Hélio Schwartsman: No mundo de Bolsonaro

É possível conciliar o seu mundo ao mundo dos fatos?

No mundo dos fatos, Jair Bolsonaro negou a gravidade da epidemia de Covid-19, sabotou medidas de distanciamento social, promoveu tratamentos "mágicos" que não funcionam e foi omisso na compra de vacinas. Ainda provocou aglomerações com suas aparições públicas e espalhou "fake news" sobre as máscaras. Objetivamente, ele responde por parte das quase 300 mil mortes que o Brasil registra.

No mundo de Jair Bolsonaro, a história é bem diferente. No início deste mês, o presidente fez uma avaliação de sua performance ao longo de um ano de pandemia: "Desculpe aí, pessoal, não vou falar de mim, mas eu não errei nenhuma desde março do ano passado".

É possível conciliar esses mundos, isto é, há uma explicação lógica para pelo menos compreender a discrepância? Sim, e ela é de ordem psicológica. O cérebro humano é um trapaceiro. Ele não hesita em torcer a linguagem e os fatos para poupar-se das dores de dissonâncias cognitivas e construir para si próprio uma autoimagem aceitável.

Meu exemplo favorito da magnitude dessa capacidade é a declaração de um "serial killer" capturado nos EUA em 1994: "Além das duas pessoas que matamos, das que ferimos, da mulher em que demos coronhadas e das pessoas que fizemos comer vidro, não machucamos ninguém".

E Bolsonaro acredita mesmo que foi impecável em relação à Covid-19? A pergunta é traiçoeira. Gostamos de pensar nossos cérebros como um comando centralizado, mas a realidade é bem mais multifacetada. Uma imagem interessante é a proposta pelo neurocientista David Eagleman, segundo o qual o cérebro é uma democracia representativa, na qual diversos módulos e sistemas podem ter opiniões divergentes sobre o mesmo tema. Vence quem, num dado momento, grita mais alto.

O trágico dessa história é que quanto mais cobramos responsabilidade de Bolsonaro, mais seu cérebro busca refúgio no mundo paralelo no qual o ele "não errou nenhuma".


Demétrio Magnoli: O paradoxo do centro

Siglas têm nas mãos fracassos gravados na memória coletiva, mas não têm narrativa

Lula versus Bolsonaro. As sondagens indicam um segundo turno moldado pela mesma polarização política de 2018. Mas isso, como sabe qualquer especialista em pesquisas, é o som do passado —e eleições são sobre o futuro.

Tanto o ex como o atual presidente comandam minorias consolidadas, potencialmente capazes de impulsioná-los ao turno derradeiro, mas não de garantir-lhes o triunfo diante de uma terceira opção. A paisagem é mais ampla que o cenário numérico: objetivamente, o chamado "centro" tem uma oportunidade singular de bater um e outro em 2022. Em tese, a missão exige apenas uma campanha eficaz de esclarecimento político.

Não se trata de apontar, no plano ideológico, as simetrias verdadeiras e falsas (pois existem as duas) entre as candidaturas polares. Eleições só são sobre ideologia para a minoria que se imagina politizada. Trata-se de identificar e descrever dois fracassos históricos inapeláveis.

O fim do longo ciclo global de expansão das economias emergentes iluminou os contornos completos do lulismo. Lula/Dilma produziram uma devastadora recessão econômica junto com o assalto corrupto às empresas estatais.

A plataforma lulista, um varguismo atualizado, é essencialmente conservadora: perpetuar as engrenagens de um Estado perverso que premia o estrato superior do funcionalismo e os empresários dependentes de contratos públicos suspeitos ou gordos subsídios estatais. Seu resultado é condenar-nos à ineficiência econômica, gerar sucessivas crises fiscais e impedir a qualificação dos serviços públicos universais.

O governo Bolsonaro revelou-se, desde o início, uma regressão autoritária e, no campo econômico, um estelionato eleitoral. Paulo Guedes, o superministro que prometeu as chaves do paraíso, não entregou privatizações, concessões, abertura comercial ou reformas estruturais. No lugar disso, caminhamos a passos largos para uma combinação tóxica de inflação e estagnação.

Mas a perversão bolsonarista evidenciou-se inteiramente durante a pandemia. O negacionismo chucro, a sabotagem perene das medidas de contenção sanitária, a irresponsabilidade na aquisição de vacinas, a inação diante da tragédia em Manaus formam uma coleção de crimes contra a saúde pública. Bolsonaro é um vírus letal.

O centro político tem tudo nas mãos: a experiência recente, gravada na memória coletiva, de dois fracassos consecutivos. Mas não tem narrativa, discurso, programa ou rosto. E isso porque, desde o segundo turno de 2018, rendeu-se ao bolsonarismo. Os principais partidos centristas —o PSDB, o MDB e o DEM— associaram-se, em graus variados, ao governo da extrema direita. A adesão, aberta ou oculta, pesa como chumbo. Não há sabão capaz de limpar as mãos que tocaram uma poça tão pútrida.

A explicação sugerida pela esquerda para o gesto vergonhoso está errada. A coalizão bolsonarista não representa a elite econômica nacional, melhor servida nos governos FHC e Lula. Pelo contrário, é uma liga frágil que reúne fanáticos extremistas, militares ressentidos da reserva, facções da polícia e milícias criminosas, máfias regionais de desmatadores, bispos de negócios e uma franja periférica do empresariado. Bolsonaro capitaneia a nau de um governo lúmpen.

As raízes da estranha adesão podem ser procuradas no antipetismo visceral difundido durante a louca aventura econômica dilmista ou, talvez, numa camada bem mais profunda da nossa história, que remete à truncada, precária absorção dos valores democráticos. Qualquer que seja a explicação, o advento do bolsonarismo provou uma tese angustiante: no Brasil, o centro político desconhece a fronteira de princípios que deveria separá-lo da direita reacionária.

2022 não está escrito nas estrelas. Mas a eleição que tinha tudo para encerrar duas experiências falimentares parece caminhar rumo à reencenação da farsa vulgar de 2018.


João Gabriel de Lima: Dois presidentes na guerra contra o vírus

O Chile pode ser a inspiração para a reviravolta que o Brasil precisa dar

Em março de 2018, Sebastián Piñera tomou posse como presidente do Chile. Sete meses depois, do outro lado da cordilheira, Jair Bolsonaro venceu o segundo turno no Brasil. Ambos derrotaram as esquerdas em seus países. Piñera triunfou num ambiente um pouco menos polarizado – como brinca o economista Samuel Pessoa, o debate político chileno, na comparação com o brasileiro, lembra uma mesa acadêmica opondo a Universidade de Chicago ao MIT.

No meio do mandato, Piñera enfrentou insatisfação e protestos. Sua popularidade caiu a 6% em janeiro de 2020. Veio a pandemia, e Piñera mostrou senso de urgência. Em maio de 2020, determinou que seu subsecretário de Relações Internacionais, Rodrigo Yañez, se dedicasse exclusivamente à compra de vacinas. O Chile usou a seu favor o fato de ser uma das economias mais abertas do mundo, participante de mais de 30 tratados internacionais. Piñera supervisionou pessoalmente as negociações.

