano, segundo o qual os principais postulantes em um pleito majoritário buscam a chancela da maioria dos eleitores mesmo que sacrificando o apoio dos mais radicais. Até esse estranho começo de século 21, essa era a regra nas democracias.


Cristina Serra: Boiada, 'correntão' e motosserra

A investida contra o ambiente mudou de patamar

Em abril de 2020, Salles, o ministro do zero ambiente, exortou a passagem da boiada para derrubar regras e normas ambientais que dependiam apenas do Executivo, já que era bem mais difícil mudar leis no Congresso. Quase um ano depois, a conjuntura nunca esteve tão favorável para, agora sim, sob o comando do centrão na Câmara, passar não apenas a boiada, mas também o "correntão" e a motosserra.

O que vem por aí é um ataque sem precedentes às leis que há décadas tentam consolidar a proteção ambiental no Brasil. Projetos à espera de análise na Comissão de Meio Ambiente pretendem enfraquecer a lei da mata atlântica, a que criou o Sistema Nacional de Unidades de Conservação, o Código Florestal e até a lei de Proteção à Fauna, de 1967.

O "tratoraço" inclui a liberação da caça de animais silvestres, projeto do ex-deputado Valdir Colatto, hoje chefe do Serviço Florestal Brasileiro. Outras duas propostas transferem a autorização de caça para estados e municípios. Entre os argumentos para liberar a matança, acredite, está o aumento da "interação homem natureza". Só pode ser deboche.

A ministra da Agricultura, Tereza Cristina, a do "boi bombeiro", deixou projeto que autoriza a pecuária em áreas de reserva legal, que donos de imóveis rurais têm que manter com vegetação nativa. Há proposições para acabar com a lista de peixes ameaçados de extinção; tirar a proteção dos campos de altitude, ecossistema associado à mata atlântica; e ainda extinguir zonas de amortecimento no entorno de unidades de conservação.

A pauta está nas mãos da notória Carla Zambelli (PSL-SP), presidente da Comissão de Meio Ambiente, e de seu vice, Coronel Chrisóstomo (PSL-RO). Reportagem de João Fellet na BBC Brasil mostra que Chrisóstomo tem conexões com desmatadores em Rondônia. A investida contra o ambiente mudou de patamar. Instituições precisam dar resposta condizente à agressão que pretende transformar nossas florestas em clarões de fogo e montes de detritos.


Ricardo Noblat: Queiroga, o novo testa de ferro de Bolsonaro na Saúde

Os filhos zero ajudaram o pai a ganhar mais uma vez

Despenca o grau de segurança dos ministros e demais auxiliares de Jair Bolsonaro quanto à permanência de cada um deles no governo. E por uma simples razão: se você faz algo no cargo que desagrada a Bolsonaro, pode ser demitido a qualquer momento. Se você obedece a todas as ordens dele, arrisca-se a ser demitido.

Tem mais: se você cair na mira de fogo de alguns dos filhos zero do presidente, seu emprego não vale nada. Foi assim que Gustavo Bebianno, então ministro da Secretaria-Geral da presidência, acabou dispensado. Carlos Bolsonaro, o Zero Três, sentia ciúmes de sua aproximação excessiva com o pai. Daí…

Outro ministro, esse tido como poderoso porque amigo há mais de 40 anos de Bolsonaro, também desagradou a Carlos e dançou. O filho convenceu o pai de que o general Carlos Alberto dos Santos Cruz, ministro da Secretaria do Governo, conspirava para derrubá-lo. Valeu-se para isso de uma notícia falsa.

A insegurança dos que servem a Bolsonaro aumentou depois que ele demitiu o ministro da Saúde, o general Eduardo Pazuello, cujo erro foi ter cumprido todas as vontades do presidente sem nem pestanejar. A ponto de humilhar-se certa vez ao dizer com um sorriso amarelo: “Manda quem pode, obedece quem tem juízo”.

Não bastou para Pazuello ter juízo. Ele foi obrigado a ceder o lugar a um cardiologista que nunca ocupou um cargo público e que deve sua indicação a Flávio Bolsonaro (Republicanos), conhecido como Zero Um e às voltas com a justiça desde que foi denunciado por peculato, lavagem de dinheiro e organização criminosa.

Pazuello caiu, pois, por excesso de obediência, além do fato de que o Centrão pediu a Bolsonaro a cabeça dele, e para manter a sua, o presidente entregou. Marcelo Queiroga será o quarto ministro da Saúde em pouco mais de um ano. Henrique Mandetta foi demitido porque não quis obedecer. Nelson Teich, pelo mesmo motivo.

Os filhos zero deram mais uma inegável demonstração de força junto ao pai quando pareciam enfraquecidos. Eduardo Bolsonaro, o Zero Três, participou do interrogatório da médica Ludhmila Hajjar, cardiologista famosa, cujo nome era apoiado pelo Centrão, o presidente da Câmara e ministros do Supremo Tribunal.

Convocada a Brasília, ela compareceu pensando que se tratava de coisa séria. Estava disposta a aceitar o convite. Pediu autonomia para montar sua equipe e mais vacinas. Mas era uma farsa. Foi recebida por Bolsonaro, Eduardo e Pazuello, que admitiu estar de saída porque carecia de apoio político. Imaginem a cena…

Eduardo quis saber a opinião dela sobre aborto e armas para a população – Ludhmila espantou-se e desconversou. Bolsonaro foi logo dizendo que ela não poderia decretar lockdown no Nordeste para não “foder” a reeleição dele. Antes que o encontro terminasse, a médica já estava sendo achincalhada nas redes sociais.

De volta ao hotel, ficou sabendo que o número do seu celular havia sido divulgado em grupos de WhatsApp e que estava sendo ameaçada de morte. Ainda passou pelo susto de três tentativas frustradas de invasão do seu apartamento. No dia seguinte, procurou Bolsonaro, agradeceu o chamado e despediu-se.

Antes de embarcar para São Paulo, onde trabalha no Instituto do Coração, leu em sites que o ministro das Comunicações, Fábio Faria, negou que ela fora convidada para suceder Pazuello. Só então se deu conta da armadilha em que se deixou aprisionar. Decência é um atributo que falta à família presidencial brasileira.

Era previsível o desfecho do episódio. Bolsonaro nunca quis rever sua posição em relação ao combate à pandemia que, segundo Ludhmila, poderá matar de 500 mil a 600 mil pessoas. Está perto das 300 mil. É para que morram os que tiverem de morrer da “gripezinha” que, em dezembro, estava no seu “finalzinho”.

Então que venha Queiroga, um ilustre desconhecido, curtidor dos comentários do presidente e amigo da família. Boa sorte! Porque da próxima vez, como observa irritado um dos líderes do Centrão, não estará em foco a troca de mais um ministro da Saúde caso Queiroga fracasse, mas sim a troca do presidente da República.

A semente da violência política se espalha pelo país

O mau exemplo vem do alto

Um repórter do jornal O Estado de Minas foi agredido, ontem, em Belo Horizonte por manifestantes bolsonaristas que protestavam contra as medidas de isolamento, pediam o fechamento do Supremo Tribunal Federal e defendiam a ditadura militar de 64.

