Hélio Schwartsman: Paradoxos da Covid-19
Contra a pandemia, tudo importa um pouco, mas nada explica tudo
Assim como o câmbio existe para humilhar economistas, a Covid-19 existe para humilhar epidemiologistas. Estou sendo injusto, pelo menos com os epidemiologistas. O chiste, porém, ajuda a mostrar que ninguém ainda entendeu direito essa moléstia. É claro que há aspectos básicos que estão bem estabelecidos, mas há algumas diferenças de desempenho entre países que desafiam as explicações.
Dinheiro? Temos nações muito ricas que foram extremamente mal, e outras quase miseráveis que foram muito bem, como é o caso, respectivamente, de EUA e Vietnã. Recursos são um fator relevante, mas não dão conta de explicar o todo.Governança? É importantíssima. Ilustram-no EUA e Brasil sob Trump e Bolsonaro. Mas também temos a Alemanha, que, dirigida pela competente Angela Merkel, foi bem na primeira onda, mas mal na segunda.
Testar e isolar? Outro par fundamental. Testar, testar e testar é o que tornou a Coreia do Sul um caso de sucesso. Lockdowns também funcionam. Portugal, que viveu semanas de pesadelo, conseguiu dobrar a curva de contágios com um lockdown bem feito. Algo parecido vale para Araraquara. Mas, na coluna dos contraexemplos, temos o Japão, que testou pouco, isolou pouco e vem passando pela crise com poucas mortes. Mistério extra, o Japão tem uma das populações mais idosas do mundo, o que deveria ter agravado a situação.
Geografia? Todos esperavam um desastre na África subsaariana, a parte do globo que sofre mais em quase todas as epidemias, mas a região se saiu relativamente bem, com exceção da África do Sul, para não desmentir a regra de que tudo tem exceções.
Um fator frequentemente negligenciado é o acaso. Sim, ele é relevante e se materializa em coisas como eventos de superinfecção, que são basicamente o sujeito errado, na hora errada, cercado pelas pessoas erradas.
A conclusão que me parece possível é que tudo importa um pouco, mas nada explica tudo.
Bruno Boghossian: Supremo reconhece marca de motivação política na Lava Jato
Tribunal elenca ações de Moro e da força-tarefa que tiveram impacto na eleição
O STF não declarou apenas que Sergio Moro pisou fora das regras do processo legal. O julgamento que definiu a suspeição do ex-juiz na condução de um dos processos contra o ex-presidente Lula deixou às claras uma deformidade central da Lava Jato. O tribunal aplicou à operação a marca da motivação política.
Ao analisar a conduta de Moro, ministros do STF elencaram momentos em que a Lava Jato tomou decisões com impacto sobre o cenário político. A Segunda Turma do STF entendeu que a atuação do ex-juiz teve relação principalmente com eventos da última eleição presidencial.
Autor do voto que abriu caminho para a suspeição, Gilmar Mendes destacou algo que seria espantoso, caso não tivesse ocorrido na frente de todos: o fato de que Moro aceitou um cargo no governo de Jair Bolsonaro, candidato que se beneficiou da condenação de Lula.
Gilmar disse que a atuação do ex-juiz e da força-tarefa de Curitiba faria com que o Judiciário ficasse marcado pelo "experimento de um projeto populista de poder político". E acrescentou: "Não tenho políticos de predileção. Agora, acho que não se pode permitir fazer política por meio da persecução penal."
Com anos de atraso, os ministros enxergaram o que Moro fez à luz do dia. Ricardo Lewandowski entendeu que o ex-juiz influenciou o processo eleitoral de 2018 ao divulgar parte da delação do ex-ministro Antonio Palocci, dias antes do primeiro turno. Afirmou ainda que sua atuação foi "empreendida com nítido propósito de potencializar as chances ou, mesmo, viabilizar a vitória de candidato de sua preferência".
Já Cármen Lúcia, que se tornou o voto decisivo ao mudar de entendimento, tentou delimitar o caso. Disse que o julgamento se referia apenas a Lula e que não fazia "algum tipo de referência à Lava Jato". Ainda assim, a ministra precisou concordar com os colegas e citou a divulgação da delação de Palocci durante a campanha presidencial. Mesmo uma defensora da operação reconheceu a tonalidade política de Moro.
Cláudio Gonçalves Couto: Golpismo e destruição
Não é só o discurso de Bolsonaro que atenta contra a democracia, mas também medidas concretas de articulação autoritária
Com o Brasil à beira de atingir 300 mil mortos oficiais por covid-19, o presidente Jair Bolsonaro achou por bem se refestelar com seus apoiadores, à frente do Alvorada, no dia de seu aniversário. Fosse só isso, seria indecoroso, mas não ultrapassaria os limites do que a democracia admite. Contudo, houve mais. Novamente o chefe do governo federal investiu contra seus pares nos Estados, acusando-os de serem tiranetes e emendando: “Podem ter certeza, o nosso Exército é o verde oliva e é vocês também. Contem com as Forças Armadas pela democracia e pela liberdade.”
Ou seja, o presidente da República sugeriu que contra a “tirania” de governadores e prefeitos - que apenas exercem suas competências constitucionais no combate à pandemia - pode usar o poder armado dos militares por ele chefiados e, ainda, mobilizar suas tropas civis - formadas por aqueles que ajuda a armar. Não é novidade. Na famigerada reunião ministerial tornada pública por decisão do ex-ministro do STF, Celso de Mello, Bolsonaro deixou claro que armava as pessoas para que pudessem se insurgir contra governadores e prefeitos cujas ações divergem das que preconiza.
Ainda na festa de aniversário, o presidente disse: “Estão esticando a corda, faço qualquer coisa pelo meu povo. Esse qualquer coisa é o que está na nossa Constituição, nossa democracia e nosso direito de ir e vir”.
O que é “esticar a corda” nesse caso? É não lhe obedecer? É seguir políticas distintas daquelas por ele preferidas, optando pelo que preconizam autoridades sanitárias e científicas mundo afora? Por que isso seria “esticar a corda” e não apenas atuar como governos subnacionais autônomos numa federação? Ou ainda, na realidade, não é ele quem estica a corda, desrespeitando a autonomia política dos entes federados?
