Fernando Gabeira: O Supremo e o sacrifício de animais
O antropocentrismo vai, aos poucos, enfraquecendo, apesar do mundo institucional
O Supremo Tribunal decidiu que o sacrifício de animais em cultos religiosos afro-brasileiros é constitucional. Foi por unanimidade. E isso me decepcionou um pouco. Esperava uma corrente mais crítica ao antropocentrismo e sensível à dor dos animais.
Esses ventos ainda não sopram na Justiça brasileira. Mas já chegaram aqui da Argentina. Foi o caso de um habeas corpus concedido à chimpanzé Cecília, que visitei no Santuário dos Grandes Primatas, em Sorocaba. Cecília vivia triste e maltratada num zoo, mas ao chegar ao Brasil recuperou a alegria e até acasalou. Fiz um documentário sobre sua sorte.
Na mesma época entrevistei o escritor Peter Singer, autor do livro Libertação Animal, lançado em 1975, um texto inspirador do movimento moderno de defesa dos bichos. Singer estava exultante com a libertação de Cecília. Ele via ali os primeiros lampejos da aceitação de sua tese sobre os direitos dos animais.
Na vida cotidiana sabemos que essa é uma bandeira de minorias. E como tal precisa ser tratada com habilidade para atravessar a bandeira de ironia que se ergue diante dela.
Foi assim, por exemplo, que vi em Santa Catarina o movimento que criticava a Farra do Boi. É uma festa popular, tradicional na costa catarinense, onde para, os pescadores, o boi aparece como um invasor. A ideia na época não era acabar com a Farra do Boi, mas, na medida do possível, ajudar a transitá-la do boi real para um boi figurado, como, por exemplo, no Bumba meu Boi.
Creio que haveria uma possibilidade de argumentar com adeptos dos rituais de origem africana. Será que o sacrifício de animais é essencial para sua existência? Assim, como um leigo, posso afirmar que um dos mais belos rituais religiosos, envolvendo milhões de pessoas, são as oferendas a Iemanjá. Flores, quase todas flores. Na Baixada Fluminense documentei inúmeros trabalhos religiosos, nem todos usavam animais e, quando usavam, eram apenas uma parte das oferendas.
Creio que na própria religião afro-brasileira estão contidos os elementos que poderiam facilitar uma transição do corpo animal para o símbolo. Uma transição que a cultura popular brasileira, com suas representações do boi, já realizou.
Falei com um jovem político sobre o tema. Ele me respondeu: “Se me preocupar com isso, vou denunciar o peru de Natal”. Mas o peru de Natal é diferente. Ele é comido. Sempre afirmei que a proteína animal ainda é a maneira de alimentar tantas bocas no mundo. Mais ainda, para desalento dos vegetarianos, considero que o crescimento da humanidade, que nos levará aos 9 bilhões de pessoas em 2050, dificilmente dispensará a proteína animal. Mas o fato de comermos peru no Natal e sabermos que milhares morrem diariamente não justifica arrancar o pescoço de uma ave numa celebração mística.
A votação do Supremo lembrou-me de uma coisa: adianta apenas proibir? A experiência com a Farra do Boi, levei muitas pancadas por causa disso, é diálogo e compreensão. Mais que uma decisão da Corte, o ideal é uma transição em que o debate cultural realize o trabalho de suprimir maus-tratos aos animais.
Essa discussão no Supremo foi apenas um momento. Animais morrem inutilmente em grande escala no Brasil. E a causa, de certa forma, é o progresso material. Tenho documentando a mortandade dos jegues no Nordeste. Estão sendo substituídos pelas motocicletas. Morrem atropelados, abandonados pelos donos na margem das estradas.
Em alguns lugares, como em Apodi (RN), os jumentos foram recolhidos. Um promotor propôs que as pessoas passassem a comer carne de jegue. Ofereceu um churrasco. Sua proposta não vingou. Alguns empresários ainda esperam vender carne de jegue para a China.
Na verdade, uma extinção gradual vai tirando os jegues do cenário nordestino. Isso valeria uma política pública. Assim como o sacrifício de animais em cultos religiosos merecia um debate mais amplo.
Felizmente, nada vai deter o trabalho que se faz no Brasil. O próprio Santuário de Primatas em Sorocaba é um exemplo internacional. Em Três Rios há uma pousada que recebe bichos resgatados. A dona adotou uma jaguatirica que cruzou com uma gata e deu um belo gato mestiço. Na Serra da Mantiqueira, os chiqueiros estão cheios de filhos de javalis que cruzam com as porcas de madrugada. O que fazer com os javalis devastadores?
É todo um mundo girando. Levá-lo em conta ainda é muito difícil numa cultura em que o ser humana é o centro de tudo. Mas, apesar de decisões como a do Supremo, é possível dizer que está melhorando. Além disso, as crianças vêm aí e não são as mesmas do passado.
São Paulo já tem um hospital gratuito para animais. Em dezenas de lojas e restaurantes é possível ver tigelas de água para os animais de rua. Quando implodiram o presídio da Ilha Grande muitos cachorros fugiram para o mato. Hoje a ilha é cheia deles. Alguns estrangeiros às vezes retardam sua passagem pelo País apenas para adotar um cachorro da ilha.
O antropocentrismo aos poucos vai enfraquecendo, apesar do mundo institucional. Lembro-me das difíceis discussões no Congresso sobre experiências científicas com animais. Algumas envolvem a salvação de vidas humanas. No entanto, foi possível um nível de acordo. Acredito que hoje já exista uma tendência à simulação, fórmulas de cada vez eficazes para poupar os animais.
