Luiz Carlos Azedo: Para onde vamos?
Com o avanço da Operação Lava-Jato, Temer deslocou o eixo de sua atuação das reformas para a preservação do próprio mandato
Boa parte do que pensamos hoje sobre a relação entre economia e política é fruto de um grande debate ocorrido na Europa após a II Guerra Mundial, no qual alguns intelectuais analisaram profundamente as causas do colapso político e econômico do começo do século passado e a ascensão do fascismo. Esse debate proporcionou um período de grande estabilidade. Aqui no Brasil, porém, ocorreu o contrário: por causa da Guerra Fria, esse período foi marcado por crises sucessivas, que resultaram no golpe militar de 1964, ou seja, em 20 anos de ditadura. Quem são esses intelectuais e quais as suas ideias básicas?
Em primeiro lugar, os fundadores da Escola de Chicago, Ludwigh Von Mises e Friedrich Hayek, ambos austríacos, cuja defesa do liberalismo, ou seja, de uma sociedade aberta e livre, visava manter o Estado o mais longe possível da economia, para isolar os radicais de direita ou de esquerda e impedi-los de planejar, dirigir ou manipulá-la.
Com as mesmas preocupações quanto ao passado, em segundo lugar, o economista britânico John Maynard Keynes, chegou a conclusões completamente diferentes, defendendo a intervenção do Estado na economia para garantir a segurança social com políticas anticíclicas e isolar os radicais. Com base nas suas ideias, governos social-democratas e neokeynesianos construíram o Estado de bem-estar social na Europa, até que a onda neoliberal de Margaret Tatcher, na Inglaterra, nos anos 1980, colocasse em xeque essa política.
Somente após a redemocratização, em 1985, as ideias liberais e social-democratas que proporcionaram estabilidade e progresso à Europa Ocidental encontraram um ambiente favorável ao debate aberto e livre aqui no Brasil, sem as contingências da radicalização política causada pela Guerra Fria desde o governo Dutra, em 1946. Entretanto, vivíamos o esgotamento do modelo de substituição de importações e uma profunda crise de financiamento do Estado, o que resultou na hiperinflação do governo Sarney (1985-1989). Foi a partir desse debate que conseguimos controlar a inflação e consolidar a democracia, o que nos proporcionou três inéditas décadas de estabilidade política, em que pese os impeachments de Collor de Mello (1992) e Dilma Rousseff (2016).
Entretanto, esse debate foi mitigado e hegemonizado pela polarização PSDB-PT, desde a eleição de Fernando Henrique Cardoso, em 1994. Num primeiro momento, em decorrência do sucesso do Plano Real e da estabilização da moeda. As correntes neoliberais e desenvolvimentistas foram neutralizadas pelo pensamento social liberal predominante na equipe do ministro da Fazenda, Pedro Malan, além da forte influência do pensamento de Peter Ducker nas políticas públicas (fazer com que os serviços públicos adotassem métodos e práticas de gestão das empresas privadas).
A chegada do PT ao poder, com a eleição de Luiz Inácio Lula da Silva, em 2002, com sua “Carta aos Brasileiros”, num primeiro momento, garantiu certa continuidade dessas políticas, com ênfase no “focalização” dos gastos sociais nas camadas mais pobres da população, via programas compensatórios de transferência de renda. Esse curso, porém, já no fim do primeiro mandato de Lula, foi alterado profundamente, com a adoção de práticas populistas e medidas nacionais desenvolvimentistas focadas no adensamento cartorial das cadeias produtivas.
E as reformas?
Tal política foi exacerbada ainda mais no governo Dilma. A “nova matriz”, porém, nada mais era do que a fusão do velho “capitalismo de laços” com um novo “capitalismo de Estado”, a serviço da formação de cartéis e grandes empresas monopolistas, os chamados “campeões nacionais”, que garantiram, por meios ilegais, a reprodução eleitoral do bloco político no poder. Esse processo ampliou o patrimonialismo, a corrupção e o fisiologismo, que estão sendo desnudados pela Operação Lava-Jato. E mergulhou o país na mais dura recessão, o que provocou o impeachment de Dilma.
Assim, chegamos ao atual governo. O velho PMDB, fisiológico e patrimonialista, continua o grande fiador da governabilidade e da estabilidade do sistema político. O presidente Michel Temer, o vice que assumiu o poder, recebeu pleno apoio das forças políticas que apoiaram o impeachment, mas não da opinião pública que se contrapôs ao governo Dilma. Seus cacifes: a forte base parlamentar e grande capacidade de articulação no Judiciário.
Temer assumiu o governo com um programa de combate à inflação, recuperação de estatais, limitação de gastos públicos e reformas da Previdência e das relações trabalhistas. Com o avanço das investigações da Operação Lava-Jato, que chegou às cúpulas do PMDB e do PSDB, deslocou o eixo de sua atuação das reformas para a preservação do mandato de presidente da República. Para onde vamos? Ninguém sabe. O cenário é de instabilidade política, incerteza econômica e inquietação social.
Luiz Carlos Azedo: A porta dos fundos
As provas da propina e do caixa dois na campanha da chapa Dilma-Temer podem não ser consideradas no julgamento da eleição, mas continuarão existindo nos processos da Lava-Jato
O relator do pedido de cassação da chapa Dilma Rousseff-Michel Temer no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), ministro Herman Benjamin, durante a leitura de seu voto, independentemente do desfecho do julgamento — que deve ser concluído hoje —, abriu uma discussão sobre a utilização de propina nas eleições pelos maiores partidos do país que deve ir longe, muito longe, chegando mesmo ao Supremo Tribunal Federal (STF), quando ocorrerem os julgamentos dos políticos investigados na Operação Lava-Jato. Segundo o ministro, ao pedir a cassação da chapa, “os partidos que encabeçaram a coligação Com a Força do Povo acumularam recursos de ‘propina-gordura’, ou ‘propina-poupança’, que os favoreceram na campanha eleitoral de 2014”.
Herman Benjamin pôs o dedo na ferida da crise do sistema político e eleitoral: “Trata-se de abuso de poder político e ou econômico em sua forma continuada, cujos impactos, sem dúvida, são sentidos por muito tempo no sistema político-eleitoral”. O que não faltam são provas de caixa dois e de que a propina jorrou da Petrobras para a campanha eleitoral, o que seria motivo de sobra para a cassação da chapa. Mas não é aí que está a disputa no âmbito do TSE. A condenação ou absolvição de Temer depende da interpretação preliminar sobre a validade dessas provas, por parte dos ministros Napoleão Nunes Maia Filho, Admar Gonzaga, Tarcísio Neto, Luiz Fux, Rosa Weber e Gilmar Mendes. Segundo o presidente do TSE, Gilmar Mendes, os fatos novos ligados à Odebrecht extrapolam os limites da ação.
Benjamin fez um diagnóstico do sistema de financiamento eleitoral: “Os dois partidos da coligação usufruíram, ao longo dos anos, de valores ilícitos, derivados de práticas corruptas envolvendo a Petrobras”. Segundo ele, ambos “estabeleceram fontes de financiamento contínuo, as quais sem dúvida permitiram-lhes desequilibrar a balança da disputa eleitoral”. Mas o modelo não se restringiria ao PT e ao PMDB: “Chamo atenção que não foram esses os dois únicos partidos a agir dessa forma. Há vastos documentos probatórios nos autos em relação aos outros partidos. Mas, como relator, e nós como juízes, só podemos analisar a coligação vencedora na eleição presidencial de 2014”.