Bolsonaro é incapaz de reconhecer como legítima qualquer ação que não lhe seja subserviente - e isso, mesmo quando promovida por quem não lhe deve obediência alguma. Diante disso, como fazem os populistas autoritários (com o perdão da redundância), recorre ao “seu povo” - composto apenas por aqueles que o apoiam e seguem. Ao dizer que esse povo particular compõe, junto com as “suas” Forças Armadas, um corpo de combate em prol da sua noção também particular de democracia ¬- que contempla apenas esse povo particular -, Bolsonaro ameaça com um golpe de Estado. Não há como interpretar diferentemente, considerando a forma como trata atores políticos que a ele se opõem ou simplesmente não se curvam.
Alguém poderia replicar que Bolsonaro apenas diz que fará “qualquer coisa... que está na nossa Constituição” (o presidente tem fixação por pronomes possessivos). O problema é que a leitura constitucional bolsonarista também é muito particular. Não fosse, ele reconheceria as competências de Estados e municípios, o papel do governo federal como coordenador (mas não comandante) de políticas intergovernamentais e a decisão do STF relativa a isto - que não lhe desobrigou de nada, pelo contrário. Portanto, quando Bolsonaro invoca a Constituição é preciso ter clara a forma como a interpreta. E, assim como em todos os outros casos, ele a vê como mero instrumento de seus objetivos e desejos particulares.
Fossem apenas palavras ao vento, seria grave, mas não tão perigoso. O problema é que o presidente toma providências concretas. Ao aboletar milhares de militares em cargos comissionados, com suas respectivas gratificações, Bolsonaro aparelha o Estado e coopta o segmento armado da burocracia pública. Ao dar a esse mesmo grupo benesses corporativas, como o singular aumento previsto no orçamento, reforça essa cooptação. Por esses meios, busca de fato tornar “suas” as Forças Armadas.
Já com as normas sobre armas baixadas pelo Executivo, o presidente municia grupos na sociedade com os quais tem vínculos antigos e que lhe apoiam - notadamente os Clubes de Atiradores e Caçadores (CACs). Ao transferir a tais organizações privadas até mesmo a prerrogativa eminentemente estatal de certificar quem está ou não apto a se armar, Bolsonaro facilita a criação de potenciais tropas de assalto privadas. É esse “povo” que compõe seu exército, ao lado dos verde oliva - como ele mesmo disse. Portanto, as diatribes bolsonarescas não são meras palavras ao vento; elas têm lastro na construção de uma aliança armada e apostam na violência como solução para os impasses políticos em que a liderança de Bolsonaro enreda o país.
Em paralelo a essa construção de um poder paralelo, ocorre também uma desconstrução. Desde o começo, a Presidência de Bolsonaro tem obrado para desmontar instituições, políticas públicas longamente consolidadas, espaços de participação democrática e noções de convivência política e social. A devastação ambiental, a radicalização política, o ataque violento e intimidatório a críticos e à imprensa não alinhada, bem como as mortes evitáveis produzidas pelo descalabro sanitário, tudo é resultado de iniciativas governamentais claras - não são ocorrências fortuitas.
Esse desmonte favorece o cenário de caos, em que o recurso a soluções extremas e ilegais se torna mais propício. O ambiente anômico esboçado pela greve dos caminhoneiros, em 2018, tornou mais plausível o discurso extremista do então candidato, Jair Bolsonaro. O colapso sanitário e econômico que agora se produz, por empenho do próprio governo que o deveria mitigar, novamente abre espaço para aventuras.
O contrapeso vem do fato de que a Bolsonaro se opõem, cada vez mais fortemente, atores de peso no concerto político, como governadores, empresários, órgãos de imprensa e lideranças internacionais - que se dão conta da ameaça por ele representada e do estrago que promove. Esses atores têm dois desafios pela frente: primeiro, deter a escalada autoritária e destruidora do presidente da República, talvez o apeando do cargo; segundo, preparar-se para um logo e penoso processo de reconstrução nacional, que será inescapável diante da destruição humana, ambiental, institucional social e econômica produzida pelo bolsonarismo.
*Cláudio Gonçalves Couto é cientista político, professor da FGV-SP
‘Lutar pelo SUS é a tarefa imediata da esquerda democrática’, diz Luiz Sérgio Henriques
Ensaísta é um dos organizadores do lançamento da série de debates on-line sobre o centenário do PCB, a partir das 19h desta quinta-feira (25/3)
Cleomar Almeida, Coordenador de Publicações da FAP
A esquerda democrática deve focar sua atuação em defesa do fortalecimento e aumento da eficiência do SUS (Sistema Único de Saúde) no momento em que o país ultrapassa a triste marca de 300 mil mortos por conta da Covid-19. De acordo com dados oficiais, é o próprio SUS que socorre a maioria absoluta de vítimas da doença no país. A avaliação é do tradutor e ensaísta Luiz Sérgio Henriques.
Levantamento do Conass (Conselho Nacional dos Secretários Estaduais da Saúde), com dados até 20 de janeiro, mostra que 13.045 leitos foram desabilitados pelo governo federal em plena pandemia. Mesmo com a alta disseminação do coronavírus, o Ministério da Saúde reduziu R$1,5 bilhão no repasse para financiamento de leitos para Covid em São Paulo, por exemplo.
Cidadania - 99 anos de lutas e conquistas
“Lutar pelo SUS é a tarefa imediata da esquerda democrática”, destaca Henriques, que é um dos organizadores da série de webinários mensais sobre os 100 anos de PCB (Partido Comunista Brasileiro). O lançamento dos eventos on-line será realizado a partir das 19h desta quinta-feira (25/3), a exatamente um ano da data de celebração do centenário. Confira mais detalhes ao final desta reportagem.
Oito personalidades, entre dirigentes e intelectuais, confirmaram presença no evento on-line, organizado pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), para discutir “a lição de 1964” como caminho para defesa da democracia e combate aos riscos protagonizados pelo governo do presidente Jair Bolsonaro (sem partido). O governo brasileiro tem sido criticado pela falta de ações articuladas para enfrentamento à pandemia.
“Melhorar serviços de saúde”
No Brasil, segundo o organizador, “o SUS é uma coisa extraordinária”. “Uma grande luta da esquerda democrática que defendo é melhorar, aprofundar, tornar mais eficiente, racionalizar o SUS, os serviços de saúde”, ressalta Henriques.