Enquanto o Chile brigava por vacinas, o Brasil as esnobava. De acordo com o presidente do Instituto ButantanDimas Covas, o governo federal recusou, ao longo de 2020, quatro ofertas de lotes da Coronavac. Em dezembro, Bolsonaro desdenhou do imunizante da Pfizer que, segundo ele, poderia transformar seres humanos em jacarés. No mesmo mês, o Chile recebeu o primeiro lote de vacinas, destinadas aos profissionais de saúde. Da Pfizer.

Hoje o Chile é exemplo na América Latina. Na quarta-feira 17 de março, 36,7% da população estava vacinada, ante 5,6% no Brasil. O Chile deve atingir um índice confortável de imunização até o fim de junho. Ao longo desta semana, o Brasil cruzou, na média móvel, o umbral das 2 mil mortes diárias – sem nesga de luz ao fim do túnel. 

Ao negociar com vários laboratórios, o Chile driblou a escassez de imunizantes no mercado – problema que assombra o Brasil. “Só em maio deveremos ter maior disponibilidade de vacinas”, diz a epidemiologista Silvia Martins, da Universidade Columbia, personagem do minipodcast da semana.

Com a boa gestão da pandemia, Piñera recuperou parte da popularidade – está em 24% e em ascensão. Nesta semana, a rejeição a Bolsonaro chegou a 54%, a maior até agora. 43% dos brasileiros culpam o presidente pela proliferação da covid-19. Como observou o Estadão em editorial, os eleitores decidiram responsabilizar Bolsonaro, e não os governadores, pela tragédia humanitária.

Os impactos econômicos já se fazem sentir. A instabilidade do Brasil assusta os investidores, e o Banco Central acaba de elevar os juros para evitar a disparada da inflação. No Chile, houve o tombo regulamentar de 2020. O mercado, no entanto, revisou para cima as projeções para 2021 diante do sucesso da vacinação, como mostrou o colunista Fábio Alves no Estadão – mesmo com o número ainda alto de casos no país, que estuda um novo lockdown.

Em conversa com apoiadores na quinta-feira, 18, o presidente Bolsonaro perguntou: “Qual país do mundo está tratando bem a questão da covid? Aponte um”. Fica a dica. O Chile pode ser a inspiração para a reviravolta que o Brasil precisa dar. Segundo o jornal El País, Peru, Colômbia, Uruguai, Paraguai e México destacaram especialistas para estudar o caso chileno.

De acordo com o STF, todos os entes federativos têm responsabilidades no combate à pandemia. A comparação com o Chile mostra que o presidente tem um papel fundamental. Lá, atuação proativa e senso de urgência fizeram toda a diferença.


Ascânio Seleme: O que Bolsonaro faria

Do Império à República: alguns capítulos da história sob a ótica do atual presidente

Num exercício livre de reflexão, comecei a imaginar como seriam contados alguns capítulos da História do Brasil se Jair Bolsonaro estivesse nos sapatos de outros líderes brasileiros desde o fim do Império. Acho que seria mais ou menos assim:

Pedro II - Se fosse Bolsonaro e não Dom Pedro II o último imperador do Brasil, a República poderia demorar um pouco mais a acontecer. Bozo I iria puxar tanto o saco dos militares que talvez conseguisse demover o marechal Deodoro da Fonseca de fazer a proclamação em 1889. Poderia, de outro lado, provocar uma guerra civil se ouvisse a princesa Isabel e o conde D’Eu, que pediam uma reação armada. Antes disso, vetaria a Lei Áurea.

Deodoro da Fonseca - Daria o golpe, claro. Derrubaria o Império e fundaria uma república militar, onde civil ficasse sempre do lado de fora.

Delfim Moreira - Ao contrário do velho presidente, Bolsonaro não levaria a sério a gripe espanhola. Demitiria Carlos Chagas do Serviço de Saúde Pública e nomearia um general para o seu lugar. Os 35 mil mortos feitos pela epidemia em 1918, subiriam para mais de 300 mil no ano seguinte.

Getulio Vargas - Seria um ditador muito mais violento que o velho caudilho. Da mesma forma que Getulio, teria seus guarda-costas e deixaria seus filhos e parentes à vontade perto dos cofres públicos. Na Segunda Guerra, apoiaria Hitler e acabaria sendo derrubado pelas Forças Armadas aliadas. Morreria na prisão, não sendo portanto, eleito anos depois para um mandato democraticamente adquirido, o que não era mesmo o seu forte.

Jânio Quadros - Seria igual ao maluco da vassoura. Mas não renunciaria, nem de mentirinha, em razão do perigo de seu blefe ser aceito e ele vir a ser substituído por um vice “comunista”. Como Jânio, nenhuma dúvida que o nosso parvo trocaria os pés pelas mãos.

Castelo Branco - Golpe é com ele mesmo. Diferentemente de Castelo, seria difícil retirar o capitão do cargo para iniciar o rodízio de generais.

Costa e Silva - Baixaria o AI-5 sem qualquer dúvida. Rindo. E nem se incomodaria em ter o aval do Ministério. Seria uma decisão que tomaria apenas com seus generais. Imaginem a farra que faria se tivesse tanto poder. Cassaria, prenderia e mandaria matar uns 30 mil. Despacharia de farda.

Emílio Médici - Se fosse Médici, Bolsonaro não apenas apoiaria a linha dura, seria membro efetivo do porão. Se pudesse, subiria até a “Casa da Morte”, em Petrópolis, para dar umas porradas naqueles comunistas safados, arrancar um par de unhas. Iria em carro aberto na companhia do coronel Brilhante Ustra, que seria o chefe da “sua” Polícia Federal.

Ernesto Geisel - No lugar de Geisel, jamais iniciaria a abertura, nem lenta, nem gradual, nem coisa nenhuma. Faria do general Sílvio Frota o seu sucessor para endurecer ainda mais o regime.

Tancredo Neves - Impossível fotografá-lo nos sapatos de Tancredo. Bolsonaro jamais conseguiria se adaptar ao papel democrático e tolerante do presidente que nunca assumiu o mandato. Mas, se estivesse no lugar do mineiro, manteria o colégio eleitoral para sempre.

Fernando Collor - Se tivesse um Paulo César Farias ao lado, cumpriria o mesmo roteiro de Collor. De caráter frágil e sem a transparência dos dias de hoje, Bolsonaro deixaria o PC roubar.

Fernando Henrique - Como o tucano, trabalharia por um segundo turno. E depois por um terceiro e quarto. Mas não seria no Congresso. Ao contrário do verdadeiro FH, jamais escreveria ou leria um livro.