Vamos supor que Benjamin perca a discussão nas preliminares, como tudo leva a crer, por 4 a 3, na queda de braços jurídica com o presidente do TSE, ministro Gilmar Mendes, contrário à inclusão das provas. O resultado do julgamento será o reflexo de um duplo posicionamento: primeiro, de natureza processual (as provas não são válidas); segundo, de mérito (Dilma já não é presidente; e/ou Temer não era responsável por suas contas). Essa daria alento às forças que participam do governo Temer, mas certamente será submetida por recurso do Ministério Público ao Supremo, que terá que examinar a questão, ou seja, anular o julgamento e mandar incluir as provas ou referendá-lo e encerrar esse assunto. E o que fazer com o caixa dois e a propina?
Partidos
Mais cedo ou mais tarde esse assunto voltará à baila, em razão da Lava-Jato. O que estará em jogo não é apenas o julgamento dos políticos que estão sendo investigados, inclusive o presidente Michel Temer, que corre o risco de ser denunciado pelo Ministério Público em razão da delação premiada do empresário Joesley Batista, dono da JBS. As provas cabais de que houve propina e caixa dois na campanha da chapa Dilma Rousseff- Michel Temer podem não ser consideradas no julgamento da eleição, mas continuarão existindo nos processos da Lava-Jato.
Também chegará um momento em que os partidos serão julgados pela “propina-poupança” e “propina-gordura”. Há, no próprio Tribunal Superior Eleitoral (TSE), três processos que ameaçam PT, PMDB e PP. A ministra Rosa Weber é a relatora das ações que podem cassar os registros de PT e PP, enquanto Luiz Fux é o do processo aberto contra o PMDB. Ninguém menos do que próprio presidente da Corte, ministro Gilmar Mendes, no ano passado, autorizou a investigação sobre o uso de verbas públicas da Petrobras em benefício do PT no âmbito da Operação Lava-Jato. Se a apuração concluir que houve uso de financiamento vedado pela legislação eleitoral, o resultado pode ser a extinção da sigla.
Gilmar também autorizou investigações contra o PMDB e o PP, com base em suspeitas similares levantadas nas investigações da Lava-Jato. Em fevereiro passado, o TSE destravou o andamento dos três processos, por 5 a 2, ao retirá-lo do então corregedor-geral da Justiça Eleitoral, Herman Benjamin. No julgamento em curso hoje, Rosa Weber e Luiz Fux apoiam Benjamin. Parece coisa de maluco aventar essa hipótese, mas a legislação eleitoral, cumprida à risca, pode levar a isso. O julgamento de hoje, porém, parece abrir uma saída pragmática e conciliadora para o establishment político do país. Mas é a porta dos fundos.
* Luiz Carlos Azedo é jornalista
Ricardo Tavares: Trazer a política industrial brasileira para o século XXI
País enfrenta a perda de competitividade internacional, visto que os nossos parceiros comerciais mais competitivos penetram o nosso mercado e deslocam a produção brasileira de mercados tradicionais de nossas exportações industriais, como a América Latina.
A produção industrial mudou nas últimas décadas com fábricas e cadeias produtivas nacionais cedendo lugar a cadeias de produção transfronteiriças aonde tarefas e componentes atravessam vários países, frequentemente, mais de uma vez, até que o produto seja finalizado numa zona de baixo custo de mão de obra. O Brasil ficou à margem deste processo, procurou adensar as suas cadeias produtivas nacionalmente e utilizou abundantemente políticas de “conteúdo local”.
Isto resultou, nas palavras do economista Otaviano Canuto, em cadeias de produção “densas demais”, que levaram à perda de competitividade internacional. Subsídios setoriais e políticas de proteção já não são mais suficientes para dar sobrevivência à indústria brasileira, visto que os nossos parceiros comerciais mais competitivos penetram o nosso mercado e deslocam a produção brasileira de mercados tradicionais de nossas exportações industriais, como a América Latina.
O debate no Brasil, especialmente entre economistas na academia, no entanto, continua resistente à ideia de que o país precisa reavaliar sua politica industrial na direção de maior integração com cadeias globais. Os argumentos são variados, mas aqui vão três deles:
A fragmentação dos processos produtivos não é boa para os sócios mais fracos, porque só países centrais mantêm os melhores empregos e salários;
A China define a ordem industrial atual e nossa integração nos desindustrializa e nos torna meros fornecedores de commodities;
Finalmente, surge o argumento de que não valeria a pena o Brasil se inserir em cadeias globais exatamente quando a Indústria 4.0, com tecnologias como a Internet das Coisas, Robótica, Impressão 3D, Inteligência Artificial e Realidade Virtual irão reverticalizar a indústria e reduzir a importâncias destas mesmas cadeias.
O economista Richard Baldwin notou que os países do G-7 em 1990 tinham cerca de 70% da renda mundial, mas hoje possuem algo como 45% e caindo. Este significativo deslocamento de renda se deveu à fragmentação da produção e à expansão de cadeias globais de valor. Seis países em desenvolvimento se beneficiaram fartamente deste processo por sua integração a cadeias globais: China, Coréia do Sul, Índia, México, Polônia e Tailândia. O Brasil ficou à margem deste processo. Centenas de milhões de pessoas saíram da faixa de pobreza. Assim, a ideia de que as cadeias globais simplesmente criam injustiça nos países em desenvolvimento é mais complicada do que a simplicidade do argumento indica.
A China hoje ocupa papel central nas cadeias produtivas de várias indústrias-chave. Ganhou esta posição saindo debaixo, importando bens de capital e componented e subindo a ladeira das cadeias de valor. As políticas chinesas vão muito além do simples livre comércio, mas são baseadas em importar para exportar, agindo estrategicamente em vários setores, integrando-se e buscando papel mais central nas cadeias. No entanto, não é responsabilidade da China que o Brasil tenha aproveitado o ciclo de commodities para aumentar o consumo sem crescer seus investimentos, ou que tenha optado por adensar cadeias locais antes de se integrar ao dinâmico processo de formação de cadeias globais. Estas responsabilidades são exclusivamente nossas.
Quanto à Indústria 4.0 está claro que terá impacto nas cadeias produtivas globais. O que não está claro é qual será a direção deste impacto. O Fórum Econômico Mundial (WEF), por exemplo, está promovendo debates sobre a questão. No caso da Impressão 3D, o WEF concluiu que o impacto é mais restrito a produtos industriais de baixa escala e alto valor. Outras tecnologias vão ser integradas à produção nos próximos anos. Vale a pena esperar sentado pela reverticalização enquanto a bola continua rodando em cadeias transfonteiriças? Como será a indústria brasileira em cinco ou dez anos sem ajustes? Além disso, estas novas tecnologias permitirão aos países do G7 recapturar nacos da renda mundial, agora junto com a China? Uma reverticalização da indústria num novo patamar tecnológico daria mais ou menos oportunidades ao Brasil?
Ao invés de questionar a importância da integração, seria mais útil discutir como o Brasil pode se beneficiar de cadeias globais de valor, que na verdade tendem a se estruturar regionalmente. Trata-se de uma tarefa gigantesca. As políticas não podem mudar radicalmente do dia para a noite, visto que isso terminaria por destruir a indústria. É importante pensar um processo de transição de cadeias densas demais para maior integração.