“Isso melhoraria a nossa sociedade e nos melhoraria como indivíduos, tornando-nos menos egoístas e mais fraternos”, acredita o ensaísta. Ele também é editor do site Gramsci e o Brasil e da página Esquerda Democrática no Facebook.
É consenso que a trajetória do PCB está relacionada ao comunismo histórico, fixado nos modelos da Revolução Russa (1917) ou, secundariamente, da Revolução Chinesa (1949), mas paulatinamente o partido evoluiu para a adesão ao reformismo democrático.
“Ligado, inicialmente, à chamada Terceira Internacional, o PCB iria enraizar-se no país, agitando e promovendo a chamada ‘questão nacional’ em chave anti-imperialista, mas a partir de meados dos anos 1950 iria redefinir o elemento nacional em função da ‘questão democrática’ e da necessidade de afirmar a democracia como via mestra da civilização brasileira”, diz.
Henriques ressalta que o partido, logo depois de 1964, assumiu protagonismo na luta pela redemocratização, o que, segundo ele, continua a ser uma das principais referências para superar a atual crise. “O grande legado do velho PCB para as forças progressistas no seu conjunto é a centralidade da questão democrática”, afirma.
“Crise aguda”
“Este é o momento de crise muito aguda da civilização brasileira. Nós temos a obrigação de refletir sobre o passado, sobre a nossa identidade como nação, e vermos as raízes da modernidade brasileira, tanto em sua grandeza como nas suas misérias”, assevera o ensaísta. “O Partido Comunista Brasileiro é uma dessas raízes”, acrescenta.
Henriques lembra que o PCB participou das mais importantes mobilizações populares para definição de diretrizes destinadas ao desenvolvimento do país, corporificadas no nacional-desenvolvimentismo dos governos de Getúlio Vargas (1930-1945) e Juscelino Kubitschek (1956-1961).
“A contribuição dos comunistas para a chamada questão nacional foi muito grande. E está aí até hoje, ainda que muitas vezes boa parte da esquerda atual se limite a repetir slogans e argumentos dos anos 50”, acentua o tradutor.
Segundo Henriques, o PCB teve “duas faces” desde o princípio: uma externa e outra interna. O partido, de acordo com o ensaísta, nasceu em função de um acontecimento externo, a Revolução Russa, que teve impacto global na esquerda.
No Brasil, por exemplo, o movimento anarquista, com implantação considerável em São Paulo, Rio e outros estados, se dividiu, e parte dos anarquistas filiou-se ao Partido Comunista, em razão do mito da revolução dos sovietes. “A presença de intelectuais, como Astrojildo Pereira, é outra marca da sua fundação. E até se pode dizer que é incalculável a presença do PCB e dos comunistas na cultura brasileira”, lembra.
Ditadura de Stalin
Ao longo dos anos, porém, o modelo externo entrou em decadência. “A Rússia era um país muito atrasado do ponto de vista industrial e, em geral, como sociedade. A industrialização foi muito custosa, em termos inclusive de vidas humanas. Um processo concentrado em pouquíssimos anos sob a ditadura de Stalin”, observa.
Em alguns momentos, a União Soviética voltaria a brilhar, por exemplo, na luta contra o nazismo, mas, em seguida, começou a se ofuscar de novo. “Houve tentativas de reforma e renovação, mas, ao fim, essas tentativas não se traduziram em reformas reais, num novo início. Este fracasso selou o fim do comunismo histórico”, explica o ensaísta.
Com a implosão da União Soviética, os partidos que tinham aquela dupla face também sofreram um esvaziamento em todo o mundo. “Quando falha a face externa, quando perde o poder de atração e desaparece, desaparece também certo tipo de ideal que orientava a história do PCB. Ele morreu, mas é importantíssimo dizer que não morreu a ideia de esquerda política”, analisa.
A seguir, confira a relação de participantes do webinário:
Roberto Freire: presidente nacional do Cidadania e advogado;
Dina Lida Kinoshita: professora aposentada do IF-USP (Instituto de Física da Universidade de São Paulo) e autora do livro “Mário Schenberg: o Cientista e o Político”;
Jarbas de Holanda: jornalista, analista político e vereador com mandato cassado pela ditadura militar
Luiz Carlos Azedo (mediador): jornalista, analista político e colunista do Correio Braziliense;
Luiz Werneck Vianna: cientista social e doutor em Sociologia pela USP (Universidade de São Paulo);
Marcelo Cerqueira: advogado e ex-deputado federal;
Moacir Longo: jornalista e vereador com mandato cassado pela ditadura militar;
Sergio Augusto de Moraes: engenheiro eletricista e militante do PCB.
SERVIÇO
Webinar 100 Anos de PCB: A lição de 1964
Dia: 25/3/2020
Horário: a partir das 19h
Transmissão:
Site da FAP: www.fundacaoastrojildo.com.br
Facebook: https://www.facebook.com/facefap
Youtube: https://www.youtube.com/channel/UCg6pgx07PmKFCNLK5K1HubA
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Data vênia aos demais ministros da Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal, e por extensão aos demais, Gilmar Mendes fez história ao comandar o pelotão de fuzilamento da reputação do ex-juiz Sergio Moro, considerado suspeito de ter sido parcial nos processos de condenação de Lula pela justiça de Curitiba.
Tiraram Gilmar para dançar e deu nisso. Não foi por falta de aviso. No final de 2018, quando Lula entrou no Supremo com o pedido de habeas-corpus para declarar Moro suspeito, Gilmar propôs levá-lo direto ao exame do plenário do tribunal. Por 4 votos contra o dele, a Segunda Turma achou que caberia a ela julgar o pedido.
Então Gilmar, como presidente da Segunda Turma, propôs a concessão de uma liminar para libertar Lula. Foi derrotado por 3 votos contra dois – o dele e o do ministro Ricardo Lewandowski. Inconformado, pediu vista e o julgamento acabou suspenso. Lula só seria solto em novembro de 2019. Foram 580 dias preso.
Para salvar Moro da suspeição e preservar o que fosse possível da Operação Lava Jato, o ministro Edson Fachin decretou a anulação das condenações de Lula, alegando que o foro de Curitiba não era o mais adequado para julgá-lo. Calculou que a sua inviabilizaria qualquer posterior decisão da Segunda Turma contra Moro.