É uma escolha que transcende a polaridade esquerda-direita: um tipo de civilização está em jogo. Isso escapa ao próprio governo, preocupado, corretamente com a morte de 60 mil brasileiros por ano, mas totalmente perdido nas suas dúvidas sobre aquecimento global, nas suas estúpidas certezas como dizer que o nazismo foi um movimento de esquerda. Invadiu a União Soviética por engano? Milhões de mortes foram resultado de fogo amigo?
Animais racionais têm cada ideia.
Eliane Cantanhêde: A ‘tropa de elite’ falhou
A tropa do PSL, com general, coronel, major e delegado, deixou Paulo Guedes na mão
Foram dois movimentos em sentido contrário. Ontem, o presidente Jair Bolsonarofinalmente recebeu em palácio os “velhos políticos” dos “velhos partidos” e da “velha política”. Na véspera, o PSL, sigla do presidente, havia lavado as mãos e abandonado o ministro Paulo Guedes na CCJ, cara a cara com os leões da oposição.
Nas conversas com presidentes e líderes de MDB, DEM, PSDB, PP, PRB e PSD – alguns deles enrolados na Justiça, como Romero Jucá e Gilberto Kassab –, Bolsonaro foi menos presidente e mais ex-colega de Congresso. Nada foi pedido, nada foi prometido, mas foi um marco mesmo assim: o presidente assumiu um firme compromisso com a reforma da Previdência. E decidiu fazer política.
Já as cenas na CCJ foram lamentáveis, com a ausência dos governistas e a esquerda despertando após um sono profundo desde as eleições. Bolsonaro vem chocando setores da opinião pública e despenca nas pesquisas, mas isso não tem nada a ver com PT, PCdoB e seus primos, mas sim com arroubos de “olavetes”, inexperiência dos aliados, agressividade da tropa da internet e erros crassos do próprio Bolsonaro e de seus filhos. Não é nem por mérito nem por culpa da oposição.
Na sessão da comissão, a presidente do PT, Gleisi Hoffmann, os deputados e os aliados petistas mostraram que não aprenderam nada. O importante continua sendo ganhar no grito, manter as bases em pé de guerra, trocar o debate por pegadinhas e insultos contra adversários e negar o óbvio, que os ex-presidentes Lula e Dilma estavam cansados de saber: a reforma da Previdência é fundamental para o País.
Quando Guedes se retirou da comissão, após Zeca Dirceu partir para o achincalhe, com a história do Tigrão e do Tchutchuca, a esquerda comemorou como vitória. Que vitória? O PT apenas agradou à sua militância e os convertidos e pode ter irritado todos os demais, inclusive quem já foi PT um dia e hoje não é nada.
Mas, se as esquerdas perderam, o grande derrotado foi o PSL. A oposição articulou-se antes, traçou uma estratégia, chegou cedo e ocupou todos os espaços – as primeiras cadeiras e as primeiras perguntas. Onde estavam os líder do governo, do PSL, das siglas aliadas? Ninguém sabe, ninguém viu. Para piorar, a experiência e disciplina dos petistas contrastaram com a falta de traquejo do jovem presidente da CCJ, Felipe Francischini, de 27 anos, e do relator da reforma, Marcelo Freitas, que, enquanto deputado, continua sendo um bom e articulado delegado.
Aliás, após o encontro de Paulo Guedes com a bancada do PSL, no ministério, brincou-se que, enfim, estava formada a “tropa de elite” para a defesa da reforma. Foi uma alusão clara às variadas patentes do partido do presidente, que tem general, coronel, delegado, major... E, por isso, tem muito a aprender dos meandros do Congresso, da malícia da ação parlamentar.
Ontem, a metáfora já era outra: Guedes é um bom centroavante e foi bem no ataque, o que falhou foi a defesa. Ele se apresentou à CCJ, uma semana atrasado, com a mesma cara e o mesmo estilo, sem maquiagem e sem fantasia. Paulo Guedes foi Paulo Guedes, não pretendeu ser o político que não é, o tribuno que nunca foi. Isso implica usar um tom técnico e respeitar sua própria personalidade. Em nome de quê deveria engolir calado os ataques, ironias e tchutchuquices?
O importante é mostrar incansavelmente que aquele espetáculo lamentável foi com um grupo específico e não representa a disposição do Congresso em relação à reforma da Previdência. Afinal, nem a CCJ é o plenário nem a esquerda domina a Câmara. Os ataques ao ministro, principal articulador da reforma, não foram “do Congresso”, foram “da oposição”, que é minoritária.
Bernardo Mello Franco: A mão que apedrejou é a mesma que afaga
Bolsonaro atacou os partidos do centrão e prometeu varrer a “velha política”. Ontem ele começou a abandonar esse discurso, mas os parlamentares estão desconfiados
No dia em que lançou oficialmente a sua candidatura ao Planalto, Jair Bolsonaro atacou a aliança do PSDB com os partidos do centrão. “Quero agradecer ao Geraldo Alckmin por reunir a nata do que há de pior do Brasil ao seu lado”, disse.
Eleito presidente, ele continuou a desprezar as legendas que sempre estiveram no poder. Prometeu acabar com o “toma lá dá cá” e não trocar cargos e ministérios por apoio. Este discurso começou a ser abandonado ontem, no 94º dia do governo.
Numa maratona de quase 11 horas, Bolsonaro se reuniu com seis presidentes de partidos. Além de Alckmin, recebeu antigos desafetos como Ciro Nogueira e Geraldo Kassab, a quem já se referiu como “porcaria”. Foi uma rendição à “velha política” que ele prometia varrer de Brasília.
Nas conversas, o presidente distribuiu elogios, desculpou-se pelas “caneladas” e pediu ajuda para aprovar as reformas. O surto de humildade não foi de graça. Desde a posse, os amadores do Planalto têm levado um baile dos profissionais do Congresso.
