Eliane Cantanhêde: Causa e efeito - Brasil afunda na pandemia, Bolsonaro cai nas pesquisas e no Centrão
Quem planta vento colhe tempestade e presidente que trata a covid-19 com sarcasmo paga com impopularidade
Quem planta vento colhe tempestade e presidente que trata a covid-19 com sarcasmo paga com impopularidade. Numa profunda e drástica relação de causa e efeito, o Brasil vive uma catástrofe sem precedentes com a pandemia e o presidente Jair Bolsonaro passa por seu pior momento, uma ilha cercada de desastres e más notícias por todos os lados.
O melhor índice do Ministério da Saúde no combate à pandemia, de 76%, foi quando o então ministro Luiz Henrique Mandetta traçava estratégias, tomava providências efetivas e mantinha a população rigorosamente informada. Segundo o Datafolha, esse índice esfarelou para 28% desde Mandetta até o general Eduardo Pazuello.
Assim como não consegue admitir a gravidade da covid-19, Bolsonaro nunca foi capaz de compreender duas obviedades: 1) só combatendo a pandemia é possível reduzir os danos na economia, na renda e nos empregos; 2) o sucesso de Mandetta e da Saúde seria o seu próprio sucesso, seu passaporte para a reeleição.
Por ignorância, teimosia e a mania de dar ouvidos a idiotas, Bolsonaro fez o oposto, demitiu Mandetta e desdenhou a pandemia. O resultado está aí, com recordes de mortos e contaminados, vacinas a conta-gotas, colapso da saúde, descontrole fiscal, quebra-quebra de empresas e... queda de popularidade e de confiança em Bolsonaro: 56% consideram Bolsonaro incapaz de liderar o País.
Pandemia, crescimento baixo, inflação alta (sobretudo para alimentos), aumento dos juros básicos após seis anos dos menores níveis da história e sucessivas altas dos combustíveis têm efeito direito sobre o humor da população – e dos eleitores. E o auxílio emergencial, que demora, é muito menor do que já foi.
No Judiciário, o Superior Tribunal de Justiça (STJ), que parecia tão amigável, impôs duas derrotas ao “01”, senador Flávio Bolsonaro. Isso nos lembra que oito dos 11 ministros do STF tinham sido nomeados nos mandatos petistas, mas seis deles votaram contra o habeas corpus que livraria o ex-presidente Lula da cadeia. Amigos, amigos, votos à parte. E eles nem são tão amigos assim dos Bolsonaros.
Papai Bolsonaro, assim, está sendo compelido a tomar várias medidas em prol da sobrevivência. A mais vistosa é que ele continua negacionista e falando absurdos como sempre, mas demitiu o general da Saúde e nomeou o quarto ministro em dois anos, Marcelo Queiroga, sem alterar a máxima de que “um manda, o outro obedece”.
Na economia, o presidente continua corporativista, antiliberal e oportunista, fingindo que prestigia o ex-Posto Ipiranga Paulo Guedes, enquanto puxa o tapete dele dia sim, outro também. A última: depois de acertar com Guedes o veto à anulação de dívidas de igrejas com a Receita Federal, ele avalizou a derrubada do próprio veto no Congresso. Jogo duplo. E sujo.
Na política, presidente fraco equivale a Legislativo forte – e a Centrão ganancioso. A aliança fica mais cara quando Bolsonaro cai nas pesquisas e desconvida a médica Ludhmila Hajjar, indicada pelo Centrão, para pôr na Saúde o Queiroga, amigo dos filhos. O presidente da Câmara, Arthur Lira, defensor de Hajjar, agora, bem atrasado, teme que a crise da covid “vire vexame internacional”. E o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, tem uma carta na manga: a CPI da Pandemia.
Bolsonaro está diante de 300 mil mortos de covid, colapso da saúde, desemprego, inflação, dólar alto, gasolina cara, aumento de juros, queda nas pesquisas, agitação no Centrão, risco de CPI e Lula no cangote. Lula é o catalisador das esquerdas. As conversas do centro com a esquerda esquentam. O senador Major Olimpio, morto ontem de covid, fortalece o bolsonarismo arrependido à direita. Nada, porém, tão devastador contra Bolsonaro do que o próprio Bolsonaro.
Folha de S. Paulo: Para 79%, pandemia de coronavírus está fora do controle, e medo é recorde, mostra Datafolha
Pesquisa coincide com colapso hospitalar país afora e registros diários de quase 3000 mortes por Covid
Angela Pinho, Folha de S. Paulo
No momento em que o sistema de saúde entra em colapso por todo o país e o governo Bolsonaro anuncia seu quarto ministro da área, o medo de pegar o coronavírus e a percepção de que a pandemia está fora de controle atingem níveis recordes.
Pesquisa Datafolha mostra que 79% dos brasileiros acham que a pandemia está sem controle, ante 62% que manifestavam essa opinião em janeiro.
Outros 18% dizem que a situação está parcialmente controlada, 2% que está totalmente controlada, e 1% não sabe.
O levantamento, com margem de erro de dois pontos percentuais, foi feito por telefone com 2.023 pessoas de todos os estados do país nos dias 15 e 16 de março.
No domingo (14), as movimentações para a substituição do general Eduardo Pazuello do posto de ministro da Saúde ganharam força, com a ida da médica Ludhmila Hajjar a Brasília para uma conversa com o presidente Jair Bolsonaro.
Ela acabou por recusar o cargo, e a troca foi efetivada na segunda-feira, com o cardiologista Marcelo Queiroga no lugar de Pazuello, desgastado após a crise da falta de oxigênio em Manaus e atrasos e falhas logísticas na distribuição de vacinas.[ x ]
Queiroga assume em meio a uma rápida e trágica escalada de mortes pela Covid-19. Nesta quinta-feira (18), o país completou 20 dias seguidos de recordes na média móvel de óbitos, que chegou a 2.096.
Desde o início da pandemia, quase 288 mil brasileiros já morreram pela doença.
Em meio às notícias sobre falta de leitos para pacientes em diversas partes do país, a parcela da população com temor de se infectar pelo vírus alcançou nível recorde.
A pesquisa Datafolha mostra que 55% dos entrevistados declaram ter muito medo, enquanto o levantamento anterior, de janeiro, registrou 44%. Outros 27% têm um pouco de medo, 12% não têm, e 7% relataram já ter contraído a doença.
Diz ter muito medo uma parcela mais expressiva das mulheres (61% ante 48% dos homens), dos mais velhos (58% da faixa etária com 45 anos ou mais, ante 48% dos de 16 a 24) e moradores do Nordeste (61% contra 44% da região Sul).
Mas mesmo entre os homens houve aumento significativo entre os que manifestaram ter muito temor da doença: de 33% no levantamento em janeiro, essa parcela foi para 48% entre eles. Entre elas, passou de 55% para 61%.
Também passou a declarar muito medo uma parcela maior dos segmentos de jovens de 16 a 24 anos (foi de 34% para 48%) e dos mais ricos, com renda mensal de mais de dez salários mínimos (passou de 41% para 55%).
Esses estratos têm sido particularmente afetados na atual fase da pandemia. Na esteira de aglomerações no final do ano e no Carnaval, médicos têm observado uma presença maior de pacientes jovens nas UTIs.
Em um cenário de esgotamento generalizado da capacidade de atendimento, o acesso a plano de saúde não é mais suficiente para garantir atendimento. Hospitais privados de ponta têm unidades lotadas, e parte deles já chegou a pedir leitos para o SUS em São Paulo.
O colapso na saúde no país contrasta com cenas de aglomerações e eventos clandestinos. Em São Paulo, onde já se registra morte por falta de leito de UTI, o índice de de isolamento social estava em 43% na quarta-feira (17), longe da meta do governo paulista de 50%.
A pesquisa Datafolha mostra que a não adoção de distanciamento não decorre necessariamente de desconhecimento sobre a gravidade da pandemia.
A percepção de que a disseminação da doença está fora de controle é majoritária mesmo entre os que estão vivendo normalmente, sem nenhuma medida extra de isolamento.
Nessa parcela da população, a maioria ou tem muito medo (26%) ou um pouco de medo (29%) de contrair a Covid-19. Já 34% declaram não ter receio.