O governo Dilma Rousseff (2011-2016) é responsável por políticas de conteúdo local que levaram painel da Organização Mundial de Comércio (OMC) a condenar o Brasil por programas como o Inovar-Auto e a Lei de Informática. Mas ironicamente criou o RECOF, programa aduaneiro especial que deu à indústria exportadora intensa em tecnologia mais flexibilidade para importar insumos à produção sem pagamento de impostos imediatos, com a isenção se configurando quando produto é exportado. Isto certamente está dando impulso à maior integração do Brasil em cadeias internacionais e à melhoria das condições de competitivade das nossas exportações industriais em setores de intensidade tecnológica.
A Embraer por seu turno está procurando fazer, com o apoio da Associação Brasileira de Desenvolvimento Industrial (ABDI), um programa de localização de fornecedores de insumos industriais diferente do passado, estimulando o desenvolvimento de sua cadeia local de fornecedores de componentes não somente para suprir a Embraer mas para exportar para a indústria aeronáutica international. O conteúdo local para vender somente no próprio país não faz qualquer sentido e destrói a competitividade internacional da indústria. Devemos pensar em iniciativas semelhantes para outros setores.
A política industrial brasileira dos últimos 10 anos ficou parada no século XX. É preciso fazê-la chegar ao século XXI. O RECOF deu um passo importante. A próxima etapa é sem dúvida a modernização da política comercial.
* Ricardo Tavares é cientista político e consultor de empresas; é presidente da TechPolis, empresa de consultoria internacional.
Vídeo: Seminário sobre Gramsci em Roma
A Fundação Astrojildo Pereira (FAP) participou, nos dias 18 a 20 de maio, do Seminário Hegemonia e Modernidade, em Roma, Itália. O evento, organizado pela Fundazione Gramsci, teve o objetivo de “realizar uma discussão envolvendo os estudiosos do pensamento de Gramsci em diversas partes do mundo”. A FAP foi representada por meio de dois de seus dirigentes, especialistas em Gramsci no Brasil, Alberto Aggio e Luiz Sérgio Henriques (que também é tradutor do filósofo). O convite da organização do evento, para que a Fundação Astrojildo Pereira integrasse o seminário, foi um forte reconhecimento das atividades de publicação e tradução do pensamento de Gramsci realizado pela FAP e de seus comentadores aqui no Brasil. Confira, abaixo, o vídeo com um resumo dos debates.
Luiz Carlos Azedo: Truco na Lava-Jato
O polêmico acordo de delação da JBS na Operação Lava-Jato virou o jogo na opinião pública sobre as delações premiadas de empresários corruptos
De origem espanhola, o jogo de truco foi popularizado na América Latina por imigrantes espanhóis e italianos, sendo muito popular em São Paulo, Minas, Goiás e no Rio Grande do Sul. O apelo popular do jogo vem do sistema emocionante de apostas, nas quais cada tipo de pontuação pode ser escolhido para marcar mais pontos para a equipe. As propostas são aceitas, rejeitadas ou aumentadas. O blefe e o engano também são fundamentais para o jogo, inclusive na distribuição das “mãos” de cartas, cujo número precisa ser conferido a cada rodada. Com todo respeito, a crise chegou aos tribunais superiores como uma espécie de jogo de truco.
A defesa do presidente Michel Temer pediu, na sexta-feira, ao ministro Edson Fachin, relator da Operação Lava-Jato no Supremo Tribunal Federal, o desmembramento do inquérito da JBS. O presidente da República é investigado com o senador Aécio Neves (PSDB-MG) e o deputado federal Rodrigo Rocha Loures (PMDB-PR). O advogado Antônio Cláudio Mariz de Oliveira sustenta que os fatos narrados sobre os três políticos na delação do empresário Joesley Batista, dono da JBS, não têm relação entre si. Em outra petição, Mariz pleiteou ao relator da Lava-Jato a “livre distribuição” do inquérito; ou seja, que outro ministro seja sorteado para cuidar do caso, em vez de permanecer com Fachin, como havíamos antecipado no domingo passado. Truco paulista!
No mesmo dia, quando parecia que a iniciativa estava com o presidente da República, o procurador-geral da República, Rodrigo Janot, pediu ao Supremo Tribunal Federal (STF) autorização para que sejam interrogados Temer, Aécio e Rocha Loures, bem como outros citados na delação da JBS. Quem vai decidir a questão é o ministro Édson Fachin, que a defesa não reconhece como juiz natural, porque o caso não está ligado ao escândalo da Petrobras. Janot pede ao relator para definir como será feito o depoimento, que normalmente fica a cargo da Polícia Federal. Truco mineiro? Pode ser que não: o pleito da defesa de Temer é que seja feito por escrito, após a perícia da gravação do empresário Joesley Batista. O presidente da República é investigado no STF por suspeita de corrupção, organização criminosa e obstrução de Justiça. Ou seja, virou pivô da crise.
Para embaralhar as cartas, o ministro Gilmar Mendes trucou de verdade, à moda goiana. Anunciou que pretende rediscutir a forma como delações premiadas devem ser homologadas (validadas juridicamente) e também a decretação de prisão após a condenação em segunda instância. A oportunidade veio com o polêmico acordo de delação da JBS na Operação Lava-Jato, que virou completamente o jogo na opinião pública sobre as colaborações feitas por empresários corruptos. Mendes quer que as delações deixem de ser uma espécie de monopólio do relator e passem a ser homologadas de forma colegiada, pelos 11 ministros do STF, em sessão plenária, ou por uma de suas duas turmas, cada qual com cinco ministros.
Gilmar disse que o falecido ministro Teori Zavascki, antigo relator da Operação Lava-Jato, havia conversado com ele sobre essa questão. Se houver mais interlocutores com os quais o antigo relator tenha conversado, a chance desse truco é grande. “O que a lei diz? Que o juiz é quem homologa, mas o juiz aqui não é o relator, quando se trata de tribunal, é o próprio órgão. Ele pode até fazer a homologação prévia, mas sujeita a referendo.” O fato de o caso envolver o presidente da República praticamente consagra a tese, pois não há como deixar de discutir o tema no próprio plenário.
“Mão” gaúcha
O truco gaúcho é jogado com baralho espanhol, não o francês, e será a rediscussão da execução penal após a condenação em segunda instância, que tanto apavora os envolvidos na Operação Lava-Jato sem direito a foro especial, ou seja, principalmente aqueles que estão sendo julgados em Curitiba pelo juiz federal Sérgio Moro, cujas decisões quase sempre são referendadas pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região, em Porto Alegre. Os ministros Dias Toffoli, Ricardo Lewandowski e Celso de Mello discordam das prisões após decisão em segunda instância e defendem que ocorra somente após a terceira instância, no caso, o Superior Tribunal de Justiça (STJ). Com base nisso, Gilmar pretende propor uma revisão da questão pelo Supremo, o que muda muito as regras do jogo para a força-tarefa da Operação Lava-Jato.
O ministro Gilmar Mendes vinha se mantendo em silêncio nas últimas semanas, quebrado ontem com novas e polêmicas declarações sobre a Lava-Jato. Mas confirmou que o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) iniciará em 6 de junho o julgamento da chapa Dilma Rousseff-Michel Temer, cuja eleição pode ser anulada por abuso de poder econômico, a pedido do PSDB. O vice-procurador-geral eleitoral, Nicolau Dino, pediu a cassação da chapa, ou seja, do mandato de Temer, e dos direitos políticos da ex-presidente Dilma Rousseff, por oito anos. O voto do ministro relator do caso, Herman Benjamin, anterior à delação premiada de Joesley Batista, pede a cassação. Hoje, teria apoio da maioria do plenário. Entretanto, é dado como certo o pedido de vista por um dos ministros indicados pelo presidente Michel Temer. Nesse caso, o julgamento vai para as calendas.
