Heloisa Starling: 'Altas patentes da ativa estão em silêncio eloquente'

Pesquisadora alerta para o nível de tensão entre governo e Forças Armadas mas vê como bom sinal a falta de manifestações políticas da cúpula militar

Janaína Figueiredo, O Globo

RIO - A inédita troca simultânea dos comandantes do Exército, Marinha e Aeronáutica, semana passada, colocou historiadores brasileiros como Heloisa Starling em estado de alerta. A professora e pesquisadora da Universidade Federal de Minas Gerais, coautora de "Brasil: uma biografia", se pergunta, por exemplo, se existem fissuras nas Forças Armadas, e se a tentativa do presidente Jair Bolsonaro de contar com respaldo militar para seu projeto político tem adesão nas baixas patentes. "O silêncio dos quartéis tem sido muito eloquente. Todas as altas patentes na ativa estão em silêncio, o que é muito bom para a democracia", afirmou a historiadora, em entrevista ao GLOBO. Heloisa não vê risco de golpe, mas faz uma ressalva: "o projeto autoritário do governo corroi por dentro a democracia. A novidade é essa".

Qual é a sua avaliação sobre a crise entre o presidente Jair Bolsonaro e a cúpula militar?

Os sentimentos são vários. O Brasil vive numa montanha-russa, a cada dia temos um solavanco maior, sem respiro. Um dos pensamentos que tive foi me perguntar como é possível que, num momento em que mais de 300 mil brasileiros morreram, se faça uma reforma de ministério. Ao invés de todas as forças do governo federal estarem voltadas para o enfrentamento da pandemia e para dizer à sociedade que a vida de cada brasileiro vale igual, o governo faz uma reforma e arruma uma crise com as Forças Armadas? Isso é muito assustador e dá a dimensão do grau de degradação do país. Muitos nos perguntamos o que realmente está acontecendo.

Que precedentes históricos devem ser levados em conta na hora de analisar o estremecimento da relação entre Bolsonaro e a agora ex-cúpula das Forças Armadas?

Se você olhar, do governo Deodoro da Fonseca até o governo Geisel, você tem umas 15 tentativas de intervenção militar no Brasil, duas deram certo e liquidaram a democracia: o Estado Novo, em 1937, e a ditadura militar, em 1964. Desde a redemocratização, não temos esse quadro de tensão entre Planalto e Forças Armadas. Se o ministro da Defesa precisa dizer que as Forças Armadas são uma instituição do Estado republicano, isso significa que alguém estava forçando para que não fosse. Por outro lado, as Forças Armadas são politicamente heterogêneas. Isso inclui diferença de arma, geração e carreira; também possui interesses próprios e capacidade de promovê-los. Gostaria de entender o que está acontecendo dentro delas. No período Geisel, por exemplo, o projeto de abertura era defendido por um setor, mas houve uma reação muito forte contra essa abertura. Essa reação culmina com uma tentativa de golpe militar em 1977, com Sylvio Frota, através de um pronunciamento que buscou insuflar as tropas contra Geisel. Ele era uma das lideranças mais importantes do setor mais reacionário das Forças Armadas. Às vezes, me parece o mesmo filme. No manifesto, Frota faz a defesa do alinhamento incondicional com os EUA, ataca Geisel pela aproximação com a China e por críticas a Israel. Seriam provas de uma “escalada socialista” no Brasil, como ele diz. Também reclama que Geisel é complacente com as críticas da mídia às Forças Armadas e permite propaganda subversiva. Tem um caldeirão ideológico no pronunciamento dele que vale a pena olhar. Recém promovido a capitão, o general Augusto Heleno era seu ajudante de ordens.

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A senhora se pergunta se o discurso e as pretensões de Bolsonaro de politizar as Forças Armadas têm algum respaldo dentro do mundo militar ativo?

Minha dúvida é: tem fissuras hoje nas Forças Armadas? Se sim, quais são essas fissuras? Tem alguma cunha sendo metida dentro das Foças Armadas, no sentido de buscar adesão nas baixas patentes para um projeto de poder? Isso já aconteceu no passado, tivemos a revolta dos marinheiros, dos sargentos, entre outras. Na ditadura, tivemos fissuras, que vieram dos setores mais ideológicos das Forças Armadas. Não quero saber se tem partidários do presidente Bolsonaro, quero saber se tem fissuras.

Até agora, o que a senhora responderia a essa pergunta?

Se ligarmos para o passado, para entender o que estamos vendo hoje, ele nos dirá que as Forças Armadas não são homogêneas, já se dividiram, existe uma tradição de intervenção política, e já se manifestaram de diferentes maneiras. Posso supor que a força institucional, pelo que tudo indica, está sendo demonstrada. Mas e as patentes inferiores? O presidente tem uma atuação frequente, uma presença que não é comum entre chefes de Estado em formaturas militares. Até agora, o silêncio dos quartéis tem sido muito eloquente. Bolsonaro não tem tropas ao seu redor, tem muito militar da reserva. Todas as altas patentes na ativa estão em silêncio, o que é muito bom para a democracia. O general (Pedro Aurélio) Góis Monteiro, um dos mais importantes da história do Exército brasileiro, responsável pela grande modernização das Forças Armadas nos anos 30, dizia que o Exército é o grande mudo. Temos de lembrar do Góis Monteiro, enquanto estiver mudo, é bom.

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Existe uma ideia de que Bolsonaro constantemente evoca a ditadura. Mas não é a ditadura, ele evoca um momento da ditadura, os anos 70, o período mais violento e repressivo. Se você observar a história dele e dos generais que estão em torno dele, são todos formados nos anos 70, por coronéis instrutores que vieram da repressão à luta armada, principalmente no Araguaia. A nostalgia não é da ditadura, é do porão.

Quais são os riscos que a democracia brasileira corre hoje?

A vertente dessas pessoas que mencionava antes foi derrotada por Geisel nos anos 70, derrotada pela abertura e o início da transição democrática. Eles poderiam, e aqui estou especulando, alimentar um projeto messiânico. Isso significa um projeto de poder, no mínimo, autoritário. Estamos lidando com um pensamento muito autoritário, e não é uma aventura, tem uma história.

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O presidente disse que joga dentro da Constituição, mas que outras autoridades atuam no limite.

O projeto autoritário do governo corrói por dentro a democracia. A novidade é essa. Todas as vezes que a democracia sucumbiu no Brasil foi por força de golpe de Estado. Hoje, temos um processo de corrosão, dentro das instituições, das agências. Cada vez que as instituições reagem a esse projeto, por exemplo o Supremo Tribunal Federaç (STF), elas se enfraquecem. Isso esgota a energia das instituições. Exauridas, elas vão perdendo capacidade de reação. Outro mecanismo de corrosão são gestões muito incompetentes dentro de agências do Estado, como foi a do Ministério da Saúde. Lembro que em janeiro de 2019, Bolsonaro tinha acabado de tomar posse, e fez um discurso num jantar em Washington no qual ele diz que seu governo não vai construir nada, vai desconstruir. Tem método, e está em ação.

Hoje, esse projeto de poder está acuado?

Não vejo esse projeto acuado, ele está em pleno funcionamento. Tenta-se impor, ainda, uma nova língua que parece saída diretamente das páginas do livro “1984”, de George Orwell: a apropriação das palavras e a inversão de seu significado. Ditadura militar significa liberdades democráticas; os inimigos da democracia se dizem vítimas de ditadura; liberdade de expressão virou licença para delinquir. É um processo lento, e não ocorre apenas no Brasil. Acontece na Hungria, na Polônia, Venezuela, os Estados Unidos de Trump, Índia. Tem um padrão, um modo como governantes com vocação autoritária, eleitos democraticamente, agem para corroer por dentro as instituições democráticas. O que me preocupa é que as instituições não se defendem sozinhas. Falta uma reação da sociedade, mesmo na pandemia, a sociedade pode ser criativa, e não se pode falar só na internet, é preciso falar na cena pública. Existem, por exemplo, movimentos para defender um luto para os brasileiros mortos na pandemia. A sociedade também deve dizer que a democracia é um valor e não abriremos mão dele. É preciso pensar formas de expressar o respeito à nossa democracia. Como diz a música de Aldir Blanc, uma estrela é um incêndio na solidão. A democracia não acontece na solidão.


Luiz Carlos Azedo: Bolsonaro e o mito de Sísifo

Como disse Camus, “sempre houve homens para defender os direitos do irracional”. O problema é quando se trata do presidente da República

O consagrado escritor francês Albert Camus foi um existencialista, para quem o homem vive em busca de sua essência, do seu sentido, e encontra um mundo desconexo, ininteligível, guiado por religiões e ideologias políticas. Num de seus ensaios filosóficos, Camus classifica Sísifo, um dos grandes personagens da mitologia grega, como um herói absurdo. “Tanto por causa de suas paixões como por seu tormento. Seu desprezo pelos deuses, seu ódio à morte e sua paixão pela vida lhe valeram esse suplício indizível no qual todo seu ser se empenha em não terminar coisa alguma. É o preço que se paga pelas paixões desta terra”, resumiu.

Os deuses condenaram Sísifo a rolar incessantemente uma rocha até o cume de uma montanha, de onde a pedra se precipitava por seu próprio peso. “Imaginaram que não haveria punição mais terrível que o trabalho inútil e sem esperança”, afirma Camus, que publicou O Mito de Sísifo em 1942. Nessa obra, destaca o mundo imerso em irracionalida- des. “Ou não somos livres, e o responsá- vel pelo mal é Deus todo-poderoso, ou somos livres e responsáveis, mas Deus não é todo-poderoso”, questionava.

Àquela época, em plena Segunda Guerra Mundial, o mundo parecia mesmo absurdo: a guerra, a ocupação da França, o triunfo aparente da violência e da injustiça, tudo se opunha ao humanismo e à ideia de civilização. O trabalho de Sísifo, ao empurrar incessantemente uma pedra até o alto da montanha, até ela tornar a cair, é uma analogia perfeita com o esforço empreendido por profissionais da saúde, prefeitos e governadores para combater a pandemia do novo coronavírus: a covid-19. Entretanto, esse não é um trabalho inútil e sem esperança, como no caso do mito grego. É uma batalha que acabará sendo ganha, apesar de tudo.

Como disse Camus, porém, “sempre houve homens para defender os direitos do irracional”. O problema é quando se trata de um governante, como o presidente Jair Bolsonaro, que combate as medidas de isolamento social e mobiliza seus aliados para sabotar os esforços dramáticos que estão sendo realizados para evitar que a pandemia mantenha sua escalada, que pode chegar a mais de 500 mil mortos em julho, segundo estimativas dos principais centros de estudos epidemiológicos do mundo.