Bolsonaro queria usar as redes sociais para emparedar a Câmara e o Senado. Os parlamentares mostraram que não se forma coalizão pelo Twitter. O governo passou a sofrer derrotas em série. Algumas foram mais humilhantes, como a aprovação da emenda que engessou o Orçamento.
A última lição veio na quarta-feira, quando Paulo Guedes ficou sozinho diante de um pelotão de fuzilamento na Câmara. Sem uma tropa para defende-lo, o ministro virou alvo fácil para a oposição. Seu pavio curto agravou o desastre anunciado.
A audiência terminou em tumulto, e o economista precisou de socorro para deixar a sala. Saiu escoltado por seguranças, enquanto trocava ofensas com o deputado petista Zeca Dirceu. “Tchutchuca é a mãe, tchutchuca é a avó!”, vociferou o ministro.
A performance animou as redes bolsonaristas, mas não parece ter conquistado um único voto para a reforma da Previdência. O governo precisará de ao menos 308 para aprová-la em plenário. Até agora, não chegou nem perto de alcançá-los.
As desculpas de ontem não convenceram a maioria dos dirigentes partidários, que ainda esperam ofertas concretas para negociar. Um deles abriu o jogo com Bolsonaro: disse que as siglas temem ser torpedeadas assim que o governo conseguir o que deseja. O presidente inverteu o poema de Augusto dos Anjos: a mão que apedrejou ontem é a mesma que afaga hoje. O problema é que ninguém sabe o que ele vai fazer amanhã.
Pedro Doria: A quebra da democracia
A instantaneidade da internet, ampliada pelos sistemas de recomendação, abalaram o mercado de ideias
Esta era difícil de imaginar uns meses atrás: Alex Jones, um dos mais rábicos teóricos da conspiração da neodireita on-line americana, deu para trás. “Vivi uma forma de psicose”, explicou, “e passei a acreditar que tudo era uma encenação. Minhas opiniões estavam erradas.” Jones construiu entre Facebook, Twitter e YouTube uma legião de seguidores de seus delírios, que incluíam o envolvimento de Hillary Clinton numa rede de pedofilia, que Barack Obama nascera no Quênia, e que os massacres de crianças em escolas não aconteciam, era tudo trabalho de atores. Sua glória foi entrevistar Donald Trump ao vivo. Olavo de Carvalho chegou a considerá-lo “a melhor fonte de informações sobre a política americana”. Perante um processo no qual está ameaçado a ter de pagar indenização na casa dos milhões, saiu-se com a psicose.
A história de Jones, somada a outros dois casos também desta semana, merece uma reflexão sobre o efeito das redes na democracia.
Uma investigação da Bloomberg revelou que, logo após o massacre da escola secundária de Parkland, na Flórida, um grupo de funcionários do YouTube procurou a chefia. Estava preocupado com o crescimento em audiência de vídeos raivosos como os de Jones. Quanto mais gente os via, mais o sistema de recomendação os recomendava. Bola de neve. Os executivos ouviram a preocupação e mandaram nada fazer. Ocorreu em fevereiro de 2018. Jones terminaria banido do YouTube em julho do mesmo ano, e a preocupação com a qualidade do conteúdo começou a aparecer no discurso oficial do sistema de vídeos do Google.
E calhou de, domingo último, Mark Zuckerberg publicar um longo artigo no qual pede maior regulamentação governamental. Zuck quer regras, preferencialmente uniformes e globais, para temas como propaganda política, privacidade, conteúdo que cause dano — pelo ódio que provoca, por crimes que incita. Ele sabe que o debate já está intenso, na União Europeia e em Washington, a respeito dos monopólios formados pelas redes sociais.
O problema é complexo. As redes sociais desmontaram uma premissa fundamental de todo debate liberal que tem origem no desenho das democracias. Elas abalam, nada menos, do que o argumento que sustenta a liberdade de expressão.
Bruno Boghossian: Rede de proteção acoberta possíveis mandantes da morte de Marielle
Caso 'tchutchuca' evidencia falta de uma coalizão comprometida com Bolsonaro
Em sua primeira visita ao Congresso, na semana passada, Paulo Guedes reclamou dos aliados do governo. Atacado até pelo PSL, o ministro parecia se sentir traído. “A gente anda dez metros e, de repente, vê que levou um balaço de gente que é nossa mesmo”, desabafou.
O chefe da equipe econômica voltou a encontrar o mundo políticonesta quarta (3) para discutir a reforma da Previdência. Na Câmara, o partido de Jair Bolsonaro não disparou, mas deixou Guedes sozinho por horas na linha de tiro.
A proposta do governo perambula como um filho feio sem pai. Parlamentares de centro e da oposição fazem críticas pesadas, enquanto poucos governistas se arriscam a apoiar uma medida impopular.
Nas primeiras quatro horas e meia de audiência, o único deputado do PSL a discursar foi o líder do governo na Câmara. Seria generosidade dizer que Major Vitor Hugo fez uma defesa enfática da reforma.
O deputado gastou quase metade de seu tempo com elogios a Guedes por sua “coragem e determinação”. Nos minutos que restaram, desfiou platitudes sobre a proposta, sem responder ao festival de bobagens de alguns integrantes da oposição.
No meio do tiroteio em cima do ministro e da reforma, Vitor Hugo ainda parabenizou tanto a oposição quanto “deputados mais alinhados com o governo”. Não seria possível chamá-los exatamente de “aliados”.
O episódio evidenciou a falta que faz uma coalizão comprometida com o governo. Líderes dos partidos que poderiam dar sustentação a Bolsonaro estavam sorridentes numa sala reservada para cumprimentar o ministro antes da sessão, mas foram embora antes do início do falatório.