Consenso entre especialistas para frear um vírus transmitido principalmente por gotículas de saliva e aerossóis, o isolamento social vem sendo combatido pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido) desde o início da pandemia, com aglomerações e falas nesse sentido.
Ele chamou de histeria, mimimi e fantasia a reação ao vírus. “Vão ficar chorando até quando?”, indagou no início do mês.
A alternativa mais eficiente ao distanciamento social é a vacinação, que patina no país. Além da demora em firmar contratos com fornecedores, o governo Bolsonaro já adiou sucessivas vezes o cronograma de aplicação dos imunizantes já aprovados na Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária).
Não por acaso, a percepção de que a pandemia está fora do controle é mais alta entre os que reprovam o governo Bolsonaro (94%) e entre os que não confiam em suas declarações (93%).
É maior também entre mulheres (85%, contra 73% entre os homens) e entre os mais pobres (82% ante 69% dos mais ricos).
Considerando-se a religião, a parcela dos entrevistados pelo Datafolha que declara ter muito medo de pegar a Covid é maior entre os católicos (61%) do que entre os evangélicos (45%). Já a percepção de que a pandemia está fora de controle não varia tanto entre os dois grupos —fica em 81% e 76%, respectivamente.
Diante do pior momento da pandemia e da possibilidade concreta de enfrentar o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) na disputa eleitoral de 2022, Bolsonaro agora ensaia discurso a favor da vacinação em massa, contrariando diversas declarações pelas quais colocou em dúvida a confiabilidade dos imunizantes.
Michel Temer: Fora da Constituição não há solução
Tendência a ignorar a Carta Magna causou todas as distorções de que hoje somos vítimas
Que bom seria se todos cumprissem a Constituição da República. Não teríamos os atropelos que hoje se verificam no Brasil. Se cada um, especialmente as autoridades constituídas, se mantivessem no exercício das tarefas determinadas pela Lei Magna, o mundo seria outro.
Tornou-se inafastável registrar o óbvio. Primeiro, é que a Constituição é o documento que organiza um povo num determinado território. São regras imperativas, cogentes, das quais ninguém, especialmente os que dirigem os negócios públicos, podem afastar-se. Até porque a única autoridade existente é o povo. Só tem autoridade quem tem poder. Os cidadãos comuns são súditos do Estado. As autoridades públicas são as que dirigem o País. São os que exercem o poder orgânico (Legislativo, Executivo e Judiciário) e espacial (União, Estados, municípios e Distrito Federal). São autoridades constituídas. Não são primárias, são secundárias, derivadas. Tanto ou mais do que os súditos, devem prestar obediência rigorosa ao que determina a Lei Maior. Essas autoridades têm dever mais acentuado do que os súditos porque seus gestos governativos podem causar prejuízo à coletividade. Não é sem razão que o particular pode fazer tudo o que não é proibido, ao passo que a autoridade pública só pode fazer o que é permitido pelo Direito.
No Brasil de hoje há discordância radical que atinge o nível da pessoalidade entre os brasileiros. Há ódios latentes e explicitados entre pessoas e instituições. A Constituição não os autoriza. Ao contrário. Logo no preâmbulo (antes de entrar no texto) existem as palavras paz e pacificação tanto nas relações internas como internacionais. É importante a alusão ao preâmbulo porque ele dá a motivação política que produziu o texto constitucional. Mas na Constituição está escrito que todos são iguais perante a lei, não podendo haver distinção de qualquer natureza entre pessoas e credos. Recado constitucional: unam-se todos. Em outro trecho está dito que os artefatos nucleares só podem ser utilizados para fins pacíficos. Nada de belicosidade.
Outro ponto: a Constituição determina a harmonia entre os órgãos do poder. Essa harmonia deriva do diálogo entre os Poderes. Desarmonia significa violação da vontade proclamada pela soberania popular. Portanto, inconstitucionalidade.
No Estado democrático, uma das suas âncoras é o Judiciário, cuja tônica há de ser a imparcialidade, que vem de in-parte, ou seja, não é parte interessada no litígio. Se tenho violação de um direito meu, sei que posso dirigir-me a ele, sabendo-o isento e imparcial, para aplicar o Direito tal como positivado, e não segundo inclinações públicas ou publicadas. Neste momento, convém anotar que nós temos o mais longo capítulo de direitos individuais que o mundo conhece. São 78 incisos do artigo 5.º, que não são exaustivos. São exemplificativos, já que seu parágrafo 2.º diz que outros podem ser invocados.
Tome-se o caso da nobre instituição do Ministério Público. Competem-lhe funções relevantíssimas, entre as quais a de manter a ordem democrática, preservar a probidade administrativa, aplicando corretamente o fenômeno chamado justiça, que nada mais é do que a aplicação correta do sistema normativo. Ele é promotor de justiça. Portanto, cabe-lhe promover a justiça. E justiça é o que deriva do texto constitucional. O que se vê muitas vezes, lamentavelmente, é o Ministério Público fazendo as vezes de “parte” que busca simplesmente “ganhar” a questão. Aliás, está escrito na Constituição, que o Ministério Público tem autonomia “funcional”. Nas funções do órgão Ministério Público ninguém pode interferir. Entretanto, interpretou-se essa autonomia como sendo individual, podendo cada membro agir da maneira que lhe seja conveniente.
Esse fato da individualização se estendeu a outros órgãos da administração, sempre em busca de poder.
Toda essa forma de proceder resultou em grande instabilidade jurídico-institucional. Vejam-se os últimos acontecimentos, quando uma incompetência processual foi decretada quase cinco anos depois, além de se levantar o tema da suspeição que está sob exame. Será que isso não derivou de as pessoas não estarem nos seus papéis jurídico-constitucionais?
Outro exemplo é o caso da pandemia. A solução constitucional é simples. Está dito na Carta Magna que a União edita normas gerais e, concorrentemente, os Estados editam normas especiais, de acordo com as realidades locais, e os municípios ainda podem suplementar, na saúde, a legislação federal e estadual.
Essas dicções estão solarmente estampadas no texto constitucional. Mas a tendência a ignorá-las e sair, permitam-me dizer, do “seu quadrado” é que provocou todas as distorções de que hoje todos somos vítimas. Fala-se, aliás, muito em segurança jurídica, como se esse fosse um conceito desapegado da ordem normativa. Mas não é. A sua solução tem a mesma singeleza de tudo quanto inicialmente já escrevi. Segurança jurídica vem do cumprimento rigoroso da ordem jurídica. Por isso reitero a proclamação: fora da Constituição não há solução.
*Advogado, professor de Direito Constitucional, foi presidente da República
Bernardo Mello Franco: Estado de intimidação
A PM de Brasília prendeu cinco manifestantes que abriram uma faixa contra o presidente na Praça dos Três Poderes. A notícia remete aos anos de chumbo, quando os militares perseguiam quem ousasse contestar a ditadura. Aconteceu ontem, sob o governo de Jair Bolsonaro.
A escalada autoritária é liderada pelo Planalto. O ministro da Justiça, André Mendonça, ressuscitou a Lei de Segurança Nacional para enquadrar os críticos do chefe. Já mandou a Polícia Federal instaurar inquéritos contra jornalistas, advogados e até cartunistas.
Agora o exemplo do pastor inspira bolsonaristas nas polícias civis e militares. Num país governado por um fã do AI-5, há sempre um guarda da esquina disposto a rasgar a Constituição.
O professor Conrado Hübner Mendes, da Faculdade de Direito da USP, considera que o Brasil já vive sob um “estado de intimidação”. “O objetivo das investidas policialescas é gerar um clima de medo e autocensura. É uma forma de repressão preventiva”, define.
A crônica dos abusos só aumenta. No Rio Grande do Sul, professores foram processados por criticar o presidente. No Rio de Janeiro, pesquisadores foram intimados por denunciar o desmonte da Casa de Rui Barbosa.
No Tocantins, o ministro Mendonça mandou a PF investigar um sociólogo que pede impeachment de Bolsonaro. Seu crime foi escrever, num outdoor, que o capitão “não vale um pequi roído”. O pequi ainda não foi ouvido para se defender da comparação.