Liminares
A polêmica do momento é a liminar do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Kassio Marques, o mais novo da Corte, indicado por Bolsonaro, que autoriza o funcionamento de templos religiosos durante a pandemia, mesmo contrariando as medidas de restrição de circulação de pessoas e aglomerações adotadas por prefeitos e governadores de cidades e estados nos quais a pandemia saiu do controle. Apesar de o Sistema Único de Saúde (SUS) estar entrando em colapso, por falta de leitos, respiradores e insumos para atender tantos infectados graves, o ministro acolheu pedido da Associação Nacional de Juristas Evangélicos, apresentada em junho do ano passado, para libertar os cultos.

Houve reação entre seus colegas do Supremo. Além das críticas públicas do decano Marco Aurélio Mello, ontem, o ministro do STF Gilmar Mendes, ao negar uma ação do PSD, manteve o decreto do governador de São Paulo, João Doria (PSDB), que restringiu as atividades religiosas de igrejas no estado. Contrariou a decisão de Kassio Marques, que havia liberado celebrações presenciais em todo o país. À tarde, o procurador-geral da República, Augusto Aras, aliado de Bolsonaro e cotado para a vaga do ministro Marco Aurélio Mello, que está prestes a se aposentar, protocolou no Supremo um pedido para retirar de Gilmar Mendes e transferir para Kassio Marques a ação do PSD contra a proibição de cultos e missas coletivas em São Paulo, porque é relator de uma ação mais antiga: a do PSD é de março deste ano.

O presidente do STF, ministro Luiz Fux, decidiu pôr o assunto em votação amanhã, na reunião plenária da Corte. A decisão de Kassio Marques, a pretexto de garantir a liberdade religiosa, está em contradição com a jurisprudência do Supremo, que atribuiu aos estados e municípios autoridade para fixar medidas restritivas de enfrentamento da pandemia, inclusi- ve, o fechamento de templos e igrejas.

https://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-bolsonaro-e-o-mito-de-sisifo/

Marco Aurélio Nogueira: Pessimismo e imaginação democrática

É hora de pegar o touro à unha e criar condições para que a população não esmoreça

O pessimismo anda de braços dados com o cansaço, um ano depois do início da pandemia. Há motivos de sobra para isso. Quarentenas, confinamentos e lockdowns estressam, especialmente quando são o principal recurso para que as pessoas não sejam infectadas. E o pessimismo cresce ao se constatar que parte dos problemas não podem ser solucionados somente com intervenção política e outra parte foi causada por erros cometidos lá atrás, que não podem mais ser corrigidos.

Falo da pandemia, mas poderia ir além, incluindo, por exemplo, o estrago ambiental e a economia.

Quando lemos que não há como acelerar a vacinação por falta de doses de imunizantes, que abril será um mês ainda mais trágico do que março, que só em setembro os grupos prioritários da população conseguirão ser vacinados, vemos com clareza o tamanho da nossa desgraça. O vírus se espraia e assume novos formatos — porque não foram tomadas as medidas corretas antes –, não há vacinas disponíveis no mundo, está sendo amargo o preço que os brasileiros estão pagando pela incúria desastrosa de seu governo.

A própria gestão Bolsonaro vem do passado, dos erros cometidos em 2018, da incapacidade demonstrada pelos democratas de chegarem a um ponto mínimo de entendimento, fruto de uma leitura errada da situação. Desde então o País está sem rumo, carente de alguém que proponha algo plausível para modificar as circunstâncias e injetar ânimo na população. Sua substituição não é garantia de que a situação se modificará de imediato. O Congresso está mais ativo, mas teme colocar o guizo no gato, que, de resto, tem seus apoiadores, mais fanáticos ou menos.

Achar que encontraremos o rumo por meros atos de vontade ou pela mudança do estilo bolsonarista de ser é sonhar acordado.

É hora de pegar o touro à unha., Como estão a fazer diversos governadores, que se articulam para elaborar uma estratégia própria contra a pandemia. Como fazem Butantan e Fiocruz com a dedicação integral à produção de vacinas. Como fazem milhares de voluntários que colaboram nos postos de vacinação, com doações de alimentos, com ajuda financeira aos desassistidos. Como fizeram alguns “presidenciáveis” com o manifesto em defesa da democracia.

Precisamos avaliar bem o quadro político. A imaginação democrática pode frutificar com mais vigor, contagiar os cidadãos a partir de proposições políticas claras. Não podemos esmorecer. O País não é uma divisão simples entre bolsonaristas e lulistas, essa polarização que virou o bicho-papão da política nacional. Há muito mais coisas no meio. Uma “terceira via” é uma possibilidade legítima e factível, pela qual vale se empenhar, mas ela não cairá do céu se o diagnóstico ficar enviesado. O ideal é que se consiga chegar a uma ampla aliança entre o centro e o campo progressista, como tem falado o deputado Marcelo Freixo (PSOL-RJ), dentre outros. Dar um passo além do meio termo entre Lula e Bolsonaro. Sem extremismos, com inteligência, generosidade, em nome da moderação reformadora. Não há outra saída segura.

Não é inevitável que Lula encabece essa aliança. O campo progressista tem outros nomes em condições de compensar o desgaste do ex-presidente e Lula, com o prestígio e o talento que tem, pode vir a atuar como um decisivo fator de união. Depende dele, mas também depende do PT e dos demais partidos de esquerda, do mesmo modo que das forças de centro. Os democratas precisam suspender os vetos cruzados. Errar menos, romper com seus fantasmas e temores.

Estacionamos no terreno das conjecturas. Tal sinalização precisa encontrar força material, pessoas dispostas a fazer sacrifícios e a levar em conta o conjunto dos interesses nacionais, não seus caprichos pessoais ou seus cálculos eleitorais. A imaginação democrática precisa atuar aqui com toda sua efetividade. É o único modo de derrotar o pessimismo que nos paralisa e deprime.


Eduardo Rocha e George Gurgel de Oliveira: O Brasil tem urgência na vacinação

Um problema extraordinário exige uma solução extraordinária. O Brasil tem urgência na vacinação e as organizações empresarias podem ajudar. O combate eficaz à escalada colossal e fúnebre da pandemia e a defesa da vida exigem uma inédita cooperação entre o Estado, o mercado e toda a sociedade brasileira para promover a universalização acelerada da vacinação.

Propõe-se aqui que os governadores e prefeitos enviem aos seus respectivos Legislativos, de comum acordo com o governo federal e o Congresso Nacional, um projeto de lei que autorize as empresas privadas nacionais e internacionais que atuam no Brasil adquiriram vacinas já disponíveis no mercado mundial contra a Covid-19.

As vacinas compradas seriam divididas em duas partes. Uma destinada a vacinar os trabalhadores dessas empresas adquirentes e outra (cuja quantidade deve ser pactuada e ser superior às destinadas aos funcionários das empresas compradoras) seria doada ao Sistema Único de Saúde (SUS) para vacinar a população dos estados e municípios, seguindo a ordem dos grupos prioritários já definidos.

A compra de vacinas e sua aplicação gratuita aqui proposta visa salvaguardar a saúde e a vida do próprio trabalhador, garantir a continuidade da atividade econômica das empresas (a maioria delas amargando enormes prejuízos), descolapsar a rede hospitalar e atender o interesse social-humanitário da população, que clama por vacinas, enfrentando assim a tragédia sanitária, econômica e social que a sociedade brasileira está vivendo, com desdobramentos imprevisíveis.

Esta nossa proposta vai além da Lei 14.125/21, que autoriza o setor privado comprar vacinas, determina que estas doses adquiridas sejam integralmente doadas ao SUS enquanto estiver em curso a vacinação dos grupos prioritários e, após a conclusão dessa etapa, o setor privado poderá então ficar com metade das vacinas que comprar, e estas deverão ser aplicadas gratuitamente. Mas isso não está ocorrendo ou está muito lentamente e não atende de imediato aos funcionários das empresas compradoras.

Diferentemente desta Lei e de outras iniciativas legislativas (no Congresso Nacional e em algumas Assembleias) que permitem corretamente a compra pelas empresas privadas, mas restringe tal compra apenas a seus funcionários, nossa proposta é mais ampla e unificam as duas iniciativas citadas acima.

Em primeiro lugar, nossa proposta visa, salvaguardada a ordem dos grupos prioritários, a ampliação da cooperação público-privada na compra das vacinas para atender imediatamente aos trabalhadores dessas empresas compradoras, chefes de família (mulheres e homens) que diariamente se deslocam ao trabalho, correndo os riscos de contaminação no trajeto casa-trabalho-casa.

Em segundo lugar, garante às empresas manterem em pé suas atividades econômicas, pois contarão com seus trabalhadores vacinados e, por fim, que estados, municípios e setor privado, numa ação conjunta, acelerem a universalização da vacinação da população, vivifiquem as empresas e possibilitem a retomada gradual do crescimento econômico, do emprego, da renda.

Assim, a presente proposta, sem prejuízo das compras já anunciadas pelos governos federal, estaduais, municipais (e consórcios), fortalece a cooperação público-privada no Brasil em defesa da universalização acelerada da vacinação neste momento trágico de nossa história. É urgente e factível.

Sempre foi a hora suprema de o Brasil combater e eliminar o vírus que nos mata e nos envergonha mundialmente. Somos o centro de propagação e de vítimas fatais da Covid-19, cujo vírus em constante evolução produz novas e mais agressivas cepas, cuja propagação acelerada tende a abrir as portas do inferno caso se concretize a alarmante e sinistra previsão científica de Alexander Gintsburg, diretor do Centro Nacional de Investigação de Epidemiologia e Microbiologia (Instituto Gamaleya), responsável pela criação da Sputnik V, e Acadêmico da Academia Russa de Ciências.

Em entrevista ao site de notícias russas Izvestia, Gintsburg afirma que “a próxima etapa é a infecção de animais domésticos e de fazenda. E quando protegermos a humanidade com a ajuda de boas vacinas dentro de um ano, os animais de estimação estarão infectados nessa época e ninguém vai se livrar de seus amados animais de estimação.”.

Ou seja, um descontrole total da transmissão viral e a lentidão da vacinação combinadas tendem a contaminar (provavelmente com novas cepas) os animais e cujos impactos sanitários ainda estão em estudo. Imagine o impacto para o Brasil (para ficarmos nele) na produção avícola, suína e bovina. Um caos sanitário e econômico e social sem precedentes. O Brasil tem urgência na vacinação!

Os atos da nossa atual geração de brasileiros já estão registrados na história. A consciência cidadã e democrática do futuro narrarão como nós nos comportamos. As futuras gerações sentenciarão se fomos ou não capazes de unir Estado, mercado e sociedade civil em torno de um só único objetivo: salvar vidas!

A história julgará a todos nós, pelo que fizemos ou pelo que deixamos de fazer no enfrentamento do COVID-19. Ser impotente quando lhe falta arma é até compreensível, mas ser derrotado quando lhe falta à razão a boa política, é um crime, que não haverá perdão!