Sem proteção, Guedes ainda foi obrigado a ouvir um insensato Zeca Dirceu (PT) dizer que ele é “tigrão” para cortar benefícios de pobres, mas “tchutchuca” para tirar privilégios de banqueiros. O vexame só terminou porque o presidente da comissão encerrou a audiência. O ministro teve que ser escoltado por policiais e meia dúzia de deputados.
Míriam Leitão: Risco de enterrar mais uma reforma
Paulo Guedes enfrentou dois problemas: o temperamento e a fraqueza da base. A oposição repetiu as demagogias de sempre
Eram cinco da tarde quando o ministro Paulo Guedes recebeu perguntas de deputados do PSL. Até então ele havia enfrentado apenas os 50 tons —e decibéis —de crítica ao projeto da Previdência. Isso é apenas uma amostra da falta de organização da base. O centrão, que já defendeu outros governos, e outras reformas, não jogou a favor. Guedes cometeu erros ao falar ontem na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ). O principal foi cair em tantas provocações, o que acabou levando ao encerramento antecipado da sessão após bate-boca com um deputado. Mas Guedes está absolutamente certo no seu diagnóstico: o sistema de repartição está falido, a Previdência precisa mudar por ser deficitária e criadora de desigualdades.
A oposição não tem uma ideia nova, uma proposta. Não consegue explicar as próprias contradições. O PT fez também uma reforma da Previdência e se o fez é porque havia déficit. Agora nega o rombo, apesar de tê-lo aprofundado com suas desonerações. Mas é um equívoco o ministro achar que se um deputado grita ele deve gritar de volta. Esse estilo faz parte do show deles, mas nunca de um ministro da economia. Quem garante a palavra ao convidado é o presidente da Comissão e não a sua repetição de “eu tenho o direito de falar, pessoal?” A sorte de Paulo Guedes é Jair Bolsonaro não ser mais deputado. Ele era bem mais histriônico e agressivo do que os deputados que enfrentou ontem.
Um erro estratégico do ministro Guedes foi falar tanto em capitalização. Ele está convencido de que esta é a melhor proposta para o futuro. O problema é que a reforma da Previdência muda os parâmetros do atual sistema. O projeto de capitalização ficou para ser detalhado depois. O próprio Paulo Guedes afirmou que, dependendo “da potência fiscal” do que for aprovado, a capitalização nem será proposta.
Então esta é a hora de lutar pelo atual projeto e nele o ministro deveria ter se concentrado. Cairia em menos armadilhas. O ministro teve explosões bem típicas de seu temperamento, mas nada convenientes para o seu objetivo. Às oito da noite houve desentendimento em torno de ele ter dito que era preciso internar quem nega a necessidade da reforma. Ele costuma dizer que não é do meio político. Mas é fácil saber algumas regras. Ao responder, não dizia o nome do parlamentar, e sim “o primeiro a falar”, “o segundo”. O deputado Eduardo Bismarck (PDT-CE) avisou que ali eram todos iguais. “De primeiro escalão para primeiro escalão”. Ele então acatou a sugestão de anotar o nome.
Apesar de a CCJ não ser uma comissão de discussão de mérito, e sim de verificação da constitucionalidade, os deputados não respeitaram isso. E esse foi outro erro de estratégia. Paulo Guedes poderia ter levado sim uma apresentação mais estruturada com algumas ideias básicas e números. Isso evitaria a crítica de que ele fora genérico e não havia explicado a própria proposta. Aqueles minutos iniciais, com a imprensa transmitindo, seria uma boa oportunidade para explicar aos deputados e a quem acompanhasse os pontos centrais da reforma. Números importantes foram falados de forma vaga e sem informação visual.
As críticas que Paulo Guedes ouviu são conhecidas. Os que não querem fazer a reforma sempre explicarão a sua posição alegando que o projeto afeta os mais pobres. A realidade é que os mais pobres se aposentam mais tarde e recebendo menos. São 71% dos beneficiados. No caso da mulher, a média das que se aposentam hoje por idade já é 61,5 anos. Quem se aposenta com 54 anos está nos 29% do sistema do tempo de contribuição.
O governo deu um presente a quem quer argumentos demagógicos para se opor à reforma, quando propôs mudanças no Benefício de Prestação Continuada (BPC). É fácil para um político dizer que está ali defendendo os mais pobres. Difícil é assumir que defende as aposentadorias dos que ganham mais no sistema. Qualquer consulta aos dados mostra que os servidores públicos, dos três poderes, se aposentam mais cedo e ganhando muito mais, têm inúmeras vantagens que são negadas ao resto da população.
A reforma dos militares ter ido junto com uma alta nos soldos torna mais difícil a vida do governo. Mas, como disse Paulo Guedes, “você são os senhores desse destino”. O Congresso, com os erros do governo e a demagogia da oposição, tem o poder de enterrar mais uma reforma. Se o fizer, tornará o colapso mais iminente.
Zeina Latif: Perda de foco ou desinteresse?
Não seria exagero afirmar que, com a crise prolongada, temos uma geração perdida
O presidente Bolsonaro perde o foco com facilidade. Em vez de discutir políticas públicas para promover o crescimento e atacar o desemprego elevado, ele voltou a criticar o IBGE pela metodologia de apuração da taxa de desemprego. Ele afirma que seria feita para “enganar a população”, sugerindo que o quadro é melhor do que o indicado.
Qualquer que seja o patamar “verdadeiro” do desemprego, o fato é que a sociedade sente na pele as dores de uma economia que pouco cresce. O medo do desemprego é elevado e os consumidores se mantêm pessimistas neste início de ano.