Os manifestantes de Brasília foram enquadrados na LSN porque chamaram o presidente de “genocida”. Três dias antes, o youtuber Felipe Neto foi convocado a depor pelo mesmo motivo. Em ambos os casos, recorre-se a uma lei da ditadura para sufocar a liberdade de expressão na democracia.
“A LSN está sendo usada para perseguir quem critica o governo. Isso é um abuso de autoridade e um ataque ao Estado democrático de direito”, diz o advogado Augusto de Arruda Botelho. Ele ajudou a fundar o grupo Cala a Boca Já Morreu, que vai oferecer defesa gratuita a novas vítimas da caça às bruxas.
Enquanto o Supremo não varre o entulho autoritário da LSN, o bolsonarismo continua a cultuar a tirania. A Justiça Federal acaba de autorizar o Exército a festejar o 57º aniversário do golpe de 1964. Se a decisão não for reformada, os militares poderão praticar o esporte preferido do seu comandante em chefe.
Vera Magalhães: Sociedade civil, finalmente, inicia reação ao arbítrio
E pur si muove!
Não se sabe se Galileu Galilei de fato proferiu a famosa frase depois de ter renegado a teoria heliocêntrica e se retratado perante a Inquisição, mas ela é, até hoje, um libelo em favor da razão e da Ciência — e contra a censura e a perseguição político-religiosa.
Sim, a Terra gira em torno do Sol, e não o contrário. (Além de se mover, ela é redonda, como recentemente atestou até Jair Bolsonaro, ao aparecer com um globo terrestre movido a pilha numa das suas infernais lives semanais.)
A frase imputada a Galileu me voltou à mente diante da resistência cívico-jurídica organizada pelo influenciador Felipe Neto, que, diante da tentativa de intimidação judicial que sofreu por parte de Carlos Bolsonaro, filho e guarda-costas do presidente da República, montou uma rede com alguns dos melhores advogados criminalistas do Brasil, para defender gratuitamente aqueles que vierem a ser perseguidos por se manifestar contra o governo e o capitão.
A inaceitável tentativa de enquadrar o youtuber na Lei de Segurança Nacional caiu por ora, graças a uma liminar, mas a ameaça autoritária já há muito saiu do campo da possibilidade e da retórica para virar realidade cotidiana.
Nesta quinta-feira, foi a vez de manifestantes serem presos por protestar em frente ao Palácio do Planalto portando cartazes e faixas chamando Bolsonaro de “genocida”.
A Polícia Militar do Distrito Federal executou a ação e tentou envolver a Polícia Federal, que liberou os manifestantes e, desta vez, não participou da tentativa de cerceamento à livre manifestação.
Digo “desta vez” porque, acionada diretamente pelo ministro da Justiça, André Mendonça, a mesma PF abriu recentemente inquérito contra um sociólogo do Tocantins que confeccionou um outdoor dizendo que o presidente vale menos que um caroço de pequi roído.
O cerco não é hipotético, não se trata de paranoia da oposição nem de exagero dos críticos. Mais: ele é alimentado pelo recurso cada vez mais frequente do próprio presidente a ameaças veladas ou abertas a medidas “drásticas” ou “precipitadas”, como ele fez nesta quinta naquele bate-papo com puxa-sacos no cercadinho do Alvorada.
Que haja por parte da sociedade civil organizada — influenciadores, advogados, artistas, jornalistas — a organização de respostas claras, imediatas, destemidas e, sobretudo, concretas a esse caldo de cultura golpista é, finalmente, um alento, uma vez que as instituições, que tenho cobrado a cada artigo neste espaço, seguem inertes.
Bolsonaro é, cada vez mais, um bicho acuado. Pela própria covardia, pelo negacionismo que praticou neste ano de pandemia — e que é, sim, o grande responsável pela maioria das mais de 287 mil mortes registradas pela Covid-19 — e pela falta de equipe e de bússola que tire a ele e ao país desta gravíssima crise sanitária, econômica, social, moral e política que atravessamos.
Alguém com pendor autoritário assim assustado é um perigo para um país já traumatizado e com instituições frouxas, dirigidas por homens frouxos. Ainda bem que alguém encabeçou uma ação de fácil compreensão e rápida eficácia.
Felipe Neto, diante dos inquisidores, berrou que a Terra se move, sim, e continuará se movendo a despeito da tentativa de mordaça. E não é a primeira vez: no episódio na censura do ex-prefeito Marcelo Crivella a quadrinhos na Bienal do Rio, em 2019, foi o “moleque”, como gostam de bradar os bolsonaristas, a ir lá e comprar todos os livros com temática LGBTQIA+ e distribuir gratuitamente.
Para além das notas de repúdio e da indignação diluída das redes sociais, esse tipo de iniciativa gera resultado. Que ela inspire os que são pagos por nós para zelar pela democracia.
Lei Mariana Ferrer: Senado recebe projeto de proteção a vítimas de estupro em julgamento
Aprovado pela Câmara, texto obriga juiz a excluir do processo manifestação que ofenda a dignidade da vítima e punir excessos de advogado do réu
Cleomar Almeida, Coordenador de Publicações da FAP
Depois de ser aprovado na Câmara dos Deputados, o Senado vai analisar projeto de lei que proíbe o uso de linguagem, informações ou material que ofenda a dignidade de vítimas de estupro ou de testemunhas. Pela proposta, juízes ficam obrigados a zelar pela integridade delas em audiências de instrução e julgamento sobre crimes contra dignidade sexual.
O Projeto de Lei 5.096/20 foi aprovado, pela Câmara, em regime de urgência, nesta quinta-feira (18/3), com votos de parlamentares do Cidadania, ao qual a FAP (Fundação Astrojildo Pereira) é vinculada. Com autoria da deputada Lídice da Mata (PSB-BA), a proposta foi subscrita por 25 parlamentares de diversos partidos
A apresentação da proposta é uma reação do Legislativo ao caso da promoter e influenciadora digital Mariana Ferrer, popularmente conhecido como “estupro culposo”. Em audiência divulgada no início de novembro do ano passado, a jovem foi alvo de humilhações por parte do advogado de defesa do empresário André Aranha, que foi inocentado do crime de estupro contra ela.
Manifestação ofensiva
De acordo com substitutivo da relatora, deputada Alice Portugal (PCdoB-BA), o juiz deverá excluir do processo qualquer manifestação que ofenda a dignidade da vítima ou de testemunha. O texto diz que, se houver excessos, o advogado do réu ou outras partes poderão ser denunciados, com pena de responsabilização civil, penal e administrativa.
A determinação, conforme a proposta, será aplicada em audiências de instrução e julgamento, especialmente em crimes contra a dignidade sexual, e em juizados de pequenas causas. Por isso, segundo o texto, o magistrado deverá garantir o cumprimento da lei.
É consenso entre as parlamentares de que o projeto deverá garantir dignidade à vítima de estupro, que, segundo elas, se expõe ainda mais ao exibir sua dor e fragilidade em tribunal de Justiça. No caso de Mariana Ferrer, elas entendem que o advogado de defesa do réu a atacou duramente, reproduzindo clichês de revitimização, ao afirmar que ela estava com roupa curta ou vestido decotado.
Aumento da pena de coação
Além disso, o projeto aumenta, de um terço até a metade, a pena do crime de coação no andamento do processo que envolve crime contra dignidade sexual. No Código Penal, a pena para coação no curso do processo é de reclusão, de um a quatro anos, e multa, além da pena correspondente à violência.
Esse crime, de acordo coma legislação, é caracterizado pela atitude contra autoridade, qualquer das partes, pessoa que trabalhe ou é chamada a intervir em processo judicial, policial ou administrativo, ou mesmo no juízo arbitral.
Fernando Gabeira: Sombrio panorama na terra do sol
São os preconceitos e o obscurantismo de um obtuso que definem a política contra a covid
Quando desistiu do cargo de ministro da Saúde, a dra. Ludhmila Hajjar afirmou que o panorama no Brasil é sombrio. Diria que é singularmente sombrio, por algumas razões. O Brasil é o único país que teve quatro ministro diferentes durante a pandemia. E desponta como o segundo colocado no mundo em número de mortos, que deve chegar próximo dos 300 mil neste fim de semana.