É possível combater e vencer a pandemia através da unidade de ação do Congresso Nacional, dos governos e legislativos estaduais e municipais, da comunidade científica, das empresas, da sociedade civil organizada, dos gestores e profissionais de saúde, da consciente participação da cidadania brasileira e da cooperação internacional.


*Eduardo Rocha (E-mail: edursj@yahoo.com.br) é economista e George Gurgel de Oliveira (E-mail: geogurgel1@gmail.com) é professor da UFBA e Vice Presidente da Câmara Brasil-Rússia de I & C e Turismo no Brasil.


Vinicius Sassine: Braga Netto assume Defesa com Exército ressentido e crítico a gestos de Bolsonaro na pandemia

Cúpula militar volta a se incomodar com o presidente após anúncio de uso das Forças Armadas como reforço à vacinação

O general da reserva Walter Braga Netto toma posse no cargo de ministro da Defesa nesta terça-feira (6), na presença de Jair Bolsonaro e com parte expressiva da cúpula do Exército ainda ressentida com a troca dos principais postos de comando efetuada pelo presidente na semana passada. A ação detonou a maior crise militar já vista desde a redemocratização.

Generais que integram o Alto Comando do Exército (a maior das três Forças Armadas) criticam em conversas reservadas o mais recente discurso de Bolsonaro sobre a pandemia.

No sábado (3), ao lado do novo ministro da Defesa, o presidente afirmou que as Forças vão começar a participar da aplicação de vacinas contra a Covid-19 e que os quartéis têm condições de colaborar nesse sentido.

No mesmo contexto da fala de Bolsonaro, Braga Netto e o ministro Marcelo Queiroga (Saúde) discutiram no fim de semana a participação dos militares na vacinação. Queiroga afirmou que essa era uma determinação do presidente.

A fala incomodou a cúpula do Exército porque, segundo militares em postos de decisão, a Força já colabora há tempos com a vacinação, em parceria com instituições e governos locais.

Militares também defendem que, após ser demitido por Bolsonaro, o general Edson Leal Pujol não deve sair pela porta dos fundos do comando do Exército.

A recente crise militar começou quando o presidente demitiu o general da reserva Fernando Azevedo e Silva do cargo de ministro da Defesa, no começo da tarde da segunda passada (29). Braga Netto, então, foi deslocado da Casa Civil da Presidência para o ministério.

No dia seguinte, diante de um movimento dos líderes das três Forças para entregar os cargos, Bolsonaro demitiu os comandantes. Na quarta (31), os novos comandantes de Exército, Aeronáutica e Marinha foram escolhidos e anunciados pelo ministro.

Até agora, não há informações sobre quando e como serão feitas as trocas de comandos. “A data e outros detalhes de passagem de comando do Exército serão definidos após a avaliação e adequação das agendas das autoridades envolvidas no evento, sendo oportunamente informada”, disse o Exército, em nota.

A cúpula da Força quer que a troca de comando ocorra de maneira formal e conforme protocolos militares de eventos do tipo, dentro das limitações impostas pela pandemia, e não sem nenhum tipo de cerimônia.

Em 11 de janeiro de 2019, Pujol assumiu o cargo com pompa, no Clube do Exército em Brasília, com o ritual militar adotado tradicionalmente nessas cerimônias. Seu antecessor, o bolsonarista Eduardo Villas Bôas, hoje abrigado em um cargo no Palácio do Planalto, compareceu e levou um discurso de transmissão do posto. Bolsonaro e diversas autoridades estiveram presentes.

Um consenso também se formou entre integrantes do Alto Comando do Exército: o general da ativa Eduardo Pazuello, demitido do cargo de ministro da Saúde, não tem condições de retornar à Força, muito menos de voltar a comandar uma tropa.

Pazuello foi ministro de junho de 2020 a março de 2021. Exerceu o cargo e permaneceu na ativa do Exército, com o aval de Pujol. Foi demitido em meio ao descontrole da pandemia –no momento da demissão, o país se aproximava de 2.000 mortes por dia; agora a quantidade diária está perto de 4.000.

O general e ex-ministro é investigado pela Polícia Federal por supostos crimes ao se omitir diante da anunciada crise de escassez de oxigênio em Manaus, em janeiro. Pazuello era investigado em inquérito no STF (Supremo Tribunal Federal).

Ao perder o foro especial, o caso foi remetido à primeira instância da Justiça Federal em Brasília. Um processo ainda não foi formalizado.

Na avaliação de generais do Alto Comando, o cargo exercido por Pazuello foi essencialmente político. Tanto que o general encampou a política de “tratamento precoce” que é o carro-chefe de Bolsonaro no combate à pandemia. Medicamentos como a cloroquina não têm eficácia comprovada para Covid.

A cloroquina movimentou as estruturas do Exército e da Aeronáutica. Com aval de Pujol e intermediação do então ministro da Defesa, Azevedo e Silva, o Laboratório Químico Farmacêutico do Exército fabricou 3,2 milhões de comprimidos da droga, a um custo de R$ 1,2 milhão. Aviões da FAB transportaram o medicamento a regiões isoladas na Amazônia.

Um ato do último dia 25, assinado por Pujol, “reverteu, a contar de 23 de março de 2021, ao respectivo quadro o general de divisão intendente Eduardo Pazuello”.

O ex-ministro ainda está sem destino definido. Antes de assumir um cargo da linha de frente do governo Bolsonaro, Pazuello comandou tropas da 12ª Região Militar, em Manaus.

Uma semana depois do começo da maior crise militar desde 1977, as relações ainda não estão integralmente pacificadas, ao contrário do que faz crer uma foto divulgada pelo Exército na quinta-feira (1º), dia seguinte ao anúncio do nome do novo comandante da Força, general Paulo Sérgio de Oliveira.

Aparecem na foto Oliveira, Pujol e Villas Bôas. É o registro de uma visita feita pelos dois primeiros ao ex-comandante, que ganhou um cargo de assessor especial no Planalto desde sua saída do comando do Exército.

Para tentar evitar um aprofundamento da crise, Bolsonaro decidiu respeitar critérios de antiguidade na escolha dos novos comandantes.

Oliveira era o terceiro mais antigo na lista de militares com quatro estrelas e na ativa. O novo comandante da Marinha, almirante Almir Garnier, era o segundo em antiguidade. E o brigadeiro Carlos de Almeida Baptista Júnior, o primeiro da Aeronáutica.

A posse de Braga Netto estava prevista para as 9h no Planalto, sem presença da imprensa e com transmissão pelos canais oficiais do governo federal.

Também participam da cerimônia formal, na mesma ocasião, mais seis ministros anunciados por Bolsonaro no último mês: Flávia Arruda (Secretaria de Governo da Presidência), general da reserva Luiz Eduardo Ramos (Casa Civil), Anderson Torres (Justiça e Segurança Pública), Carlos Alberto França (Itamaraty), André Mendonça (AGU) e Marcelo Queiroga (Saúde).


Thomas Piketty: Por que a esquerda não atrai mais as classes populares?

Por que a esquerda, que quer ser mais redistributiva, não seduz mais as classes trabalhadoras? Ela pode sair dessa armadilha? Para o economista Thomas Piketty, que acaba de co-liderar uma gigantesca pesquisa sobre comportamento eleitoral, a solução envolve uma virada radical

Por Pascal Riché

Uma tarefa monumental: uma equipe internacional de cerca de cinquenta pesquisadores começou a estudar o comportamento eleitoral em função da renda, herança, nível de educação, origens étnicas e religião (“Clivages politique et social inequalities”, editado por Amory Gethin, Clara Martínez- Toledano e Thomas Piketty, Seuil). É a primeira vez que a questão é abordada de forma tão sistemática, em um período tão longo (1948-2020) e em nada menos que cinquenta democracias. No Ocidente, a estruturação do voto por classe social desapareceu. Nesse processo, a esquerda tornou-se a festa dos graduados, o que o economista Thomas Piketty chamou de “a esquerda brâmane”. Ele volta para "the Obs" sobre essa evolução e suas consequências.

OBS. Quando as classes populares se afastaram da esquerda?

Thomas Piketty. Durante o período 1950-1980, na maioria das democracias ocidentais, o voto popular foi para os partidos social- democratas, o voto “burguês” para os partidos conservadores. E isso, seja qual for a medida usada para definir "popular": grau de instrução, renda, patrimônio. Os graduados do ensino superior votaram mais no conservador do que aqueles com bacharelado, que votaram mais conservadores do que aqueles com a patente, e assim por diante. Vemos essa estrutura em todos esses países, apesar das histórias políticas muito diferentes: o Partido Democrático dos Estados Unidos, o antigo partido da escravidão que se tornou o do New Deal, nada tem a ver com o Partido Trabalhista inglês, o alemão SPD ou os partidos socialistas e comunistas franceses ... Essa convergência, por três ou quatro décadas.

Gradualmente, entre os anos 1980 e 2000, uma nova fragmentação apareceu, tanto dentro dos grupos socialmente favorecidos quanto das classes trabalhadoras. No topo da escada, os que ganhavam mais continuavam a votar à direita, enquanto os graduados mais altos mudavam para a esquerda. Isso é o que chamei de “Esquerda Brahmin”.

Por que esse termo “Brahmin partiu”?

É um rótulo um pouco irônico. No sistema de castas indiano, os brâmanes são a classe intelectual, anteriormente a dos sacerdotes. É a dos professores, dos literatos, em oposição às castas mercantes (os Vaishyas) ou guerreiros (os kshatriyas). A esquerda brâmane refere- se aos eleitores mais instruídos que passaram a votar na esquerda. Oponho-me ao “direito mercantil”. Hoje, a elite empresarial dos Estados Unidos continua votando nos republicanos, enquanto os doutorandos votam 80% nos democratas. A curva, em relação aos diplomas, se inverteu.

No entanto, dizia-se na França, a esquerda representava a aliança "de trabalhadores e professores" ...

Felizmente, os eleitorados nunca são perfeitamente homogêneos. O fato é que nas décadas de 1960 e 1970, de forma esmagadora, os eleitores mais instruídos votaram na direita.

Dentro das classes trabalhadoras, novas divisões também surgiram ...

Sim, e sem dúvida em parte porque muitos eleitores se sentiram abandonados por essa esquerda do brâmane. Isso resultou em uma queda na participação eleitoral, entre as classes populares, em todos os países ocidentais. Entre os que continuaram votando, outras clivagens se tornaram dominantes, vinculadas a temas como imigração ou questões raciais nos Estados Unidos. O Partido Democrata nas décadas de 1960 e 1970 atraiu as classes trabalhadoras brancas e negras. Hoje, na base da escada, os negros (e latinos) votam esmagadoramente nos democratas, enquanto os brancos com baixa escolaridade mudaram para o Partido Republicano. E na Europa, a classe trabalhadora branca está mais disposta a votar na extrema direita, como o Rally Nacional na França.

A direita clássica não recuperou alguns desses eleitores?