A taxa de desemprego é apenas uma métrica, e que atende às recomendações e aos padrões internacionais. Não se trata de ser verdadeira ou falsa. Como qualquer métrica, tem suas limitações. De fato, ela não permite uma visão completa do que ocorre no mercado de trabalho. Por isso especialistas analisam o desemprego sob vários ângulos. O time econômico certamente o faz. E o retrato não é nada bom.
A taxa de desemprego é a razão entre pessoas sem trabalho e procurando emprego em relação à força de trabalho. Se a pessoa não está trabalhando, mas também não está procurando trabalho, ela não entra na estatística.
Em períodos de mercado de trabalho ruim, com pouca oferta de vagas, observa-se que parcela dos trabalhadores deixa de procurar emprego, pois acredita que a probabilidade de encontrar algo é muito baixa. Não valeria a pena o esforço.
Conforme o mercado de trabalho começa a melhorar, esta probabilidade aumenta e o grupo de desalentados retorna ao mercado procurando emprego e pressionando a taxa de desemprego. Ou seja, mesmo com o aumento da oferta de vagas, o desemprego recua lentamente, pois há mais pessoas procurando trabalho. A chamada taxa de participação (parcela da população em idade ativa que está no mercado de trabalho, tanto ocupada, como desocupada) aumenta.
A taxa de participação está apenas ligeiramente acima da média histórica. Aliás, ela caiu desde o pico recente em outubro. Fazendo um cálculo alternativo da taxa de desemprego, assumindo a estabilidade da taxa de participação, observa-se números próximos ao da estatística oficial e até uma piora do indicador recentemente, segundo cálculos da AC Pastore & Associados. A bronca do presidente não se justifica.
Os resultados dos últimos meses indicam deterioração adicional do mercado de trabalho. A crença de muitos de que o fim da eleição iria contribuir para dar um “empurrão” na economia não se concretizou. O número de desalentados é significativo. São 4,9 milhões de pessoas ou 2,8% da população em idade ativa. Valor recorde na série iniciada em 2012.
Ainda, a Organização Internacional do Trabalho recomenda ampliar o grupo daqueles que deveriam ser considerados desempregados, considerando também os subocupados por insuficiência de horas trabalhadas. Neste caso, a taxa de desemprego estaria acima de 18,5%, e não na casa atual dos 12%.
Os jovens são bastante prejudicados. A taxa de desemprego dos indivíduos entre 18 e 24 anos está acima de 26%. A falta de perspectivas é veneno para esta faixa etária. Não seria exagero afirmar que, com a crise prolongada, temos uma geração perdida.
O desemprego da população adulta preocupa também, e muito. São arrimos de família. A perda de emprego do chefe de família afeta os demais membros. Os números são ruins. Ainda que a taxa de desemprego dos que têm entre 40 e 59 anos seja mais baixa, de 7,5%, o contingente é grande. Representa quase 23% dos desempregados.
O governo vai completar seus 100 dias. Não se identificam ações para suavizar o sofrimento dos desempregados no curto prazo ou agenda de longo prazo para geração de empregos. Será que teremos novidades adiante ou irá prevalecer o que hoje se vê no discurso oficial, que dá ênfase a temas irrelevantes ou secundários, sem a devida preocupação com o desemprego?
*Economista-chefe da XP Investimentos
Bruno Boghossian: Bolsonaro falsifica a realidade para enganar a população
Do nazismo ao desemprego, presidente adultera fatos para reduzir desgastes
Ao contestar números oficiais sobre o desemprego, Jair Bolsonaro conseguiu a façanha de ser desmentido por seu próprio governo. De Israel, o presidente distorceu dados do IBGE para tentar convencer o país de que o mercado de trabalho, na verdade, está bombando. “É uma coisa que não mede a realidade. Parecem índices que são feitos para enganar a população”, disparou.
O instituto havia calculado que o número de brasileiros desocupados subiu para 13,1 milhões em fevereiro. A conta segue padrões internacionais e leva em consideração pessoas que procuram emprego, mas não encontram. Bolsonaro não gostou.
O IBGE precisou divulgar uma nota de cinco parágrafos para explicar sua metodologia. Afirmou que adota regras semelhantes às de outros países e ainda negou a declaração do presidente de que beneficiários do Bolsa Família não são classificados como desempregados.
Bolsonaro produz falsificações que atropelam instituições consolidadas, critérios científicos, a história e o mínimo bom senso. O objetivo é adulterar a realidade a fim de reduzir desgastes e atacar opositores.
Para fustigar seus arquirrivais na política brasileira, o governo agora patrocina o delírio de que o nazismo era um regime de esquerda. O próprio Adolf Hitler deu uma entrevista em 1923 em que dissociava suas ideias do marxismo, mas Bolsonaro disse que “não há dúvida” de que o chanceler era vermelho, já que seu partido era o Nacional Socialista.
Dessa vez, quem desmentiu o presidente foi o vice Hamilton Mourão.“De esquerda é o comunismo. Não resta a mínima dúvida”, declarou.
A lógica estapafúrdia é a mesma que leva Bolsonaro a buscar um revisionismo rasteiro da ditadura militar. Ao argumentar que os fatos são deturpados por seus adversários e até por institutos oficiais, ele tenta moldar a verdade a seu gosto. Assim, nunca estará errado.
O presidente pode até contar suas histórias, mas quem olhar o passado ou as ruas do país verá quem está tentando “enganar a população”.