O cardápio, pois, era o de sempre, apresentado há um ano em Brasília diante do Quartel-General do Exército com a presença do presidente Jair Bolsonaro. O Supremo abriu inquérito para apurar quem financia manifestações hostis à democracia.

Mas, como se vê, elas voltaram a se repetir, e, agora, com o emprego de violência contra jornalistas obrigados a cobri-las. O resultado da parceria de Bolsonaro com a Covid está deixando os bolsonaristas cada vez mais nervosos, e aí mora o perigo.

O governador João Doria registrou queixa na polícia contra os que o ameaçam de morte. Em vídeo gravado no último dia 13, em São Paulo, um homem dá tiros em alvos improvisados e chama Lula de “filho da puta”. Depois, vira-se para a câmera e vocifera:

“Presta atenção no recado que eu vou dar para você, seu vagabundo: se você não devolver os R$ 84 bilhões que você roubou do fundo de pensão dos trabalhadores, você vai ter problema, hein, cara? Você vai ter problema”.

A segurança de Lula será reforçada em breve. E os que no momento fazem parte dela receberão novos treinamentos. A direção nacional do PT pedirá a abertura de processo contra o homem do vídeo. Avisado, Doria tomará suas providências.

O governo federal não dá sinais de preocupação com nada disso. Pelo contrário: sempre que pode, como ocorreu na semana passada, Bolsonaro fala em Estado de Sítio, afirma que é muito fácil implantar uma ditadura no país e diz que o ditador seria ele.

Não levar a sério o que o presidente da República propaga nas redes sociais lembra o comportamento de milhões de brasileiros que apenas o viam como um candidato dado a falas exageradas. Não havia exagero. Era Bolsonaro em estado bruto tal como é.


Carlos Andreazza: O movimento pendular

Bolsonaro não muda. Não foi mudado pelo fator Lula; não em seu comportamento frente à peste. (Será matéria para outro artigo; mas, à sombra do ex-presidente, responderá sobretudo na economia, com uma derrama populista de dinheiros, com Guedes, com tudo, para financiar a reeleição e pagar o preço do Centrão, que subiu.)

Frente à pandemia, rara escada para a agitação reacionária, Bolsonaro será ainda mais radicalmente Bolsonaro; um mentiroso, investidor no sectarismo, que prospera no choque, mas que sabe se moldar — poucos alcançam distorcer a própria palavra como ele — ante a imposição do mundo real.

Irá assim até o final, aquele que disse nunca ter se referido à peste como “gripezinha”. Não nos iludamos com um baile de máscaras à tarde. A noite vem. E, ao ato que pareceu indicar moderação, logo corresponderá a forja de novos inimigos. E, do gesto que pareceu considerar uma médica séria para o Ministério da Saúde, logo emergirá a intenção de pazuellizá-la.

Bolsonaro é Bolsonaro. Não importa, pois, o futuro de Pazuello no governo, se fica ou cai; ministro da Saúde que nunca foi, cavalo — no sentido espiritual — para que Bolsonaro o fosse. Bolsonaro é. Outros pazuellos virão. Hajjar não topou. Haverá quem tope. E Bolsonaro continuará sendo.

O padrão está dado. Aqui e ali, quando já sem alternativa, cederá ao mundo real. Ou não terá sido ele a se sentar com a Pfizer depois de desqualificar por meses o laboratório? Ou não terá sido ele a comprar uma vacina, a CoronaVac, que tratara como inimiga e jurara jamais adquirir?

O mundo real se impõe, e ele se ajusta; a isso respondendo, sempre, com horror — normalmente com ataques à democracia liberal.

Bolsonaro opera em movimento pendular. De um lado, tocado pela imposição do mundo real, o vírus que o empareda, que depreda a economia, que fere a popularidade, de súbito se torna defensor da vacinação em massa — aquela contra a qual difundiu bárbara desconfiança. De outro, pressionado pela necessidade de dar satisfação — alimento — aos sectários que lhe compõem a base de apoio fundamental, incomodados ante seus contatos com a civilização, fabrica guerras. É como se equilibra. Bolsonaro se equilibra na instabilidade, na imprevisibilidade. O chão em que será competitivo.

Enquanto ousa se apregoar como alguém que sempre defendeu que a economia só teria condições de se reabilitar organicamente por meio de vacinação em massa (encaixou essa versão na semana passada, com Guedes, aquele que resolveria a pandemia com R$ 5 bilhões); enquanto frita Pazuello, cavalo que verteu em boi de piranha, o culpado por o Brasil não ter iniciado seu programa de imunização em 2020, noutra mão Bolsonaro balança o berço de seus fanáticos cultivando ameaças artificiais.

Já foi, repito, a vacinação em massa; com os bolsonaristas mobilizados contra uma imunização obrigatória que consistiria em invadirem nossas casas para nos cravarem agulhas ao braço. Hoje, o mais influente inimigo fantasioso é o lockdown; algo que nunca houve no Brasil, não até agora, mas contra o que o bolsonarismo luta a batalha definidora do futuro. Um lockdown imaginário; que, no entanto, transforma governantes em tiranos e justifica a constituição de milícias da resistência. Governadores e prefeitos legitimamente eleitos, que tomam medidas restritivas legais, vendidos, por Bolsonaro, como ditadores.

O presidente que vestiu máscara e que foi lido como alguém que se amansava ante à restituição dos direitos políticos de Lula sendo o que, no mesmo dia, pouco depois de falar das Forças Armadas e em como era fácil baixar uma ditadura no Brasil, afirmou ser aquele que teria como garantir nossa liberdade. Mais: o que se apresentou — em construção típica de um autocrata, o nosso Viktor Orbán — como “o garantidor da democracia”.

Começa assim. Com “o meu Exército”; e não tarda chega-se à “minha democracia”. Já chegamos a esta generosidade: “Eu sou a pessoa mais importante desse momento. Faço o que o povo quiser”. Que povo? É relevante considerar o sentido de povo para alguém como Bolsonaro; povo sendo aqueles que o apoiam — uma compreensão essencialmente totalitária. O povo sendo aquele que vai à porta da mãe de um governador para intimidá-la.

Veja-se a maneira altiva como suprime filtros republicanos: “Como é que eu posso resolver a situação? Eu tenho que ter apoio. Porque, se eu levantar a minha caneta e falar shazam, eu vou ser ditador”. Depreende-se que, amparado (pelo povo, segundo Bolsonaro), poderia agir como ditador sem ser ditador. É isso?

Claro que ele sabe o que é estado de sítio; mas precisa deturpar o toque de recolher — medida restritiva definida em lei — em ato discricionário, de modo a substanciar seu lockdown tirânico. É desinformação golpista.

Que também necessita — projetando um futuro caótico — gerar pânico nuns, soprar o apito para outros. “Invasão de supermercados. Fogo em ônibus. Greves. Piquetes.” Manifesta-se aquele que foi o maior entusiasta — um agente estimulador — da revolta dos caminhoneiros que parou o país em 2018. Alguém cuja pregação armamentista deixou de se deter à velha defesa da propriedade privada para se fundamentar numa ideia de resistência civil à opressão de governantes. Gravíssimo.