Lula - Como Tancredo, é quase impossível pintar Bolsonaro nas cores do Lula. Talvez ele seguisse a política de cotas do PT, mas apenas pelo aspecto político-eleitoral. Ao contrário de Lula, sua preocupação com pobre e com quem tem fome é só da boca para fora.

A conclusão eu deixo para vocês. A mim coube apenas desenhar as hipotéticas situações acima elencadas. Se não foi útil, espero que pelo menos tenha sido curioso.

Como é?

Na sua primeira fala depois de indicado para o Ministério da Saúde, Marcelo Queiroga disse que a política da Saúde quem faz é o presidente, não o ministro. Que política, Queiroga? Falta quase tudo no governo de Bolsonaro, inclusive inteligência, discernimento, tolerância e capacidade de negociação. Mas, antes de qualquer coisa, falta-lhe política para a saúde pública em meio a uma epidemia que já fez 290 mil mortes. Por isso, aliás, o presidente negacionista agora é também chamado de genocida, e não só por Felipe Neto. Virou uma febre nas redes sociais. Ao assumir o ministério e entregar suas diretrizes ao chefe, Queiroga associa-se ao genocídio brasileiro.

De boas

A nomeação de Queiroga desagradou a quase todo mundo. Parlamentares, governadores, prefeitos e profissionais de Saúde reclamaram da indicação. Principalmente depois de ouvirem do próprio indicado que iria “dar continuidade” ao trabalho do incompetente general que deixou o cargo e que seguiria a política (?) de Bolsonaro. Até o Centrão fez cara feia. Somente o sogro do senador das rachadinhas, amigão do novo ministro, ficou feliz. Ponto para o zerinho, porque nunca é demais ficar de boas com o sogrão. E o Brasil? Bom, o Brasil a gente vê depois.

Reserva

Os generais do Alto Comando do Exército querem que Pazuello vá para a reserva, mesmo que não assuma nenhum cargo no governo. Não são bobos, esses generais.

Terra plana

Bem lembrado por Ancelmo Gois. Quinta-feira fez um ano que o deputado Osmar Terra disse que a Covid-19 mataria menos do que o H1N1. Um homem que abandonou a medicina nos anos 1980 para fazer política sindical e depois partidária, posou de entendido no início da pandemia. Queria ser ministro. Se deu mal o ex-médico. Bolsonaro encontrou outro mais “terraplanista” do que ele.

Morrem mais

Negacionistas morrem mais porque se expõem mais. Nenhuma novidade. Por que, então, o espanto com a morte por Covid-19 de John Magufuli, presidente da Tanzânia? O Bolsonaro tanzaniano cumpriu a jornada que lhe cabia.

Clube dos zerinhos

Por ora, apenas onde o capitão fraquejou não apareceram malfeitos, inquéritos, investigações policiais e indiciamentos. A turminha boa aprecia uma farra com dinheiro público ou desviado de terceiros, além, é claro, de adorar um traficozinho de influência. Os zeros bravateiros também gostam muito de agredir instituições, sobretudo as democráticas. Bem-vindo ao clube, Jairzinho.

Fome

As reportagens sobre a fome no Brasil publicadas nos diversos jornais da TV Globo e da GloboNews mostraram que são inúmeros os brasileiros solidários, que se esforçam além do limite para reduzir a dor alheia. Enquanto isso, governo e Congresso levaram três meses para retomar o auxílio emergencial para quem precisava dele com urgência. Em abril, aqueles que pararam de comer em janeiro, poderão voltar à mesa.

Pergunte a Jesus

Os cristãos de bom coração deveriam se perguntar como Jesus reagiria se soubesse que os senhores do templo podem embolsar integralmente o dinheiro dos fiéis, sem precisar devolver sequer parte dos valores arrecadados na forma de imposto. E o que ele diria se todas as multas por falcatruas aplicadas contra igrejas fossem extintas. Deveriam também se lembrar das imagens de Edir Macedo ensinando “bispos” novatos a extorquir os seus crentes e depois contando dinheiro de doações esparramado pelo chão. Ou daqueles sacos de dinheiro sendo embarcados num helicóptero para fora do templo.

Gravíssima

As tentativas de intimidação a Felipe Neto e aos manifestantes de Brasília que chamaram Bolsonaro de genocida valem tanto quanto um caroço de pequi roído. Nunca prosperarão. Grave, gravíssima, é a instrumentalização da Polícia Civil, que correu para atender o zerinho municipal contra o youtuber, em flagrante ilegalidade, e da PM, que despencou para obedecer comando do Planalto e enquadrar os que protestavam. Com a Polícia Federal já dominada, restam juízes, tribunais e a defensoria pública (obrigado) para conter autonomias indevidas e perigosas. Tirania nunca mais.


Foto: Beto Barata\PR

Eurípedes Alcântara: Vitória do tribalismo?

De todos os meus vícios mentais, o mais evidente é o otimismo. Vício, sim, pois o pessimista só tem boas notícias. De um amigo, poderosa antena assestada sobre os rumos do Brasil, recebi este comentário: “Não se iluda, se surgir uma nova liderança pregando um mínimo de união. Seja ela quem for, todas as ‘tribos’ repentinamente parariam de brigar para, atipicamente juntas, detratarem essa nova liderança e, na sequência, voltarem a guerrear”.

Parei para pensar e tentar refutar esse grave diagnóstico. Li as manchetes dos jornais e, nelas, não encontrei motivos para rebater meu amigo. Reli os artigos de opinião. Fui aos comentários dos leitores e, finalmente, às redes sociais. Nada. A sensação generalizada agora é muito parecida com aquela predominante no começo do século XX e que havia sido, meio sem querer, profetizada por Marx e Engels no Manifesto Comunista: “Tudo o que é sólido desmancha no ar”. Darwin demonstrara que somos macacos nus e não anjos decaídos. Freud nos tirava o comando do próprio destino entregando-o ao inconsciente, enquanto Einstein promovia a dessacralização das leis naturais.

O mundo pareceu a seus habitantes estar sendo virado de cabeça para baixo. A reação foi terrível. Um período arejado em que se podia viajar pelo mundo usando como passaporte documentos triviais, como uma carta de apresentação do prefeito da sua cidade, foi seguido de fechamento de fronteiras e da Primeira Guerra Mundial. Uma inédita cadeia global de tolerância foi rompida, e os países se fecharam em feudos. O medo e a desconfiança passaram a ser a tônica das relações.

É quase inacreditável, mas isso pode estar se repetindo agora e, pior, com a ajuda do fabuloso arranjo tecnológico a que chamamos internet. O neotribalismo é assustador por causa da internet. Nascida como Arpanet no Pentágono norte-americano, que buscava uma forma de comunicação descentralizada capaz de resistir a bombardeios nucleares estratégicos, a rede mundial de computadores foi cooptada por corações e mentes libertárias.