Elio Gaspari: Lula livre, em casa
Manter um ex-presidente na cadeia faz mal à história do país
No próximo domingo (7) Lula completará um ano de prisão, fechado numa cela de 15 metros quadrados na carceragem da Polícia Federal de Curitiba. Sua situação é inédita na história do Brasil e essa circunstância sobrepõe-se aos aspectos jurídicos, porque a decisão dos magistrados um dia será uma nota de pé de página na narrativa de um fato maior. Em 1889 decidiu-se banir a família imperial. Vá lá, mas fazia sentido negar sepultura no Brasil a d. Pedro 2º durante décadas?
Para quem vive com a cabeça quente, Lula deve "apodrecer na cadeia", como disse Jair Bolsonaro durante a campanha eleitoral. Quando as cabeças esfriam, as coisas voltam para seu lugar.
Três precedentes mostram que seria melhor permitir, em algum momento, a transferência de Lula para o regime de prisão domiciliar. Nele só poderia receber um número fixo de visitantes. (Em 2017, quando Marcelo Odebrecht passou a cumprir a pena em casa, tinha direito a 15 visitantes previamente listados.)
Jefferson Davis, o incendiário presidente dos estados confederados do Sul dos Estados Unidos, foi preso em 1865 e libertado dois anos depois. A Guerra Civil americana custou ao país quatro anos de combates e algo como 700 mil mortos (2% da população).
As condições carcerárias de Lula são dignas, mas assemelham-se àquelas que a República Francesa impôs ao marechal Philippe Pétain em 1945. Ele presidira o regime ditatorial e racista de Vichy, colaborando sinceramente com a ocupação nazista. Nonagenário e doente, teve a pena comutada em 1951 e logo depois morreu, em casa. Lula não foi um Pétain.
Os Estados Unidos e a França têm um tipo de história. A China tem outro. Mao Tse-tung prendeu o presidente Liu Shaoqi em 1967. Ele viveu em condições deploráveis até 1969, quando morreu. Ao contrário do que aconteceu com Pétain e Davis, Liu foi reabilitado. Sua filha formou-se na Universidade Harvard e geriu investimentos da família Rockefeller.
Lula encarcerado não faz bem à história do país, como não faz bem a lembrança de que João Goulart morreu na Argentina depois de 12 anosde desterro.
Desde que Bolsonaro assumiu a Presidência, nenhuma trapalhada foi produzida pelo PT. Tendo perdido o monopólio das encrencas, o comissariado vive em relativa paz. Noves fora alguns arroubos de Gleisi Hoffmann, a presidente do partido, prevalecem vozes mais equilibradas. Prometendo o fim da ideologia de gênero e escolas sem partido, o Ministério da Educação vive uma guerra de facções, sem ensino algum.
Combatendo uma diplomacia militante, o chanceler Araújo meteu-se numa pregação inútil em torno do que seria uma essência esquerdista do nazismo.
Se Lula for transferido para um regime de prisão domiciliar a questão legal continua quase do mesmo tamanho. Afinal, estão nele Marcelo Odebrecht (que colaborou com as investigações) e o comissário Antonio Palocci (que colaborou com a campanha eleitoral).
A transferência de Lula para o regime domiciliar, aventada em junho do ano passado pelo advogado Sepúlveda Pertence, foi rebarbada pelo PT. Supunha-se que "Nosso Guia" pudesse ser favorecido pela eleição de um presidente-companheiro ou pelo clamor da rua. Nenhuma das duas coisas aconteceu.
Para a turma de cabeça quente que defendia a transferência da embaixada do Brasil de Tel Aviv para Jerusalém, o gambito de Bolsonaro oferecendo um escritório comercial foi um gesto hábil. Lula em casa seria um gesto de pacificação histórica. Afinal, no ano passado 45% dos eleitores, não podendo votar nele, votaram no seu candidato.
*Elio Gaspari, jornalista, autor de cinco volumes sobre a história do regime militar, entre eles "A Ditadura Encurralada".
Vera Magalhães: Ver para crer
O sentimento dominante entre os presidentes e líderes de partidos antes da conversa marcada para amanhã com Jair Bolsonaro é de ceticismo. Ao marcar uma série de audiências em sequência, no mesmo dia, com representantes de siglas que integram, grosso modo, o chamado Centrão, o presidente pretende dar uma demonstração de que aceitou os apelos pela necessidade de iniciar uma articulação política mais consistente com o Parlamento.
Mas a ausência de pontes nos três primeiros meses de governo, somada ao discurso voltado a estigmatizá-los nas redes sociais, deixou os políticos ressabiados. Alguns me dizem que não irão sozinhos ao encontro de Bolsonaro, e chamaram deputados e senadores como “testemunhas”. “Sei lá se o presidente vai sair de lá dizendo que pedimos isso e aquilo”, diz um dos convidados.
Outros duvidam da real disposição de Bolsonaro de tornar o diálogo com os políticos constante e efetivo. “Enfileirar seis conversas num dia mostra que não se quer conversar, mas sim posar para fotos”, me diz um presidente de legenda.
Mas o que seria, para a classe política, o tal diálogo profícuo? O consenso reinante nos partidos é de que ele pressupõe gestos de “carinho”, recursos na base e divisão de espaços de poder. A execução orçamentária, afirmam, está parada. Os gestos são apenas de ataques. E os postos nos Estados seguem fechados ao compartilhamento. Daí porque, até amanhã, o clima geral seja de não botar muita fé de que algo vá mudar na relação entre Executivo e Legislativo.
INQUIETAÇÃO
Militares aguardam por desagravo a Santos Cruz
Jair Bolsonaro será instado pelos seus conselheiros militares a fazer um desagravo ao ministro Carlos Alberto dos Santos Cruz, da Secretaria de Governo, alvo de uma campanha de difamação por parte do polemista Olavo de Carvalho. Há um inconformismo nas três Forças diante da baixeza dos ataques, sem contraponto de Bolsonaro. O que se ouve é que, dado o trânsito do ideólogo com pessoas próximas ao presidente e sua família, o silêncio quanto a um ministro palaciano será lido pela sociedade como aquiescência, o que é considerado inadmissível.