Eliane Cantanhêde: Médico sério defende o que Bolsonaro condena e condena o que ele defende. E Queiroga?

O novo ministro vai ter a altivez de Luiz Mandetta, Nelson Teich e Ludhmila Hajjar, ou vai replicar Pazuello e jogar a ciência para o alto?

A médica cardiologista Ludhmila Hajjar é o oposto do general da ativa Eduardo Pazuello e deixou a demissão dele do Ministério da Saúde ainda mais humilhante. Ela conhece profundamente a situação da pandemia e tem noção clara não só do que fazer, mas sobretudo do que não fazer. E ele? O homem errado, na hora errada, passando vexame. Mas a grande diferença entre os dois nem é essa. É que ela tem brios.

Ao ser chamada a Brasília pelo presidente Jair Bolsonaro, Hajjar já tinha estratégia, equipe e estava pronta para a guerra – diferentemente do general. “Mas foi só um sonho”, desabafou a doutora, depois do encontro com Bolsonaro. O mais surpreendente é que ela sabia exatamente o que o presidente pensa da pandemia, mas ele nem sabia com quem estava falando. Só aí soube que os dois são como azeite e água.

Bastava fazer uma busca na internet e ouvir umas poucas pessoas para Bolsonaro saber que Hajjar é contra cloroquina, despreza o tal “tratamento precoce”, segue a ciência, defende o isolamento social e as máscaras e é obcecada pelas vacinas – e pela vida. Ou seja: ela defende tudo o que ele condena e condena tudo o que ele defende. Por isso, é mais uma a virar alvo de ataques covardes da tropa bolsonarista.

Isso, aliás, combina à perfeição com a provocação que uma alta fonte do governo me fez na semana passada, quando ficou claro que Pazuello não duraria muito na Saúde: “Quem pôr no lugar? Desafio você a sugerir um médico respeitável, com credibilidade, que aceite assumir a Saúde numa hora dessas!”

Pura verdade. Qualquer médico sério pensa como Hajjar. Logo, Bolsonaro ficou entre um nome do Centrão ou um doutor pronto a seguir a máxima de Pazuello: “um manda, outro obedece”. Assim, o novo ministro, Marcelo Queiroga, presidente da Sociedade Brasileira de Cardiologia, está no foco. Vai ter a altivez de Luiz MandettaNelson Teich e Ludhmila Hajjar, ou vai replicar Pazuello e jogar a ciência para o alto?

O País está em polvorosa, caminhando para 300 mil mortos, com governadores e prefeitos tontos, médicos e enfermeiros no limite, mas o que fez Bolsonaro mudar o ministro e o discurso não foi nada disso. Foi a entrada do ex-presidente Lula em cena. Era preciso um bode expiatório rápido. E um general da ativa é um bode expiatório e tanto.

Depois de fritado pelo presidente e três generais de Exército, inclusive o ministro da Defesa, Pazuello ainda divulgou que, ao contrário das versões palacianas, ele não estava doente, não tinha pedido demissão e não tinha sido demitido. E, ontem, disse que 15% dos grupos prioritários estarão vacinados em março e 88% em abril. Convém guardar esses números, porque uma das marcas do general é fazer previsões que não se confirmam, nem de datas, nem de doses, nem de contratos, nem de testes...

E ele se “esqueceu” de dizer que, se 10 milhões de brasileiros foram vacinados até agora, é graças ao governador João Doria (SP), ao Butantan, ao laboratório Sinovac e à Coronavac, atacada como “aquela vacina chinesa do Doria”, quando Bolsonaro bateu no peito, disse que ele é que mandava e cancelou a compra de 46 milhões de doses que Pazuello anunciara.

Se dependesse de Bolsonaro, os brasileiros nem estariam se vacinando até agora, quando estão morrendo sem direito a UTI, dignidade, humanidade. É por isso, aliás, que a gestão da pandemia no Brasil foi parar na Conselho de Direitos Humanos da ONU, sofre investigações do STF, do TCU e do Ministério Público e pode virar alvo do Congresso.

Caso a CPI seja instalada, não há gabinete do ódio, carreatas e fake news que possam apagar todas as monstruosidades de Bolsonaro a favor do vírus, contra a vida. A dúvida é como Queiroga vai lidar com isso. E com a realidade.


Merval Pereira: Catch-22

A escolha do substituto do general Eduardo Pazuello no Ministério da Saúde é uma situação típica de Catch-22, expressão muito usada nos países de língua inglesa, especialmente nos Estados Unidos, oriunda de uma lei militar. Dá nome a um livro de Joseph Heller, “Ardil-22” na versão brasileira, que se passa no final da Segunda Guerra Mundial. Segundo o dicionário, caracteriza um problema cuja solução é negada por uma circunstância inerente ao próprio problema. No livro, o piloto que pede uma avaliação psicológica para escapar de missões perigosas de bombardeios estará mostrando sua sensatez e será considerado apto às mesmas missões perigosas.

É preciso mudar a política sanitária devido à repulsa provocada na população, fazendo cair a popularidade do presidente Bolsonaro. Mas como mudar a política sanitária, se o responsável por ela, o próprio presidente, não mudou a maneira de pensar em relação ao distanciamento social, ao uso da máscara ou à vacinação?

Se Bolsonaro escolhesse uma médica como Ludhmila Hajjar, estaria admitindo uma mudança de comportamento. Como não é esse o caso, a indicada pelo Centrão desistiu, incentivada por uma brutal guerrilha digital bolsonarista. O presidente Bolsonaro sempre alega que seus seguidores nas redes sociais são autônomos, não obedecem às suas ordens, o que é meia verdade. Veja-se a atuação do gabinete do ódio de dentro do Palácio do Planalto.

A solução seria escolher uma pessoa ligada a ele, que pensasse como ele, como o novo ministro escolhido, Marcelo Queiroga. Mas, para isso, por que demitir o general Pazuello, que já se humilhou publicamente afirmando, sem que lhe perguntassem, que “um manda, e o outro obedece”? O Centrão, por sua vez, também se encontra numa situação de Catch-22.

Indicou a médica rejeitada pelos bolsonaristas, tendo a demonstração clara de que seu peso político não decide tudo no governo Bolsonaro. Mas como continuar apoiando um presidente que os leva para o precipício da impopularidade, ainda mais agora que outro candidato forte se apresenta, o ex-presidente Lula, a quem já serviram com grandes vantagens? Mas, também, abrir mão das benesses do governo assim, de graça?

Típica situação de Catch-22 é a do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Edson Fachin, que, vendo que seria derrotado na Segunda Turma no julgamento da suspeição do então juiz Sergio Moro, resolveu chutar o pau da barraca e anulou quatro processos contra o ex-presidente Lula, mandando-os para a Justiça Federal de Brasília.