O físico britânico Tim Berners-Lee, inventor da World Wide Web, é o pioneiro da internet que melhor representa o roubo do fogo dos deuses, no melhor estilo “Prometeu acorrentado” da tragédia grega de Ésquilo, escrita quase 500 anos antes de Cristo. Berners-Lee imaginou a internet como um sistema complexo de pessoas interconectadas, capaz de unir a diversidade de pensamento com o objetivo de resolver os grandes desafios comuns da humanidade. Em parte, a previsão de Berners-Lee se realizou em projetos extraordinários de colaboração planetária, como o que levou à produção de vacinas eficazes contra a Covid-19 menos de um ano depois do sequenciamento genético do vírus.

Mas a internet está permitindo também boicotes ideológicos nada libertários aos centros tradicionais de autoridade que nos trouxeram até aqui — principalmente ofensivas bárbaras contra os métodos normativos de produção de conhecimento. É preciso lembrar que Darwin e Einstein revolucionaram a ciência, mas com obediência plena ao método científico. O que se vê agora são ataques a processos de tirar lições da experiência e de modificar os esquemas mentais, de modo que dialoguem racionalmente com a realidade — aquilo que o francês Edgar Morin chama de “oscilação constante entre o lógico e o empírico”.

O otimismo é fácil de explicar. O pessimismo exige mais das palavras, como você, caro leitor, testemunhou acima, espero que sem se decepcionar. Cutucado pela mensagem que abre a coluna, exasperei-me com o que parece ser o triunfo do tribalismo via internet, nos condenando ao “todos contra todos” hobbesiano em que, fechados em nossas cidadelas, estamos nos lixando para o resto.

O otimista em mim pode estar começando a ceder à realidade brasileira. Respondi ao amigo: “Muito boa análise. Triste conclusão, com a vitória do tribalismo sobre o bem comum”.


Pablo Ortellado: Outra vez o espectro do golpe

Mais uma vez, Bolsonaro invocou o espectro do golpe de Estado. Ele preparou um elaborado roteiro de ações e respostas que pode resultar em mais uma ameaça às instituições democráticas.

O roteiro tem seu primeiro ato na live do dia 11 de março. Nela Bolsonaro acusa governadores e prefeitos de tomarem “decisões absurdas” sobre o isolamento social, que equivaleriam a um estado de sítio, uma grave subtração do direito de ir e vir. Bolsonaro lembra em seguida que é a pessoa mais importante na cadeia de comando e avisa: “Não podemos deixar isso acontecer! Faço o que o povo quiser. Devo lealdade ao povo. Eu sou o chefe supremo das Forças Armadas!”.

Nos dias seguintes, meios bolsonaristas passam a divulgar vídeos com trechos da live dizendo que “Bolsonaro deu a senha”, que, se “o povo” pedir uma intervenção militar, Bolsonaro vai atender.

Manifestações são chamadas para o domingo (14) e a segunda (15), no centro das cidades e em frente aos quartéis, mas sem o apoio dos grandes canais e dos grandes influenciadores monitorados pela Polícia Federal no inquérito dos atos antidemocráticos.

As manifestações não são muito significativas, mas tampouco são inexpressivas.

No começo da semana, no cercadinho, questionado sobre o que tinha achado dos protestos, Bolsonaro diz que gostou muito, que “o povo está vivo”.

Na live da última quinta-feira (18), Bolsonaro enaltece a “manifestação espontânea” que “vem do coração do povo”. Em seguida, retoma a retórica da senha e diz que “o que o povo quer, a gente faz” e, depois, constata que “o povo disse nas ruas que quer trabalhar”.

Bolsonaro anuncia então duas medidas: uma ação de inconstitucionalidade no Supremo contra a imposição de medidas de restrição de mobilidade pelos governadores e um projeto de lei no Congresso estabelecendo toda forma de trabalho como essencial. Se Supremo e Congresso acatarem as medidas, diz Bolsonaro, se “restabelece a ordem no Brasil”.

Na sexta-feira (19), no cercadinho, Bolsonaro retoma a imagem de governadores decretando estado de sítio e alerta que chegará o momento de medidas “duras”, “para dar o direito do povo trabalhar”.

As duas medidas anunciadas na quinta, porém, estão fadadas ao fracasso. Não há a menor chance de o STF impedir governadores e prefeitos de decretar medidas de restrição à mobilidade no momento em que pandemia está tirando mais de 2 mil  vidas por dia. Não há tampouco qualquer chance de o Congresso desfazer a distinção entre trabalhadores essenciais e não essenciais, que permite que se paralisem as atividades econômicas seletivamente.

Bolsonaro não propôs essas medidas para que sejam aprovadas, mas para depois dizer que tentou a via institucional e foi deixado com as mãos amarradas, só lhe restando as “medidas duras”.

Mais uma vez, prepara a justificativa para uma eventual ruptura institucional. Mais uma vez, o pretexto é a preservação da democracia e das liberdades, com o respaldo do “povo” —ainda que se trate apenas de um punhado de militantes.


O Globo: Com pandemia no ápice, conflitos entre Bolsonaro, governadores e prefeitos emperram medidas de combate

Governador da Bahia, Rui Costa (PT), que também enfrenta críticas de prefeitos bolsonaristas, disse que vai acionar a Procuradoria-Geral do Estado para atuar contra o presidente

Bernardo Mello, Gustavo Schmitt e Sérgio Roxo, O Globo

RIO E SÃO PAULO - No momento mais crítico da pandemia, com o Brasil prestes a atingir a marca de 300 mil mortos, o confronto entre o presidente Jair Bolsonaro, governadores e prefeitos vem dificultando a adoção de medidas no combate ao coronavírus. Além de terem decretos questionados por Bolsonaro, que ingressou no Supremo Tribunal Federal (STF) ontem contestando o toque de recolher adotado por Bahia, Rio Grande do Sul e Distrito Federal, governadores de pelo menos oito estados enfrentam embates com prefeitos, alinhados ou não ao presidente, que rejeitam restrições em seus municípios.

Leia: Em ação no STF, Bolsonaro compara restrições impostas por governadores a estado de sítio

Ontem, governadores que foram alvos do pedido no STF — que deve ser negado pela Corte — reagiram ao presidente. O governador da Bahia, Rui Costa (PT), que também enfrenta críticas de prefeitos bolsonaristas, disse que vai acionar a Procuradoria-Geral do Estado para atuar contra o presidente, a quem chamou de “aliado do vírus”.

Governadores e prefeitos entraram em choque Foto: Editoria de Arte
Editoria de Arte/O Globo

O Consórcio Nordeste, formado por todos os estados da região, classificou o pedido de Bolsonaro como “inusitado”, enquanto Ibaneis Rocha (MDB) prorrogou o toque de recolher no Distrito Federal. O gaúcho Eduardo Leite (PSDB) ironizou a ação e disse que Bolsonaro “mais uma vez chega atrasado” ao debate. Leite também lembrou que o STF autorizou estados e municípios a determinarem suas próprias restrições, prevalecendo a regra mais rígida.

