Merval Pereira: LSN, incompatível com a democracia

Assim como chegou a vez de extinguir a Lei de Imprensa promulgada na ditadura militar, graças à ação, em 2009, do então deputado federal Miro Teixeira, jornalista e advogado, parece ter chegado ao fim a vigência da famigerada Lei de Segurança Nacional.

O presidente da Câmara, Arthur Lira, quer colocar em votação um pedido de urgência para a análise de um projeto de lei que revisa integralmente a LSN. As mesmas razões se impõem hoje. Conforme argumentou na ocasião Miro Teixeira, a Lei de Imprensa imposta pela ditadura militar continha dispositivos incompatíveis com o Estado de Direito inaugurado com a Constituição de 1988, como a prisão de jornalistas condenados por calúnia, injúria e difamação.

Com sua revogação, as questões envolvendo notícias ou comentários têm nos Códigos Civil e Penal sua resolução. Também a Lei de Segurança Nacional (LSN) tem servido de base para diversas ações do atual governo contra seus opositores, jornalistas e cidadãos em geral. Dados oficiais mostram que, nos últimos 18 meses, foram abertos 41 inquéritos com base na LSN, mais do que em qualquer período dos últimos 20 anos, quando foi usada 155 vezes.

O artigo 26, que considera crime “caluniar o Presidente da República, o do Senado federal, o da Câmara dos Deputados ou o do Supremo Tribunal Federal, imputando-lhes fato definido como crime ou fato ofensivo à reputação”, é o mais usado para coagir os críticos do governo. O projeto de lei na Câmara pretende alterá-lo para considerar crime apenas atentados contra a integridade física de autoridades, cuja pena pode chegar a 30 anos em caso de morte.

Uma dificuldade, ou um constrangimento, para que o Supremo Tribunal Federal (STF) reveja a LSN é que ele a vem utilizando em inquéritos sobre os ataques desferidos contra o próprio Supremo, nas manifestações antidemocráticas acontecidas e na prisão do deputado Daniel Silveira.

Existe, porém, uma explicação jurídica para isso: a lei está em vigor até que seja extinta. Também a Lei de Imprensa era usada para processar jornalistas ou exigir direito de resposta, até ser revogada. Por isso mesmo, deve ser extinta. O ministro Gilmar Mendes, que é o relator de ações no Supremo que pedem que a LSN seja revogada, deu cinco dias para que o Ministério da Justiça justifique o uso da lei contra os que supostamente ofenderam o presidente da República.

Para o ministro Luís Roberto Barroso, a Lei de Segurança Nacional precisa de uma revisão, ou mesmo revogação completa, para sanar as “inconstitucionalidades variadas”. Ele falou em seminário virtual do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, considerando a LSN “uma obsessão mais com a segurança do Estado do que com a institucionalização da democracia e com o exercício pleno da cidadania”.

Ao afirmar que a LSN não se coaduna com a atualidade da sociedade brasileira, o ministro Barroso está entrando numa questão jurídica que vem sendo debatida desde a promulgação da Constituição de 1988: a recepção das leis anteriores. O jurista Marcelo Cerqueira, ex-deputado federal e advogado de presos políticos, que atuou na Constituinte como assessor, defende desde sua tese de 1994, com que foi aprovado como professor titular da Universidade Federal Fluminense, que, como definiu o jurista austríaco Hans Kelsen, as leis incompatíveis com o espírito de uma nova Constituição não são “recepcionadas”por ela, e considera que a Lei de Segurança Nacional (LSN) é uma delas e deveria ser tratada não apenas como inconstitucional, mas “ilegal”.

Para ele, “há um direito novo que o pacto político alargou e que a Constituição refletiu. Os novos preceitos constitucionais permitem uma outra leitura do direito, um novo impulso em que as regras velhas se vestem com novas roupagens para ser aceitas na festa da democracia”.


Míriam Leitão: Escolhas erradas no pior da crise

Há algo profundamente errado no Orçamento, além de todos os números desencontrados. Os erros são crassos, de todos os lados, e reveladores. Mas a principal falha é que o governo e o Congresso juntos fizeram uma peça em completo divórcio com o país. Os brasileiros estão morrendo, as emergências são dramáticas na saúde e na educação, mas o Orçamento garantiu verba para submarino nuclear e corvetas dos militares, encheu os bolsos dos parlamentares de emendas, reservou verba para os palanques de Bolsonaro. É a prova, mais uma, de um governo alheio a tudo o que é de fato urgente neste pavoroso momento brasileiro.