Como a solução de um problema Catch-22 será sempre negada pelo próprio problema, num conflito mútuo, Fachin pode perder tudo, não salvar a Lava-Jato, que parece ter sido sua motivação para ir para tudo ou nada. Salvar a Lava-Jato anulando as condenações do ex-presidente Lula é uma contradição em termos, pois ele era um símbolo do sucesso da operação de combate à corrupção.

Claro que anular os processos não significa dá-lo por inocente, mas, para efeitos políticos, Lula livre dá no mesmo. Fachin só poderá se livrar desse efeito Catch-22 se o Supremo, mais uma vez, decidir não decidir. O ministro Nunes Marques, que pediu vista do processo, pode ficar eternamente com ele, como o próprio presidente da Segunda Turma, ministro Gilmar Mendes, ficou dois anos até anunciá-lo na reunião da semana passada.

Se fizer isso, é sinal de que tem as costas quentes. Quem lhe esquenta as costas, o presidente Bolsonaro, também nesse caso se encontra numa situação de Catch-22. Para se vingar de Moro, seu inimigo mortal e talvez competidor em 2022, tem que aceitar a liberação de Lula, outro forte candidato contra Bolsonaro. Para se livrar de Lula, precisa que o plenário vote contra Fachin e que Nunes Marques segure o processo de suspeição até que o prazo para registrar candidaturas se esgote. Agindo assim, estará fortalecendo Moro. Difícil combinação, como é difícil, se não impossível, escapar do Catch-22.

Como todo brasileiro, terá que escolher a opção menos ruim para ele. Não foi assim que chegou à Presidência da República, nos colocando, a nós, brasileiros, numa situação de Catch-22? Para melhorar o país, só trocando o presidente. Mas trocar o presidente pode nos levar a uma convulsão social. Melhor deixá-lo sangrar até 2022. Lembram-se de Lula no mensalão?


“Governo Bolsonaro enfrenta dura realidade de manter regras fiscais importantes”

Afirmação é do economista Sérgio Vale, em artigo na revista Política Democrática Online de março

Cleomar Almeida, Coordenador de Publicações da FAP

O economista-chefe da AMB Associados, Sérgio Vale, afirma que o governo Bolsonaro falha ao enfrentar a realidade de manter regras fiscais importantes e, ao mesmo tempo, gerar a estabilidade necessária que acelere o crescimento econômico do país. O analista publicou artigo na revista Política Democrática Online de março.

Confira a Edição 29 da Revista Política Democrática Online

A revista mensal é produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania. A versão flip, com todos os conteúdos, pode ser acessada gratuitamente na seção de revista digital do portal da entidade.

“O governo Bolsonaro enfrenta, hoje, a dura realidade de manter regras fiscais importantes e, ao mesmo tempo, gerar a estabilidade necessária que acelere o crescimento”, diz o autor, no artigo da revista online da FAP.

Desconfiança

 Na avaliação de Vale, há muita desconfiança quanto à capacidade de o governo de entregar o ajuste fiscal reclamado pela população, assegurando espaço fiscal para o gasto de qualidade em educação e saúde, por exemplo.

“Desde as manifestações de junho de 2013, o Brasil tem passado por série ininterrupta de instabilidades de difícil solução, tanto mais porque as demandas da classe média continuam não sendo atendidas”, observa o economista.

Ele lembra que, em artigo na década de 70, Albert Hirschman criou o conceito de efeito túnel, segundo o qual a classe média ganhou terreno na aquisição de bens com o aumento da renda, mas a contrapartida de serviços públicos de qualidade não seguiu a mesma trajetória.

“É como se, depois das conquistas materiais individuais, tivesse caído a ficha da população quanto à necessidade de demandar serviços públicos de qualidade do governo”, afirma. “Esse foi o grande tema das manifestações de 2013, depois de anos de forte crescimento de renda e do consumo da classe média e da ascensão de parte da classe mais baixa de renda para a classe média”, avalia.

Descontentamento

De acordo com o artigo publicado na revista Política Democrática Online, como a classe média não foi atendida de maneira satisfatória, o descontentamento dela fez crescer a pressão sobre o setor público no sentido da qualidade da prestação dos serviços.

“Só que a conjunção de incerteza, que afugentou investimento e diminuiu o ritmo de crescimento, com a necessidade de responder à população via mais gastos públicos colaborou para agravar a crise fiscal que já se avizinhava. Seria difícil naquele momento de descontentamento da população para um governo de esquerda fazer um ajuste fiscal”, diz.

De acordo com Vale, o país vive no dilema desde então, “com diversos graus de incerteza que foram se acumulando na economia, diminuindo de forma duradoura o ritmo de crescimento, com a população cada vez exigindo respostas eficazes do governo”. 

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Brasil corre risco de ter maior número absoluto de mortes por Covid, diz revista da FAP

Face deletéria de Bolsonaro é destaque da Política Democrática Online de março

Veja todas as 29 edições da revista Política Democrática Online


Luiz Carlos Azedo: A crise continua

A troca de ministro não está ocorrendo para mudar a política sanitária ou porque Bolsonaro estava insatisfeito com Pazuello, mas para evitar a instalação de uma CPI na Saúde

O presidente Jair Bolsonaro indicou o médico paraibano Marcelo Queiroga, presidente da Associação Brasileira de Cardiologia, para o cargo de ministro da Saúde, no lugar do general de divisão da ativa Eduardo Pazuello, que deve voltar à caserna. Foi o desfecho de três dias de muita confusão e intensa fritura do militar, que atuou de forma desastrada à frente da pasta, seguindo cegamente a orientação do presidente da República durante a pandemia da covid-19. Queiroga assumirá o cargo sob forte desconfiança, depois da recusa da médica goiana Ludhmila Hajjar, que fora convidada por Bolsonaro, mas recusou o convite por discordar da orientação do chefe do Executivo.

O convite à cardiologista e intensivista do Hospital das Clínicas foi um tiro no pé. Hajjar pretendia promover um choque de gestão à frente do Ministério da Saúde, defendendo a criação de leitos e preparação das equipes de atendimento à covid-19; o apoio ao lo- ckdown decretado por governadores e prefeitos; a formação de um comitê de crise 24 horas para apoiar as demais autoridades do Sistema Único de Saúde (SUS); e mobilização das sociedades médicas, a rede de saúde privada e as empresas para combater a pandemia. A médica também é contrária ao uso de cloroquina e outros medicamentos sem eficácia comprovada no “tratamento precoce”, defendendo um protocolo unificado de atendimento aos pacientes de covid-19 que adote as melhores práticas comprovadas.

As conversas entre Bolsonaro e Hajjar, no domingo e ontem pela manhã, foram um desastre, por causa das divergências entre ambos e do fato de que os bolsonaristas fizeram intensa campanha de difamação contra a médica, que sofreu ameaças de morte e até tentativas de invasão do seu quarto no hotel de Brasília, onde pernoitou. Ingenuamente, estimulada por políticos e autoridades de quem tratou de covid-19, Hajjar imaginou que Bolsonaro estava disposto a mudar a orientação do Ministério da Saúde. Suas posições críticas em relação à pandemia eram públicas e conhecidas. Frustrada pelo fato de que o presidente não pretende mudar a orientação do Ministério da Saúde e assustada com os ataques que sofreu dos partidários do chefe do Planalto, Hajjar resolveu revelar à imprensa a conversa com Bolsonaro e denunciar as agressões dos bolsonaristas, reiterando, também, suas posições sobre o combate à pandemia.