* Luiz Carlos Azedo é jornalista
Luiz Carlos Azedo: Ninguém morreu, ainda
A oposição não deve estimular a violência e o vandalismo nos protestos; uma saída para a crise ética e política depende do Congresso e do Supremo Tribunal
Uma das características da crise ética que o país vive é o fato de que ninguém morreu, até agora. Não houve “queima de arquivo” de potenciais delatores e testemunhas. Muito menos de delegados, promotores e juízes, como aconteceu na Operação Mãos Limpas, na Itália. Suicídios, nem pensar, não é da índole dos envolvidos. A personalidade do presidente Michel Temer também não se parece com a de Getúlio Vargas, e o contexto da crise atual é completamente diverso daquele de 1954 — embora o dia 24 de agosto esteja longe ainda. Mas, ontem, uma pessoa foi baleada durante os protestos da Esplanada dos Ministérios, ou seja, por muito pouco não apareceu o primeiro cadáver para incendiar o país.
Entretanto, em razão dos atos de vandalismo protagonizados por manifestantes convocados pelas centrais sindicais e pelos partidos de oposição, que chegaram a atear fogo nos ministérios da Agricultura e da Cultura e a depredar outros prédios da Esplanada, a crise ganhou contornos que podem resultar numa tragédia, se não houver uma mudança de rumo na situação. De um lado, a oposição precisa dar exemplo e deixar de estimular a violência e o vandalismo nos protestos; de outro, os poderes da República, notadamente o Congresso e o Supremo Tribunal, devem buscar uma saída para a crise ética e política que se instalou em razão da abertura de investigação contra o presidente Michel Temer no âmbito da Operação Patmos (ilha grega onde o apóstolo João teve as visões descritas no Apocalipse), deflagrada pela “delação premiada de Joesley Batista, dono da JBS”.
Lei e ordem
No fim da tarde, o ministro da Defesa, Raul Jungmann, ao lado do ministro do Gabinete de Segurança Institucional, general Sergio Etchegoyen, anunciou que, a pedido do presidente da Câmara, deputado Rodrigo Maia (DEM-RJ), o presidente Temer determinou o emprego de forças federais numa operação de garantia da lei e da ordem na Esplanada. Durante os confrontos, a Polícia Militar utilizou os recursos habituais para enfrentar os manifestantes e conteve os protestos sem emprego de força desproporcional, mas não conseguiu impedir a escalada de vandalismo.
A decisão de recorrer à Garantia da Lei e da Ordem (GLO), uma prerrogativa exclusiva do presidente da República, tem um duplo significado. Primeiro, a disposição de não permitir que os protestos extrapolem os limites da manifestação livre e democrática e que degenerem em atos de vandalismo e violência, como vem ocorrendo com frequência. Segundo, o envolvimento das Forças Armadas na crise política, o que não é nada bom, porque a confrontação desses manifestantes com essas forças pode degenerar em repressão mais brutal.
As operações de GLO estão previstas nos casos de esgotamento das forças tradicionais de segurança pública e graves situações de perturbação da ordem. São reguladas pelo artigo 142 da Constituição, pela Lei Complementar 97, de 1999, e pelo decreto 3.897, de 2001. Nessas ações, as Forças Armadas agem de forma episódica, em área restrita e por tempo limitado, com o objetivo de preservar a ordem pública, a integridade da população e garantir o funcionamento regular das instituições. Passam a ter poder de polícia até o restabelecimento da normalidade.
Essas operações já foram realizadas no Rio de Janeiro, no Rio Grande do Norte e no Espírito Santo, a pedido dos governos estaduais; durante a Conferência das Nações Unidas para o Desenvolvimento Sustentável do Rio de Janeiro (Rio+20), em 2012; na Copa das Confederações da Fifa; e na visita do papa Francisco a Aparecida (SP) e ao Rio de Janeiro, durante a Jornada Mundial da Juventude, em 2013; e na Copa do Mundo de 2014 e nos Jogos Olímpicos Rio-2016. É a primeira vez que se realiza em razão de manifestações políticas na Esplanada. Não é um bom sinal.
Luiz Sérgio Henriques: Democratas de esquerda – a hora e a vez?
A esquerda brasileira gira em círculos em torno de seus anacronismos e tabus
O quadro partidário em ruínas e o destino incerto de tantos personagens de primeiro plano tornam particularmente opaca a cena pública a pouco mais de um ano de eleições gerais. Não há muitos termos de comparação para nossas agruras e a referência inevitável para este nó aparentemente insolúvel entre questões judiciais e questões políticas continua a ser a Operação Mãos Limpas, italiana, na década final do século passado (na foto, Antonio di Pietro, o procurador da República encarregado do caso).
Diferentemente do caso brasileiro, em que partidos frouxamente organizados conduziram a transição e dominaram o poder central até 2002, a Primeira República Italiana, que nasceu no segundo pós-guerra, era uma República de partidos de massa, dois dos quais se tornaram reconhecidos até fora do país: a Democracia Cristã (DC) e o Partido Comunista (PCI). Ambos portavam visões de mundo comunitaristas, não necessariamente antagônicas, admiravelmente retratadas na arte culta ou popular. Para dar um exemplo divertido, foram tempos de Don Camillo e Peppone, o pároco e o prefeito comunista – criaturas de Giovannino Guareschi – que se comportavam expressivamente ora como adversários, ora como aliados.
Positivamente, aquela República fez nascer a Itália moderna; negativamente, reduziu-se muitas vezes, segundo os críticos, a uma “partidocracia”, em que cargos e nomeações, em toda a estrutura do Estado, se dividiam segundo regras bizantinas de filiação partidária. Sempre no poder, a DC e seus aliados de centro ou centro-esquerda; eternamente na oposição, o PCI – uma disposição que se tornaria disfuncional em razão, precisamente, do veto que os condicionamentos da guerra fria impunham à alternância.
A Mãos Limpas levou à implosão daquele sistema bloqueado: dois partidos tradicionalíssimos, a DC e o Partido Socialista, entre outros menores, foram tragados na grande crise. Forza Italia, a agremiação berlusconiana, e os separatistas da Liga Norte dariam voz à nova direita. O PCI continuaria o processo de reconstrução que o levaria muito além do comunismo de origem. E na margem a galáxia ultraesquerdista, a praticar “rachas” e cisões, seu esporte preferido.
Começada de forma casual, a Lava Jato terá topado, progressivamente, com um esboço de “sistema de poder” à italiana, estruturado não só a partir de nossa maior empresa pública, mas, pelo que se vê, espalhado por fundos de pensão, bancos e demais órgãos públicos. As regras de repartição saíram do âmbito artesanal: não se tratava mais de dar, ao sabor de pressões momentâneas, “diretorias que furam poços e acham petróleo” para este ou aquele personagem folclórico, mas de criar máquinas eleitorais poderosas e alianças parlamentares imbatíveis, roçando a unanimidade.
Não se pode dizer, de forma alguma, que o mecanismo fosse inteiramente inédito, salvo na proporção que passou a assumir. Mudanças quantitativas, como se diz, acarretam saltos de qualidade e no auge de sua vigência o mecanismo pareceu capaz de autorreprodução: mal se descobriam feitos e malfeitos que deram vida ao “mensalão”, surgiram indícios de algo mais grave a envolver empresas públicas e privadas numa escala que nos assusta ainda agora.