Deu ruim para ele, Moro, os procuradores da República de Curitiba e quem mais torcia por um desfecho contrário a Lula. Fachin mandou que os processos do triplex do Guarujá e do sítio de Atibaia fossem devolvidos à primeira instância em Brasília, sem anular, porém, as provas que eles continham. Perdeu.
As provas foram anuladas pela Segunda Turma. Os processos terão que recomeçar. Ou serão arquivados. Lula, agora, está duas vezes livre – da cadeia e das condenações que lhe pesavam. Três vezes livre, porque faltará tempo hábil para que possa voltar a ser ficha suja antes das próximas eleições.
Agradeça a Gilmar, em primeiro lugar, a Lewandowski, em segundo, e ao voto de desempate da ministra Cármen Lúcia. Agradeça também a Fachin que lhe abriu as portas da recuperação. E, se quiser, pode tripudiar sobre o ministro Nunes Marques, que deve o emprego ao presidente Jair Bolsonaro, e foi voto vencido.
No Supremo, já se viu muita coisa, até troca de desaforos de ministros aos berros e golpes aplicados abaixo da cintura. Mas nunca se viu um ministro, no caso Gilmar, reduzir a pó o voto do outro, no caso Nunes Marques, que saiu dali humilhado do ponto de vista de conhecimentos jurídicos e com a pecha de covarde.
O governo passou recibo de pronto. Auxiliares do presidente da República confidenciaram que ele não esperava o que aconteceu, e que isso fortalecerá a pretensão de Lula de enfrentá-lo na eleição do ano que vem. A leitura da situação está correta. É a mesma feita por articuladores de uma candidatura de centro.
Cuide-se, Bolsonaro. Aumentou o risco de sua reeleição ir pelo ralo já na disputa do primeiro turno.
Vá para casa, capitão Bolsonaro!
A posse clandestina do ministro da Saúde
Na época da Revolução dos Cravos, Portugal teve um 1º ministro com fama de doidinho da silva – o Almirante Vasco Gonçalves. Um dia, a parede branca que cercava o maior sanatório de Lisboa amanheceu pichada com a frase: “Volte para casa, Almirante”. O Palácio do Planalto carece de paredes externas.
Nem por isso deixa de abrigar a insensatez em alto grau . Nunca antes na história dos governos, pelo menos desde a redemocratização do país, viu-se posse clandestina de ministro de Estado. Ou melhor: não se viu. Aconteceu, ontem, quando o médico Marcelo Queiroga tomou posse como ministro da Saúde.
O distinto público não foi avisado com antecedência. A nomeação de Queiroga sequer havia sido publicada no Diário Oficial. Na agenda do presidente Jair Bolsonaro, distribuída todas as manhãs, não constava o ato de posse. Até o início da madrugada de hoje não foi divulgada nenhuma fotografia da solenidade excepcional.
O que deu no presidente? Foi grande o desgaste que ele sofreu por ter mantido o país sem ministro da Saúde por 8 dias em meio à pandemia. Há 8 dias, demitiu o general Eduardo Pazuello da boca para fora, uma vez que ele continuou ministro. E da boca para fora admitiu Queiroga, que continuou sem ser ministro.
Não bastasse tal comportamento inédito e, convenhamos, esquisito, o fez ao longo de uma pandemia que só bate recordes. Bateu mais um. Foi a primeira vez que em 24 horas, o número de mortes pela Covid-19 ultrapassou a casa dos 3 mil. Hoje, o total de mortos vai atingir a marca inacreditável de 300 mil.
O vírus já é a principal causa de óbitos no país, segundo o jornal O GLOBO. Doenças cardiovasculares levam em média 3 dias para matar 3 mil pessoas; o câncer, cinco dias; a violência, 19; e acidentes viários, 28. A dar-se crédito a Bolsonaro, não passaria de uma “gripezinha” que, em dezembro, estava “no finalzinho”.
Ignora-se, por enquanto, o destino de Pazuello. Se não voltar a ser ministro, se não for indicado para um cargo que lhe garanta o direito de só ser julgado pelo Supremo Tribunal Federal, responderá a processos na primeira instância da justiça. E qualquer juiz, de repente, poderá mandar prendê-lo.
Pense na encrenca que seria um general, e ainda por cima da ativa, preso, mesmo que solto depois. Bolsonaro carregará mais essa na sua folha corrida? Seu aniversário de 66 anos foi comemorado no último domingo. Mas o inferno astral cavado por ele não passou. Ao falar ao país, foi recepcionado com um panelaço.
O ministro Marco Aurélio Mello, do Supremo, rejeitou a ação impetrada por Bolsonaro contra medidas de isolamento mais rígidas baixadas pelos governadores da Bahia, Distrito Federal e Rio Grande do Sul. Bolsonaro disse outra vez que não deseja para ninguém o cargo que ocupa. Simples: vá pra casa, capitão!
Bernardo Mello Franco: A corrupção de Moro
A Segunda Turma do Supremo concluiu que Sergio Moro violou o dever da imparcialidade ao condenar o ex-presidente Lula. A decisão esvazia o mito que começou a ser inflado em 2014, quando o ex-juiz emergiu à frente da Lava-Jato. A pretexto de combater a corrupção, ele fez política com a toga e corrompeu o sistema judicial.
Nos últimos sete anos, Moro e a Lava-Jato se tornaram personagens centrais da vida brasileira. A República de Curitiba implodiu os partidos tradicionais e deu impulso ao impeachment de Dilma Rousseff. Dois anos depois, ajudou um populista de extrema direita a vestir a faixa presidencial.
Jair Bolsonaro passou a campanha de 2018 fazendo juras à Lava-Jato. Nem precisava. A operação prendeu e tirou de campo seu principal concorrente. Às vésperas do primeiro turno, ainda divulgou uma delação para beneficiá-lo.
Antes de subir a rampa, o capitão ofereceu a Moro o cargo de ministro da Justiça. O juiz abandonou a carreira e correu para se juntar ao novo governo. Quando ele rasgou a fantasia, sua atuação política já estava mais do que escancarada. Bastava querer ver.
Ontem a ministra Cármen Lúcia lembrou que a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, garantiu a todos um julgamento justo e imparcial. Processos inquisitoriais, em que o juiz se confunde com a acusação, atentam contra as bases da democracia.