Bolsonarista raiz
Com as horas contadas no cargo, Pazuello fez uma prestação de contas de sua atuação à frente da pasta na tarde de ontem. Focou na aquisição de vacinas contra covid-19, cujo atraso está sendo desastroso. Em nenhum momento reconheceu seu fracasso ou fez autocrítica. Na verdade, a troca de ministro não está ocorrendo para mudar a política do Ministério da Saúde ou porque Bolsonaro estava insatisfeito com Pazuello. O general foi defenestrado porque os líderes do Congresso exigiram sua substituição para evitar a instalação de uma CPI voltada a investigar a sua atuação à frente da pasta, como deseja a oposição.

Enquanto Pazuello concedia sua entrevista de despedida, Queiroga se reunia com Bolsonaro no Palácio do Planalto. Logo depois, o próprio presidente anunciou sua indicação: “Foi de- cidido, agora à tarde, a indicação do médico, doutor Marcelo Queiroga, para o Ministério da Saúde. Ele é presidente da Sociedade Brasileira de Cardiologia. A conversa foi excelente, já conhecia há alguns anos, então não é uma pessoa que tomei conhecimento há poucos dias. Tem tudo, no meu entender, para fazer um bom trabalho, dando prosseguimento em tudo que o Pazuello fez até hoje”, afirmou à porta do Palácio da Alvorada.

Queiroga é bolsonarista raiz, será o quarto ministro da Saúde desde o começo da pandemia da covid-19, há pouco mais de um ano; seus antecessores foram o médico e ex-deputado Luiz Henrique Mandetta (DEM-MS) e o médico oncologista Nelson Teich, além de Pazuello. Formado em medicina pela Universidade Federal da Paraíba, fez residência em cardiologia no Hospital Adventista Silvestre, no Rio de Janeiro. Tem especialização em hemodinâmica e cardiologia intervencionista. Indicado por Bolsonaro para ser um dos diretores da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), não chegou a ocupar o cargo, porque dependia ainda de aprovação do Senado. Assume para dar continuidade à política de Bolsonaro. Ou seja, a crise continua.

https://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-a-crise-continua/

Daniela Jacques: O “xeque mate” na educação foi dado. E agora?

A expressão “xeque mate”, usada para indicar o lance final de uma partida no jogo de xadrez, aplica-se bem para o atual modelo de educação. É o que apontam as últimas pesquisas realizadas em 2020. A UNICEF, apresentou o resultado de uma pesquisa online feita com 40 mil jovens em mais de 150 países, mostrando que aquela crença de que um diploma universitário garantiria a qualificação profissional e um emprego valorizado e bem remunerado não seria mais uma realidade percebida por estudantes, profissionais e executivos. A pesquisa apontou que muitos jovens sentem que o modelo educacional atual não os ajuda a desenvolver habilidades necessárias para conseguir um emprego. Da mesma forma, os programas de treinamento que lhes são oferecidos não correspondem às suas aspirações de carreira.

As principais habilidades que os jovens desejam adquirir para ajudá-los a conseguir emprego na próxima década são liderança (22%), seguida de pensamento analítico e inovação (19%) e processamento de informações e dados (16%) – UNICEF

Essa percepção também ocorre entre os CEOs globalmente (74%). Segundo uma pesquisa da PwC, eles se preocupam em desenvolver habilidades para que possam expandir seus negócios, e consideram que as pessoas que mais precisam de qualificação são aquelas que têm menor acesso às oportunidades.

Assim, enquanto a sociedade demanda por uma educação que garanta o aprendizado de habilidades profissionais desde a escola, a partir dos 11 anos no mundo, e no Brasil aos 14 anos, o sistema de educação se distancia das questões reais, complexas e práticas da sociedade, a partir de um ensino que privilegia a memorização, em vez de profundidade e compreensão.

Para um melhor entendimento, o Fórum Econômico Mundial mapeou quais são os desafios globais mais urgentes, e trouxe interconexões entre várias tendências, realçando conexões importantes e que continuarão a evoluir de formas imprevisíveis nos próximos anos.

Diante desse cenário, o nosso desafio é enorme: como construir um novo modelo de educação, em um ambiente de complexas e constantes mudanças, com profissões e demandas que ainda nem existem?

Center for Curriculum Redesign (CCR), órgão internacional e centro de pesquisas, reuniu grupos (organizações internacionais, jurisdições, instituições acadêmicas, corporações e organizações sem fins lucrativos) com diversos pontos de vista e tem se dedicado a identificar quais são os padrões educacionais para o século XXI, como por exemplo, o Projeto de Educação 2030, da OECD ( Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico). A partir de 32 estruturas, consideradas importantes no mundo inteiro, chegou a quatro dimensões de objetivos para a educação do século 21.

Conhecimento – A educação seguirá no aprendizado de matérias tradicionais e consideradas importantes. No entanto, não cabe mais reproduzir conhecimento, mas sim extrapolar o que se conhece, aplicando esse conhecimento em situações inseridas em uma realidade do mundo real.

Habilidades – É ensinar como se usa o conhecimento. Esta visão redefine a transferência do aprendizado para que as pessoas aprendam em situações novas no mundo real, desenvolvendo a criatividade, o pensamento crítico, a comunicação e a colaboração.

Caráter – Se refere à aquisição e ao fortalecimento de virtudes (qualidades) e valores (crenças e ideais) e à capacidade de se tomar decisões para que a vida seja mais equilibrada e a sociedade mais próspera.

Meta-aprendizado ou ‘aprender a aprender’ – Se refere aos processos internos pelos quais refletimos e adaptamos nosso aprendizado. Está na importância de desenvolvermos ao longo da vida habilidades e motivações, e no entendimento de que, quanto mais aprendemos, mais as concepções que temos do mundo ficam antiquadas. Para isso acontecer, é preciso que o estudo e o ensino sejam dinâmicos e permanentes (lifelong learning), sendo necessário a evolução do currículo estático e único, para um dinâmico que possa ser revisto e atualizado continuamente. Outro ponto é reservar partes do currículo para que possam ser personalizadas aos interesses e objetivos de crescimento pessoal de cada aluno.

Ao invés de se seguir um padrão único e inflexível, o que acaba limitando e desestimulando o indivíduo no próprio aprendizado e no desenvolvimento de sua criatividade, é importante respeitar as diferenças individuais no aprendizado. Isso é mostrado poeticamente na animação Cloudy”. O novo modelo de educação, independente de ser voltado para crianças, adultos ou executivos, deve trazer resultados práticos, como uma maior realização pessoal e profissional, propiciando maior capacidade de participação na sociedade, colaborando para um mundo mais sustentávelPara se adequar a esta realidade, o Fórum Econômico Mundial lançou a Plataforma Reskilling Revolution para ajudar a preparar 1 bilhão de pessoas a conseguir melhores empregos, educação e habilidades essenciais nos próximos 10 anos.