Interferência da Justiça

Bolsonaro criticou ainda o prefeito do Rio, Eduardo Paes (DEM), por determinar o fechamento das praias no fim de semana. O presidente disse que ir à praia era uma forma de obter vitamina D, o que reduziria a chance de um quadro grave em caso de contaminação com o vírus. Paes afirmou que pediria ao governador Cláudio Castro (PSC), aliado do presidente, para estender restrições à Região Metropolitana e respondeu Bolsonaro em uma rede social.

“Temos clareza das vitaminas que todos precisamos para ter saúde. Uma delas é a vitamina da solidariedade e contra o negacionismo aos fatos e o que vem acontecendo em todo o país”, escreveu Paes.

Gestão da pandemia criou atritos Foto: Editoria de Arte
Editoria de Arte/O Globo

Em algumas capitais, como Porto Alegre, Natal e Teresina, prefeitos alinhados ao bolsonarismo só cumpriram medidas restritivas de decretos estaduais após serem pressionados no Judiciário. Na capital do Piauí, o prefeito Dr. Pessoa (MDB), simpático a Bolsonaro, fez uma ofensiva no fim de janeiro, após se reunir com o presidente, pedindo a flexibilização de protocolos. Na última quinta, Pessoa baixou um decreto que descumpria as restrições do estado. O governador Wellington Dias (PT) recorreu à Justiça, que obrigou o município a seguir as regras estaduais.

— O sistema de saúde de Teresina está colapsado. Tivemos notícia de paciente que morreu sem atendimento. Ele (o prefeito) é um médico e espero que, com essa decisão, a gente possa manter a integração — afirmou Dias. — A posição do presidente cria uma dificuldade no cumprimento dos protocolos e decretos que são implementados. Sai da orientação científica para a campo da política.

Senado: Pacheco diz não haver razão para estado de sítio e cobra ações efetivas contra Covid-19

Em Natal, o prefeito Alvaro Dias (PSDB) aceitou um decreto conjunto com o governo do Rio Grande do Norte, na quarta-feira, após mediação do Ministério Público e pressionado por uma decisão judicial que reafirmava a prevalência das medidas mais restritivas. Na semana anterior, Dias havia contrariado decreto da governadora Fátima Bezerra (PT) e flexibilizado o toque de recolher para bares e restaurantes.

Em audiência de conciliação na última semana, Dias — que tem defendido o uso de remédios ineficazes contra a Covid-19, como a cloroquina — chegou a dizer que a capital potiguar tinha “vencido a pandemia”. Após ceder ao decreto estadual, ele justificou a mudança de posição citando a “agressividade” de novas cepas do vírus, argumento semelhante ao sugerido por aliados de Bolsonaro para que o presidente passasse a defender a vacinação:

— Ninguém gosta de adotar medidas tão duras. Isso afeta dos empresários aos trabalhadores mais pobres, informais. Por outro lado vejo que a doença está se espalhando e com características diferentes da primeira onda.

Na capital gaúcha, onde mais de 300 pessoas aguardam por leitos de UTI, o prefeito Sebastião Melo (MDB) ameaçou romper a chamada “cogestão”, em que prefeitos e governador tomam medidas conjuntas contra a Covid-19. Crítico ao fechamento de serviços, Melo chegou a apelar à população para que “contribuísse com a vida para salvar a economia”, e disse que “sempre cabe mais um” em hospitais.

Atrito entre aliados

O GLOBO também identificou conflitos entre governadores e prefeitos no Espírito Santo, Paraíba, Bahia, Minas Gerais e São Paulo.

Embora a maioria dos conflitos seja marcada por rivalidades locais, também há divergências entre aliados. O governador de São Paulo, João Doria (PSDB), e seu correligionário Bruno Covas trocaram críticas ontem sobre a decisão da capital de antecipar feriados na tentativa de aumentar o isolamento social.

O temor do estado é que o feriado prolongado de dez dias motive viagens e aglomerações no litoral. Doria disse que faltou bom senso. Covas rebateu e disse que o que falta é “senso de urgência”.

Além das capitais, cidades médias apresentam embates envolvendo prefeitos que se declaram apoiadores de Bolsonaro e contrariam medidas restritivas.

Aglomeração

Em Bauru, o governo do estado alega que a gestão de Suéllen Rosim (Patriota) tentou descumprir a fase vermelha e não tem investido na fiscalização das medidas sanitárias. No mês passado, ela cantou em um culto em uma igreja para diversas pessoas.

— Bauru é o pior exemplo do estado em termos de consequências negativas para a saúde da população — afirma Paulo Meneses, epidemiologista e coordenador do Centro de Contingência do governo estadual.

Veja também: Ciro Gomes é alvo de inquérito da PF por ter criticado Bolsonaro em entrevista

Em Campina Grande, o prefeito Bruno Cunha Lima (PSD) afirmou que vai recorrer de decisão judicial que o obrigou a seguir o toque de recolher do governador João Azevedo (Cidadania).

Em Ipatinga (MG), o prefeito Gustavo Nunes (PSL), eleito com apoio do presidente em suas lives, chegou a retirar a cidade do programa “Minas Consciente”, da gestão estadual de Romeu Zema (Novo), que estabelece protocolos sanitários para abertura de serviços. Mesmo em colapso na rede pública, Nunes se recusou a fechar atividades até quarta-feira, quando Zema impôs toque de recolher estadual, inclusive para quem estava fora do Minas Consciente.

Na Bahia, cidades no Sul do estado resistiram ao decreto estadual de lockdown. Em Teixeira de Freitas, o prefeito Marcelo Belitardo (DEM), que teve apoio do bolsonarismo local na última campanha, baixou um decreto que afirma que as medidas do governador da Bahia “não serão acolhidas”.


Evandro Milet: Podemos trocar o ministro por um algoritmo

Quem não faltou à aula de interpretação de textos na escola conseguiu ler o óbvio na decisão do STF e entendeu que a Corte não proibiu o governo federal de agir no enfrentamento da pandemia da Covid-19. Apenas, no seu entendimento, a possibilidade do chefe do Executivo Federal definir por decreto a essencialidade dos serviços públicos, sem observância da autonomia dos entes locais, afrontaria o princípio da separação dos poderes.

É óbvio que uma série de ações de coordenação e articulação com estados e municípios deveria ter sido feita e não foi. O STF não proibiu o executivo de coordenar a compra de respiradores que poderia ter evitado a bateção de cabeça com governadores negociando com fabricantes preços disparatados e dando margem à tenebrosas transações. Caberia até uma articulação diplomática com países fornecedores. Também não impede de coordenar a compra de oxigênio. Se não podia coordenar essas compras porque poderia comprar caminhões de cloroquina e distribuir?

Se o papel do governo federal é só distribuir o dinheiro para os estados, o ministro da saúde poderia ser substituído por um algoritmo com as regras de divisão. Aliás, a computação afetiva já começa a ser realidade e os algoritmos de inteligência artificial conseguem perceber até emoções. Não faria mal um pouco de empatia, mesmo digital, com os pacientes e famílias. Um robô teria mais sensibilidade para visitar hospitais.