Alguém poderá lembrar que Sérgio Motta, um dos ministros mais fortes do primeiro governo FHC, certa vez vaticinou um domínio de 20 anos para consolidar as reformas liberais de então. A lembrança é cabível, mas não de todo pertinente: essa espécie de reforma é normalmente impopular, independentemente das justificativas que possa ter, e costuma minar as bases de sustentação de qualquer governo. E, ainda mais importante, os tucanos, como de resto seus aliados do antigo PFL ou do PMDB, eram partidos à moda antiga, fortes eleitoralmente, mas com pouca ou nenhuma vida orgânica ou elaboração autônoma. A adesão que obtinham, no mais das vezes, era de tipo passivo; salvo na implantação da nova moeda e em algumas outras situações, não entusiasmavam nem mobilizavam seus eleitores ao longo do tempo. Não lhes davam argumentos para a boa luta cotidiana, em meio às pessoas comuns.
Uma forte assimetria, ao contrário, caracterizou o sistema de poder petista. Longe de ser um partido comunista, especialmente se considerado o conjunto de fins (realizáveis ou irrealizáveis) que caracterizava esse tipo de partido, o PT sempre trouxe em si algo dos velhos PCs: a centralização, a disciplina e, ai de nós, o culto do chefe, não raro imantado dos dotes de messianismo e infalibilidade. Em contato com tradicionais “partidos de Estado”, que a ele se aliaram a partir do segundo mandato de Lula, o PT pôde exercer por alguns anos, quase sem contestação, seus pendores hegemonistas e seus vezos de cooptação. De fato, o “franciscano” toma lá dá cá atingiu o estado da arte, muito além dos desvios – intoleráveis! – de caixa 2 eleitoral e “sobras de campanha” que sempre atingiram os amorfos partidos brasileiros.
As democracias estão sob ataque por toda parte. Inútil buscar situações exemplares ou receitas definidas. Os partidos, em particular, veem-se assediados por “não políticos”, que estimulam a vaga populista contra a “casta” e disso se beneficiam – até porque, reconheçamos, há muito de “casta” no comportamento político convencional. Os italianos não estão fora do abalo sísmico que varre o mundo. Contudo, sem contar flutuações conjunturais, apontaram um caminho promissor ao tentarem associar num só “partido democrático” os reformistas egressos do comunismo e do catolicismo social.
A esquerda brasileira até agora não contou com tal sabedoria. Gira em círculos em torno de seus anacronismos e tabus. Reduz-se à defesa de seu chefe único e se fecha ao aggiornamento. Parece não ver que é necessário resgatar a si mesma – consciente de que “esquerda” é hoje um conceito desonrado – e contribuir para a missão comum de renovar a política, o Estado e, não por último, a sociedade brasileira.
*Luiz Sérgio Henriques é tradutor e ensaísta. É um dos organizadores das 'obras' de Gramsci no Brasil.
Alberto Aggio: A disjuntiva gramsciana
De um lado, o Gramsci da ‘política democrática’ e, de outro, o Gramsci da ‘política revolucionária’
Neste ano relembramos os 80 anos da morte de Antonio Gramsci, líder político comunista, reconhecido como um dos mais importantes pensadores da Itália. Depois da derrota do fascismo e do fim da 2.ª Guerra, suas ideias ajudaram a fertilizar o terreno que redundaria na construção da moderna República Italiana. Encarcerado por Mussolini em 1926, Gramsci não pôde ver essa tarefa realizada. Sem ter nunca publicado um livro, a difusão do seu pensamento se deve a seus editores, depois do resgate das notas que escreveu na prisão. Desse resgate resultaram as diversas edições dos famosos Cadernos do Cárcere, editados no Brasil desde a década de 1960.
Bastante conhecido no Brasil, o texto gramsciano presta-se a infindáveis polêmicas em torno da interpretação e dos usos dos seus conceitos. Muitos o veem como um ameaçador seguidor de Marx e Lenin, um revolucionário comunista sem mais. Outros o admiram por sua capacidade de perceber as mudanças de sua época, anunciando os traços da complexidade social que viria a se edificar com mais vigor bem depois de sua morte.
O pertencimento de Gramsci ao marxismo e ao comunismo é patente, ainda que ele seja reconhecido como um formulador original e considerado um “clássico da política”. Inicialmente, foi visto como um “pensador da cultura nacional-popular” e um “teórico da revolução nos países avançados”, de cuja obra se extraíram os conceitos que o tornaram um autor assimilado em grande escala. Recentemente, a partir de uma “historicização integral” da sua trajetória, visando a apanhar simultaneamente vida e pensamento (Giuseppe Vacca), aliada à recepção e ao tratamento de fontes inéditas ou até ignoradas, vem emergindo uma nova inserção de Gramsci na política do século 20. Essa perspectiva analítica tem permitido a superação dos diversos impasses e bloqueios que marcaram por longos anos os estudos gramscianos.
Mesmo na prisão, Gramsci continuou sendo um homem de ação. Tudo o que escreveu, das reflexões anotadas nos cadernos à correspondência com familiares e amigos, indica que ele permaneceu atuando como um dirigente político. Nessa condição, procurou fazer chegar à direção do Partido Comunista Italiano (PCI) suas avaliações do cenário italiano e mundial, bem como seus questionamentos a respeito de algumas orientações do PCI que lhe pareciam equivocadas. É desse comprometimento que emergem os termos de uma “teoria nova”, hoje reconhecida no mundo da política e dos intelectuais.
Nos Cadernos do Cárcere foi se sedimentando um novo pensamento, com o qual Gramsci imaginava poder mudar as orientações do movimento comunista. Do texto de Gramsci se pode apreender uma superação clara do bolchevismo, notadamente em relação à concepção do Estado, à análise da situação mundial, à teoria das crises e à doutrina da guerra como parte intrínseca da revolução.
Não foi por acaso que dessas reflexões emergiu a proposta de luta pela convocação de uma Assembleia Constituinte. Isso implicava deslocar o PCI da preparação da revolução proletária para a conquista da Constituinte. Em outras palavras, estrategicamente a luta pela democracia deixava de ser pensada apenas como fase de transição para o socialismo e assumia autonomia plena. No mundo do comunismo da década de 1930 tratava-se de um ato de ruptura. Assim, o ponto de chegada dos Cadernos foi a elaboração de uma nova visão da política como luta pela hegemonia, o que, em termos objetivos, representaria a adoção de um programa reformista de combate ao fascismo e, com ele, a reconstrução da nação italiana.
Essa nova teoria, dramaticamente elaborada no interior das prisões fascistas, resultava do enfrentamento dos impasses que o atormentavam como dirigente político: a derrota para o fascismo e a perda de propulsão do movimento comunista soviético, bloqueado pelo “estatalismo” e pelo autoritarismo. Os conceitos de Gramsci, tais como “hegemonia”, “guerra de posições”, “revolução passiva”, “transformismo” e “americanismo”, entre outros, evidenciam uma linguagem própria, não mais bolchevique ou leninista, de quem, mesmo na prisão, pensava de maneira inovadora os desafios que estavam postos diante da construção política da modernidade no Ocidente.