Ou surgiram novos partidos de identidade, como na França, ou se formaram correntes anti-minoritárias dentro de partidos clássicos de direita, como nos Estados Unidos ou no Reino Unido. Na França, Les Républicains e até La République en Marche estão tentando recuperar esses eleitores multiplicando os sinais para eles.

A equivalência esquerda = povo e direita = burguesia ainda não desapareceu da mente das pessoas ...

Sim, o primeiro período foi tão longo que acabamos pensando que era a configuração “normal”. À esquerda, tentamos nos convencer de que vivemos um sonho que passou, que vamos voltar à fase anterior. Mas essas transformações são de fato muito profundas.

Os programas desta “esquerda brâmane” são, no entanto, mais redistributivos do que os dos partidos conservadores. Por que eles não atraem mais as classes populares?

Esses são desenvolvimentos complexos, e não estou afirmando que haja uma única explicação. O fato é que essas partes têm uma grande responsabilidade nesse desenvolvimento. Eles perderam muito em ambições redistributivas desde os anos 1980. Se quiserem reconquistar o eleitorado popular, em alguns casos isso significa virar as costas radicalmente ao que fizeram no passado. Pequenos ajustes não serão suficientes. Na década de 1990, foram os partidos de centro-esquerda (democratas sob Clinton, trabalhistas sob Blair, sociais-democratas sob Schröder, socialistas franceses sob Mitterrand) que foram mais longe nas reformas destinadas a desregulamentar os mercados financeiros, para liberar a circulação de capitais sem harmonização fiscal prévia ... Portanto, esses partidos eram vistos como os vencedores da “feliz globalização”. Na França, os socialistas, decepcionados com as políticas que haviam seguido em 1981, buscavam uma nova identidade política. Encontraram-no no projecto europeu, na moeda única, mas sem ter em conta as consequências desiguais de uma Europa unicamente centrada nas trocas de capitais e de bens, quando teria sido necessário prever previamente medidas fiscais e sociais. redistributivo.

Existem países nos quais a esquerda evitou essa armadilha?

Na verdade. Foi um movimento fundamental, em parte ligado à queda do comunismo e às desilusões que ele trouxe consigo. O projeto europeu foi realizado em uma ideologia competitiva proprietarista e desenfreada. E não acabou, porque empurramos o cursor muito longe: o que está acontecendo hoje com a EDF é consequência de decisões tomadas há dez ou vinte anos, e pode explodir toda a Europa ... tanto quanto a questão dos déficits públicos. Esta é uma questão muito delicada, porque corremos o risco de quebrar um serviço público que, para os franceses, funciona bem, com uma certa ética, e não gera lucros indevidos para os acionistas ... E ao mesmo tempo, estamos incapaz de agir contra Google, Amazon e outros, que têm um poder global muito mais ameaçador sobre as liberdades individuais e o conhecimento público. Para evitar a deslocação do FED, dificilmente existem outras soluções senão afastar-se das regras europeias, propondo novas. Não é porque cometemos erros no passado que temos que persistir por mais cinquenta anos. Sou muito favorável à Europa, mas com a condição de que siga um projeto social claramente definido. Este é o sentido do projeto “social-federalista” que ajudei a lançar com o “Manifesto pela democratização da Europa”, que Não é porque cometemos erros no passado que temos que persistir por mais cinquenta anos. Sou muito favorável à Europa, mas com a condição de que siga um projeto social claramente definido. Este é o sentido do projeto “social-federalista” que ajudei a lançar com o “Manifesto pela democratização da Europa”, que Não é porque cometemos erros no passado que temos que persistir por mais cinquenta anos. Sou muito favorável à Europa, mas com a condição de que siga um projeto social claramente definido. Este é o sentido do projeto “social-federalista” que ajudei a lançar com o “Manifesto pela democratização da Europa”, que coletou mais de 100.000 assinaturas.

Não podemos mais nos contentar em esperar a unanimidade dos países membros para avançar, é hipócrita demais e faz o mel dos partidos nacionalistas. Por exemplo, não podemos mais admitir sem fazer nada que certos países estão roubando parte de nossa base tributária. Se negociarmos com um país que não tributa os lucros de suas empresas, ou as emissões de carbono, devemos ser capazes de corrigir esse "déficit fiscal" por meio da tributação. Não teria nada a ver com protecionismo nacionalista à la Trump: seria, em uma visão universalista, um incentivo para puxar todos para cima.

É por medo de desfazer a Europa que os partidos de centro-esquerda estão desistindo de suas ambições redistributivas?

Sempre há escolhas. E é a não escolha que representa a ameaça de desfazer a Europa. Deste ponto de vista, não devemos ver o Brexit como um capricho britânico: é um fracasso europeu. A União não conseguiu convencer as classes populares britânicas, que votaram esmagadoramente pela sua saída. É claro que o atual modelo europeu trabalha a favor dos grupos mais ricos e móveis.

A esquerda não tem ambições, principalmente em termos de educação, favoráveis às classes trabalhadoras?

Historicamente, foi construído sobre a ideia de emancipação por meio da educação. Isso explica em parte por que os grupos sociais que mais se beneficiaram com essa emancipação se voltaram para ela. Mas existe uma hipocrisia, especialmente na França: o financiamento da educação é extremamente desigual, sem que a esquerda realmente seja movida por isso. Gastamos três vezes mais dinheiro, por aluno, em aulas preparatórias / grandes écoles do que em universidades, onde os alunos vêm de meios menos favorecidos. Nas escolas primárias e secundárias, a mesma coisa: quanto mais essas escolas acolhem crianças socialmente favorecidas, maior é o salário médio por professor. Porque os professores são mais experientes, há mais inquilinos e menos trabalhadores temporários. E ao contrário, os pequenos bônus do REP[rede de educação prioritária, ex-ZEP, nota do editor] não compensam nada. Damos a nós mesmos uma boa consciência. A esquerda brâmane contribuiu para o movimento histórico de massificação do ensino médio e superior, mas descansou sobre os louros, esquecendo a igualdade real.

Este Brahmin esquerdo trabalhou para seus próprios interesses?

É mais sutil do que isso. À medida que as classes populares param de votar e o eleitorado torna-se mais educado, os partidos adaptam seus programas para apelar a eles. O ovo e a galinha ... Procuro soluções, não culpa.

Chegamos ao ponto em que um think tank como Terra Nova explica em 2011 em uma nota que o futuro da esquerda são agora os graduados, os jovens, as mulheres ... mas não mais as classes trabalhadoras.

Sim, é problemático. Faltou imaginação, pela qual todos somos responsáveis, cidadãos, jornalistas, economistas, intelectuais. O colapso do pensamento se agravou após a queda do Muro, mesmo quando novos desafios relacionados à globalização e à educação teriam exigido uma nova agenda igualitária. Paramos de pensar em mudar o sistema econômico. Mas depois de um choque dessa magnitude, não é anormal que a reconstrução intelectual demore algum tempo. Felizmente, o processo começou após a crise financeira de 2008, em torno de ideias de socialismo democrático, socialismo ecológico, socialismo feminista. Os movimentos juvenis deixam você otimista.

Esta esquerda mais radical, que atravessa as lutas ecológicas, anti-sexistas, anti-racistas e anti-islamofobia, não é tão órfã das classes populares?

Para evitar isso, temos que colocar a questão da redistribuição, igualdade e propriedade de volta no centro. Não podemos transformar o sistema económico, seja para resolver os problemas climáticos, as desigualdades ou a discriminação, sem chegar ao cerne da questão da difusão da propriedade e da partilha de poder entre as partes interessadas. Não basta atribuir novas missões socioambientais às empresas se o poder continuar nas mãos dos acionistas. Vimos isso recentemente com a saída de Emmanuel Faber da Danone, perseguido por fundos de investimento. Certamente havia dois representantes de funcionários no conselho de diretores da Danone, mas eles eram dois em dezesseis! É isso que precisa ser mudado. Se eles tivessem sido oito em dezesseis, eles poderiam ter feito alianças com alguns dos acionistas. Podemos nos inspirar na cogestão alemã ou sueca, ao mesmo tempo em que aprimoramos esse modelo.

A vitória de Emmanuel Macron é a culminação desse fenômeno de esquerda Brahmin?

La République en Marche fez uma síntese espetacular entre a esquerda brâmane e a direita mercantil. Agregava os grupos mais privilegiados, por renda, herança ou diplomas, de direita e de esquerda. Emmanuel Macron criou a base eleitoral mais favorecida de toda a história eleitoral francesa. Essa fusão das elites é o que Bruno Amable e Stefano Palombarini chamam de “bloco burguês” (2). Mas quanto tempo esse bloco vai durar?

O senhor defendeu uma primária na esquerda em 2017. O processo indicou um candidato socialista, Benoît Hamon, que fez apenas 6% nas eleições presidenciais. Obviamente, as classes populares não foram seduzidas pelo debate das primárias. Devemos reeditar?

O desencanto das classes populares com a esquerda é tão grande que muitos anos serão necessários para acabar com ele. Mas as alternativas não são muito mais sólidas: a direita vai muito mal, e o “bloco burguês” está em uma situação instável e frágil, como mostrou a crise dos “coletes amarelos”. Ainda acho que se Jean-Luc Mélenchon tivesse participado das primárias de 2017 pela esquerda, ele poderia ter escalado para o segundo turno. Se houvesse uma primária hoje, interessaria ainda mais eleitores. Mélenchon poderia vencer e, nesse caso, eu o apoiaria. Precisamos de respeito à esquerda: cada um dos campos está preso à ideia de que detém a verdade, em particular sobre a questão europeia, enquanto cada um tem algo a contribuir.

O desaparecimento da estrutura “classista” da política, muitas vezes em favor da identidade e das divisões raciais, diz respeito apenas ao Ocidente?

Sim, porque durante esse tempo, as democracias no resto do mundo tendem a se desenvolver com base na classe social. Essa é uma das lições de nosso livro, e vemos esse fenômeno em países tão diversos como Nigéria, Tailândia, Brasil. Mesmo na Índia, onde o peso das religiões e castas permanece importante, é impressionante notar que as classes populares hindu e muçulmana votam nos mesmos partidos progressistas. Na Índia, os brâmanes votam na direita, como todas as classes privilegiadas! Esta é uma lição para nós. Os desvios de identidade que vemos na Europa ou nos Estados Unidos não são inevitáveis. Eles provavelmente são apenas transitórios. Porque as verdadeiras questões políticas são acima de tudo sociais e econômicas. Em uma democracia organizada ao longo das classes, há grãos para moer, há uma saída política possível. Em uma democracia que se organiza em torno de eixos identitários, por outro lado, a única saída é que um campo acaba derrotando o outro, daí polêmicas estéreis como a que acaba de ocorrer na França sobre o chamado islamo -leftismo. A boa notícia do livro é que nos países do Sul que têm fama de serem atravessados por indecifráveis correntes étnicas ou tribais, está em curso um processo de "classificação" do conflito político. As coalizões são formadas em torno dos interesses comuns das classes populares, que serão sempre mais fortes do que as tensões étnicas ou religiosas, porque estas não produzem nada, exceto o confronto estéril.