Para completar o quadro, uma nova variante do coronavírus não só tem contribuído para expandir o vírus, esgotando os leitos de hospital, mas também vai devastando uma parte da juventude, setor da população que estava mais protegido na primeira onda da pandemia.
Apesar de toda a gravidade do momento, a dra. Ludhmila tinha esperanças. Afinal, fora chamada para conversar sobre o cargo pelo presidente Bolsonaro. Isso significava, aparentemente, que o próprio governo queria mudar. Convocava uma especialista para quem a política do governo contra a covid-19 é um conjunto de erros.
A dra. Ludhmila foi massacrada pelos hostes bolsonaristas e o presidente recuou. Ela falava uma linguagem muito próxima do que dizem os médicos e a maioria esmagadora dos políticos. E, consequentemente, muito distante da família Bolsonaro e de seus dogmas diante da pandemia.
Embora não tenha sido escolhida para o ministério, a dra. Ludhmila, em curtas e fragmentadas declarações, acabou reafirmando uma série de pontos vitais no combate ao coronavírus, uma espécie de consenso nacional do qual só não participam a família Bolsonaro e seus seguidores.
Ponto decisivo no seu programa de trabalho era criar um comitê de crise que atendesse governadores e prefeitos 24 horas por dia. Uma resposta ao clamor de todos por uma coordenação nacional.
Outra indicação importante é a ideia de ser preciso adotar medidas de isolamento social, mesmo que se chegue necessariamente a um lockdown em todo o País, grande e complexo demais para ser abordado com uma única medida.
Admitir que não existem remédios eficazes contra a covid-19 não significa que se deva deixar de buscar contatos com todo o mundo científico, com abertura a todas as iniciativas que se mostrem eficazes e seguras. Mas tudo dentro de uma linha de raciocínio que privilegie a vacina.
Esse ponto de intensificar a vacinação como saída não só para poupar vidas, como retomar a economia, é tão consensual que o próprio governo Bolsonaro decidiu adotá-lo depois de meses de hesitação e sabotagem. O ex-ministro Mandetta calcula que era possível começar a vacinação nos últimos meses de 2020 se o governo tivesse aproveitado a oportunidade. Perdemos meses e continuamos perdendo tempo, apesar da contratação de 545 milhões de doses.
Ao falar do tratamento da covid, a dra. Ludhmila mencionou também a necessidade de protocolos e treinamento adequado. Há gente morrendo porque foi intubada de forma equivocada.
Acrescentaria a isso algo que ela não mencionou, mas circula nos meios especializados: a necessidade de contratar mais gente, no mínimo 50 mil novos funcionários. De fato, as equipes de trabalho estão esgotadas, física e psicologicamente.
Um ponto novo no debate foi incluído também nas declarações da dra Ludhmila: a necessidade de um esforço nacional para recuperar vítimas de covid-19, tratar as sequelas, propiciar que voltem ao trabalho. É uma tarefa também para o SUS, uma vez que milhares de pessoas não têm recursos para pagar um processo de reabilitação. Os preços são muito altos. Na briga de governo federal e Estados para que Brasília pagasse leitos de UTI, ficou claro que um único leito desses custa R$ 1.600 por dia. Sem o SUS os pobres morreriam nas enfermarias.
Um novo ministro da Saúde foi escolhido e esses temas foram varridos para debaixo do tapete, ao menos por enquanto. O ministro Marcelo Queiroga não tem projeto próprio. Já disse que executará uma política do governo. É uma versão mais palatável do general Pazuello: um manda, o outro obedece. No fundo, Queiroga está dizendo a mesma coisa, sem refletir como é limitada uma política de governo definida pelos preconceitos e pelo obscurantismo de Bolsonaro.
O presidente sempre subestimou a pandemia, sempre considerou um ato contra o seu governo restringir a circulação de pessoas, sempre acreditou em remédios milagrosos, em vez de investir na vacina, que bombardeou das trincheiras da ideologia e da pura superstição.
O fato de ter-se recusado a aceitar os seus erros e investir na mudança personificada pela dra. Ludhmila mostra também como Bolsonaro está isolado. Nem os presidentes da Câmara e do Senado, ambos eleitos com seu apoio, o acompanham em sua política contra a pandemia.
Ainda não se percebeu que a tão decantada frente ampla existe de uma forma que beira o consenso quando se trata da pandemia. Bolsonaro está só com sua família e a minoria de seguidores. A existência de um quase consenso dessa importância é animadora, mas o fato de instrumentos tão poderosos estarem nas mãos de um presidente obtuso torna o panorama sombrio.
Com armamento da população, Bolsonaro acena para guerra civil, diz Raul Jungmann
Em artigo na revista Política Democrática Online de março, ex-ministro analisa gravidade da política do presidente
Cleomar Almeida, Coordenador de Publicações da FAP
O armamento da população, como pretende o presidente Jair Bolsonaro (sem partido), fere o papel constitucional das Forças Armadas, segundo o ex-ministro da Defesa e ex-ministro extraordinário da Segurança Pública Raul Jungmann, em artigo que publicou na revista Política Democrática Online de março.
A revista mensal é produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania. A versão flip, com todos os conteúdos, pode ser acessada gratuitamente na seção de revista digital do portal da entidade.
De acordo com ele, ao propor armar a todos, o presidente está, consecutivamente: quebrando o monopólio da violência legal, privativa do Estado Nacional, ferindo o papel constitucional da Forças Armadas e acenando com a hipótese de um conflito de brasileiros contra brasileiros, uma guerra civil.
Armamento massivo
“Isso nos motivou a redigir uma carta aberta ao Supremo Tribunal Federal, onde tramitam ações contrárias a política de armamento massivo, alertando para os riscos para a segurança pública e para a estabilidade democrática”, lembra Jungmann, que também é ex-deputado federal.
No curso da divulgação da carta, conta Jungmann, a repercussão superou expectativas na mídia tradicional, nas redes, colunas de opinião e junto a vários formadores de opinião. “O que talvez queira dizer da preocupação das pessoas com o tema e a percepção dos riscos envolvidos numa política armamentista. E existem razões concretas para tal”, assevera.
Em seu artigo na revista da FAP, o ex-ministro cita dados da Polícia Federal, segundo a qual, em 2020, o registro de armas de fogo cresceu 90% em relação ao ano anterior, o maior crescimento de um ano para outro já registrado pela série histórica.
Escalada de mortes
“Do outro lado da moeda, as mortes violentas, que iniciam uma queda em 2018 (ano em que éramos Ministro da Segurança Pública) e continuaram caindo em 2019, retomaram sua escalada em 2020”, pondera ele.
Na revista Política Democrática Online, o autor lembra, ainda, que entidades diversas da sociedade civil e ongs se mobilizaram promovendo um abaixo assinado em apoio à carta aberta, que, segundo ele, já conta com mais de dez mil assinaturas. O documento deve ser entregue a ministros do STF em breve.
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Luiz Carlos Azedo: Covid-19 traumatiza o Congresso
Bolsonaro continua sabotando os esforços de governadores e prefeitos para reduzir a propagação do vírus com medidas mais rígidas de isolamento social
A morte do senador Major Olimpio (PSL-SP) traumatizou o Congresso, principalmente o Senado, cujo presidente, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), decretou luto oficial de 24 horas no Legislativo. Na Câmara, o presidente Arthur Lira (PP-AL) restringiu ao máximo o funcionamento da Casa: proibiu reuniões presenciais das comissões e ampliou o trabalho em home office dos funcionários. Com a morte do terceiro senador por covid-19, a pressão sobre o presidente Jair Bolsonaro para uma mudança na política sanitária aumentou muito. Mesmo na base do governo, a insatisfação é generalizada.
Major Olimpio foi o terceiro senador a falecer vítima da doença, com a diferença de que, aos 58 anos, era bem mais jovem do que Arolde de Oliveira (PSD-RJ), que faleceu em outubro, aos 83 anos, e José Maranhão, de 87 anos, que morreu em fevereiro passado. Dois senadores também contraíram a covid-19, provavelmente na mesma reunião com prefeitos da qual participou Major Olimpio: Lasier Martins (Podemos-RS), que teve alta do Hospital São Lucas, em Porto Alegre, ontem, após 13 dias de internação; e Alessandro Vieira (Cidadania-SE), que deve receber alta hoje, depois de ser internado na semana passada.