Em meio às lutas pela democracia, diversas gerações de intelectuais brasileiros que se aproximaram do pensamento de Gramsci buscaram uma tradução dos seus conceitos para nossas circunstâncias. Da década de 1970 para cá, parecia haver consenso na assimilação dos conceitos do pensador sardo, mas a realidade não confirmou essa tese.
Hoje há uma disjuntiva explícita: de um lado, o Gramsci da “política democrática”, ou seja, da política-hegemonia, enquanto “hegemonia civil”, não mais “proletária” ou “socialista”; de outro, o Gramsci da “política revolucionária”. Na primeira “leitura”, a revolução não é mais o centro da elaboração política e a perspectiva se deslocou no sentido de exercitar o conceito de revolução passiva até seus limites, isto é, acionar permanente e intransigentemente a política democrática visando a inverter a longa “revolução passiva à brasileira” (Werneck Vianna), de marca autoritária e excludente, e dar-lhe novo direcionamento.
Aqui estamos diante de uma tradução do Gramsci que se descolou da sua originária demarcação revolucionária e se distanciou de um marxismo que ainda tem como referência uma época histórica de revoluções. É isso que lhe dá o viço ainda hoje. Inversamente, o “outro” Gramsci permanece prisioneiro de uma representação construída a partir de um duplo sentido: representação de classe, como o fora anteriormente, numa perspectiva revolucionária, e, noutro sentido, como representação da conservação e difusão de um imaginário revolucionário do qual se querem resguardar os signos e significados de uma época revolucionária terminada há décadas.
Militantes pedem maior participação do poder público em seminário LGBT
Necessidade de equiparação dos crimes contra a população LGBT às causas raciais foi um dos temas mais enfatizados pelos participantes durante o evento em Brasília
Por Germano Martiniano
Políticos e militantes da causa LGBT participaram, na manhã desta quinta-feira (18), do Seminário de Combate à LGBTfobia em Brasília. O evento foi organizado em conjunto pelos núcleos de diversidade do PPS (Partido Popular Socialista), PV (Partido Verde), PP (Partido Progressista) e PSDB (Partido Social Democrata Brasileiro) na semana em que se celebrou o Dia Internacional Contra a Homofobia. Palestrantes e participantes cobraram maior participação do poder público em relação a causa de gênero e enfatizaram a necessidade de equiparação dos crimes contra a população LGBT às causas raciais.
Enquanto no Planalto Central o clima esquentava diante das delações da JBS contra Temer e Aécio Neves, no auditório Interlegis do Senado Federal, muito se discutiu sobre a violência contra a população LGBT. Ludymila Santiago, transexual e uma das palestrantes, destacou que as transexuais possuem uma média de vida de apenas 35 anos e cobrou maior presença das transexuais na construção de políticas sociais em favor da população LGBT. “É importante a presença de todos nessa luta. Mas, quem sofre na pele o preconceito e toda violência, somos nós. Por isso precisamos participar da formulação de políticas de combate à violência LGBT”, disse a ativista.
A Senadora Marta Suplicy também esteve presente e disse que muitos políticos “se ausentam das discussões de gênero com medo de perder eleitores, por vivermos em uma sociedade conservadora”. Outra figura de destaque no evento foi o primeiro prefeito assumidamente gay do Brasil, Edgar de Souza, que relatou problemas enfrentados durante a campanha para prefeito. “Quando me questionaram por ser gay, perguntei para meus eleitores se queriam um prefeito que esconda quem ele é e quem ele ama? ”.
O Seminário foi uma grande oportunidade para que militantes e políticos trocassem experiências e traçassem estratégias para o combate da LGBTfobia nos próximos anos. O coordenador da diversidade do PPS, Eliseu Neto, destacou a profundidade e diversidade dos temas tratados e resumiu o evento como um sucesso. “Tivemos um debate de altíssimo nível, que foi transmitido ao vivo pela FAP, que todos podem conferir na página da Fundação no Facebook, e isso apenas reforça o compromisso do PPS junto com a Fundação Astrojildo Pereira no empoderamento das minorias e na luta dos direitos humanos”, finalizou.
Confira algumas entrevistas com palestrantes do seminário:
https://youtu.be/XdL_2j12Vek
* Germano Souza Martiniano é Assessor de Comunicação da Fundação Astrojildo Pereira (FAP)
Luiz Carlos Azedo: O tempo fechou
Há algumas semanas, num jantar com militares, Janot havia revelado que algo muito grave ainda estava por acontecer na Operação Lava-Jato
Enquanto um temporal atípico desabava de nuvens negras sobre Brasília, os irmãos Joesley e Wesley Batista, alvos mais recentes da Operação Lava-Jato, lançaram uma bomba que ameaça implodir o atual governo. Entregaram ao ministro Edson Fachin, em seu gabinete no Supremo Tribunal Federal (STF), a gravação de diálogo comprometedor com o presidente Michel Temer, no qual ele avalizaria o pagamento de uma mesada ao ex-presidente da Câmara Eduardo Cunha (PMDB-RJ), para que permanecesse em silêncio quanto à Operação Lava-Jato. A notícia deixou o mundo político perplexo. Senadores e deputados esvaziaram as sessões do Congresso em busca de mais informações.
O presidente Michel Temer estava reunido com governadores do Nordeste quando a informação foi divulgada; comemorava a aprovação pelo Senado da renegociação das dívidas dos estados. Uma multidão de prefeitos ainda pululava pelos corredores da Câmara e do Senado, muitos com dificuldade de deixar o Congresso por causa da chuva. No Palácio do Planalto, a tropa de choque da Polícia do Exército, que agora guarnece suas dependências, buscava abrigo da chuva nas marquises e descansava os escudos, apoiados nos cassetetes, com capacetes sob o braço. Parecia apenas mais uma tarde chuvosa, num dos raros momentos em que o governo previa a chegada da bonança.
Segundo o jornalista Lauro Jardim, do jornal O Globo, que divulgou parte da gravação, a conversa teria sido nas seguintes condições: Joesley relatou a Temer que estava dando mesada a Eduardo Cunha e Lúcio Funaro para que ambos não contassem os segredos de dezenas de casos escabrosos envolvendo a cúpula do PMDB e o próprio presidente da República. Temer mostrou-se satisfeito com o que ouviu. Neste momento, segundo a matéria, teria diminuído o tom de voz, mas deu o seu aval: “Tem que manter isso, viu?”
Na delação premiada, Joesley teria afirmado que não foi Temer quem determinou que a mesada fosse dada, mas o presidente tinha pleno conhecimento da operação. Joesley teria pagado R$ 5 milhões para Eduardo Cunha após sua prisão, que corresponderia a um saldo de propina que o peemedebista tinha com ele. Disse ainda que devia R$ 20 milhões pela tramitação de lei sobre a desoneração tributária do setor de frango. Os donos da JBS afirmaram que Temer indicou o deputado Rodrigo Rocha Loures (PMDB-PR) para resolver um assunto da J&F (holding que controla a JBS). Informada do fato, a Polícia Federal filmou Rocha Loures recebendo uma mala com R$ 500 mil enviados por Joesley. O Palácio do Planalto distribuiu nota negando a declaração atribuída a Temer.
Na mesma delação, o presidente do PSDB, Aécio Neves (MG), teria sido gravado pedindo R$ 2 milhões a Joesley. O dinheiro teria sido entregue a um primo do presidente do PSDB, que teria depositado o valor na conta de uma empresa do senador Zeze Perrella (PSDB-MG). Joesley relatou também que, supostamente, o ex-ministro da Fazenda Guido Mantega negociava o dinheiro da propina destinado ao PT e seus aliados, inclusive os interesses da JBS no BNDES.