PREVIDÊNCIA 1
Presidência de comissão será de deputado não governista
Rodrigo Maia (DEM-RJ) está propenso a acolher a indicação do governo e trabalhar pelo tucano Eduardo Cury (SP) para a relatoria da reforma da Previdência na Comissão Especial da Câmara, onde o “bicho” vai pegar. Mas o presidente do colegiado, responsável por determinar o ritmo e o formato da discussão, não precisa ter “empatia” com o governo: será escolhido no grupo mais identificado com o presidente da Câmara, no bloco que atuou pela sua reeleição para o posto.
PREVIDÊNCIA 2
‘Jogo duplo’ de governadores constrange deputados
Deputados de vários partidos relatam desconforto com o que consideram jogo duplo dos governadores, principalmente os de oposição, na discussão da reforma: enquanto Paulo Câmara (PE) e Rui Costa (PT), por exemplo, dão declarações públicas de apoio à emenda, que pode aliviar a situação fiscal dos Estados, deputados do PT e do PSB ocupam os holofotes para bombardear a proposta.
Cristiano Romero: As mágoas do presidente
Paulo Guedes teve que admoestar Bolsonaro antes de acalmá-lo
O clima tenso das últimas duas semanas amainou em Brasília, mas os curiosos continuam interessados em saber por que o presidente da República decidiu comprar briga com o presidente da Câmara dos Deputados, um aliado do governo, no momento em que a proposta da mais difícil das reformas - a da Previdência - chegou ao Congresso Nacional. A explicação pode ser mais simples e muito menos sofisticada do que se imagina, mas o alarido, dada a gravidade da crise econômica vivida pelo país há meia década, será sempre grande.
Ao tentar desmoralizar publicamente o deputado Rodrigo Maia (DEM-RJ), Jair Bolsonaro seguiu o caminho de Dilma Rousseff, afastada com menos de 15 meses do exercício do segundo mandato. A diferença é que, nada realista, a ex-presidente achou que impediria a eleição de Eduardo Cunha a presidente da Câmara, enquanto Bolsonaro, em nenhum momento, manifestou oposição à ascensão de Maia.
Bolsonaro é um presidente que assumiu o cargo com raiva. Não é, porém, o primeiro a tomar posse da Presidência da República magoado. Luiz Inácio Lula da Silva perdeu a disputa três vezes (1989, 1994 e 1998) antes de chegar lá, em 2002. Foi reeleito quatro anos depois e, contrariando a "maldição do segundo mandato", era tão popular no 8º ano de poder que escolheu e elegeu a sucessora, uma estreante em eleição.
O sucesso, porém, jamais aplacou profundas mágoas de Lula com jornalistas, que considerava preconceituosos, antigos aliados (o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, dos tempos da luta pela redemocratização, era um deles), empresários e banqueiros, a quem atribuiu o interesse em apeá-lo do poder durante o escândalo do mensalão (em 2005). "Fiz tudo o que esses 'caras' pediram e agora eles querem me derrubar", desabafou o então presidente.
Em seus diários, FHC não poupa a imprensa. Em seus dois mandatos (1995-1998 e 1999-2002), teve amplo apoio das empresas de comunicação para a agenda de modernização da economia, que contemplou a quebra de monopólios estatais e a privatização de companhias como a Vale. Ainda assim, sentiu-se incompreendido e até perseguido por jornalistas e órgãos da mídia.
A amargura de Bolsonaro está apenas começando. Sua eleição não foi antecipada por nenhum dos principais analistas políticos. Para a maioria, senão para todos, o então candidato do desconhecido e "irrelevante" PSL derreteria nas pesquisas tão logo começasse oficialmente a campanha, em agosto do ano passado. Em setembro, ele foi esfaqueado durante ato da campanha e o ataque foi visto como o evento que o teria catapultado à vitória. Essa leitura irrita o presidente. Para ele, os analistas continuam sem enxergar o fenômeno eleitoral.
Bolsonaro considera que, durante os 28 anos em que esteve em Brasília como deputado, jamais foi respeitado pela imprensa. Ele sabe, porém, que numa democracia representativa como a brasileira só são reverenciados dois tipos: os que detêm poder real, como o presidente da República, o ministro da Economia e os presidente da Câmara e do Supremo Tribunal Federal; e aqueles que têm expectativa de poder, caso, por exemplo, de quem governa o Estado de São Paulo, dono do segundo orçamento público do país e cuja economia responde sozinha por mais 30% do PIB nacional.
Fora disso, grosso modo, resta muito pouco em Brasília. Talvez, esteja aí a beleza da democracia: um parlamentar pode chegar desconhecido ao centro do poder e, quatro anos depois, a depender do que realize, tornar-se uma referência, cotado para assumir cargos importantes no Congresso ou no governo.
Um exemplo: o ex-deputado Rogério Marinho, atual secretário de Previdência do Ministério da Economia, negociou em silêncio, na última legislatura, a reforma trabalhista; quando se tomou ciência do assunto, as mudanças foram aprovadas num átimo; na eleição, os potiguares negaram a Marinho um novo mandato - também pudera: sindicatos, inclusive de São Paulo, mandaram a Natal um batalhão de doutrinadores para fazer pregação contra o candidato que atuou como relator de mudanças na CLT -; a coragem e a consciência do ex-deputado quanto à relevância das duas reformas, além de sua habilidade comprovada para negociar temas considerados impopulares, fizeram o ministro Paulo Guedes convidá-lo a cuidar da reforma das reformas; se a proposta passar, Marinho subirá na hierarquia dos que têm expectativa de poder.