A professora Eloísa Machado de Almeida, da FGV Direito SP, diz que o Supremo demorou a reconhecer a suspeição de Moro. “Era inevitável que o tribunal fizesse isso, depois de chancelar por tanto tempo os erros e abusos da Lava-Jato”, afirma.
Ela considera que a operação está “pagando por seus deméritos”. “Muita gente séria avisou que isso iria acontecer. Os fatos levam a crer que Moro não estava fazendo Justiça. Ele foi um juiz parcial, que direcionou os processos por interesse próprio”, sentencia.
A decisão do Supremo reforça os sinais de uma mudança de ventos no país. A ministra Cármen Lúcia, que costumava endossar as condenações de Curitiba, alterou o voto para reconhecer a suspeição de Moro. À noite, panelas que já bateram contra Lula abafaram o pronunciamento de Bolsonaro.
Vera Magalhães: Bolsonaro fora do segundo turno?
Cresce nos meios políticos e entre os analistas a crença de que o segundo turno de 2022 pode se dar sem a presença de Jair Bolsonaro. Não é por outra razão que dia sim, outro também, o presidente aumenta a estridência de suas declarações e as ameaças a adversários com supertrunfos como o estado de sítio.
Mas como se daria esse cenário do presidente fora da reta final da disputa? Como o impeachment ainda parece uma possibilidade pouco provável, não pela falta de crimes de responsabilidade a granel, mas de apetite do Congresso, coragem das forças econômicas e perda mais significativa de respaldo popular (que pode vir e puxar as outras duas variáveis), a construção tem de ser pela política.
A volta de Lula ao tabuleiro eleitoral, anabolizada na tarde desta terça-feira pelo julgamento do habeas corpus de sua defesa pela Segunda Turma do STF, que reconheceu a suspeição de Sergio Moro para julgá-lo, foi o primeiro fator a ameaçar a presença garantida de Bolsonaro na “final” no ano que vem.
Embora as pesquisas ainda sejam muito equilibradas e mostrem resultados numericamente divergentes quanto a quem levaria a melhor entre os antagonistas Bolsonaro e Lula, a se manter o caos na pandemia e, consequentemente, na economia, a balança tende a pender para o lado do petista mais e mais.
Outro fator a ameaçar a reeleição do capitão é o desejo manifestado nessas mesmas pesquisas por boa parte do eleitorado de votar em alguém que não seja nem Bolsonaro nem um petista (lembrando sempre que Lula está elegível hoje, mas seus processos serão reiniciados, não se sabe de que ponto, pela Justiça Federal no DF).
Até aqui a dúvida dominante era a respeito de quem enfrentaria Bolsonaro no returno: Lula ou um candidato alternativo? Agora não é absurdo pensar na possibilidade de o confronto decisivo ocorrer entre o petista e essa terceira via.
Não, isso ainda não está dado. Bolsonaro tem pelo menos 22% de apoio ainda declarado, de acordo com o mais pessimista dos levantamentos de opinião. Mas é algo possível de construir pela política, caso os partidos acordem do sono letárgico em que parecem hibernar, em meio à situação mais caótica em todas as frentes que o Brasil já enfrentou.
Também é um movimento que já está em marcha em amplos setores da sociedade, como mostram indicadores tão distintos como o manifesto com mais de mil assinaturas dos economistas em prol da racionalidade no trato da pandemia, os panelaços de “Fora Bolsonaro”, as reações ao estado policialesco contra adversários do presidente e o crescente desconforto até no apalermado Congresso Nacional com o desgoverno reinante e o galope descontrolado de mortes em todo o território nacional.
Aconteceu o mesmo com Donald Trump. Por lá, a pandemia foi um fator a galvanizar esses descontentamentos, que estavam difusos, e a forçar a oposição do Partido Democrata a se unir em torno de Joe Biden.
Aqui começam timidamente ensaios de arranjos de chapas que pudessem limpar o meio de campo de muitos candidatos perna de pau nas pesquisas e fazer surgir uma dupla competitiva. Nos últimos dias, fui procurada por articuladores de partidos com composições as mais diversas. Alckmin-Mandetta? Alexandre Kalil-Luiza Trajano? A mais manjada Luciano Huck-Moro? Em cada uma há senões, guerras de egos, vetos dentro desse e daquele partido e hesitação dos envolvidos. Mas o que há mesmo é a falta, até aqui, de consciência por parte do establishment político não petista de que é possível construir essa alternativa, desde que o diálogo comece agora, seja sistemático, envolva setores amplos da sociedade civil para além dos partidos e contemple uma alternativa concreta de projeto de país para reconstruir o que foi destruído por Bolsonaro.
Rosângela Bittar: omissão fatal
Lira e Pacheco comportam-se como reféns de uma dívida acidental com Jair Bolsonaro
Com a pressão elevada pela carta de exortação dos banqueiros e o apelo direto do empresariado paulista à interferência dos presidentes da Câmara e do Senado, o presidente Jair Bolsonaro pode estar entrando hoje numa nova onda. Participa de encontro com os presidentes dos três Poderes, governadores e ministros para ser aconselhado sobre a gestão da pandemia.
Todos sabem, trata-se de um faz de conta institucional, como se o presidente já não soubesse o que precisa fazer. Vá lá, serve o pretexto. Apostas na mesa sobre o resultado desta iniciativa:
Um. Os financiadores de campanha abrem a Bolsonaro a brecha para abandonar os delírios impostos pelo obscurantismo que move suas atitudes e assumir a coordenação das soluções da crise de saúde pública com base na ciência e eficiência.
Dois. O presidente usa a reunião para promover um movimento circense destinado a distrair a arquibancada e dar a impressão que faz alguma coisa com seu mandato presidencial.
Três. Bolsonaro busca e encontra, no grupo, disposição para socialização do prejuízo e da impopularidade. Como de hábito, ouvirá uma coisa, fará outra e, diante das consequências trágicas, coletivizará as culpas.
O histórico da personalidade do presidente manda jogar as fichas na terceira opção.
Mas só ele tem o comando executivo das soluções. Não é mais possível viver na expectativa dos recuos de Bolsonaro, cujas mutações obedecem apenas às suas conveniências pessoais e eleitorais.
O Supremo Tribunal Federal, única instância que parece estar cuidando do interesse da população aflita, submeteu o convite para o encontro ao seu colegiado. Que o aprovou, desde que não haja conflito de interesse.