Mesmo diante de pesquisas que demonstram profissionais, estudantes e líderes insatisfeitos com a educação, por que é tão difícil mudar as metodologias, possibilitando melhorias individuais e sociais?

O artigo Cultural Innovation (Inovação Cultural) aponta que para ocorrer mudanças significativas é fundamental desconstruir certos valores culturais que predominam na educação. É importante entender de que forma as empresas, pessoas e mídia atuam, e quais são suas principais crenças, preferências e valores. Por isso, é importante pensar como um sociólogo, dando um passo para trás, identificando aquilo que seja óbvio. Para o autor, somente estes questionamentos abrem novas perspectivas para a inovação.

No livro Relativizando, Roberto Da Matta, propõe um excelente exercício para sairmos da nossa zona de conforto: “torne o familiar em estranho, e o estranho em familiar”. A partir deste pensamento, eu trago alguns autores consagrados que provocaram questionamentos e com isso, possíveis rachaduras no sistema cultural vigente:

 Será que a memorização de grande quantidade de conteúdo ainda é necessária nesta era em que podemos encontrar a resposta para tudo na internet?

 Uma universidade poderia admitir também pessoas com notas mais baixas nos testes e transformá-las em líderes (em vez de admitir apenas aquelas com as notas mais altas, a maioria oriunda de família de maior renda, que possivelmente poderiam torna-se líderes, independentemente dos quatro ou cinco anos de graduação?

Por que, embora os empregadores desejem candidatos com níveis altos de QE, resiliência, empatia e integridade, esses raramente são atributos que as universidades desenvolvem ou selecionam nas admissões?

Os questionamentos acima trazem um ponto importante: colocam o ser humano no centro, da mesma forma que a metodologia apresentada pelo Center for Curriculum Redesign (CCR). Só o ser humano tem capacidade em usar suas emoções para apaziguar conflitos, utilizar o pensamento crítico na tomada de decisões, ou a criatividade na busca de soluções, para um mundo melhor. São visões assim que fazem a diferença.

Como exemplos, cito a professora brasileira, Doani Emanuela Bertan, que é TOP 10 no ‘Global Teacher Prize 2020′, considerado o Nobel da educação. Ela ensina matemática, português, geografia e ciências em Português e em linguagem de Sinais (Libras), no canal de Youtube Sala8, tornando mais acessível o conhecimento a jovens surdos. Outro exemplo é o do professor indiano Ranjitsinh Disale, ganhador do Prêmio Professor Global, que tem contribuído paratransformar a vida de muitas jovens estudanteslivrando-as do casamento precoce, e para que se dediquem aos estudos na Índia. No mundo corporativo o livro 6D: as seis disciplinas que transformam educação em resultados para o negócioapresenta ações estratégicas que têm como objetivo tornar programas de treinamento corporativos mais efetivos e mensuráveis, eliminando obstáculos para que o aprendizado alcance seu pleno potencial e contribua de forma estratégica.

O mundo exige uma educação integrada com a sociedade e com o mercado de trabalho. Somente assim, teremos uma sociedade mais igualitária e próspera. O xeque-mate foi dado, e agora, como cidadãos, temos mais condições de exigir novos modelos de educação e de desenvolvimento como um direito para melhorias individuais e sociais.

Michael Fullan, especialista em reforma educacional, acredita que a ideia seja 25% e a implementação, 75% da solução. Por isso, é urgente colocar a mão na massa. Educadores, escolas públicas e privadas, empresas de treinamento, RH das empresas, corporações, institutos e startups, podem aplicar os resultados dessas pesquisas no mundo real. Testando, errando, avaliando e ajustando em parceria com a sociedade civil. O “xeque mate” na educação foi dado.


Valdir Oliveira: O tempo de Cazuza, a escolha de Sofia e a eleição de 2022

O ano era 1988 e o rock brasileiro apresentava mais uma antológica obra-prima de Cazuza. O tempo não para é um desabafo. Cazuza questionava a elite brasileira ao bradar “a tua piscina está cheia de ratos, tua ideia não corresponde aos fatos, o tempo não para”. O tempo cantado era a esperança de mudança para um mundo melhor.

O cansaço das apostas políticas frustrantes se traduz na descrença de dias melhores. Que visão teve Cazuza quando mostrou que sua geração, criada sob a opressão de uma ditadura, quando se libertou, não conseguiu se livrar das mazelas que tanto combateu. A decepção foi revelada com a música Ideologia, quando o compositor diz “o meu partido, é um coração partido”. A inspiração de Cazuza o fazia refletir sobre o paralelo entre um jovem criado numa repressão, com o anseio da liberdade, e um adulto frustrado com a liberdade mal aproveitada por uma abertura política contaminada por velhas práticas. O coração partido do poeta chorava no verso “e as ilusões estão todas perdidas, os meus sonhos foram todos vendidos, tão barato que eu nem acredito”. É a presença do dilema em nossas vidas, o desafio das escolhas.

Esses dias assisti a um clássico, A Escolha de Sofia. Esse filme eternizou o livro de mesmo nome e faz uma viagem ao holocausto, ao campo de concentração de Auschwitz. Uma polaca, filha de um antissemita, é presa pelos nazistas e mandada ao campo de concentração com seus dois filhos, duas crianças. Com feições arianas e não sendo de uma família judia, Sofia tentou uma condição especial na chegada ao campo de concentração por achar que não se enquadrava no perfil de alvo do nazismo. Mas o sadismo de um oficial nazista impôs à ela uma escolha impossível. Escolher, dentre os dois filhos, qual viveria e qual morreria. Não escolhendo, ambos seriam mortos. A impossível escolha de Sofia.

Um conflito insanável para uma mãe. A vida é permeada de decisões difíceis. A inspiração do poeta Cazuza ensina que a vida, às vezes, toma decisões por cada um de nós, lembrado no verso “Já que eu não posso te levar, quero que você me leve”. A escolha entre caminhos. Não escolhido algum, a vida decidirá.

O ambiente político, nos últimos anos, tem sido contaminado pelo extremismo e pelo ódio. Estamos tomados pela teoria do pêndulo, onde a alternância do poder fica na mesmice, ou como cantou Cazuza “um museu de grandes novidades”. A não concordância com posições nos faz optar pelo extremo oposto, como se não pudesse existir o equilíbrio entre pensamentos e teses distintas. Se não existe uma verdade absoluta, o extremo jamais representará o melhor caminho. Não somos binários. As tradicionais peças do xadrez político nos remetem ao quente ou frio, sem que se possa optar pelo morno. O recado da população foi que mudar é preciso. Os movimentos políticos dos últimos dias colocaram o Brasil na gangorra onde o eleitor estará, novamente, em cima ou embaixo. O equilíbrio é importante para que as eleições de 2022, a festa da democracia, não nos imponham a escolha de Sofia.