O STF também não proibiu o executivo de fazer uma ampla campanha pela utilização de máscaras e pela necessidade de distanciamento social. Mas como fazer isso se o próprio Presidente fazia o contrário do que o mundo todo preconizava? Até campanha pelas vacinas fica difícil depois das seguidas manifestações contra a vacina chinesa por um ciúme político doentio e as transmutações em jacarés. Com isso se atrasou toda a negociação com fabricantes de vacinas.

A única recomendação presidencial foi pelo tal tratamento precoce que não consta em nenhum protocolo para covid em países desenvolvidos e ainda derrubou dois ministros que não compactuaram com as recomendações. Muita gente tende a seguir as recomendações médicas do capitão e passa a se achar imune, relaxando nos cuidados devidos. As teorias delirantes de conspiração nas redes supõem que todos os cientistas e líderes mundiais foram subornados pelos laboratórios farmacêuticos, que não queriam que os remédios baratos de lúpus, piolho e lombriga competissem com seus remédios caros.

Nas redes sociais proliferam, sem controle, as opiniões mais estapafúrdias também incentivadas. Umas acusam a imprensa de alarmismo quando, na verdade, as campanhas deveriam seguir as dos maços de cigarros ou da exposição crua dos acidentes de trânsito. Outras querem exigir que se divulgue principalmente o número de pessoas curadas. Seria como ao invés de repercutir os seis milhões de mortos no holocausto, dar destaque aos milhões que sobreviveram. Outros procuram relativizar o número de mortos comparando com outras doenças como câncer, dengue ou problemas cardíacos. Ora, para essas doenças há informação para quem quiser sobre como se prevenir, enquanto a covid é uma loteria com poucas informações sobre quem está sujeito a morrer, afastando famílias, colocando empresas em home office, fazendo se arriscar quem tem de trabalhar presencialmente e acabando com a vida social.

As atitudes tomadas pelos países de maior sucesso com muitos testes e rastreamento não foram seguidas obviamente pela falta de comando e pelo negacionismo permanente da gravidade e do possível número de mortos. Gripezinha, maricas, mimimi, frescura são expressões deprimentes e ridículas para tratar algo tão sério e perigoso.
Os países que levaram o problema a sério e introduziram desde cedo os procedimentos devidos, estão recuperando mais rapidamente a economia. Os que negaram o problema e não souberam conduzir o processo sofrerão as consequências por muito mais tempo.


Juan Arias: Alguém acha que se Bolsonaro perder as eleições contra Lula irá passar a faixa pacificamente?

A única coisa que preocupa o capitão desde que foi eleito é assegurar sua reeleição no ano que vem. Contra isso, é capaz de atropelar liberdades e voltar a acariciar seu sonho de uma nova ditadura militar

A possível foto do capitão Bolsonaro passando pacificamente a faixa presidencial ao ex-presidente Lula percorreria o mundo. E é isso que o presidente tentará evitar. Já recém-eleito em 2018 começou imediatamente a colocar em dúvida a legitimidade das urnas e exigiu o voto impresso. Chegou a dizer que se os votos não fossem manipulados ele teria vencido no primeiro turno e que tinha provas disso, mas nunca as apresentou. E desde então deixou claro que se perder o próximo pleito e ainda mais agora com a possibilidade de que Lula seja o vitorioso, não aceitará pacificamente os resultados.

Não por acaso, desde que surgiu de surpresa a possibilidade de que Lula possa disputar as eleições, Bolsonaro tem afirmado que só ele pode impor o estado de sítio no país. Falou novamente da possibilidade de um golpe, de que ele conta com “seu Exército”.

Bolsonaro nunca apareceu tão nervoso e agressivo ao mesmo tempo em que se apresentou de repente como o defensor da vacina, enquanto abre uma guerra contra os governadores aos que acusa de ser os responsáveis pela tragédia da pandemia por permitirem medidas restritivas para tentar conter o drama da covid-19 cada vez mais perigosa e agressiva.

A única coisa que preocupa o capitão desde que foi eleito é assegurar sua reeleição no ano que vem. Contra isso, o presidente é capaz de atropelar todas as liberdades e de voltar a acariciar seu sonho de implantar uma nova ditadura militar. Não é por acaso que a cada dia seu Governo aparece mais militarizado e que no boletim do Clube Militar do Rio de Janeiro tenha se defendido que a maioria dos brasileiros “tem saudade da ditadura”. Algo que todas as pesquisas nacionais desmentem mostrando que 70% dos brasileiros são favoráveis à democracia.

Bolsonaro voltou esses dias à cínica filosofia de que “a liberdade é mais importante do que a vida”. Só que ele falar de liberdade soa a sarcasmo. Pelo contrário, para ele o conceito de liberdade não existe. A primeira vez que ele falou de liberdade significou liberdade para infringir as leis restritivas contra o avanço da pandemia. Bolsonaro não entende de filosofia e não sabe o que é um silogismo e um sofismo. Seu forte não é o raciocínio e a reflexão e sim a impulsividade das armas e a exaltação da violência em todas as suas vertentes.

Quando o presidente defende que a liberdade vale mais do que a vida não está fazendo uma reflexão filosófica. Está só pensando na liberdade que suas hostes negacionistas pedem para desobedecer às normas impostas pela ciência e a medicina em meio à maior tragédia sanitária da história do Brasil.

Bolsonaro tem pavor de perder votos de suas hostes se apoiar as medidas necessárias não só para prevenir o contágio pessoal, como também para impedir o dos outros. Chega a defender que é melhor morrer e expor os outros à morte do que impedir as pessoas de burlar essas normas ao bel-prazer. Sua única obsessão é a de poder perder as eleições e por isso despreza a vida dos outros para salvar seu poder.

Bolsonaro falar da liberdade mesmo à custa de colocar em perigo a própria vida é risível e soa mais à fraude. Se há hoje no Brasil um político que despreza a liberdade é o presidente cujo vocabulário está repleto de palavras como golpe, ditadura, guerra contra a liberdade de expressão e perseguição dos direitos humanos. De guerra contra a liberdade das pessoas de escolher suas preferências sexuais e de negar que os diferentes tenham direito à sua liberdade de sê-lo.

A palavra liberdade na boca do negacionista e genocida já nasce podre e corrompida.

A única forma de liberdade para ele é justamente a de perseguir as liberdades que forjam uma sociedade verdadeiramente democrática onde não existe valor maior do que a vida.

presidente alardeia o uso de Deus para seus planos de poder e para ganhar os votos da grande massa dos evangélicos. Ele, que gostaria de trocar a Constituição pela Bíblia, deveria se lembrar que nos textos sagrados Jesus define a si mesmo como “o caminho, a verdade e a vida” (João, 14,16).