Em uma democracia que se organiza em torno de eixos identitários, por outro lado, a única saída é que um campo acaba derrotando o outro, daí polêmicas estéreis como a que acaba de ocorrer na França sobre o chamado islamo -leftismo. A boa notícia do livro é que nos países do Sul que têm fama de serem atravessados por indecifráveis correntes étnicas ou tribais, está em curso um processo de "classificação" do conflito político. As coalizões são formadas em torno dos interesses comuns das classes populares, que serão sempre mais fortes do que as tensões étnicas ou religiosas, porque estas não produzem nada, exceto o confronto estéril. Em uma democracia que se organiza em torno de eixos identitários, por outro lado, a única saída é que um campo acaba derrotando o outro, daí polêmicas estéreis como a que acaba de ocorrer na França sobre o chamado islamo -leftismo. A boa notícia do livro é que nos países do Sul que têm fama de serem atravessados por indecifráveis correntes étnicas ou tribais, está em curso um processo de "classificação" do conflito político. As coalizões são formadas em torno dos interesses comuns das classes populares, que serão sempre mais fortes do que as tensões étnicas ou religiosas, porque estas não produzem nada, exceto o confronto estéril. daí polêmicas estéreis como a que acaba de acontecer na França sobre o chamado islamo-esquerdismo.

A boa notícia do livro é que nos países do Sul que têm fama de serem atravessados por indecifráveis correntes étnicas ou tribais, está em curso um processo de "classificação" do conflito político. As coalizões são formadas em torno dos interesses comuns das classes populares, que serão sempre mais fortes do que as tensões étnicas ou religiosas, porque estas não produzem nada, exceto o confronto estéril. daí polêmicas estéreis como a que acaba de acontecer na França sobre o chamado islamo-esquerdismo. A boa notícia do livro é que nos países do Sul que têm fama de serem atravessados por indecifráveis correntes étnicas ou tribais, está em curso um processo de "classificação" do conflito político. As coalizões são formadas em torno dos interesses comuns das classes populares, que serão sempre mais fortes do que as tensões étnicas ou religiosas, porque estas não produzem nada, exceto o confronto estéril.

Thomas Piketty é diretor de estudos da École des Hautes Etudes en Sciences sociales e professor da Escola de Economia de Paris. É codiretor do World Inequality Lab e autor dos best-sellers internacionais: “Capital in the 21st Century” (Seuil, 2013) e “Capital et ideologie” (2019). Ele co-dirigiu “Divisões políticas e desigualdades sociais” (2021). Os dados para este livro estão online: https: //wpid.world/fr/


Paulo Fábio Dantas Neto: Carolinices sobre solução política de uma não questão militar

Na conjuntura crítica do Brasil atual, uma coluna semanal sobre política já corre o risco de deixar o tempo passar e, como uma Carolina tarda, mal ver a banda tocar. Se deixar de circular uma semana, aí então é que a fila anda e a banda toca longe da sua janela. A política brasileira tornou-se matéria volátil, seu relógio se perde nos minutos, enquanto a força desestruturadora da pandemia parece absorver para si as horas todas, assumindo, em paradoxo com seu andamento trágico, uma regularidade própria de rotinas de uma estrutura. Após duas semanas, eis-me tentando juntar, como num quebra-cabeça, fragmentos de fatos para montar um texto que comente alguma vida passada nessa rotina de morte.

No meio tempo entre a coluna anterior e essa, Jair Bolsonaro, ao lado de oferecer, ao Presidente da Câmara dos Deputados, a secretaria ministerial do seu governo (mais um anel que talvez desejasse manter nos dedos), perfilou - ou ajustou controles sobre - os Ministérios da Justiça e da Defesa, a AGU e a Polícia Federal, além do que já tem sobre os órgãos de informação. Se houvesse conseguido emplacar comandantes amigos nas forças armadas, estaria completo o desenho de um misto de bunker e trincheira para uma luta decisiva que acalenta em seus delírios. Restaria conseguir produzir a centelha de desordem pública que persegue, meses a fio, para justificar uma virtual proposição de estado de sítio, ou algo equivalente, com respaldo de comandos militares. Hoje o Congresso não o concederia. Mas num hipotético cenário de violência miliciana nas ruas, insubordinação nas PMs combinada com caos sanitário, povo amedrontado, pedindo ordem, o Congresso e o STF poderiam ficar emparedados. Assim parecem pensar os que respaldam os movimentos de Bolsonaro, ou os que hesitam em repeli-los.

O plano de Bolsonaro não pode mais ser segredo para ninguém que observe a cena política e social. Pode dar certo, em algum momento? Especialistas em assuntos militares afirmam que não e devem ser escutados com o respeito e a reverência que merecem. Intuo, porém, que não sabemos, apesar da reiteração obsessiva de uma mesma tática comprometer a estratégia bolsonarista, que se torna previsível pelas defesas adversárias, marcação cerrada feita por instituições que ele está obrigado a respeitar, mas ataca e organizações da sociedade que ele tem obrigação de governar, mas desgoverna.

Seu fracasso na área militar é, como sabemos, avaliação praticamente unânime. A grande imprensa, assim como a pequena, respalda a tese de que os militares cumprem seu papel institucional e ponto. Uma pergunta resta sem resposta: quem afinal escolheu (refiro-me a pessoas de carne e osso e não a entidades sobre-humanas que agiriam sozinhas) o novo comandante do Exército? Bolsonaro é que não foi. Interditaram-no numa prerrogativa sua? O desfecho não apenas revela que o capitão foi “contido” pelos generais na ativa, mas o desmoraliza e o leva a ver estrelas, mostrando quem manda nessa seara. Pode-se chamar de autonomia o que parece mais soberania da corporação na designação da sua cúpula? Penso que é complicado interpretar o ocorrido como mero movimento de despolitização e afastamento das FFAA da política. Pedindo vênia aos especialistas, suspeito que possa ser meia verdade persuasiva.

É verdade que a cúpula militar reagiu à politização tentada por Bolsonaro. Mas de onde provém a convicção de que, ciosa da profissão, descarta assumir qualquer atitude política? É obvio – e não precisa entender de militares para admitir - que faltam sintonias materiais e mentais entre, por exemplo, os contextos nacional e mundial de hoje e o do instável período que foi da promulgação da Constituição de 1934 ao autogolpe do Estado Novo, perpetrado por Getúlio Vargas. O contraste de época desaconselha analogia explícita entre a postura atual da cúpula da hierarquia militar e o antigo lema do General Góis Monteiro que, em vez de política “no exército”, preconizava, então, a política “do exército".

Golpe militar não esteve, pois, nem está na pauta das especulações razoáveis. O que causou receio, nessas duas últimas semanas, assim como em outros momentos, durante o atual governo, foi a hipotética chance de um autogolpe com respaldo militar, baseado num cenário de desordem e violência fomentadas.  Essa nuvem dissipou-se, no momento. Mas não é irrazoável observar que ganhou potência e visibilidade uma expansiva política corporativa dos militares, alimentada pelo governo Bolsonaro e traduzida em fortes pressões orçamentárias. Conexões entre isso e a aproximação de uma eleição presidencial, no bojo da qual se discutirá prioridades em ambiente de grave crise social não devem ser subestimadas.  É nesse contexto que é relevante interpretar a nota do agora ministro da Defesa, Gal. Braga Neto, publicada na véspera da data do golpe de estado de 1964, a título de celebrar seus 57 anos.

Braga briga com a História quando interpreta o período de 1964 a 1979 como de pacificação nacional.  Afirma que um movimento de cunho popular depôs um governo ligado a uma ideologia violenta e que em seguida as forças armadas foram chamadas a pacificar e reconstruir o país. Levaram 15 anos fazendo isso até que o pacto da anistia, de 1979, teria dado maioridade democrática ao país. Inegável o caráter pacificador daquela lei e seu papel indutor da transição democrática que se seguiu, por uma década. Mas na historiografia de Braga, o general Figueiredo não foi o último general-presidente num regime autoritário, mas o primeiro presidente dessa democracia em novo patamar. O marco inaugural desse patamar é a ascensão do seu governo, não o colégio eleitoral de 1985, muito menos a Carta de 88.

Está, portanto, claro, que não me refiro à discussão sobre 1964, especificamente. Seria malhar em ferro frio, pois é sabido que os militares, em geral, não admitirão que foi um golpe de estado. Não tenho quanto a isso, preocupação historiográfica, muito menos doutrinária, mas política. Uma coisa é a polêmica sobre 64. Muitos liberais apoiaram e participaram do movimento. Foi um golpe, mas não estava escrito nas estrelas que ia dar em ditadura, como deu.  Outra coisa é celebrar a ditadura que ocorreu por opção política, inclusive sua radicalização, depois de 1968. A nota de Braga chama essa noite quase fascista de pacificadora. A nota está se identificando não com as forças armadas, genericamente, mas com a “linha dura”, para a qual 1968 foi continuidade natural e necessária de 1964.

Essa narrativa é politicamente inaceitável por democratas porque não é só erro historiográfico. Prevalecendo, apontaria a uma negação da política que construiu a democracia que temos. Como sabemos e sentimos, com a eleição de Bolsonaro os fantasmas de 1964 voltaram a estar presentes, não importa se são delírios. Quando fantasmas guiam pessoas e as fazem se posicionar contra ou a favor de algo relevante, eles passam a compor uma realidade em aberto, sinalizando que o julgamento da História não está tão fechado assim. A eleição de alguém como Bolsonaro, dizendo abertamente o que disse na campanha, sinaliza, ela mesma, algo diverso de um assunto encerrado.

Penso que mesmo a omissão diante dessa narrativa já é um equívoco. Chamar essa cantilena extremista de moderada é equívoco maior ainda. Há como abordar esse ponto de modo prudente, afirmando que o marco inaugural, jurídico e político, da nossa democracia é a Carta de 88, sem com isso desqualificar a importância da anistia para que essa obra se tornasse concreta. Imprudente é nos acomodar a uma conveniência tática que, nesse caso, levaria a sociedade para longe do seu porto seguro, que é a defesa intransigente da democracia, não deixando sem resposta qualquer tentativa de usar esse termo para se referir ao que, de fato, foi ditadura. A democracia vive de suas instituições, de seus procedimentos e também do grau de crença, de convicção democrática da sociedade. Esse governo - e não apenas Bolsonaro - tem rebaixado esse grau, borrando as fronteiras entre ditadura e democracia. Essa nota foi mais um ato dessa sabotagem, dissimulado por um palavreado educado e por um verniz racional que não deixam de merecer reconhecimento, em meio à barbárie nossa de cada dia. Mas não podem iludir.