O eleitor precisa se transformar no protagonista dessa festa. Caso contrário, será submetido ao interesse dos outros, sujeito a quem faz da política a defesa do interesse próprio. Como diz Cazuza “não me convidaram para essa festa pobre que os homens armaram para me convencer”. Se não tomar a iniciativa, o eleitor pagará a conta, mas não entrará na festa, como Cazuza desabafou na canção, “não me ofereceram nem um cigarro, fiquei na porta estacionando os carros”. Essa é a frustração por deixarmos que os outros decidam o nosso destino. O dilema entre o esperar e o fazer, entre o acomodar e o buscar. A escolha entre passar pela vida ou fazer dela a oportunidade de construir seus próprios sonhos.

Não esperar, não pedir, ir lá e fazer. Essa é a melhor tradução para a palavra mudar. Não é fácil sair da zona de conforto para enfrentar a incerteza de um mundo de injustiças e ingratidões. A definição entre o esperar ou mudar é o que pode evitar a escolha de Sofia. Participar da festa pode ser o caminho de quem não quer decidir entre extremos inconciliáveis. Afinal, já ficou provado que o menos ruim não resolve. O chamado da política consciente deve entrar no jogo de 2022 para que se evite a escolha impossível. O rock marcou as gerações com a irreverência de quem quer mudar, de quem não nasceu para esperar, mas para fazer. Sair da zona de conforto e assumir o protagonismo. A arte de Cazuza nos ensinou a não esperar pela felicidade, mas vivê-la diariamente, como no verso “pro dia nascer feliz, essa é a vida que eu quis”. E qual será a vida que fará cada um, e uma nação, feliz?

Valdir Oliveira é superintendente do Sebrae no DF


DW Brasil: Há 50 anos, morria o maior idealizador da escola pública brasileira

Para especialistas, legado de Anísio Teixeira ainda está presente na organização do ensino nacional. Seu nome batiza o instituto que aplica o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem)

Em 11 de março de 1971, o educador, escritor e jurista Anísio Spínola Teixeira (1900-1971) iria almoçar com o lexicógrafo Aurélio Buarque de Holanda (1910-1989), no apartamento dele, em Botafogo, no Rio. Mas ele foi encontrado morto no fosso do elevador do prédio. Oficialmente, um acidente. Mas muitos acreditam que Teixeira tenha sido vítima da ditadura militar.

Ferrenho defensor da educação universal, laica e gratuita para todos, um dos mais notáveis signatários do Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, de 1932, e um dos idealizadores da Universidade de Brasília (UnB) − da qual seria reitor e, com o golpe de 1964, aposentado compulsoriamente pelos militares − seus posicionamentos e pensamentos incomodavam o regime ditatorial.

Cinco décadas após sua misteriosa morte, especialistas concordam que seu legado ainda é visível na educação brasileira. Em sua tese de doutorado pela Unicamp, de 2018, a pedagoga Maria Cristiani Gonçalves Silva apontou Teixeira como "o maior idealizador e, portanto, a maior referência na luta por uma educação pública de qualidade, igualitária, laica, de dia inteiro, que vise a formação plena de nossas crianças e jovens".

"A ideia de uma escola pública, laica, gratuita e de qualidade para todos é talvez a mais lembrada, mas seu legado é ainda mais amplo. Não é possível discutir educação integral sem recorrer aos escritos de Anísio, que influenciaram as primeiras experiências no país", afirma o ex-secretário de Educação de São Paulo Alexandre Schneider, presidente do Instituto Singularidades e pesquisador da Universidade de Columbia e da Fundação Getúlio Vargas.

"A defesa de um fundo para o financiamento da educação pública livre da influência dos políticos de plantão, e o entendimento da docência como profissão também merecem lembrança. Anísio foi um intelectual que 'colocou a mão na massa', como secretário de Educação da Bahia, em funções no Ministério da Educação e como reitor da UnB, universidade da qual foi um dos idealizadores."

O linguista Vicente de Paula da Silva Martins, professor da Universidade Estadual Vale do Acaraú (UVA) e que estudou o tema em seu mestrado, define como impressionante a "visão ampla de pedagogia" de Teixeira, para quem "a criança deveria ser estudada não apenas em seus aspectos físicos, mas também com relação à sua história, sua relação com o meio e suas origens".

"Muitos pesquisadores em educação mostram o valor da obra de Anísio Teixeira na concepção de educação integral com base no pragmatismo, na compreensão de que o homem se forma e desenvolve na ação", aponta ele.

Escola Nova
Nascido em Caetité, no interior da Bahia, filho de médico e líder político na cidade, Teixeira foi desde cedo incentivado pelo pai a ocupar postos públicos. Estudou em colégios jesuítas e graduou-se na instituição hoje chamada de Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Depois de formado, retornou à Bahia. Aos 24 anos, foi nomeado Inspetor Geral do Ensino, cargo hoje equivalente ao de um secretário estadual.

Teixeira viajou por diversos países europeus e foi aos Estados Unidos para conhecer experiências educacionais. "Foi assim que tomou conhecimento de um movimento muito importante iniciado no final do século 19, identificado por Escola Nova ou Escola Ativa", contextualiza o pedagogo Ítalo Curcio, coordenador do curso de pedagogia da Universidade Presbiteriana Mackenzie.

Nos anos 1930, quando já era secretário de Educação do Rio de Janeiro, Teixeira tornou-se um dos 26 autores do Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova. O documento é considerado um marco inaugural da organização do ensino brasileiro, ao definir premissas que resultariam em um plano nacional de educação e princípios de gratuidade, universalidade, obrigatoriedade e laicidade.

"Além da apresentação de um novo modelo em nível de métodos e estratégias de ensino, destaca-se em Anísio Teixeira sua defesa pelo ensino público e laico, já comum e corrente na maioria das nações mais desenvolvidas", aponta Curcio.

Mais tarde, na década de 1950, o educador passou a atuar pela organização do ensino superior brasileiro. "Estes trabalhos levaram à criação da Coordenação de Aperfeiçoamento de Nível de Pessoal de Nível Superior [Capes], no ano de 1952, da qual foi seu primeiro presidente", completa o pedagogo.

"O maior legado que vemos em Anísio Teixeira é o da perseverança e abnegação da defesa do ensino de qualidade, seja no âmbito público, seja no setor privado", diz Curcio. "Este legado fica claro em suas ações, em diferentes governos, independentemente de linhas ideológicas."

Para o sociólogo Florestan Fernandes (1920-1995), Teixeira foi "o campeão na luta contra a educação como privilégio".

Lei de Diretrizes e Bases
Citada pela primeira vez na Constituição de 1934 − por influência de Teixeira − o Brasil só ganharia sua Lei de Diretrizes e Bases da Educação em 1961. Trata-se do conjunto de normas que regularizam a organização da educação brasileira, a partir dos princípios constitucionais. E o pensamento de Teixeira segue presente, inclusive na versão mais atual, sancionada em 1996 − redigida com grande participação do educador Darcy Ribeiro (1922-1997), que era próximo de Teixeira.