Com a falta de empatia que o caracteriza, o presidente Jair Bolsonaro deu novas declarações colocando em dúvida as informações sobre ocupação de leitos de hospitais, além de criticar, mais uma vez, a política de isolamento social. Suas declarações geraram reações de governadores e prefeitos, ainda mais porque os hospitais, por causa das UTIs lotadas, estão começando a esgotar os estoques de oxigênio e medicamentos usados na intubação de pacientes. Numa live, Bolsonaro anunciou que a nomeação de Marcelo Quei- roga para o Ministério da Saúde será publicada hoje no Diário Oficial da União. O novo ministro está tendo dificuldades para montar sua equipe de trabalho e terá de atuar com o grupo de militares que assessoravam o general Eduardo Pazuello, até que encontre co- legas dispostos a assumir a responsabilidade de combater a pandemia.
Bolsonaro continua sabotando os esforços de governadores e prefeitos para reduzir a propagação do vírus com medidas mais rígidas de isolamento social: “Tem um pessoal que continua insistindo no fique em casa e outros que querem trabalhar por ne- cessidade. Eu acho que ficar em casa é uma coisa bacana, quem não quer ficar de férias em casa aí? Mas pouquíssimas pessoas têm poder aquisitivo para ficar sem trabalhar”, disse. Insiste em res- ponsabilizar as medidas sanitárias pela crise econômica: “Temos no Brasil servidores públicos, civis e militares, que podem ficar em casa, que, por enquan- to, não veem sua remuneração, proventos, aposentadorias, pensões ameaçadas. Agora, uma grande parte dos brasileiros, os que vivem na formalidade, com carteira assinada, perde emprego, tem redução de salário.” Chegou a dizer que recorreria ao Supremo Tribunal Federal (STF) contra as medidas de isolamento, o que será mais um fator de tensão institucional, em nada contribuindo para o enfrentamento da crise sanitária.
Banco do Brasil
O presidente do Banco do Brasil (BB), André Guilherme Brandão, entregou o cargo ontem, por discordar da interferência do presidente Jair Bolsonaro na instituição. É mais uma baixa importante na equipe do ministro da Economia, Paulo Guedes, cada vez menos liberal e mais pragmática. É o segundo presidente do banco a deixar o cargo por divergências com o chefe do Executivo. Para evitar especulações sobre o perfil do novo presidente do banco, o Ministério da Economia anunciou que o cargo será assumido pelo atual diretor do BB Consórcios, Fausto de Andrade.
Bolsonaro quer reforçar o papel social do Banco do Brasil, sendo contrário ao fechamento de agências, apesar da informatização cada vez maior do sistema bancário. O presidente da Caixa, Pedro Guimarães, tem o perfil desejado por Bolsonaro, que não cansa de elogiá-lo pelo desempenho na distribuição do auxílio emergencial, apesar do alto número de fraudes já identificadas. Fausto de Andrade será o terceiro presidente do Banco do Brasil em pou- co mais de dois anos do governo Bolsonaro. Antes de Brandão, ocupou o cargo Rubem Novaes. O mercado e os funcionários temem a instrumentalização do banco para fins eleitorais.
Pedro Doria: O método Bolsonaro de intimidar
A violência contínua que existe no discurso do presidente Jair Bolsonaro nos anestesia, aos poucos vai deixando de chocar. O objetivo é este mesmo: anestesiar. É um método, estudado por cientistas políticos em vários cantos do mundo, numa disciplina batizada decadência democrática. Anestesiados, nos distraímos. E, distraídos, não percebemos que a guerra do presidente contra a democracia está ganhando escala. Foi mostra desse ganho de escala o dia em que a Polícia Civil do Rio bateu à porta do youtuber Felipe Neto para informá-lo de que era investigado por chamar o presidente de “genocida”. Com base na Lei de Segurança Nacional.
No caso de Felipe, o problema já passou — a juíza Gisele Guida de Faria, da 38ª Vara Criminal do Rio, viu “flagrante ilegalidade” na investigação e lembrou que a Polícia Civil nem sequer tem competência para investigar “crime contra a honra” do presidente. Além do quê, não é um vereador ou um membro da família do presidente quem tem autoridade de pedir a abertura desse tipo de inquérito. Mas, se Felipe está livre do problema, outros não estão, e ações assim vêm ficando mais comuns.
Em geral, quase sempre via internet, alguém faz um comentário em oposição ao presidente. O ataque, então, vem simultâneo. Pelas redes, é a onda de cancelamento pessoal. Quando não se trata de uma pessoa conhecida, o mundo não percebe. Não vê as mensagens privadas, os muitos tuítes, os comentários de Face, os ataques pelo Insta que aquele indivíduo recebeu. Para um professor universitário gaúcho ou um sociólogo do Tocantins, a pancada é dura. A onda de agressão surge de repente — e dói.
Mas há outro ataque, jurídico, levantando a Lei de Segurança Nacional ou outro argumento. O importante é impor um custo em advogados, ameaçar de perda de emprego. O objetivo é desestruturar emocionalmente, é intimidar. O objetivo é calar qualquer forma de oposição.
Jair Bolsonaro e os seus enxergam o mundo de uma forma particular: tudo é uma guerra de informação. Nisso, ele e a nova leva do populismo autoritário de direita se assemelham muito aos fascistas dos anos 1930. Aquele fascismo não era uma ideologia, uma forma consistente de ver o mundo. Era, isto sim, uma estratégia de alcançar o poder e de se manter no poder. Entre as táticas, estava intimidação pessoal de quem demonstrasse oposição, para deixar claro a todos que o preço de ser contra é alto. Mas a cartilha também incluía uma visão paranoide de como o mundo funciona — capitalistas judeus são responsáveis pela crise econômica alemã, marxistas culturais são quem de fato controla as instituições do Brasil. E uma máquina maciça, usando a tecnologia mais recente — rádio lá, redes sociais aqui —, investia pesado em desinformação para criar bolhas onde informação não entra.
Para Bolsonaro, esta é, pois, uma guerra de informação, e os fatos pouco importam. O relevante no jogo como ele o enxerga é quem convence mais pessoas. Portanto, quando hospitais lotam e mais gente morre, o alarme da sociedade não surge naturalmente. Surge porque seus inimigos atuam como ele, na guerra de informação. Bolsonaro não opera no mundo como ele é. Ele vive num em que a realidade é fabricável.
O Centrão tentou indicar uma ministra da Saúde que poderia ter funcionado. Os militares tentam convencê-lo a adotar uma agenda positiva. Não adianta, nada muda a natureza do escorpião. Mas o perigo que ele representa mudou de escala não só pela forma de intimidar. Desinformação já elegia autoritários que desejam ser ditadores. Nos últimos meses, está também matando em vastas quantidades.
Christophe Cloutier-Roy: 'Joe Biden apresentou o programa mais progressista dos últimos tempos'
Por ocasião da posse de Joe Biden, Alternatives Économiques decifra as orientações do novo inquilino da Casa Branca. Para implementar seu programa, ele contará com maioria nas duas casas do Congresso, mas uma maioria muito pequena. E se ele ganhou 7 milhões de votos a mais que Donald Trump, o grosso dessa vantagem (5 milhões de votos) está concentrado apenas na Califórnia, o que confirma a profundidade das divisões que atravessam a sociedade americana, que só aumentaram durante o mandato do republicano.
Christophe Cloutier-Roy, pesquisador residente do Observatório sobre os Estados Unidos da Universidade de Québec em Montreal (UQAM) e autor de um artigo recente intitulado Le Parti démocrate en 2020: Joe Biden et l’hydre à quatre têtes (O Partido Democrata em 2020: Joe Biden e a hidra de quatro cabeças), analisa as razões dessas divisões e as opções que o novo presidente tem para tentar reduzi-las.
A entrevista é de Yann Mens, publicada por Alternatives Économiques, 20-01-2021. A tradução é de André Langer.
Eis a entrevista.
São as divisões que cindem a sociedade americana e que Joe Biden terá que tentar superar antes de tudo socioeconômicas ou sobretudo identitárias e culturais, raciais entre outras?