É fato que, depois dos fatos da última semana, o rio ficou mais navegável. Então, não vai ter golpe de qualquer espécie. Ficamos combinados assim.

Noves fora conversa de golpe, há um bolo fermentando contra a impolítica do presidente e ainda não dá para saber seu sabor. Dá para ver, porém, que agora a coisa anda em novos trilhos. Em vez de proposições de impeachment e CPIs, feitas por parlamentares ou grupos isolados e não previamente articuladas a contento, há um coro externo crescente pressionando o Congresso para que tome providências, mas ninguém se adianta dizendo quais seriam elas. Isso deixa rédeas sob manejo das suas lideranças, para negociarem e resolverem. Se e quando a "providência" vier à tona, já poderá ser na forma de ação concreta. Em certos momentos de alta na temperatura política, não se pensa tanto em risco de golpe quanto numa contagem regressiva para lançar Bolsonaro ao espaço. Como?  Passagem pacífica do bastão ou guerra do fim do mundo? Mal comparando, entre um e outro extremo, vamos ver se Bolsonaro, que fala ao mesmo tempo como proclamador de uma república particular e refundador de uma imaginária ordem passada, vai concluir sua farsa simulando Deodoro ou Conselheiro.

A jornalista Rosângela Bittar especulou sobre uma etapa intermediária antes da “solução final” da farsa.  A elite política da democracia representativa conserva-se atenta para preservar regras e limitações de horizonte do jogo político. Traduz para um contexto democrático um saber herdado de outros tempos. O mineiro Rodrigo Pacheco anda ensaiando a performance de um Campos Sales do sufrágio universal.

A recente reinserção de Lula no embate político direto, mergulhado na arena plebiscitária que é a praia que ele disputa com Bolsonaro, adicionou um fermento potente ao bolo. Em terreno análogo, peças publicitárias difundidas em rede têm produzido motes e bordões, batendo na carestia, no desemprego e na tragédia sanitária e tratando com humor e ironia o negacionismo e o nepotismo presidencial. O Congresso, dessa vez, apareceu como propositor e autor do auxílio emergencial. Bolsonaro e seu governo, até aqui, não contabilizaram lucros políticos, apenas responsabilidade pelo valor irrisório. O meio político - partidos e lideranças que vão de Pacheco, FHC e Temer, até Lula, passando pelos governadores e pré-candidatos - está empenhado nas vacinas, tendo esse, felizmente, se tornado um campo de cooperação, embora tensa, com o governo federal. O centrão pressionou e derrubou Pazuello, tentou emplacar uma ministra de fato e deu tom de última chance quando o presidente recusou e escolheu outro. E o Judiciário não perde chance de estreitar o espaço de Bolsonaro.

Tudo isso ocorre e entra aos poucos em catalisação. O conjunto produz efeito, tanto que a rejeição a Bolsonaro e a desaprovação a condutas do seu governo crescem continuamente, consistentemente, embora de modo incremental. Isso é comum em democracias, regimes políticos em que as políticas públicas dependem de percepções contraditórias do conjunto de uma sociedade complexa e não apenas dos seus segmentos mais informados, politizados, organizados e, por isso, mobilizados e influentes.

Por outro lado, como o ensaísta Luiz Sergio Henriques bem frisou em artigo recente, um político como Bolsonaro sempre tem uma fonte inesgotável de recursos retóricos, porque não tem compromisso algum com a realidade e sequer com o que ele próprio disse ontem, quanto mais com o que se possa falar e fazer contra ele, hoje ou amanhã. Seu ativismo é e será um dado da realidade, mesmo se e quando ele estiver a minutos da derrota final. Jamais o veremos se calar ou passar recibo de derrotado. Foi assim com Trump, com ele tende a ser também.

*Cientista político e professor da UFBa


Demétrio Magnoli: Braga Netto, historiador

A ordem do dia alusiva ao golpe de 1964 foi assinada por Walter Braga Netto, um ministro da Defesa que acabava de ser nomeado em substituição a seu camarada de farda, Fernando Azevedo e Silva, demitido por recusar a subordinação das Forças Armadas aos delírios subversivos de Jair Bolsonaro. No texto, o general vestiu o manto do historiador para, supostamente, inscrever os “eventos ocorridos há 57 anos” no “contexto da época”.

Sabe-se que a ordem do dia estava pronta, assinada por Fernando Azevedo, e foi deliberadamente adotada por seu sucessor para exibir uma imagem de unidade dos comandantes militares. Por isso, deve ser lida como um consenso das cúpulas das Forças Armadas. Seu aspecto mais notável é a tentativa implícita de enterrar o “movimento de 1964” no arquivo do passado.

O general-historiador aprecia o conceito de continuidade e a ideia de harmonia. No texto, o golpe de 31 de março emerge na moldura da Guerra Fria, como derivação longínqua da aliança de guerra contra o nazifascismo, que teve a participação do Brasil. As Forças Armadas não aparecem como agentes principais da derrubada do governo, mas como componente de uma mobilização nacional que abrangeu a “imprensa”, “lideranças políticas”, “igrejas”, o “segmento empresarial” e “setores da sociedade organizada”. Por essa via, a virtude — ou a culpa — fica amplamente distribuída.

Um golpe de Estado constitui, pela sua natureza, uma cisão. Mas a narrativa de Braga Netto exclui a noção de ruptura, tanto para trás quanto para frente. De 1964, o texto salta à Lei de Anistia, de 1979, “um amplo pacto de pacificação”, desviando dos “anos de chumbo” da tortura, que se estenderam até 1976. A acrobacia converte o regime militar em prelúdio necessário das “liberdades democráticas que hoje desfrutamos”. Ditadura produz democracia — a tese paradoxal forma o núcleo do argumento do general.

O exercício historiográfico faz parte da operação política de confrontação dos chefes militares com Bolsonaro. As Forças Armadas declaram-se, hoje, “conscientes de sua missão constitucional” de “defender a Pátria” e “garantir os Poderes constitucionais”. Há, aí, convenientemente oculta, a crítica do golpe de 1964 e, quase explícita, a rejeição dos desvarios golpistas presidenciais. Braga Netto inclina-se à doutrina adotada pelos comandos militares que, desde o processo de abertura, riscaram uma linha no chão separando os quartéis da política.

Na última frase da ordem do dia, tudo que era sólido desmancha no ar. Depois da constatação do óbvio (“o movimento de 1964 é parte da trajetória histórica do Brasil”), surge uma conclamação: “Assim devem ser compreendidos e celebrados os acontecimentos daquele 31 de março”. Nela, a conjunção aditiva liga posturas essencialmente diferentes e expõe a fraude.

O historiador busca compreender o passado, mas nunca o celebra. A celebração do golpe militar é um ato político — e, no caso, um gesto condenável, pois nossa Constituição protege a ordem democrática. Atrás do manto que cai, avulta a figura de um agente político. Os militares que servem a Bolsonaro, inclusive os da reserva, reintroduzem a política nos quartéis — mesmo quando afrontam a vontade presidencial.

Toda instituição tem seus lugares de memória. Duque de Caxias e o Marquês de Tamandaré, patronos do Exército e da Marinha, remetem à Guerra do Paraguai. Eduardo Gomes, patrono da Força Aérea, remete à Segunda Guerra Mundial. Por que os militares insistem em celebrar o golpe de 1964, mesmo que sob o pretexto de inscrevê-lo no “contexto da época”?

O governo Bolsonaro representa, entre tantas coisas deploráveis, um projeto de revisionismo histórico. O presidente, um capitão excluído do Exército por indisciplina, assim como seu círculo de místicos extremistas, ergue contra a Constituição o espectro da ditadura militar. A geração atual de militares não participou dos desmandos do regime instituído em 1964. Inexiste um motivo legítimo para que seus expoentes manchem suas biografias associando-se ao revisionismo bolsonarista. Não celebrem um parêntesis sem glória.


José Eduardo Faria: Bolsonaro e a banalidade do mal

Não foi só a maneira desabrida e insensata com que o presidente Jair Bolsonaro agiu com o ministro da Defesa e com os comandantes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica que chama a atenção. Se for correto o que a imprensa divulgou, também é digna de nota a orientação que o presidente deu ao novo ministro, obrigando-o a anunciar aos comandantes militares que estavam demitidos, antes que eles pudessem colocar o cargo à disposição.

Bolsonaro e os antigos chefes militares, em 2018

O objetivo do inquilino do Planalto, como os jornais informaram, era mostrar força, de um lado humilhando os três comandantes e, de outro, reforçando a narrativa de que o presidente é quem manda. Ainda que essa narrativa seja aceita como válida apenas por convertidos, pessoas banais que aceitam absurdos como normalidade, o problema está nas tentativas cada vez mais evidentes do presidente de fazer dos militares rigorosos cumpridores de suas ordens e determinações, mesmo que elas transcendam restrições constitucionais.

Ainda segundo a imprensa, as três demissões teriam sido justificadas pelo Planalto com base no fato de que, por considerarem as Forças Armadas uma instituição de Estado, seus comandantes não as estariam alinhando aos interesses políticos do chefe do Executivo. Reiteradamente alertando que, pela Constituição, o presidente da República é o “comandante em chefe” das Forças Armadas, Bolsonaro passou a chamá-las de “meu Exército”. E, com isso, também começou a insinuar que poderia acioná-lo a qualquer momento e para qualquer coisa — desde impedir os governadores de implementarem políticas de isolamento até afrontar a principal corte do País, acusando-a de restringir prerrogativas presidenciais.

Com o retorno das agressões de Bolsonaro às instituições democráticas, a questão agora é saber como se comportarão os oficiais do “seu” Exército, ou seja, se aceitarão fazer tudo o que lhes for pedido ou se respeitarão não apenas a Constituição mas, igualmente, a corte encarregada de dar a última palavra no controle da constitucionalidade.  A questão não é simples, uma vez que, de um lado, ela envolve uma cadeia de comando que começa no Palácio do Planalto e vai descendo os níveis hierárquicos do aparato militar. E, de outro, implica o risco de cumprimento de ordens absurdas, que atendem mais aos objetivos eleiçoeiros de um governante do que ao interesse público e a segurança — na conformidade da ordem legal — do País.

São ordens que, dependendo do modo como forem transmitidas e cumpridas, conforme se viu na demissão dos comandantes das Forças Armadas, podem corroer os próprios valores éticos das corporações militares das Forças Armadas. Como não se espantar, por exemplo, com um general intendente que, aceitando chefiar o Ministério da Saúde sem ter formação especializada na área, cumpriu servilmente ordens agravantes da maior crise de saúde pública já vivida pelo país? “É simples assim: um manda e outro obedece”, afirmou esse general que, de tanto obedecer ordens presidenciais tomadas sem qualquer critério técnico, exacerbou a pandemia, em vez de detê-la, motivo pelo qual hoje está sendo acionado judicialmente.