A operação
No jargão das investigações, foram realizadas “ações controladas”, nas quais a Polícia Federal deixou de realizar prisões em flagrante para não prejudicar as investigações, mas filmou a cena do crime, rastreou malas e carimbou cerca de R$ 3 milhões em propina. Ao contrário das longas negociações com a Odebrecht e a OAS, a delação premiada da JBS foi feita em tempo recorde e rompe a blindagem constitucional do presidente da República, que não pode ser investigado por fatos anteriores ao mandato. Ocorre que as gravações foram feitas durante o exercício do mandato, o que pode ser razão para o impeachment de Temer e/ou a abertura de investigações pelo Supremo Tribunal Federal (STF).
O procurador-geral Rodrigo Janot comandou pessoalmente a operação, que teve procedimentos incomuns, pois o delator entrava na garagem da Procuradoria-Geral da República no seu próprio carro, sem se identificar. Simultaneamente, a JBS contratou o escritório de advocacia Trench, Rossi e Watanabe para tentar um acordo de leniência com o Departamento de Justiça dos EUA (DoJ). A JBS tem 56 fábricas nos EUA, onde lidera o mercado de suínos, frangos e o de bovinos. O ministro Edson Fachin, relator da Lava-Jato no Supremo, já homologou a delação: os sete delatores não serão presos nem usarão tornozeleiras eletrônicas. Será paga uma multa de R$ 225 milhões para livrá-los das operações Greenfield e Lava-Jato, que investigam a JBS há dois anos.
Esse é o resumo da ópera, mas os bastidores começam a aparecer. Há algumas semanas, num jantar com militares, Janot havia revelado que algo muito grave ainda estava por acontecer na Operação Lava-Jato, mas não abriu o jogo. Imaginava-se que poderia estar relacionado à delação premiada do ex-ministro da Fazenda Antônio Palocci, ou seja, que seria algo mirando os ex-presidentes Luiz Inácio Lula da Silva e a ex-presidente Dilma Rousseff, que atingisse o sistema financeiro ou os fundos de pensão. Na verdade, a bomba mirava o presidente Michel Temer e estava sendo construída a muitas mãos, ou seja, com a participação proativa da Polícia Federal e da Procuradoria-Geral da República.
* Luiz Carlos Azedo é jornalista.
Martin Cezar Feijó: "Enquanto Hamlet antecipa o homem moderno, Fausto o é em sua plenitude"
Por Eliana de Castro, da Fausto Mag
Ele visitou a casa onde Goethe morou, conheceu o seu túmulo, viu de perto onde algumas das histórias mais famosas da literatura aconteceram… O historiador Martin Cezar Feijó divide sua perspectiva de Fausto e relembra histórias verídicas, dignas de um livro de memórias. Doutor em comunicação pela USP e professor de comunicação comparada na FAAP, tem mais de oito livros publicados, entre eles O que é política cultural. Apaixonado por Literatura e conhecedor como poucos dos grandes clássicos, Feijó é o convidado da vez desta série comemorativa de 1 ano de nossa revista. Levante sua taça, é hora do brinde! Confira o bate-papo descontraído a seguir.
O Fausto de Goethe representa exatamente o quê?
O Fausto de Goethe é o conflito do indivíduo com a sociedade. Goethe sempre se preocupou, em sua poesia e trajetória, em ser um rebelde, um rebelde contra a tradição, contra a sociedade, contra o absolutismo. Não é à toa que Goethe seja um escritor da época da Revolução Francesa. Não um adepto da Revolução Francesa, mas da transformação como tal.
E da revolução romântica também…
Ele prepara o caminho para o Romantismo. Goethe pertence ao movimento Sturm and Drang – tempestade e ímpeto – que é a coisa da explosão, da total manifestação de espírito.
É possível comparar Fausto com outro personagem?
Vamos comparar Fausto com Hamlet. Enquanto Hamlet tem um pé na tradição clássica, grega, e antecipa o homem moderno, Fausto o é em sua plenitude.
Por quais razões?
A ânsia de Fausto é a ânsia de conquistar o mundo. Não é à toa que Fausto seja um sujeito que vem da quiromancia, da magia, sempre no sentido da busca do conhecimento para transformar o mundo. Quando o diabo faz a aposta com Deus, Deus sabe que Fausto será facilmente conquistado. E Fausto, de certa forma, é mesmo. Quando é oferecida a ele a possibilidade de realizar todos os seus desejos – por isso o termo ânsia fáustica – o primeiro desejo é o da juventude. De um velho estudioso ele se torna um jovem belo. E ele passa a desejar e conquistar tudo: os prazeres da mesa e da cama. Só que nessa, a grande tragédia acontece quando ele conhece a pura Gretchen. Ela é o fator de desestabilização da própria aposta, mas também a possibilidade de redenção.
A obra vai na contramão do que era feito na época?
É interessante que Goethe, tentando recuperar uma trajetória clássica – mas sem ser clássico no sentido francês – ele se rebela contra as normas rígidas do classicismo francês, ele vai na contramão. Goethe recupera Shakespeare, no sentido da tragédia elisabetana. Nesse sentido, Fausto tem essa dimensão que é, evidentemente, propiciada pelo diabo. O diabo é aquele que faz o bem ao fazer mal. Ao provocar o excesso, ele acaba provocando a mudança. Ele acaba provocando a possibilidade de transformação. A segunda parte de Fausto, quando ele está desolado pela morte da Gretchen, porque nela ele encontrou o amor que ele nunca conheceu na vida de prazeres e realizações, ele vai se tornar um empreendedor, vai permitir o acesso para mais pessoas ao mundo novo que ele está construindo. Agora, a solução que o Goethe deu não contentou os católicos da época. Ele era panteísta, ele não era cristão.
Antes, era a religião que dava as certezas?
Sim.
Quais são as principais características que marcam Fausto, nesse sentido?
São duas. A dor do mundo, que Freud vai chamar de sentimento oceânico, que é a ânsia em abarcar toda a dor do mundo e tentar curá-la, tentar correspondê-la; e a questão prometeica, que remete a Prometeu. Para Anatol Rosenfeld, Prometeu e Fausto foram totalmente condenados a definhar no cárcere do mundo, que é este mundo aqui. Inclusive, Fausto antecipa Baudelaire. Em Fausto há o desejo de transcender limites, tanto físicos quanto espirituais. Ele quer transformar a natureza, derrubar montanhas, abrir estradas, construir cidades. Por isso Marshall Berman considera Fausto como a tragédia do desenvolvimento. Ele está no desenvolvimento histórico. Essa dimensão ela acaba tendo um aspecto transcendente, divino, e não divino no sentido teológico, mas no sentido de superar a si próprio. Fausto não se questiona como Hamlet faz: ser ou não ser, eis a questão? Fausto é totalmente ser. Ele é um ser íntegro. Embora essa questão shakespeariana tenha Goethe como meta.
E o que seria isso, essas “soluções” que estão aqui neste mundo?
A transformação e o amor. Freud fala sobre isso em O mal-estar na cultura, que talvez o amor seja a solução ao mal-estar. O amor a este mundo, não o amor ao eterno, espiritual, ele fala do amor físico. O amor terreno se torna místico, nessa perspectiva.
Você conheceu a casa de Goethe?