A sociedade americana é palco daquilo que nos Estados Unidos se chama de “guerra cultural”. Este não é um fenômeno recente, embora tenha se intensificado durante o mandato de Donald Trump.
Do que se trata? Desde o final da década de 1960 e a ascensão dos movimentos conservadores, as questões em torno das quais se dão os principais conflitos na sociedade têm sido amplamente ligadas à identidade, à moral, aos valores... São duas visões, duas representações do que deveria ser a sociedade americana, que se confrontam e se materializam através dos dois grandes partidos, o Democrata e o Republicano.
Certamente há um pano de fundo econômico nessas visões, mas ele se combina com outras dimensões. Por um lado, entre os democratas, encontramos os partidários da nova economia implantada nas regiões costeiras, mas mais amplamente as populações das grandes cidades e as minorias étnicas em grande maioria. Por outro lado, os operários vítimas do declínio das indústrias tradicionais no Centro-Oeste e na região dos Grandes Lagos, mas de maneira mais geral as populações das áreas rurais e das pequenas cidades, populações principalmente brancas.
Além daqueles que às vezes são chamados de perdedores da globalização e que conseguiu trazer para o rebanho republicano, Donald Trump conseguiu capitalizar sobre a idealização do passado e a necessidade de o país reconquistar sua supremacia (“Make America Great Again”).
Qual é o papel do racismo nesta visão?
A visão retrógrada dos partidários de Donald Trump tem sido frequentemente interpretada como um desejo de fazer da “brancura” (“whiteness”) um elemento central da identidade americana. Esse racismo ideológico, inspirado na tradição escravista do sul do país, permeia algumas delas. Ao invés, entre os trabalhadores brancos decaídos em termos econômicos, é mais um racismo de ressentimento que se expressa. Eles têm o sentimento de que o Estado, as elites políticas e especialmente os democratas, que durante muito tempo foram os defensores do mundo operário, abandonaram-nos em favor dos afro-americanos e latinos.
Nessa visão altamente estereotipada, os primeiros se beneficiam das ajudas sociais, embora não trabalhem ou mesmo sejam criminosos, e os últimos imigram em massa para viver nas garras dos trabalhadores americanos. Esses trabalhadores brancos têm o sentimento de que são os perdedores em uma competição entre grupos sociais.
Como as divisões cada vez mais intensas na sociedade americana se refletem no cotidiano?
Por uma polarização preocupante de toda a sociedade. Até a década de 2000, a polarização afetava principalmente as elites dos dois principais partidos e a mídia. Hoje, nas pesquisas de opinião, os cidadãos de um campo político descrevem os do outro não apenas como adversários, mas como ameaças à segurança nacional e até mesmo traidores da nação.
Canais de notícias e redes sociais republicanas costumam se referir aos democratas como comunistas, e a mídia democrata retruca chamando os republicanos de nazistas. Todos vivem cada vez mais em uma bolha ideológica que alimenta seus preconceitos. Isso favorece o ativismo das minorias mais radicais dentro de cada partido e muitas vezes permite que obtenham a vantagem durante as primárias.
Essa desconfiança na opinião pública é tanto mais forte quanto na vida cotidiana os eleitores dos dois partidos têm cada vez menos oportunidades de se confrontar, mesmo porque vivem em diferentes áreas geográficas: litoral versus interior, metrópoles versus áreas rurais e pequenas cidades... Porém, quanto menos as pessoas têm a oportunidade de se conhecerem, mais os estereótipos se radicalizam e se solidificam.
Em um contexto onde as divisões são sensíveis, o que Joe Biden pode fazer para reconciliar a sociedade e, em particular, para apaziguar a raiva dos trabalhadores brancos decaídos economicamente?
Joe Biden se apresentou nas eleições de novembro com a plataforma mais progressista da história moderna do Partido Democrata. Muito mais progressista do que as de Bill Clinton e até mesmo de Barack Obama.
Claro, a esquerda de seu partido, liderada especialmente por Bernie Sanders e Alexandria Ocasio-Cortez, julga-o muito tímido. E é verdade que ele não aceitou explicitamente algumas de suas propostas, como o seguro-saúde público obrigatório ou o Green New Deal. No entanto, na primeira área (saúde), prevê que todo americano tenha a possibilidade de ter acesso a seguro saúde público, se não puder pagar um privado. E no segundo campo, seu plano para o meio ambiente prevê grandes investimentos em energias renováveis, a reconversão de empregos de indústrias poluentes para os setores verdes...
Não acredito, entretanto, que Joe Biden deva enfrentar frontalmente a questão das divisões culturais e identitárias. Certamente, ele deve combater a discriminação racial, mas seus poderes são relativamente limitados porque, nessa área, muitas políticas públicas (polícia, educação, habitação, etc.) são principalmente de responsabilidade dos Estados federais e dos municípios. Penso que seria perigoso para o novo presidente americano reabrir o debate sobre assuntos como a ação afirmativa porque, por definição, tais políticas beneficiam exclusivamente as minorias étnicas e, portanto, correm o risco de alimentar o ressentimento dos brancos economicamente decaídos.
Por outro lado, pode combater esse ressentimento ao implementar programas econômicos e sociais universais, como no caso do seguro saúde. Se tais programas cobrirem brancos, afro-americanos ou latinos desfavorecidos da mesma maneira, os primeiros não sentirão que os outros dois grupos são favorecidos.
Deve-se notar também que os trabalhadores brancos estão muito mais apegados aos programas sociais do que à redução dos déficits públicos ou à redução dos impostos, dois grandes eixos de luta das elites tradicionais do Partido Republicano.
Joe Biden escolheu como futuros ministros, que ainda não foram confirmados pelo Senado, vários membros de minorias étnicas. Essas personalidades pertencem à esquerda do partido?
Não, a maioria dessas figuras é centrista, como o próprio Joe Biden. O Partido Democrata é formado por uma aliança circunstancial entre as minorias étnicas, sensíveis ao seu discurso sobre os direitos civis, e a esquerda progressista, voltada para as questões sociais e ambientais. No entanto, as minorias étnicas, e em particular os afro-americanos, costumam ser muito conservadoras no nível moral, especialmente por causa de sua forte religiosidade. Elas não têm automaticamente as mesmas prioridades que a esquerda do partido.
Muitos progressistas sonhavam em ver Bernie Sanders nomeado para o Ministério do Trabalho, mas a confirmação pelo Senado teria sido impossível. Eles continuam insatisfeitos porque sua corrente não tem representantes no governo. No entanto, isso não é surpreendente. Joe Biden certamente inclinou seu programa à esquerda depois das primárias, nas quais os progressistas tiveram bom resultado, mas ele acredita que, para superar as divisões na sociedade americana agravadas pela presidência de Trump, deve agora fazer um governo de centro.
Graças à vitória dos candidatos democratas na eleição parcial na Geórgia em 06 de janeiro, Joe Biden tem apoio da maioria, embora muito apertada, em ambas as casas. Mas os republicanos têm os meios institucionais para atrapalhar seus projetos?
Em teoria, sim, na maioria das áreas legislativas em que a aprovação do Senado é necessária. Nesta Casa, os parlamentares podem de fato recorrer ao que se chama de técnica de “filibuster” (obstrução parlamentar): um parlamentar ou um grupo parlamentar toma a palavra e a mantém o tempo que quiser para impedir a aprovação de um texto. Esse obstáculo só pode ser superado com o voto de 60 senadores entre 100 da casa. Hoje, porém, os democratas têm apenas 50 eleitos para o Senado, aos quais se somará a voz da vice-presidente Kamala Harris, caso houver empate.
Deve-se acrescentar, no entanto, que o uso de “filibuster” pode ter um custo político para o partido que a utiliza com demasiada frequência, porque a opinião pública pode ter uma visão muito obscura de uma obstrução sistemática do processo legislativo.
Eu acrescentaria que também na Câmara dos Representantes a atual maioria democrata é muito apertada, sendo apenas quatro votos a mais do que a maioria necessária, que é de 218 votos. Joe Biden, portanto, teria de estabelecer vínculos com republicanos moderados para ter certeza de que poderia aprovar suas reformas. Ao mesmo tempo, essas reaproximações correm o risco de alienar a esquerda de seu próprio partido.