Eichmann em Jerusalém

Essa questão já foi por mim discutida num artigo recente, neste mesmo espaço[1], no qual analisei as explicações dadas por esse mesmo general com o objetivo de eximir o governo Bolsonaro de qualquer responsabilidade sobre a escassez da oferta de oxigênio em Manaus. Em nenhuma de suas explicações ele relacionou as ordens absurdas que recebeu com os milhares de brasileiros mortos por sufocamento. Os argumentos que retomo para analisar os militares com o perfil desse general baseiam-se na análise que a filósofa alemã Hannah Arendt (1906-1975) fez há mais de meio século, no plano ético, de um dos oficiais de média patente que serviram ao regime nazista.[*] Trata-se de Adolf Eichmann, um tenente-coronel que recebeu a missão de administrar a logística das deportações em massa para os campos de concentração localizados nas zonas ocupadas pelas forças alemãs no leste europeu, durante a segunda guerra.

Eichmann estava, assim, situado no meio da cadeia de comando no setor da máquina nazista encarregado da “solução final” da “questão judaica” — o plano de remoção, por assassinato, da população judaica que vivia naquelas zonas. Por um lado, ele cumpria ordens. Por outro lado, as ordens que dava e as medidas que tomava, levando milhões de pessoas a diferentes formas de tortura e à morte, eram por vez balizadas por uma série de outras determinações emanadas de seus superiores.

Com o fim da guerra e a derrota da Alemanha, Eichmann fugiu para a Argentina. Muitos anos depois, foi sequestrado pelo serviço secreto israelita e levado para Jerusalém, onde foi julgado criminoso e condenado a pena de morte por enforcamento, em 1961. Convidada a cobrir o julgamento para a revista New Yorker, Arendt, que era judia, surpreendeu ao escrever cinco artigos na contramão dos que acusavam Eichmann de ser criminoso por ser nazista. Apesar de este ter sido o ponto mais abordado pelos jornalistas que cobriram o julgamento, Arendt concentrou a atenção na análise de pessoas incapazes de pensar por si e que, quando integram um aparato de poder, agem apenas como funcionários diligentes. Ou seja, cumprem ordens, sem discuti-las nem julgá-las, mesmo que sejam para matar inocentes.

Nesse sentido, a banalidade do mal decorreria não de uma premeditação da violência, mas, sim, da mediocridade implícita na incapacidade de reflexão que se instala em espaços institucionais. Eichmann não foi perverso, doentio, enraivecido e antissemita. Pelo contrário, destacava-se por ser educado e um homem comum — “assustadoramente normal”, dizia Arendt. Contudo, era incapaz de distinguir o certo e o errado. De resistir às ordens que recebia e cumpria. De avaliar moralmente o que de fato fazia e as consequências trágicas de seus atos administrativos. Apenas se orgulhava de executar corretamente suas tarefas. No fundo, foi um precursor do “simples assim — um manda, outro obedece”.

Faltava a Eichmann não somente a capacidade de se colocar no lugar do outro, de interagir com a subjetividade de outra pessoa, mas, igualmente, a capacidade de pensar, afirmava Arendt. Seu problema não era a ignorância. Era, isto sim, ter internalizado o senso de que o que fazia era correto e com base na lei — o que, em decorrência, não lhe permitia ver os efeitos brutais de suas decisões, revelando assim o quão desconectado estava do sentido do que é ser humano.

Hannah Hrendt

Desse modo, sua dimensão cognitiva e moral foi corroída pela visão limitada e empobrecida de quem cumpre ordens irrestritamente. Quando um burocrata não assume a iniciativa própria de seus atos ou quando uma multidão numa sociedade massificada se revela incapaz de fazer julgamentos morais, aceitando e cumprindo ordens sem questionar, distanciando-se assim de sua essência humana, o mal se torna banal, afirma Arendt. “Do ponto de vista de nossas instituições e de nossos padrões morais de julgamento, essa normalidade era muito mais apavorante do que todas as atrocidades juntas, pois implicava […] um novo tipo de criminoso, […] que comete seus crimes em circunstâncias que tornam praticamente impossível para ele saber ou sentir que está agindo de modo errado”, concluía.

A ideia de banalidade do mal, desenvolvida por Hannah Arendt e por mim já utilizada para analisar o militarismo brasileiro contemporâneo, ajuda a interpretar o ocorrido com a demissão dos comandantes das Forças Armadas. Evidentemente, são distintos os contextos históricos dos males cometidos pelo nazismo, de um lado, e, de outro, o da profusão de decisões intempestivas, inconsequentes, insensatas e irresponsáveis do chefe do Executivo, um tenente medíocre e inconsequente reformado no posto de capitão por ser um “mau soldado”. Mas em ambos os contextos se visualiza a banalização do mal por impulso político e enviesamento ideológico. Igualmente, em ambos fica evidenciado como essa banalidade retira a humanidade dos indivíduos, tornando-os incapacitados de compaixão pelo próximo.

A exigência de Bolsonaro de que os comandantes das Forças Armadas se alinhem politicamente ao que chama de “meu Exército”, a ponto de afrontar governadores responsáveis que adotaram políticas de isolamento social, evidencia absoluta falta de compaixão com os recordes de mortos pela Covid que têm sido batidos diariamente. Também revela um desprezo pela existência humana e dá a medida da importância e da atualidade de Hannah Arendt. Notadamente quando ela afirma que o mal tem a ver com a liberdade de escolha do indivíduo, não sendo uma característica específica dele.

Pelo que se tem visto desde sua posse, Bolsonaro quer ao seu redor militares com perfis à sua imagem e semelhança — ou seja, reveladoras do ponto a que a barbárie humana pode envolver os indivíduos mais banais. Diante disso e da permanente tentativa de minar o império da lei com base nas mais toscas e torpes justificativas, só resta esperar que a cúpula das Forças Armadas seja capaz de evitar a corrosão do ethos da instituição a um ponto sem retorno, o que levará a democracia arduamente conquistada após a ditadura militar de 64 a ceder espaço para mais uma aventura autocrática. Na última tentativa de Bolsonaro de pressionar e enquadrar as Forças Armadas, a cúpula teve sucesso e o conteve. Até quando conseguirá resistir a novas ofensivas autocráticas?

Referência:

[1] “O ethos das Forças Armadas e a banalidade do mal”, Estado da Arte, 02/02/2021 (https://estadodaarte.estadao.com.br/ethos-ffaa-jef).

[*] Cf. Hannah Arendt, Eichmann in Jerusalem: a report on the banality of evil, Peguin Books, New York, 1963.

(Originalmente publicado em Estado da Arte, em 03/04/2021; https://estadodaarte.estadao.com.br/jef-banalidade-mal-planalto/ )


O Estado de S. Paulo: Bolsonarismo usa covid-19 para desestabilizar PMs e governos estaduais

Objetivo seria disputa pela Segurança Pública nos Estados; ataques às ações das polícias cresceram em 2021 e são monitorados pelos comandos das corporações

(Marcelo Godoy e Pedro Venceslau)

Quando a Polícia Militar de São Paulo anunciou que a vacinação para seus integrantes ia começar no dia 12 de abril, no mesmo dia todos os posts publicados pela corporação em uma rede social foram atacados por bolsonaristas, que afirmaram: “Vocês são covardes! Estão batendo em trabalhadores, seus capachos do calcinha apertada”. Outro bolsonarista, crítico à vacina Coronavac, do Instituto Butantan, escreveu: “Fico em dúvida se comemoro. Orações para vocês”.

O ataque às polícias nas redes sociais com informações falsas se multiplicaram em 2021, transformando a atuação da extremadireita no principal fator de instabilidade política para as forças de Segurança. “Já faz algum tempo que estamos sofrendo estes ataques. Alguns perfis lançam vídeos de abusos policiais de outros contextos ou mais antigos e fazem parecer que são atuais e contra a população”, disse o coronel Robson Cabanas Duque diretor da Comunicação da PM.

O fenômeno não atinge apenas a polícia paulista e o governador João Doria (PSDB), mas também as polícias de outros Estados, em que os governadores adotaram medidas de restrição à circulação de pessoas para controlar a pandemia de covid-19, como a Bahia e o Rio Grande do Sul. Também são alvo os governadores adversários do presidente Jair Bolsonaro, como os do Piauí e do Maranhão.

“Tem digitais bolsonaristas em questões locais. Eles se aproveitam para uso politiqueiro. A raiva dele (Bolsonaro) é não poder demitir ou prender governadores. Então tenta sabotar”, disse o governador Flávio Dino (PCdoB), do Maranhão. De acordo com o coronel Lindomar Castilho, comandante da PM do Piauí, há pessoas que “tentam desinformar e fazer a cabeça dos policiais” sob seu comando.

Em São Paulo, a PM tenta identificar o centro difusor dos ataques à corporação que buscam minar a disciplina da tropa. Entre as postagens monitoradas pela polícia está uma do ex-deputado Roberto Jefferson, aliado de Bolsonaro, e outra do blogueiro Allan dos Santos, ligado ao deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP). “Somos fiéis à Constituição, à lei, não importam quais sejam as orientações políticas dos governos. Somos uma instituição de 189 anos. Se cumprir a lei desagradará a A ou a B, assim será”, afirmou o coronel Cabanas.

Vacinação
Em carta divulgada dia 29, 16 governadores afirmaram que “os agentes públicos precisam de paz para prosseguir com o seu trabalho, salvando vidas e empregos”. “Estimular motins policiais, divulgar fake news, agredir governadores e adversários políticos, são procedimentos repugnantes, que não podem prosperar em um país livre e democrático”. O documento declarava ainda o apoio dos governados ao desejo das entidades de policiais de vacinação imediata de seus integrantes. A estratégia visava a retratar o bolsonarismo como responsável por opor a população aos PMs.

“A gente procura não entrar na questão política e se manter fiel ao regulamento e à nossa missão, contra esse jogo que pretende envolver as forças estaduais e federais”, afirmou o coronel Castilho. O Piauí, governado por Wellington Dias (PT) deve começar nesta segunda-feira a vacinar seus 6.140 PMs. A covid-19 havia matado 35 policiais militares e contaminado 1.283 no Estado até sexta-feira passada.

A reação dos governadores aconteceu após a ação coordenada do bolsonarismo de insuflar um motim na PM da Bahia em 28 de março. Naquele dia, o soldado Wesley Soares Góes teve um surto e, com um fuzil, foi ao Farol da Barra, em Salvador, onde passou a fazer disparos. Após atirar em direção aos colegas, acabou morto. De imediato, parlamentares bolsonaristas, como a deputada Bia Kicis (PSL-DF), passaram a tratá-lo como mártir por se recusar a cumprir as ordens do governador Rui Costa (PT). Mais tarde, ela removeu a publicação.