Ora, é só o que há. Na reunião do Palácio do Planalto, o presidente do STF poderá recomendar o isolamento social para enfrentar o colapso hospitalar. Ao atravessar a praça, de volta ao seu plenário, estará diante de ação de Jair Bolsonaro contra os que decretaram o isolamento. Como ele fica?
O ceticismo em torno deste Conselho se impõe. Parece haver uma só saída para reinserir o Brasil na rota da humanidade nesta pandemia sem controle: a intervenção objetiva, seja pelo afastamento do presidente da República, seja por algum tipo de sobreposição às suas funções executivas.
A qual instituição, senão ao Poder Legislativo, caberia esta função? Pode o Congresso, no limite, tentar algo parcial, assumindo tarefas e deixando ao presidente o papel de malabarista verbal nos encontros com sua claque, no gradil do Alvorada.
Mas há abertura para ir além disto. Se por ela optasse, o Brasil não precisaria esperar mais dois anos, quem sabe seis, para se salvar.
O Congresso tem uma velha tradição de astúcia em negociações de acordos. Estabelece um contrato de compra e venda do varejo político que, um dia, a depender do objeto determinado, transforma-se em cumplicidade dolosa.
Os presidentes da Câmara e do Senado comportam-se como reféns de uma dívida acidental com Jair Bolsonaro, contraída por ocasião de sua eleição. Sua propalada independência tem sido pura ficção.
No Senado, os pruridos da reciprocidade impedem que Rodrigo Pacheco instale a CPI da pandemia, única medida capaz de conter, até pelo medo, os desmandos do governo. Tem sido excessiva e injustificada a prudência do Poder Legislativo.
Na Câmara, Arthur Lira já teria quitado sua fatura com a prioridade a um assunto fisiológico, a PEC da impunidade parlamentar, e a surdez ao clamor contra a entrega da presidência da CCJ ao governo, para ser exercida por uma parlamentar extremista e investigada. Mas foi além, condenando ao esquecimento 50 pedidos de impeachment do presidente Jair Bolsonaro.
As abstenções, tanto quanto as ações, não permitem reconhecer que o Congresso esteja cumprindo sua parte na luta contra a pandemia.
Luiz Carlos Azedo: A parcialidade de Moro
A suspeição do ex-juiz desgasta muito mais o Supremo na opinião pública do que a eventual candidatura do ex-magistrado, que passaria de justiceiro a injustiçado
O ex-ministro da Justiça Sergio Moro foi considerado parcial no julgamento do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva pela Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal (STF), no caso do triplex de Guarujá. Foi uma reviravolta no julgamento, que estava três a dois a favor do ex-juiz da 13a Vara Federal de Curitiba, responsável pela Operação Lava-Jato. A ministra Cármen Lúcia, que já havia votado contra a suspeição no começo do julgamento, mudou seu voto ao final da sessão, acolhendo argumentos do presidente da Turma, ministro Gilmar Mendes, e do ministro Ricardo Lewandowski. Segundo ela, a atuação de Moro não foi imparcial, favoreceu a acusação e, portanto, houve um julgamento irregular.
Cármen Lúcia fez questão de ressaltar que a decisão se aplica apenas ao caso do triplex de Guarujá: “Não acho que o procedimento se estenda a quem quer que seja, que a imparcialidade se estenda a quem quer que seja ou atinja outros procedimentos. Porque aqui estou tomando em consideração algo que foi comprovado pelo impetrante relativo a este paciente, nesta condição”. Embora se diga que a ministra foi pressionada por Mendes durante o julgamento, a magistrada já havia sinalizado que poderia rever seu voto, na sessão anterior da Turma.O voto de Cármen Lúcia não se aplica automaticamente aos demais processos do ex-presidente Lula, mas, com certeza, será utilizado pela defesa do petista e também de outros réus da Lava-Jato condenados por Moro para anular processos. Tudo dependerá de novo julgamento no plenário do Supremo, que também precisa analisar a liminar do ministro Edson Fachin (o relator derrotado no caso de Moro) que anulou as condenações do ex-presidente Lula e mandou a Justiça Federal de Brasília refazer todo o processo. Adecisão monocrática de Fachin é vista como uma maneira de restabelecer a elegibilidade de Lula e, ao mesmo tempo, salvar a Lava-Jato.CandidaturasPortanto, Lula foi beneficiado duas vezes: pela decisão monocrática de Fachin, que considerou Moro incompetente para julgar o petista; e, agora, pela Segunda Turma, que contamina as provas do processo ao considerar Moro parcial no julgamento. Se essas decisões forem mantidas pelo Supremo, Lula estará livre para concorrer à Presidência em 2022, e a Lava-Jato correrá o risco de ter dezenas de condenações anuladas. A surpresa no julgamento foi do novo ministro Nunes Marques, indicado pelo ex-presidente Jair Bolsonaro, cujo voto foi a favor de Moro.
A repercussão da decisão foi imediata. O presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), inimigo declarado da Operação Lava-Jato, logo comemorou a suspeição de Moro. O ambiente político no Congresso é muito adverso para ex-juiz federal e a equipe de força-tarefa da Lava-Jato que realizou as investigações. No Palácio do Planalto, Lula é considerado o principal adversário de Bolsonaro, mas a candidatura de Moro é indesejada. Caso o ministro seja candidato, disputará votos no campo antipetista, o mesmo que Bolsonaro leva em conta para viabilizar a reeleição.
A propósito, a suspeição de Moro desgasta muito mais o Supremo na opinião pública do que a eventual candidatura do ex-juiz, que corre risco de passar de justiceiro a injustiçado. Não é nada mal, se realmente resolver se candidatar a presidente da República. Apesar de isolado politicamente, Moro continua sendo um ícone da luta contra a corrupção e um nome fortíssimo à Presidência. Dificilmente, será declarado inelegível pelo Supremo.
O ex-presidente Luiz Inácio da Silva é quem mais ganha com a decisão, porque reforça sua narrativa de que foi condenado sem provas, por um juiz sem isenção, com o objetivo político de afastá-lo do pleito de 2018. Mesmo assim, para grande parcela da opinião pública, o petista continua sendo o grande responsável pelo escândalo da Petrobras. Bolsonaro, supostamente, ganharia com o desgaste de Moro e a polarização com Lula, mas essa tese precisa ser combinada com o eleitor.