Martins acredita que, não fossem figuras como Teixeira, "dificilmente teríamos uma Lei de Diretrizes e Bases". Ele vê inspiração do ideário do educador em pontos como o artigo 3º da regulamentação, que determina igualdade de condições para o acesso e permanência na escola, pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas, respeito à liberdade e apreço à tolerância, gratuidade do ensino público, garantia de padrão de qualidade, vinculação entre a educação escolar, o trabalho e as práticas sociais e garantia do direito à educação e à aprendizagem ao longo da vida.

"A ampliação das instituições públicas de nível superior, com qualidade compatível às similares internacionais, aprimoramento dos institutos de pesquisa, formação continuada dos professores e o acesso universal à educação básica, itens constantes nas metas do atual Plano Nacional de Educação, são realidades sonhadas e defendidas por Anísio Teixeira desde a década de 1920", avalia Curcio. "E que podem ser vistas hoje, mesmo que com muitas carências ainda."

Para o pedagogo, "pode-se dizer que Anísio Teixeira é o mentor da educação brasileira contemporânea, atuando não somente como planejador, mas também como organizador e inspirador de seus sucessores."

Manter o sonho vivo
"É inegável que a educação no Brasil teve grandes avanços nos últimos 40 anos: há mais crianças e adolescentes na escola, é possível medir a qualidade de ensino, os professores têm nível superior e os mecanismos de financiamento da educação pública estão bem assentados. Por outro lado, ainda estamos longe do sonho de garantir educação de qualidade para todos, as experiências de educação integral ainda são localizadas em escolas de elite ou algumas redes públicas e os profissionais de educação ainda se submetem a longas jornadas de trabalho em diversas escolas", comenta Schneider. "Manter o sonho de Anísio vivo é lutar por escola pública de qualidade para todos como pressuposto do funcionamento da democracia."

Teixeira deixou uma vasta obra. Entre seus livros mais importantes estão Educação é um direito, Educação não é privilégio e A educação e a crise brasileira.

"A maioria dos pressupostos defendidos por ele encontram muita ressonância na escola brasileira hoje", comenta Martins. "As condições de oferta do ensino público, é verdade, ainda deixam muito a desejar."

O educador empresta seu nome a diversas instituições de ensino do país. Autarquia do Ministério da Educação, responsável pela aplicação do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep), que ele presidiu nos anos 1950, também incorporou Anísio Teixeira ao seu nome oficial.


Igow Gielow: Pazuello resume o dano que aderir a Bolsonaro causou aos militares

Gestão desastrosa de general é símbolo da adesão das Forças ao governo Bolsonaro

A desastrosa gestão de Eduardo Pazuello à frente do Ministério da Saúde, ora encerrada, concentra todas as contradições da relação das Forças Armadas com o governo do capitão reformado do Exército Jair Bolsonaro.

General de intendência com três estrelas no ombro, topo de sua carreira, Pazuello gozava de ótima reputação entre seus pares.

Sua fama de coordenador logístico foi criada durante o exercício multinacional Amazonlog-17, em 2017, no qual foi simulado o atendimento humanitário a refugiados nas fronteiras amazônicas do Brasil com a Colômbia e com o Peru.

Ela acabou consolidada na prática, com a Operação Acolhida de refugiados da ditadura venezuelana em 2018, gerenciada por Pazuello.

Foi elogiado efusivamente pelo ex-comandante do Exército Eduardo Villas Bôas, no seu polêmico livro-depoimento. Para ele, “sem falsa modéstia, [Pazuello] fez com que nos tornássemos referência mundial”.

Na Saúde após a não-passagem de Nelson Teich na esteira da implosão política de Luiz Henrique Mandetta, Pazuello comprovaria o adágio segundo o qual os militares “cumprem missão e resolvem problemas”.

A questão é que o problema estava acima das capacidades do general e a missão, explicitada quando ele baixou a cabeça a Bolsonaro e freou a compra de vacinas no ano passado, estava corrompida.

A adesão tardia à vacinação e ao distanciamento social e o entusiasmo pela coloroquina, por motivação política contra a Coronavac de João Doria ou simples cegueira epidemiológica, ajudaram o país a se tornar um celeiro de variantes mais mortíferas do Sars-CoV-2.

São ao menos dez processos sobre o manejo da pandemia, com a crise de Manaus como seu maior símbolo, que podem colocar Pazuello, e por extensão simbólica os militares, no banco dos réus.

Houve crises secundárias, como a maquiagem de números da Covid-19, a bizarra militarização de postos na Saúde e até a escolha de uma amiga para um cargo comissionado do ministério por Pazuello. Isso tudo temperado pelo tom autoritário em qualquer entrevista coletiva.

Generais da ativa, em campanha para tentar dissociar sua imagem daquela dos fardados no governo, perceberam que o fato de Pazuello não ter ido à reserva cobraria um preço ainda maior da corporação.

Houve todo tipo de pressão para que isso acontecesse, mas o fato é que o militar não só ficou na ativa, mas ainda operou uma tentativa de saída honrosa articulando uma inexistente promoção para a quarta estrela.

Ao fim, com 2.000 cadáveres sendo empilhados diariamente devido à pandemia no Brasil, Pazuello cedeu, assim como Bolsonaro —no caso, à pressão de seus novos amigos do centrão e à entrada avassaladora de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) no jogo de 2022.

Para as Forças Armadas, Exército à frente, sobrou o ônus de imagem.

A ideia acalentada pelos militares que viram em Bolsonaro o caminho para a idealização de seu antipetismo e para a redenção final de imagem pela ditadura era a de que forneceriam quadros qualificados para um novo tipo de governo.

Enquanto suas capacidades estavam circunscritas à falta de articulação política ou às ideações paranoides da área de inteligência, o público não tinha muito o que dizer.

Quando a incapacidade ou, na visão de pessoas que o admiram, o respeito à hierarquia de Pazuello se impuseram e legaram o pior da crise ao país, a história é outra.

Pois a adesão a Bolsonaro, descrita de forma didática no livro de Villas Bôas, traz intrínseca uma armadilha: militares são seres que respeitam hierarquias.

Assim, declarações golpistas do hoje vice-presidente Hamilton Mourão foram punidas tanto no governo Dilma Rousseff (PT) quanto no de Michel Temer (MDB).

Quando vários oficiais-generais, da ativa e da reserva, migraram para o governo Bolsonaro, a identificação ficou patente.

A ameaça de crise institucional de 2020, quando Bolsonaro namorou hordas golpistas na rua, engolfou a cúpula militar, Ministério da Defesa incluso.

Como reação àquele momento crítico, houve um afastamento crescente da ativa, culminando numa fala do sucessor de Villas Bôas, Edson Leal Pujol, que parecia ter riscado uma linha divisória no chão.

Pazuello na Saúde apagou tal fronteira. Sua saída deverá facilitar o restabelecimento dela, mas o dano à imagem dos fardados vai demorar muito mais tempo para ser consertado.

Isso se deve às opções feitas sob a supervisão de Villas Bôas, outro ícone militar brasileiro. Essa autocrítica, feita apenas à boca miúda por alguns setores, ainda está para ser feita.