A estratégia de provocar um motim na Bahia só não foi para frente porque a ação foi filmada, confirmando que o soldado tentara matar os colegas. “A Bahia é o lugar mais frágil, em razão dos problemas enfrentados pelo governador na Segurança. Por isso foi atacada”, disse Renato Sérgio de Lima, presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Entre os problemas de Costa, estaria a contestação feita por sua gestão no Supremo Tribunal Federal da lei que acabou com as prisões disciplinares dos PMs.

Risco
Se a ação do bolsonarismo incomoda as PMs, ela não seria, no entanto, suficiente para, segundo especialistas em Segurança Pública, provocar uma ruptura da ordem. “Não há possibilidade de se repetir no Brasil a situação da Bolívia (onde uma revolta policial levou à deposição de Evo Morales). Os policiais têm diversas vantagens que não vão colocar em risco por razões ideológicas”, disse Leandro Piquet Carneiro, professor do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo. Além disso, para Piquet, a aprovação do congelamento de salários na PEC Emergencial esvaziou o discurso sindicalista de Bolsonaro, diminuindo sua capacidade de mobilização. O Estadão não conseguiu contato com Santos e Jefferson.

Comandos das PMs pedem cautela a policiais em operações

Os comandos das PMs estaduais estão recomendando o máximo de cautela aos seus homens no cumprimento de medidas de restrição à circulação de pessoas durante a pandemia. Temem que qualquer incidente seja usado politicamente contra as corporações. “Recomendamos aos nossos homens que tenham bom senso em todas as ações”, disse o subsecretário de Segurança Pública, coronel Alvaro Camilo. Para o coronel Lindomar Castilho Melo, comandante da PM do Piauí, “bom senso e conversa não podem faltar. O policial não pode cair em provocações. Tem de colocar como autoridade.”

Para o oficial da PM e deputado federal Paulo Ramos (PDT-RJ), repercutiu mal na categoria a ação de bolsonaristas após o incidente com o soldado Wesley Góes, em Salvador. “Tentaram jogar companheiros contra companheiros, dividir a tropa”, diz Ramos. “Mas não deu certo, a repercussão (das iniciativas dos aliados de Jair Bolsonaro) foi negativa, tanto na Bahia como nos outros Estados.” Segundo ele, a identificação ideológica entre Bolsonaro e muitos PMs permanece.

Mas as expectativas práticas se romperam. “No discurso, o presidente incentiva o confronto (entre policiais e criminosos), mas nunca esteve nessa situação ou correu riscos. Ele só empurra os outros, incentiva os outros a se expor.” Para o coronel Ubiratan Ângelo, ex-comandante da PM do Rio, o discurso de Bolsonaro está enfraquecido. “O que ele fez pelas polícias ou pelos policiais? É só discurso, e o discurso está enfraquecido.”

Outra aposta para a manutenção da disciplina diante das investidas do bolsonarismo nas corporações contra é sistema de liderança e a efetividade da Justiça Militar. Diretor do Fórum Brasileiro de Segurança, Renato Sérgio d e Lima lembra que na semana passada a Justiça Militar paulista condenou a 6 anos e meio de prisão um policial que sacou um arma e ameaçou matar seu sargento no centro de São Paulo, em 2020. “A sentença do juiz Ronaldo João Roth foi dura.”

/ COLABOROU FÁBIO GRELLET


Cristovam Buarque: Olhe a responsabilidade, gente

Sem o PT, pode não chegar ao segundo turno, só o PT, pode não ganhar no segundo

Nesta semana, a reforma ministerial mostrou que Bolsonaro já está trabalhando para o pós-segundo turno, enquanto os líderes e partidos de oposição continuam no pré-primeiro. Com o novo Ministro da Defesa, ele deseja controlar as Forças Armadas; com o novo Ministro da Justiça busca o controle sobre as polícias estaduais; com a liberação da compra e porte de armas, equipa sua milícia paralela. Com Forças Armadas, polícias e milícias, Bolsonaro passa a ter forças armadas nas ruas, para contestar derrota por pequena margem de eleitores, caso não consiga argumento para contestar o resultado na Justiça Eleitoral.

Enquanto isto, as oposições continuam divididas entre os possíveis candidatos que depois disputarão entre eles qual vai ao segundo turno. Estes embates deixam marcas que poderão levar outra vez a abstenções e votos nulos no segundo turno, como aconteceu em 2018. Difícil imaginar os eleitores do PT votando em Ciro ou outro candidato, e eleitores do Ciro e de outros candidatos votando no Lula ou outro do PT, salvo se fosse construída uma aliança ampla de todos desde o primeiro turno.

Felizmente, tudo indica que o exército não está aceitando o papel de milícia do Bolsonaro, e alguns dos candidatos pela oposição assinaram um manifesto conjunto em defesa da democracia. Mas todos que percebem as consequências da reeleição do atual governo sobre o futuro do Brasil, deveriam se encontrar em um debate franco sobre qual deles tem mais chance de vencer a eleição; também quais as qualidades, erros e méritos que se reconhecem; em que princípios estariam unidos no governo seguinte. Esta reunião poderia ter a participação de entidades da sociedade civil, como ocorreu em momentos decisivos da história. Poderia inclusive ser presidida por uma ou mais destas entidades.

Pena que a política é mais dominada pela arrogância do otimismo do que pela consciência dos riscos. Cada candidato já se considera com um pé no segundo turno, e tem confiança que unirá os eleitores dos que ficaram para trás. Imaginaram isto em 2018, mas nem a boa qualidade do candidato do PT foi suficiente para evitar a rejeição que o partido tinha. Pode ser diferente agora, se o candidato for Lula e o PT tiver rejeição menor, sobretudo depois da anulação Lava Jato de Curitiba; ainda mais com o reconhecimento oficial de que houve parcialidade do juiz contra Lula. Mesmo assim, não é claro se ele e o PT teriam menos rejeição. É possível que mesmo sabendo o que Bolsonaro representa, muitos eleitores ficarão em casa, ou viajarão para não votar, ou votarão nulo, induzidos pela ideia divulgada pela própria oposição, de “nem Bolsonaro, nem PT”. Possível também que eleitores do PT façam agora o que foi feito com Haddad em 2018, anulando o voto e se abstendo.

Estes líderes precisam entender que, divididos, dificilmente qualquer deles tomará o lugar do candidato do PT, mas o PT deve entender que, solitário, dificilmente ganhará no segundo turno se não tiver o apoio dos outros candidatos e partidos. Sem o PT, pode não chegar ao segundo turno, só o PT, pode não ganhar no segundo.

Os candidatos e líderes de partidos que se opõem à estratégia da reeleição de Bolsonaro têm diante deles a imensa responsabilidade de não falharem por arrogância, por vaidade, preconceito. Não podem neste momento colocar seus partidos e suas propostas na frente do interesse maior da democracia e do futuro do país. É preciso unidade com um candidato de baixa rejeição que leve a uma vitória expressiva, cale os fanáticos e desarme as milícias, oficiais ou não.

*Cristovam Buarque foi senador, governador e ministro


Luiz Carlos Azedo: A Páscoa na pandemia

O presidente da República desperdiça seu ativo mais valioso: o tempo do mandato. É impressionante a falta de foco e o empenho em desconstruir certos consensos

Antes de mais nada, feliz Páscoa para todos. É uma data ecumênica por sua própria origem, pois foi ressignificada pelos cristãos como um momento de renovação das esperanças. A origem da Páscoa é o Pesach, a comemoração judaica da libertação dos hebreus da escravidão do Egito. Narrada nos Pentateucos, os primeiros cinco livros da Bíblia, em hebraico, a palavra significa “passagem” e faz menção ao anjo da morte no Egito — a décima praga, conforme a narrativa bíblica. A festa foi reinventada pelos cristãos, passando a se remeter à crucificação e à ressurreição de Cristo.

“E, se Cristo não ressuscitou, logo logo é vã a nossa pregação, e também é vã a vossa fé”, diz o apóstolo Paulo, em I Coríntios 15:14. Na fé católica, foi por meio da ressurreição que a humanidade teve a redenção de seus pecados. Jesus Cristo sacrificou-se para redimir o povo e dar-lhe uma nova chance de salvação. No seu sacrifício, o poder de Deus teria se manifestado.

Estamos encerrando a Semana Santa sem procissões nem missas campais, porém, plena de simbolismo. O Brasil vive uma das maiores tragédias de sua história, com uma média de mais de 3 mil mortos por dia nas últimas semanas, em razão do descontrole da pandemia da covid-19. Existe uma energia humana nos subterrâneos dessa tragédia social que, em algum momento, transbordará para as ruas. Essa resiliência, que seria traduzida nas cerimônias religiosas tradicionais, de alguma forma, acabará se transformando em manifestação política.

Além do agravamento da crise sanitária, também há desorganização da economia. Não estamos falando da redução das atividades econômicas em razão do distanciamento social, mas da desestruturação das contas públicas e da falta de um projeto de retomada do crescimento econômico. É um problema anterior à pandemia, mas que se agravou com ela, principalmente agora, com a aprovação de um Orçamento da União completamente fora da realidade, que agrava as dificuldades já existentes e cria novos problemas, contratados para o pós-pandemia.

Perda de tempo
Há um estresse político criado por arroubos autoritários e tentativas de ruptura do pacto federativo da Constituição de 1988. À época da Constituinte, como tudo estava em discussão, havia moedas de troca suficientes para construção dos acordos entre União, estados e municípios. Agora, uma das dificuldades para aprovação da reforma tributária, por exemplo, é a escassez dessas moedas. O xis da questão acaba sendo sempre a polêmica sobre a arrecadação do ICMS na origem ou no destino das mercadorias, além dos termos da partilha das receitas dos impostos entre os entes federados.

O presidente da República desperdiça seu ativo mais valioso: o tempo do mandato. É impressionante como a falta de foco e o empenho em desconstruir certos consensos políticos — na política externa e na Defesa, no meio ambiente e na segurança pública, no respeito aos direitos humanos e às minorias —, desloca a ação do governo dos verdadeiros problemas do nosso desenvolvimento. A janela de oportunidade das reformas, o primeiro ano de mandato, foi desperdiçada. Agora, em plena pandemia, antecipou-se a disputa eleitoral, porque Bolsonaro conseguiu fazer com que sua reeleição subisse no telhado.

A expectativa de poder está se deslocando de Bolsonaro para a oposição. Mesmo com os desgastes causados pela Lava-Jato, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) se coloca na arena em vantagem, ao comparar suas realizações de governo com as de Bolsonaro. A última proeza do presidente da República foi unir os demais pré-candidatos, no episódio de demissão do general Fernando Azevedo do Ministério da Defesa e dos comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica. O governador paulista João Doria (PSDB), o ex-governador cearense Ciro Gomes (PDT), o ex-ministro da Saúde Henrique Mandetta (DEM), o empresário João Amoedo (Novo) e o comunicador Luciano Huck (sem partido) mandaram o recado: Bolsonaro, não! Podem não se unir no primeiro turno, mas estão contra a reeleição.

https://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-a-pascoa-na-pandemia/