'Golpe de 64 mergulhou o país em ditadura de 21 anos', lembra João Batista
Em artigo publicado na revista Política Democrática Online de março, cineasta e escritor faz uma visão saudosista do período antes da ditadura militar
Cleomar Almeida, Coordenador de Publicações da FAP
O cineasta e escritor João Batista faz um relato emocionante da migração do cinema para a literatura, em artigo que publicou na revista Política Democrática Online de março. A publicação mensal é produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.
No início da década de 1960 do século 20, conforme ele conta, a cultura brasileira dava um salto para a modernidade. “O golpe de 1964 jogou por terra essa utopia, mergulhando o país em uma ditadura de 21 anos”, lembra ele.
“Para minha geração, o cinema encarnava uma utopia vigorosa”, afirma. “Vindo do interior mineiro, entrei na Poli (Escola Politécnica da USP) em 1960, já com 20 anos, muita imaginação, crise existencial profunda e pouco conhecimento cultural”, lembra.
“Rica formação”
Batista conta que as crises se sucediam, principalmente em meio à eleição de Jânio, renúncia com golpe explícito, militares tentavam impedir a posse de Jango, mas, segundo ele, Jango tomava posse gerando um governo popular seguindo a mesma crise que se aprofundava até o golpe de 1964. “De qualquer maneira, um período rico de formação”, diz.
“Em quatro anos passando da esperança, da luta à derrota para os militares, enquanto, bebendo do porre democrático do governo JK, a cultura brasileira dava um salto para a modernidade”, relata. “Bossa Nova, Teatro Novo, Cinema Novo. Minha geração finalmente tinha sua trilha traçada rumo ao futuro, distanciando-se de uma Brasil atrasado e pobre”, acrescenta.
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Igor Gielow: Decisão do STF encerra ciclo da Lava Jato e valida discurso de Lula
Se ainda alimentava alguma pretensão política, Sergio Moro terá de refazer suas contas
Igor Gielow, Folha de S. Paulo
A mudança de opinião da ministra Cármen Lúcia, virando o placar em favor de declarar Sergio Moro parcial na condução de processo sobre o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), sela o destino da Operação Lava Jato e valida o discurso do petista para 2022.
Apesar de morta e enterrada sob os auspícios do governo Jair Bolsonaro, o julgamento desta terça (23) na Segunda Turma do STF (Supremo Tribunal Federal) é prova da qualidade espectral da maior ação anticorrupção já realizada no país.
A Lava Jato segue pairando sobre o cenário político brasileiro, afinal. Ao colocar flores no seu túmulo, mesmo que a contragosto dado que se filia mais ao lava-jatismo do que ao garantismo, Cármen talvez tenha encerrado um ciclo.
Ela mesma ressaltou em seu voto o óbvio, que a decisão não implica a anulação quaisquer outros processos da operação. Vá dizer isso às defesas dos políticos e empresários pegos nas revelações do petrolão.
A celebração é de Lula, que já havia recuperado seus direitos políticos numa decisão surpreendente do ministro Edson Fachin, que após alguns anos mudou de opinião acerca de uma questão técnica de competência jurisdicional dos processos envolvendo o ex-presidente.
Se tentou salvar o que restou da Lava Jato, como foi ventilado, não foi bem sucedido. A carga comandada por Gilmar Mendes, violentamente expressa na sua reprimenda ao voto do colega Kassio Nunes Marques nesta terça, tem sido avassaladora contra a operação.
Mas o que estava em pauta nem era tanto a imagem de Moro, já bastante desgastada, embora o exorcismo do lava-jatismo seja um "Leitmotiv" para o germanófilo Gilmar há um bom tempo. Era, na prática, Lula.
Declarado parcial, Moro verá todos os processos relativos ao ex-presidente que passaram por sua mão evaporarem, tendo de recomeçar do zero na Justiça Federal em Brasília.
A dúvida acerca da possibilidade de o petista disputar a eleição presidencial em 2022 não cessa, dado que a decisão de Fachin ainda será analisada pelo plenário do Supremo e pode ser derrubada —mantendo o ex-presidente inelegível devido à condenação no caso do sítio de Atibaia.
Politicamente, contudo, o discurso do petista está validado: ele sempre disse que foi vítima de uma perseguição por parte de Moro.
Seja ele candidato ou não em 2022, e haverá um tsunami dentro de seu encolhido partido para isso, é quase irrelevante. Qualquer porta-estandarte poderá contar a mesma história, se for essa a decisão de Lula.
O próprio ex-ministro já havia dado argumentos aos críticos ao assumir o Ministério da Justiça de Jair Bolsonaro, que venceu uma eleição da qual Lula foi excluído devido à condenação dada por Moro.
Se o petista iria ganhar, como seus aliados dizem como se fosse uma verdade, é bastante discutível dado o grau de insatisfação popular com o PT na esteira do impeachment de Dilma Rousseff em 2016.
Já Moro sai carbonizado do processo, apesar de 45% dos brasileiros ainda aprovarem seu trabalho na Lava Jato, conforme o Datafolha aferiu. Se alimentava alguma pretensão política para 2022, o que poucos na centro-direita acreditavam a esta altura, deverá refazer bastante os cálculos.
Mesmo seu valor de face como apoiador perdeu bastante peso nesta terça. Político algum vai querer se ver associado a um juiz apontado como parcial.
A sessão desta terça também será apensada ao anedotário da discussão eterna entre legalistas e aderentes de um direito, por assim dizer, mais flexível às realidades.
Afinal de contas, durante anos os primeiros defenderam a anulação da Operação Castelo de Areia, antecessora espiritual da Lava Jato, por basear-se em uma delação anônima, o que seria ilegal, além de criticar aspectos abusivos da investigação.
Nesta terça, Gilmar se contrapôs a Kassio ao dizer que é irrelevante o fato de que os grampos que mostraram as conversas de Moro com outros membros da Lava Jato terem sido obtidos ilegalmente. O que importa é a resultante divulgada.
Ironia também não falta na apreciação política do voto de Kassio, primeiro indicado por Jair Bolsonaro.
Um observador descuidado diria que ele poupou um adversário do presidente, Moro. Mas o ex-juiz, diferentemente de Lula, não é visto como ameaça eleitoral no Planalto.