Em 1987, eu era editor de cultura do jornal Voz da Unidade. Era um jornal do Partido Comunista brasileiro. Eu também era vice-presidente da Associação Bertolt Brecht, que era uma associação cultural de vínculo com a Alemanha Oriental, a Alemanha comunista, cujo presidente no Brasil era Fernando Peixoto, grande homem de teatro. Ele era o presidente e havia três vice-presidentes, eu era o mais “peixinho”. As duas outras vices eram Bete Mendes e Eva Wilma. Tivemos contato com Heiner Müller, o grande dramaturgo alemão; o Kurt Masur, renomado maestro alemão, enfim… Todo ano acontecia um encontro em Weimar. Iam representantes de associações culturais, coisa de comunista. Numa dessas viagens, o Fernando Peixoto não pode ir e eu era o quarto da lista, e acabei indo. Foram 20 dias na Alemanha Oriental participando de reuniões, de cursos. Weimar é uma cidade muito pequena, fiquei em um palacete que foi construído para um dirigente nazista da Turíngia. Fiz amizade com um padre franciscano peruano e ficávamos conversando sobre Goethe e Nietzsche. Resolvemos, em nosso dia de folga, ir ao Hotel Elefante, que fica no centro, que é o hotel que Goethe teria recebido a Carlota, cena do romance de Thomas Mann, Carlota em Weimar. A ficção gira em torno da antiga paixão de Goethe, os dois já velhos. Só que o hotel era um prostíbulo também. Sentamos numa mesa e pedimos um vinho. As moças ficavam fazendo streaptease, mas só até ficar de biquíni.
E o padre junto?
Sim, junto. Na hora de dançar com as moças, eu chamava o padre para dançar, mas ele respondia: “eu não danço, vai você”. E fui dançar com as moças… [Dá risada]
Quantos anos você tinha?
Eu tinha 37. Não rolava nada… O padre ficou na dele, não encostou em nenhuma mulher, ficou apenas se divertindo com o vinho.
E o que aconteceu depois?
Na manhã seguinte, no banho, que era coletivo, ficávamos separados apenas por boxes. Então o chefe da delegação alemã, que era da Stasi, começou a falar comigo, ele do box dele e eu do meu. Ele sabia que eu era do Partido Comunista e eles estavam putos porque rompíamos todas as formalidades. Os conservadores não davam trabalho, nós dávamos [Dá risada]. Aí ele falou assim: “soube que vocês foram ao Hotel Elefante, ontem à noite, é verdade?” Respondi que sim, e que tinha sido muito legal. Aí ele: “aquele lugar é uma vergonha, não conseguimos acabar com a prostituição.” Eu, crente que estava abafando, falei: “mas fui lá por motivos intelectuais, fui por causa do Goethe, do Mann, por causa de Fausto.” Ele respondeu: “motivos intelectuais são os primeiros sintomas da velhice.” [Dá risada]
Você foi ao túmulo de Goethe?
É, então, se fosse antigamente eu não poderia dizer isso… Acontece que a programação era muito chata. Era lavagem cerebral, coisa de comunista mesmo, um saco. Durante o dia era um saco, à noite nós tocávamos violão e tal… Não precisa ser chato para você mudar o mundo, entende? [Dá risada] Quando os caras começavam a falar de economia, eu me escondia no fundo da sala e saia de fininho. Eu ia até o túmulo do Goethe, que dava para ir a pé. O túmulo do Goethe fica ao lado do túmulo do Schiller.
Olha, que lindo!
Eu entrava na tumba deles e ficava sentado conversando com eles.
Conversando mesmo?
Sim, falando bobagem, da minha vida, a saudade da minha casa, da chatice que eram as palestras…
E eles responderam?
Não… Silêncio total.
Seria sensacional se eles tivessem respondido…
[Dá risada] Sim, eles teriam falado: “volta pra lá seu vagabundo!”
* Eliana de Castro é jornalista especializada em Jornalismo Cultural pela FAAP e mestranda em Ciência da Religião pela PUC-SP, editora da Fausto Mag (http://faustomag.com)
Samuel Pessôa: Uma história de dois Planos Marshall
Entre 1948 e 1951, os EUA despenderam pouco mais de US$ 13 bilhões para ajudar na reconstrução de 16 países europeus, com população, à época, de 290 milhões.
O gasto do programa de recuperação da Europa, também conhecido por Plano Marshall, corresponderia a preços de hoje a cerca de US$ 100 bilhões, ou R$ 315 bilhões ao câmbio de R$ 3,15 por dólar.
Por aqui, entre 2008 e 2014, o Tesouro emprestou ao BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social), a taxas muito reduzidas e em condições extremamente favoráveis, R$ 400 bilhões. Ou seja, uma quantia de dinheiro 25% maior e que atingiu uma população 31% menor do que aquela beneficiada pelo Plano Marshall.
No nosso "Plano Marshall", diversos trabalhos acadêmicos documentaram que as firmas que se beneficiaram do crédito subsidiado eram as maiores, mais antigas e menos arriscadas. Essas empresas não investiram mais do que as empresas equivalentes não beneficiadas pelos créditos subsidiados.
A elegância dessa literatura é que a evidência foi obtida comparando empresas incentivadas com empresas com as mesmas características, mas que não tiveram acesso ao incentivo. As empresas não incentivadas funcionaram como um grupo de controle, sugerindo, portanto, que o efeito medido representa de fato a causalidade do incentivo sobre o comportamento das firmas.
Adicionalmente, as empresas beneficiadas efetivamente experimentaram redução de seu custo financeiro e aumentaram seu grau de endividamento.
Dado que essas empresas não elevaram seu investimento, mas aumentaram seu endividamento e seu custo financeiro foi reduzido, provavelmente o crédito subsidiado foi empregado para liberar recursos dos acionistas para serem aplicados no mercado financeiro com maiores retornos.
O leitor encontra resenha recente da evidência empírica no trabalho "Brazil - Financial Intermediation Costs and Credit Allocation", texto para discussão do Banco Mundial de março de 2017, preparado por diversos autores.
Evidentemente, os subsídios saíram caro para o Tesouro. Segundo cálculos de meu colega do Ibre, Manoel Pires, o custo total dos subsídios foi, somente em 2015, de R$ 57 bilhões, algo próximo ao custo anual de dois programas Bolsa Família.
Também há evidência de que o crédito subsidiado dificulta a política monetária, aumentando o juro necessário para estabilizar a inflação. Segundo trabalho recente de Monica de Bolle (goo.gl/VTEunr), cada 1 ponto percentual do PIB de crédito subsidiado eleva os juros em 0,5 ponto percentual.
Esse resultado é mais sujeito a crítica. A razão são as dificuldades naturais de inferência de causalidade com dados macroeconômicos. De qualquer forma, outros estudos têm obtido resultado equivalente.
É praticamente consensual entre diversos analistas -suportando, portanto, a evidência de Mônica- que a taxa de juro neutra brasileira, aquela que estabiliza a inflação, reduziu-se recentemente por volta de um ponto percentual, em razão da mudança de política do BNDES.
Aqui temos que desfazer nosso Plano Marshall para arrumar a casa de uma economia devastada por esta e outras iniciativas da ruinosa nova matriz econômica. Na Europa, o verdadeiro Plano Marshall estabeleceu as bases do formidável crescimento do pós-guerra.
* Samuel Pessôa é físico com doutorado em economia, ambos pela USP, sócio da consultoria Reliance e pesquisador associado do Ibre-FGV