Durante sua carreira política, Bolsonaro não teve poder real nem expectativa de um dia vir a ter. Ninguém percebeu que ele se apresentou desde o início como o candidato anti-PT, o símbolo da luta contra a ruína econômica provocada por quase seis anos de gestão Dilma Rousseff. O desgaste do PT era evidente, mas os analistas presumiram que o voto antipetista desaguaria na candidatura do tucano Geraldo Alckmin. Estávamos todos enganados.
Do alto dos 57,8 milhões que obteve no segundo turno da eleição presidencial, Bolsonaro não perdoa essa "falha". Acha que ainda não há trégua e que, em quase cem dias de gestão, só apanha da imprensa. Teria vindo daí a disposição a bater em Rodrigo Maia. Fez isso uma vez, depois outra, levando o mercado, entusiasta da agenda liberal, a duvidar da fé cega no político que tirou o PT do poder depois de 16 anos.
Preocupado, Paulo Guedes procurou o presidente e, depois de uma conversa, convenceu-se de que o acalmara. Bolsonaro ignorou o apelo e bateu novamente em Maia. Foi quando o ministro da Economia decidiu ser mais enfático, mas por meio de nova estratégia. Na primeira oportunidade pública, declarou que não tinha apego ao cargo e que, se seu chefe e o Congresso não quisessem aprovar a reforma da Previdência, ele teria mais o que fazer. O chefe sentiu o golpe.
Admoestado por seu principal ministro, Bolsonaro teria dito o seguinte: "PG, todo mundo só bate em mim, não há folga. Eu só quis dar um 'peteleco' no Rodrigo". PG explicou que a pancada não é conveniente, especialmente, neste momento, e ouviu de volta: "Fala para o Rodrigo que, quando eu retornar de Israel, vou dar um beijo na boca dele".
Ricardo Noblat: Em busca do passado perfeito
O medo do futuro
O que a viagem do presidente Jair Bolsonaro a Israel tem em comum com a celebração do aniversário do golpe militar de 64 que ele insiste em dizer que não foi um golpe, mas uma revolução?
Uma palavra responde: retropia. Que significa uma volta ao passado mistificado. A utopia é um lugar inexistente, perfeito. A retropia é um passado perfeito ou quase, e que jamais existiu.
Zygmunt Bauman, filósofo polonês, filho de pais judeus, que viveu os horrores da 2ª Guerra Mundial, destacou-se pelo estudo da retropia e de suas causas. Ele a explica assim:
“O futuro, outrora a aposta segura para o investimento de esperanças, tem cada vez mais sabor de perigos indescritíveis. Então, a esperança, desprovida de futuro, procura abrigo num passado outrora ridicularizado e condenado, morada de equívocos e superstições”.
Bolsonaro foi a Israel para agradar os evangélicos que o apoiam. Parte deles acredita no mito de que cristãos e judeus se unirão um dia. Quando isso acontecer, Jesus voltará para salvar os convertidos.
Uma revolução democrática ao invés de um golpe que deu origem a uma ditadura que torturou e matou, é também um mito que agrada os militares, aliados de Bolsonaro, e a ele mesmo.
É retorno a um passado que se quer reescrever e idealizar para se contrapor a um presente indesejável e a um futuro que se teme. Não se lava dinheiro? Lava-se também o passado.
Daí porque menino deve vestir azul, e menina rosa. Cabe à mulher ser bonita, limpinha e cuidar da casa e dos filhos, e ao homem prover o sustento da família. Salário igual para os dois? Não.
Todo o mal deve ser atribuído aos que pensam e procedem de maneira inversa. O nazismo foi um mal? O nazismo, portanto, foi um movimento de esquerda, e a esquerda deve ser dizimada.
Globalismo tem a ver com comunismo. Resgate-se, pois, a ideia de Estados fortes. A imprensa é coisa do demônio, que é vermelho. As redes sociais são o paraíso e, ali, se travará o bom combate.
Brasil acima de tudo. Deus acima de todos – e estamos conversados.
General corrige o capitão
E chama guru de “personalidade histérica”
Sempre que o presidente Jair Bolsonaro dispara idiotices ou faz afirmações temerárias, um dos generais do seu governo é destacado para reparar o estrago.
Desta vez foi o general Santos Cruz, ministro da Secretaria de Governo. Ele negou que o regime instaurado no país em 1964 foi um golpe de Estado, mas reconheceu que deu origem a uma ditadura.
“Foi uma ditadura com algumas características. Nem todas são iguais”, disse em entrevista, ontem, à GloboNews, na contramão do que repete Bolsonaro desde que foi obrigado a deixar o Exército.
Santos Cruz virou o alvo preferencial das críticas feitas aos militares no Twitter pelo autoproclamado filósofo Olavo de Carvalho, guru de Bolsonaro, dos seus filhos e de legiões de energúmenos.
“É necessário tomar muito cuidado quando se está lidando com uma personalidade histérica”, comentou o general. Que defendeu a negociação com os partidos para aprovar a reforma da Previdência.
De Israel, Bolsonaro mandou dizer que na volta ao país reservará meio expediente por dia para receber deputados e senadores que queiram conversar com ele.
Faria bem se desse um chega para lá no seu guru. Os militares não o suportam. E já não aguentam mais ser ofendidos por ele.
Pergunta ao capitão
Tempo desperdiçado
Com quase 100 dias de governo, quando o capitão Jair Messias Bolsonaro começará a governar?
Por ora, ele só atrapalha, tuíta, alimenta falsas polêmicas e passeia para aqui e acolá.