Tivesse prevalecido o voto de Kassio, o petista veria mantida suspensa sobre suas pretensões a espada de Dâmocles do que pode ocorrer no plenário do Supremo.
Ao fim, o fastio progressivo com a enxurrada de denúncias e decisões envolvendo a Lava Jato parece ter chegado ao paroxismo. Só não é possível decretar a morte da indignação com a corrupção: 67% dos brasileiros, segundo o Datafolha, creem que ela vai aumentar daqui para a frente.
Murillo Camarotto: Eleições, polarização e desertos de notícias
Colapso do jornalismo regional vai corroendo pilares da democracia
Tip O’Neill, antigo presidente da Câmara dos Representantes dos EUA, ficou famoso por ter dito que “toda a política é local”. O argumento central era de que as grandes questões globais movem paixões e manchetes, mas importam menos na vida do cidadão comum do que as decisões tomadas na comunidade na qual ele está inserido.
Desde que a frase ganhou notoriedade - já há algumas décadas -, observadores da política americana vêm percebendo algumas transformações nesse conceito. Na esteira da polarização explosiva experimentada naquele país, as eleições locais passaram a refletir muito mais as questões ideológicas do que aquelas voltadas às realidades e necessidades comunitárias.
Esse fenômeno é intensificado pela aguda crise pela qual passa o jornalismo local nos Estados Unidos. O fechamento de redações dedicadas à cobertura de questões regionais - muitas delas centenárias - cresce a um ritmo assustador e suscita debates sobre os riscos desse processo para a democracia.
Na semana passada, em uma carta de 11 páginas encaminhada ao Congresso americano, o presidente mundial da Microsoft, Brad Smith, chamou atenção para o problema - em parte causado pelas gigantes da tecnologia. Smith relembrou a frase de O’Neill com o complemento de que “a democracia floresce ou murcha em nível local”.
Por aqui, caminhamos para o que pode ser a eleição mais polarizada desde o fim da ditadura militar. Nesse ambiente contaminado, as necessidades locais tendem a ter um peso cada vez menor na escolha dos eleitores.
Em condições naturais, candidatos a governador, senador, deputado estadual e deputado federal deveriam ser avaliados com base em suas realizações nos respectivos domicílios eleitorais, e não apenas no lado em que estarão na polarizada disputa federal.
Está ficando mais difícil, entretanto, conhecer a fundo o desempenho (ou ficha corrida) desses candidatos. Assim como na América, o jornalismo local agoniza por aqui, deixando no escuro vastas regiões do país, já batizadas no meio acadêmico de “desertos de notícias”.
Tecnicamente, os desertos de notícias são municípios nos quais não há nenhum tipo de veículo jornalístico. Os dados mais atualizados do “Atlas da Notícia”, organizado pelo Instituto para o Desenvolvimento do Jornalismo (Projor), mostram que 62% das cidades brasileiras não têm hoje nenhuma imprensa local, o que representa 18% da população.
O problema, no entanto, é bem mais grave. Mesmo em regiões que ainda dispõem de órgãos de imprensa, a cobertura local é muito pobre. Por todo o país, diários tradicionais enfrentam diversas dificuldades operacionais e financeiras e rumam a passos largos para a irrelevância.
Em cidades importantes, como João Pessoa (PB), o jornalismo impresso acabou bem antes de ser concluído o processo de inclusão digital da população. Em outras capitais onde os periódicos de papel ainda circulam, as páginas de política priorizam a reprodução de notícias nacionais, a despeito dos temas mais caros à comunidade.
Nesse cenário, prefeituras, câmaras de vereadores, assembleias legislativas e tribunais de Justiça vão se acostumando à confortável ausência dos repórteres. As descobertas de escândalos locais rareiam, enquanto prosperam os blogs e timelines politicamente comprometidos.
É o terreno fértil para a proliferação do que os americanos chamam “folk teories”, histórias distorcidas que se espalham pelas redes sem qualquer base empírica, que acabam ganhando respaldo em uma parcela da sociedade e, fatalmente, influenciando as urnas.
Sem fontes confiáveis de informação, os cidadãos ficam expostos ao buraco negro das redes sociais. A utilização massiva de bancos de dados com bilhões de informações pessoais fez estragos pelo mundo afora nos últimos anos, com maior destaque para as eleições americanas e o referendo do Brexit.
No caso americano, a Cambridge Analytica mapeou os polos de indecisos e, com base em informações pessoais surrupiadas, bombardeou toda essa gente com memes e mentiras contra os adversários de seus clientes. Deu certo.
No Brasil, teremos as primeiras eleições gerais sob a vigência de Lei Geral de Proteção de Dados, mas os efeitos da regulação sobre o uso das informações pessoais pelas candidaturas ainda é incerto. Certo é que não devemos subestimar a nossa vulnerabilidade à manipulação.
A influência das redes no pleito será, mais uma vez, gigantesca. Estudiosos projetam uma prevalência dos vídeos curtos, atualmente em moda em plataformas como o Instagram e o novato TikTok. Nesse oceano, o jornalismo profissional terá que gritar ainda mais alto para ser ouvido.
“Reconheço que a tecnologia tem criado tantos problemas quanto benefícios. E esses problemas pedem novas e urgentes soluções”, reconheceu o executivo da Microsoft em sua manifestação.
Na Europa e na Austrália, o acerto de contas entre o jornalismo e as gigantes tecnológicas está mais avançado. A imprensa australiana conseguiu garantir mais dinheiro para o conteúdo que coloca na internet.
Ainda assim, o quinhão dedicado aos jornais locais é miserável, insuficiente para dar alguma sobrevida. Na França, Canadá e Reino Unido, já se discutem formas de socorro estatal, por meio de um novo enquadramento tributário. Nesses países, já amadureceu a percepção de que a debacle do jornalismo regional pode vitimar também a democracia.
É bem provável que eu venha a ser criticado por considerar a possibilidade de uma política pública de respaldo ao jornalismo profissional - sobretudo em nível regional. Mais provável ainda é que boa parte dos críticos tenham o hábito de consumir algum tipo de noticiário sem pagar nada.
Outros caminhos podem ser sugeridos, o importante é que o problema seja reconhecido, afinal, de negacionismo já estamos bem servidos. Para esse e outros dramas nacionais, jornalismo sério é a vacina.