Quando a decisão é bloqueada na esfera federal, é mais fácil atuar na esfera local (Estados federados, condados, municípios...) para superar as divisões da sociedade?
Em algumas partes do país, a polarização da sociedade e das elites políticas é pelo menos tão forte quanto no nível nacional, e é muito difícil superá-la. Especialmente em Estados como Pensilvânia, Flórida, Ohio, Illinois ou Maryland, a divisão das circunscrições eleitorais é da competência do Congresso local. O partido que o controla pode, portanto, traçar um mapa que lhe assegure futuras vitórias, dificultando alternâncias políticas em nível estadual, mas também em nível federal. Porque esses Estados, na maioria dos casos republicanos, têm um grande número de representantes no Congresso Nacional.
Em uma minoria de Estados (Washington, Califórnia, Havaí, Arizona, Idaho, Colorado, Michigan, Nova Jersey), por outro lado, os regulamentos locais atribuem a divisão das circunscrições a uma comissão independente, o que permite um melhor equilíbrio na distribuição dos eleitores.
Além das questões de divisão eleitoral, notamos que em Vermont, Massachusetts, Maine ou New Hampshire, as divisões partidárias são menos rígidas do que na Flórida ou em Ohio. Como resultado, mesmo que o Congresso local seja repetidamente dominado por um partido, os eleitores às vezes escolhem um representante do outro lado para o cargo de governador, ou seja, o chefe do executivo local. Dito isso, trata-se geralmente de um moderado em seu próprio campo.
Há um ditado político que diz que os Estados são o laboratório da democracia americana. É verdade que muitas vezes é no nível local que as reformas são experimentadas, as quais são então adotadas por outros Estados e, depois, possivelmente estendidas ao nível federal.
Por exemplo, foi em Massachusetts, sob o governador republicano Mitt Romney (2003-2007), que foi implementada uma reforma do seguro saúde que serviu de modelo para o Obamacare. Da mesma forma, o casamento entre pessoas do mesmo sexo, autorizado em vários Estados a partir de 2003, acabou sendo generalizado em 2015 por decisão da Corte Suprema. E a legalização da maconha recreativa, em vigor desde 2014 no Colorado, agora está se espalhando para muitos outros Estados, embora ainda não seja o caso no nível federal.
Apesar do ataque ao Capitólio que chocou muitos americanos, o Partido Republicano pode se distanciar de Donald Trump se a base permanecer leal ao presidente em fim de mandato?
O sucesso de Donald Trump ao ser eleito em 2016 foi atrair às urnas muitos cidadãos que antes não participavam ou participavam raramente das urnas, mas que votaram nele nas primárias e depois nas eleições presidenciais. Se ele não participar das próximas eleições, não é certo que esses cidadãos voltem a votar.
Nas “midterms” [eleições de meio de mandato] de 2018 e durante o segundo turno da recente eleição para o Senado na Geórgia, vimos que, quando Donald Trump não está nas cédulas, a taxa de participação cai entre os republicanos.
A retirada dos eleitores mais leais a Donald Trump daria uma chance a figuras mais moderadas dentro do partido. Claro, Donald Trump pode permanecer ativo na vida política e assim influenciar o partido. Muita gente pensa que ele voltará a concorrer em 2024 – pelo menos se o processo de impeachment lançado nos últimos dias pela Câmara dos Deputados, que deve levar a um processo no Senado, não o impedir. Mas mesmo se ele tiver a oportunidade, o cenário político pode mudar muito em quatro anos.
A única certeza hoje é que em breve uma grande batalha será travada dentro do Partido Republicano. Em teoria, uma divisão não pode ser descartada, mas os dois grandes partidos são muito resilientes. Seu domínio sobre a vida política remonta a meados do século XIX.
As próximas eleições legislativas ocorrerão em 2022. Os líderes republicanos não têm interesse em bajular a base trumpista para vencê-las?
Nas eleições legislativas presidenciais de meio de mandato (“midterms”), os eleitores republicanos tradicionalmente votam mais do que os democratas, o que, a priori, dá uma vantagem ao Grand Old Party (apelido do Partido Republicano) para 2022.
Por outro lado, os “midterms” são vistos sobretudo como uma espécie de referendo sobre a ação do presidente, uma oportunidade para sancioná-lo. Para vencê-las, os republicanos têm mais interesse em criticar Joe Biden do que em defender Donald Trump e seu histórico polêmico. Seu objetivo será forçar Joe Biden a coexistir com um congresso de maioria republicana, como fizeram em 2010 com Barack Obama.
É concebível suprimir o Colégio Eleitoral que elege o presidente, na medida em que este método de votação indireta confere uma vantagem eleitoral indevida ao Partido Republicano, que regularmente tem uma minoria na população, mas maioria nesta instância?
Para suprimir ou reformar o Colégio Eleitoral, a Constituição teria que ser alterada. Isso pressupõe que a emenda seja aprovada por maioria de dois terços em cada uma das duas câmaras do Congresso Nacional e, em seguida, seja ratificada pelas legislaturas locais de pelo menos três quartos dos Estados federados. Essas maiorias supõem o apoio do Partido Republicano. No entanto, a supressão do Colégio Eleitoral seria um suicídio garantido para esse partido, pois os democratas são claramente maioria em toda a população, especialmente nas áreas urbanas mais populosas.
De fato, desde 1992, os republicanos conquistaram o sufrágio popular apenas uma vez, em 2004, em uma eleição presidencial. Dificilmente podemos contar com seu apoio para uma supressão ou uma reforma profunda deste sistema.
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Hamilton Garcia: A viagem redonda - De volta à política de vetos
Nossas instituições democráticas são frágeis, ao contrário da retórica corrente: os partidos mal representam os setores sociais afins, as eleições não refletem satisfatoriamente as inclinações populares – sobretudo no Legislativo – e não propiciam a formação de governos minimamente coesos, a Justiça é seletiva e tendente à proteção de casta, e, como resultado, o sistema político padece cronicamente de legitimidade, fragilizando-se nas crises: não precisa ser um especialista para perceber.
Todavia, nosso problema genético central (verticalismo/insolidarismo) está fora do alcance das ideologias em voga (nacional-populismo x liberalismo), se constituindo em um desafio para além de qualquer ortodoxia, da qual, infelizmente, nossa intelligentsia também se encontra prisioneira, como no mito da caverna (Platão).
A principal causa dessa fragilidade reside numa cultura política, social e institucional, que aparta Estado e sociedade de tal modo que, sob os auspícios das regras institucionais, o voto popular reitera o afastamento, ao invés de superá-lo, por efeito de um alargamento democrático que não enseja aprofundamento, ou seja, não propicia ao eleitor canais de exercício de sua autonomia face ao poder econômico e burocrático, impelindo os agentes político-partidários à busca do bem comum em meio às inexoráveis diferenças político-ideológicas.
As razões estruturais/normativas de tal dificuldade foram abordadas/indicadas em artigos anteriores (vide Clientelismo, Cargos e Voto – a erosão oligárquica da democracia). Cabe agora apenas delinear o retrocesso precipitado pelo baluartismo das lideranças civis, de todos os quadrantes, diante dos inequívocos sinais emitidos pelas massas desde 2013, ao cabo capturados/interpelados pelo bolsonarismo.
Comecemos pelo mais novo episódio da longa lista de disparates cometidos por essas elites nos últimos anos: o golpe judicial do Ministro Edson Fachin, anulando as decisões do juízo de Curitiba sobre as ações penais que levaram Lula à prisão e inelegibilidade. Não interessa aqui discutir as razões político-jurídicas que motivaram o Ministro – há farto material para consulta sobre o tema –, apenas pontuar sua recepção pela sociedade e certas corporações (sociais e burocráticas) fundamentais para os destinos da nossa democracia.