Bolsonaro despreza exatamente esses três conceitos. Em vez de ser o caminho, ou seja, o guia de uma sociedade justa e livre, é o motor da confusão e do desgoverno. Em vez de ser o representante no país da verdade é o semeador da mentira, cultor da nova moda das fake news. E em vez de ser o defensor da vida chama de covardes os que se protegem do vírus e fazem sacrifícios para continuar vivos.

Não existe no presidente que está conduzindo o país a uma catástrofe um só instinto de vida. Seu abecedário é o da morte e da destruição como revela sua paixão pelas armas, expressão da morte e da violência. Que Bolsonaro coloque um falso conceito de liberdade como mais importante do que a vida é a melhor constatação do que já havia confessado: “Eu não nasci para ser presidente. Minha profissão é matar”.

Bolsonaro poderá um dia ser levado aos tribunais internacionais acusado de não ter impedido com sua negação da pandemia e seu desprezo pela vacina encher os cemitérios de mortos. A única verdadeira liberdade que ele pratica é a de abandonar o país a sua própria sorte para não perder o poder.

O certo e cada vez mais indiscutível é que o Brasil, desde o fim da ditadura e volta à democracia, nunca esteve tão perto de uma nova tragédia política. A espada de Dâmocles de um novo golpe militar não é algo hipotético e sim algo bem próximo. E ainda mais com a chegada inesperada de Lula e a deterioração cada dia maior das instituições que deveriam velar pelos valores democráticos como o Congresso e o Supremo onde está ocorrendo uma verdadeira guerra campal entre os magistrados que deveriam colocar todos os seus esforços na defesa da democracia ameaçada.

Por sua vez, os militares que se comprometeram abertamente com o Governo Bolsonaro e suas loucuras antidemocráticas dificilmente aceitarão aparecer como derrotados. E certamente não permitirão perder essa guerra.

As grandes tragédias dos países começam por ser consideradas como catastrofistas e acabam sempre se realizando quando já não há mais tempo de detê-las.

Cuidado Brasil!

Quem mandou matar Marielle?

No último dia 14 de março, completaram-se três anos do atroz assassinato da jovem ativista negra vinda da favela, Marielle Franco, e sobre sua tumba continua ameaçador o silêncio sobre quem foram os mandantes de sua morte. Escrevi em outra coluna que Marielle morta poderia acabar sendo mais perigosa do que viva. Talvez seja necessário uma mudança no Governo de morte de Bolsonaro para que por fim saibamos com certeza quem matou a jovem e por quê. E então o Brasil poderá, por fim, fazer justiça da bárbara execução.

Para isso será preciso que chegue um presidente não comprometido com o submundo das milícias do Rio e que chegue um Governo realmente democrático que descubra o mistério de sua morte e, por fim, faça justiça levando aos tribunais os culpados hoje escondidos nos porões sombrios do poder.

Juan Arias é jornalista e escritor, com obras traduzidas em mais de 15 idiomas. É autor de livros como ‘Madalena’, ‘Jesus esse Grande Desconhecido’, ‘José Saramago: o Amor Possível’, entre muitos outros. Trabalha no EL PAÍS desde 1976. Foi correspondente deste jornal no Vaticano e na Itália por quase duas décadas e, desde 1999, vive e escreve no Brasil. É colunista do EL PAÍS no Brasil desde 2013, quando a edição brasileira foi lançada, onde escreve semanalmente.


China tem investimentos em 25 estados brasileiros, diz Luiz Augusto de Castro Neves

Informação é do presidente do Conselho Empresarial Brasil-China, em artigo na Política Democrática Online

Cleomar Almeida, Coordenador de Publicações da FAP

“No Brasil, os investimentos chineses estão presentes em 25 estados da federação”, diz o presidente do Conselho Empresarial Brasil-China, o economista Luiz Augusto de Castro Neves, em artigo que publicou na revista Política Democrática Online de março.

Com periodicidade mensal, a revista é produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania. A versão flip, com todos os conteúdos, pode ser acessada gratuitamente na seção de revista digital do portal da entidade.

Confira a Edição 29 da Revista Política Democrática Online

“A China consolida-se como ator de primeira grandeza no cenário internacional, seu produto interno bruto já é o maior do planeta, se medido em paridade de poder de compra (e provavelmente será o primeiro a preços de mercado ainda nesta década), e sua presença já se faz sentir em todos os quadrantes do mundo”, afirma Neves.

Relações fundamentais

Ele, que é embaixador no Japão, na China e no Paraguai, afirma que as relações econômicas e comerciais sino-brasileiras têm sido fundamentais para evitar o agravamento da crise econômica. Segundo ele, o país asiático continua a crescer muito mais do que a média da economia mundial e sua demanda por produtos brasileiros não para de crescer.

“Nosso desafio, nesse contexto, é buscar aproveitar plenamente as janelas de oportunidade que se nos abrem na China”, assevera ele, analisando o contexto das relações econômicas entre os dois países.

De acordo com Neves, as relações entre o Brasil e a China podem ganhar outra dimensão quando se examina a parceria entre os dois países com um olhar de longo prazo. “Sobretudo quando se tem em mente que a demanda externa desempenhará um papel central na retomada do crescimento da economia brasileira”, afirma.

Arrocho fiscal

O profundo desequilíbrio fiscal em que o Brasil se encontra, de acordo com Neves, dificilmente será corrigido nos próximos anos, levando a um crescimento modesto da demanda interna.  Ele também é membro do Conselho de Administração do Grupo Pão de Açúcar.

O aproveitamento pleno das janelas de oportunidade requer do Brasil, segundo ele, aumento de competitividade internacional mediante investimentos em infraestrutura, em capital humano, bem como fortalecer o ambiente de negócios.

“Em suma, precisamos ter estratégia de longo prazo em nossas relações com a China e, sobretudo, fazer nosso ‘dever de casa’”, assinala ele, que é ex-secretário-geral adjunto das Relações Exteriores e ex-diretor-geral para as Américas no Itamaraty.

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“Governo Bolsonaro enfrenta dura realidade de manter regras fiscais importantes”

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Face deletéria de Bolsonaro é destaque da Política Democrática Online de março

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O Estado de S. Paulo: Inquéritos da PF com base na Lei de Segurança Nacional crescem 285% com Bolsonaro

Número de investigações apresenta aumento significativo no primeiro biênio do atual governo em comparação com as gestões Dilma e Temer

Marcelo Godoy e Tulio Kruse, O Estado de S.Paulo

O número de procedimentos abertos pela Polícia Federal para apurar supostos delitos contra a segurança nacional aumentou 285% nos dois primeiros anos do governo de Jair Bolsonaro, na comparação com o mesmo período das gestões Dilma Rousseff e Michel Temer. Houve um total de 20 inquéritos entre os anos de 2015 e 2016. Já entre 2019 e 2020, foram 77 investigações. Em relação a outras cinco categorias de inquérito pesquisadas pelo Estadão por meio da Lei de Acesso à Informação – que incluem os principais crimes contra a administração pública –, as apurações baseadas na Lei de Segurança Nacional (LSN) foram, de longe, as que registraram maior aumento. 

O uso da LSN é contestado por juristas, e há 23 propostas de alteração protocoladas no Congresso. A redação atual da lei é de 1983, na fase final do regime militar e anterior à Constituição.

A legislação tem sido usada para embasar investigações contra opositores do governo Bolsonaro. Investigações foram abertas após pedidos do ministro da Justiça, André Mendonça, contra pessoas que fizeram críticas e publicaram mensagens contra o presidente.

Há ainda apurações que têm como alvo também bolsonaristas. Dois inquéritos abertos após decisão do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), miram atos antidemocráticos, a divulgação de fake news e ameaças contra membros da Corte – o que levou à prisão do deputado Daniel Silveira (PSL-RJ)

Os casos envolvem tanto a PF quanto as polícias estaduais. Ontem, cinco manifestantes foram detidos pela Polícia Militar em Brasília após estenderem uma faixa com a frase “Bolsonaro Genocida” em frente ao Palácio do Planalto. A PM usou a lei para embasar a ação. A faixa mostrava uma caricatura do presidente com rabo e chifres, transformando uma cruz vermelha – símbolo da saúde – em uma suástica nazista. Segundo a PM, este foi o motivo da prisão.

A LSN estabelece como crime, em seu artigo 26: “Caluniar ou difamar o Presidente da República, o do Senado Federal, o da Câmara dos Deputados ou o do Supremo Tribunal Federal, imputando-lhes fato definido como crime ou fato ofensivo à reputação. Pena: reclusão, de 1 a 4 anos.” 

O presidente da Associação de Delegados da PF, Edvandir Paiva, disse que autoridades estão usando o órgão como um braço para suas brigas políticas. “Eu gostaria que a Polícia Federal pudesse fazer seu trabalho, que é relevante no combate à corrupção, às facções criminosas e ao tráfico de drogas, e não ficasse sendo instrumentalizada em brigas políticas”, afirmou Paiva. “Quem dera a PF pudesse se manifestar para dizer que isso está atrapalhando o serviço dela.” 

Conforme dados da PF, no governo Bolsonaro, o número de inquéritos que miram supostas ameaças à segurança nacional aumentou mais do que investigações contra lavagem de dinheiro e organizações criminosas. Ao mesmo tempo, os delitos contra a administração pública – como fraudes em licitação e peculato – tiveram redução no número de procedimentos nos últimos dois anos.

Em nota, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública observou que a atribuição para investigar esses crimes é da PF. E afirmou que, se as Polícias Civis e Militares estão “atuando sem lastro”, é dever dos Ministérios Públicos apurar a “responsabilidades administrativa e penais.”

De acordo com Paiva, a maioria dos inquéritos abertos com base na Lei de Segurança Nacional são resultado de pedidos feitos por autoridades, como o Ministério da Justiça, a Procuradoria-Geral da República e o Poder Judiciário. “A PF está atendendo a requisições.” 

Segundo a advogada Denise Dora, diretora executiva da ONG Artigo 19, todos os índices que medem a liberdade de expressão no País têm caído nos últimos anos. “É uma novidade dos últimos dois anos: uma pessoa emitir opinião e ser processada pela LSN era algo que não estávamos mais convivendo, e é realmente um regresso ao passado.” 

Para o professor Cláudio Langroiva, especialista em direito processual constitucional da Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP), o uso da LSN é excessivo mesmo em casos em que os investigados extrapolam seus direitos e cometem infrações como injúria ou apologia ao crime. Ele lembra que o Código Penal já pune esses delitos, com uma diferença: a pena para difamação na LSN chega a quatro anos, mas é de três meses a um ano pelo Código Penal. Procurado, o Ministério da Justiça não havia se pronunciado até a conclusão desta edição. 

/ COLABORARAM ANDRÉ SHALDERS e EMILLY BEHNKE

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Marco Aurélio Nogueira: Pazuello saiu, mas o problema ficou

A troca do ministro da Saúde não foi uma resposta aos sensatos, mas uma tentativa de reduzir a tensão

O general foi sendo fritado aos poucos. Leal e submisso ao extremo, talvez não tenha percebido o óleo que esquentava. Talvez tenha participado da operação, cansado da guerra e ciente de que sua saída poderia ser uma saída para o presidente. O pior momento da pandemia também é o pior momento para Bolsonaro. Lula à parte.

A folha de serviços de Pazuello tem sua assinatura, e um dia, quem sabe, ele responderá por ela. Mas o endosso presidencial lhe deu condições de agir como agiu, fazendo o que seu dono mandava. O resultado está aí, nas mortes que se acumulam, nas vacinas que não chegam, na terra arrasada promovida no Ministério da Saúde. A falta de coordenação nacional, a despreocupação com a gravidade da pandemia, a insensibilidade, a ignorância em relação ao SUS, o desapreço pela vida, seria cansativo ficar enumerando os dados do desastre.

Pazuello saiu, mas o problema não. Ele tem nome e endereço. Não dá indícios de que mudará, por mais que possa haver assessores e aliados querendo isso. Até a opinião pública, que já não lhe é mais favorável, torce por uma mudança de rota. Os democratas, a população, a esquerda, não há quem deseje a piora da situação. Mas o presidente não está à altura das expectativas nacionais, na verdade demonstra não ter qualquer interesse em propor medidas para solucionar a crise, fechado que vive em um círculo de obsessões, ativistas ensandecidos, milicianos, filhos venenosos. Nem o Centrão consegue afastá-lo desse espaço tóxico, impregnado de violência.

Marcelo Queiroga, o novo ministro, não é um personagem conhecido fora da área cardiológica. Chega ao governo porque é amigo da família e sempre foi apoiador do chefe. Dizem que tem capacidade de articulação e bons contatos. Não é íntimo do SUS, nada sabe de Saúde Pública, mas falam que é bom gestor. Há uma compreensível excitação em saber o que ele pensa e o que acredita que fará, além de executar a “política do governo”, que de resto todos sabem não existir. Os jornais publicaram que ele já se manifestou a favor do isolamento social e contra “tratamentos precoces”. Pode ser. Mas isso não quer dizer absolutamente nada quando se fala de política no Brasil atual.

Terá Queiroga condições de imprimir outra direção, traçar uma política sanitária, recuperar a coordenação nacional, acelerar a compra de vacinas, organizar uma arena de reflexão e ação consistente para frear o vírus? Terá coragem de enfrentar os desatinos presidenciais, confrontá-los com firmeza, abrindo-se para os núcleos de inteligência médica, científica, e para suas recomendações?

Pelos dados que se têm, não dá para acreditar nisso.

Na verdade, não estamos perante uma oportunidade perdida. Não despontou nenhuma oportunidade. A defenestração de Pazuello não foi uma resposta aos mais sensatos, que pediam sua cabeça, mas sim uma tentativa de esfriar a temperatura e reduzir a tensão. Se não funcionar, como tudo indica, o óleo poderá queimar em outra frigideira.