Comecemos pelos eleitores. Segundo o instituto Paraná Pesquisas, 57,5% dos brasileiros discordaram da decisão de Fachin, contra 37,1% que concordaram; a única região destoante foi a Nordeste, onde 52,6% concordaram e 41,3% discordaram do magistrado. A pesquisa tem números próximos à outra do mesmo instituto, de junho de 2019, onde 58% se disseram favoráveis à manutenção da prisão de Lula, enquanto 36% se posicionaram contra. Fica claro que, para a maioria dos eleitores, ontem e hoje, Lula deve pagar pelos crimes que cometeu e que a tradicional impunidade brasileira parece ser a fonte da inesgotável credibilidade do ex-Juiz Sérgio Moro, reconhecido pela maioria (59,2%), em levantamento de março/21, como um juiz imparcial, mesmo entre os menos escolarizados (53,7%).
Também no topo da pirâmide, importantes empresários manifestam seu veto ao ex-Presidente, beneficiário imediato, embora não exclusivo, da medida judicial, e, crescentemente, também ao mandatário atual. O editorial do dia 9 do jornal Estado de São Paulo, que vocaliza o ponto de vista desta fatia da opinião pública, é taxativo: "Jair Bolsonaro está conseguindo fazer o que parecia impossível. Ao ignorar suas responsabilidades e debochar continuamente dos problemas do País e da saúde dos brasileiros, está abrindo caminho para o retorno político do sr. Luiz Inácio Lula da Silva, (…) agora que o ministro Edson Fachin anulou todas as condenações do demiurgo de Garanhuns (…). Bolsonaro, por palavras e omissões, ajudou a recriar o monstrengo que já atormentou em demasia este país”.
A duríssima sentença acrescenta um novo ingrediente à crise política, depois da manifesta assunção por parte do ex-Comandante do Exército, Gen. Eduardo Villas Bôas, do veto militar à postulação presidencial do petista; prossegue o editorial: "O assunto é da maior gravidade, pois traz de volta ao cenário político um grande perigo para o País (…): o ressurgimento do fantasma do lulopetismo. (…) O mais famoso ficha-suja do País, condenado por corrupção e lavagem de dinheiro (…)”.
Coloca-se assim, em linha, de novo, dois vetos que, outrora, em momentos distintos, ao longo dos anos 1950-1960, produziram duas deposições presidenciais (1954, Vargas, e 1964, Goulart) e duas tentativas de deposição (1956, Kubistchek, e 1961, Goulart). Me refiro aqui ao veto militar, empresarial e da classe-média, à Vargas e seus sucessores, e também à Jânio Quadros, que, se aproveitando do primeiro veto, tentou tirar proveito dele ao renunciar à Presidência poucos meses depois de assumí-la, mandando o Vice Goulart para uma missão diplomática na longínqua China comunista, na esperança de assumir poderes excepcionais para governar. O tiro saiu pela culatra porque Quadros não percebera que o veto ao varguismo se estendia à toda forma de populismo, inclusive àquele representado pela direita, onde ele se inseria.
A condenação aos dois populismos está na ordem do dia, não só entre os eleitores e empresários, mas também entre os militares. É o caso do Gen. da Reserva e ex-Ministro Santos Cruz, que, em reação à decisão de Fachin, afirmou: “o Brasil não pode mais depender, nem viver, numa guerra de extremistas. (…) O fanatismo só está atrapalhando o Brasil. (…) A grande parcela da população não quer participar dessa novela sem fim”. Oficiais da Ativa do Exército, que costumam não se manifestar, também falaram, sob anonimato, que a decisão do Ministro do STF pode beneficiar “extremistas” de esquerda e de direita. Mas foi Cruz, involuntariamente, que acabou expondo o estado de espírito da caserna ao pregar moderação: "Tem de esperar, ainda há passos jurídicos. Ninguém tem de se precipitar”.
Até o reservado Gen. da Reserva Sérgio Etchegoyen, ex-Ministro do Governo Temer, se mostrou incomodado com a decisão ministerial, indagando: “Por que essa decisão monocrática que se sobrepõe a dois tribunais colegiados (TRF-4 e STJ) não é um risco à democracia? Ou é um risco para a democracia só quando um general fala?”, em alusão ao tuíte de Villas Bôas, em 2018, que ele justifica como um recado à tropa “para evitar que alguém da reserva dissesse alguma bobagem” – na verdade, alguém da Ativa fizesse alguma bobagem. Aqui, para além da condenação ao ato judicial, temos a volta do velho sentimento militar do Império – que precipitou seu fim – de que a elite civil os discrimina e hostiliza.
A ideia de fazer "alguma bobagem” está posta desde a prisão de Lula, mas agora, depois do indulto de fato que ele recebeu, aparece explicitamente nas falas de dois Gen.s da Reserva: Luiz Paiva, ex-Comandante da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército, e Eduardo Barbosa, Presidente do Clube Militar, eleito como Vice na chapa de outro Gen. da Reserva, Hamilton Mourão, hoje na Vice-Presidência da República.
Paiva simplesmente afirma que Fachin "praticamente, arremessou no lixo a Operação Lava Jato e, com ela, a esperança da sociedade num futuro mais digno”, "colocando em risco”, junto com outras medidas tomadas pelo tribunal, "a paz, a harmonia e a própria unidade nacional”. Em sua perspectiva, "o que é supremo não é a lei e sim a Justiça e esta não existe quando a lei é usada contra o bem comum”, alertando que "a liderança nacional" deve ter em mente que as Forças Armadas "ficarão unidas e ao lado da Nação, única detentora de sua lealdade". Por seu turno, Barbosa, considerando a posição de Fachin como "a vitória do banditismo”, não só afirma ser Lula "o maior político criminoso que esse país já conheceu”, como sentencia que "lugar de ladrão é na cadeia”.
Como argumentei em artigo recente (O esgotamento da democracia de clientela), a forte presença do bolsonarismo no interior das médias e baixas patentes da Ativa das Forças Armadas, além das polícias estaduais, coloca Bolsonaro em situação especial nesta crise, distinta daquela vivida por Jânio Quadros, apesar de também ser um de seus pivôs: sua capacidade de dividir os quartéis e, efetivamente, agitar tropas ao arrepio dos Altos Comandantes. Outra diferença significativa entre os dois personagens, separados no tempo por mais de meio século, é que Bolsonaro costuma expressar francamente o que pensa, na linha oposta da astúcia dos velhos populistas do séc. XX, o que, todavia, não é suficiente para lhe garantir a simpatia da cúpula militar ou empresarial, ao contrário do que ocorre com as massas, dada sua dificuldade em exercer liderança positiva.
O Gen. da Reserva Paulo Chagas, bolsonarista de primeira hora, é um vocalizador desta percepção de que Bolsonaro não é capaz de "tomar o rumo da harmonia, da União”, se revelando "um narcisista deslumbrado” com o poder, o "que faz com que ele se comporte pensando que é mais do que é na verdade”: um "trapalhão (…) que não cumpre o que promete”, fulmina. Sendo contra o processo de impeachment, Chagas defende, alternativamente, que alguém diga para ele que, "a partir de agora, tem que fazer assim”, o que pode ser entendido como a defesa de um ultimato das cúpulas militares à seu Chefe Supremo – o que, no caso, se parece com um "auto-golpe".
Nada disto nos autoriza vaticinar que marchamos para o mesmo desfecho de 1964, dado que as circunstâncias são outras e os atores também. Apenas sugere que voltamos a um ciclo de crises que parecia superado no séc. XXI, mas que na verdade não o foi. E isto não se deve exclusivamente à mentalidade militar, supostamente tutelatória da cidadania e monopólica do patriotismo, mas, sobretudo, a uma incapacidade crônica das elites civis em olharem para além do próprio umbigo, corporativo ou de domínio, engendrando soluções mais amplas e efetivas sobre os problemas do desenvolvimento, da desigualdade e da justiça no país, que nos enredaram numa teia de estagnação, pobreza e corrupção que parece não ter solução.
Persistir em ignorar tal realidade ou tentar mascará-la com as práticas do neopatrimonialismo/corporativismo ou as narrativas mágicas das velhas ideologias/ortodoxias dos "salvadores" de plantão, tem tudo para nos chafurdar ainda mais na crise, fechando o círculo de nossa mais nova viagem redonda – outra velha sina da civilização brasileira.
Hamilton Garcia de Lima (Cientista Político, UENF/DR[i])
[i] Universidade Estadual do Norte-Fluminense/Darcy Ribeiro.