Mesmo se houvesse mais dinheiro para o Ministério da Educação, o risco é o uso errado. O ministro Milton Ribeiro saiu da sua inexistência para ir ao Congresso defender a medieval educação domiciliar, com a socialização das crianças sendo feita nas igrejas, e as verbas para programas essenciais foram cortados. O autor da lei da compra de vacinas pelas empresas queria passar o custo para todos os brasileiros. O deputado Hildo Rocha (MDB-MA), autor da lei que autoriza o fura-fila na vacinação, queria incluir um dispositivo permitindo que os empresários descontassem no Imposto de Renda Pessoa Jurídica. Diante das críticas, recolheu sua péssima ideia. Mas é um sinal da distorção na escolha das prioridades dos poderes no Brasil. O ministro Kassio Nunes Marques, ao expedir sua liminar permitindo os cultos no meio desta carnificina que virou o Brasil, mostrou que também o Judiciário pode ser colhido por essa falta de noção que atingiu os poderes no Brasil. Como perguntou o prefeito de Belo Horizonte, Alexandre Kalil, em que planeta estão os negacionistas?

O Orçamento é parte dessa mesma confusão de prioridades. Quem entra no emaranhado dos números vê muita coisa errada nos detalhes, de parte do Executivo e do Legislativo. Ninguém pode dizer que não viu a grande lambança das contas públicas. No blog ontem contei que houve pedalada para frente e pedalada para trás. O governo superestimou despesa, o relator subestimou. No caso dos gastos da Previdência, o projeto de lei orçamentária previa R$ 712 bilhões. Isso é, segundo técnicos, pelo menos R$ 7 bilhões a mais do que o valor que pode ser projetado. O valor correto seria em torno de R$ 705 bilhões. Mas o relator Márcio Bittar (MDB-AC) fez algo ainda pior, ele subestimou despesa obrigatória e colocou no seu relatório R$ 698 bilhões. O governo fez o cálculo do aumento da despesa vegetativa, mas não considerou os ganhos da reforma da Previdência. Isso é um dos detalhes desse emaranhado numérico. Isso é só um exemplo da torre de babel que se tornou esse Orçamento do ano, com comprovações explícitas de erros de parte a parte.

Em cada escolha, o que se vê é o retrato de um governo com distorção da realidade. O Censo pode até não ser feito neste ano e ficar para 2022. Há uma discussão entre especialistas se faz agora ou no próximo ano com mais segurança. Mas o que é mais importante é se dar conta de que o governo vem estrangulando o IBGE desde 2019. O previsto inicialmente eram R$ 3,4 bilhões, o Ministério da Economia mandou cortar R$ 1 bilhão. A então presidente do IBGE aceitou e reduziu os questionários. Depois cortou mais R$ 400 milhões e agora acabou praticamente com a dotação. O atual governo briga com números e não vê relevância em estatística. E o Censo será fundamental para trazer os dados com os quais reconstruiremos as políticas públicas.

Neste momento aumentou espantosamente a insegurança alimentar no Brasil. E o governo só neste quarto mês do ano está depositando nas contas digitais da Caixa o auxílio emergencial. Em dezembro, estava claro que seria necessária uma nova rodada do auxílio, mas o Ministério da Economia fez avaliação errada de conjuntura. Achou que o país estava retomando o crescimento, quando estava entrando em nova onda de contágio e mortes.

Depois que consertarem todas as contas do Orçamento da União, com vetos em emendas e um projeto restaurando as despesas obrigatórias, quando resolverem todos os conflitos com as leis fiscais do país, sobrará a questão mais importante: no Brasil, executivo e legislativo erram dramaticamente ao definir que prioridades o país deve ter no meio da maior crise em um século.


Raquel Virgínia: Chame meu nome

Equipes mais diversas tornam as empresas mais criativas e rentáveis

“Seja aliada de quem, numa mesa cheia de oportunidades, fala seu nome.” Este foi um dos conselhos mais importantes que ouvi como empreendedora. Afinal, é em uma mesa como essa que se define quem vai angariar seus negócios.

É nesse ambiente que projetos de pessoas trans e negras precisam acontecer. Os motivos para isso são claros: lucro e inovação. Pesquisa da McKinsey & Company mostra que as empresas com maior diversidade étnica em suas equipes executivas têm 33% mais propensão à rentabilidade. Assim, se nossas marcas querem se modernizar de acordo com as premissas da presente década, é preciso considerar que sua mesa de negócios deve ser frequentada por pessoas trans e pretas.

Hoje, para uma empresa ser competitiva, é preciso ter times mais diversos. Inclusive, é provado que equipes com essa característica são mais criativas e rentáveis. Estudo realizado pela consultoria Accenture, com 18.120 profissionais em 27 países, incluindo o Brasil, destacou que companhias diversas e inclusivas são 11 vezes mais inovadoras e possuem funcionários 6 vezes mais criativos do que a concorrência.

O Brasil apresenta valiosa fonte de recursos humanos nesse sentido, que faz de nós uma potência. Esse é o grande desafio da Nhaí!: reconhecer, potencializar e realocar talentos nos espaços para que tenham voz.

Outro movimento que vai garantir uma economia mais criativa e competitiva é a priorização de projetos de pessoas trans e pretas como parte da agenda comercial anual.

Atualmente, o que se percebe são empresas tentando cumprir o calendário dos movimentos sociais. Dia da Consciência Negra em novembro, por exemplo, ou o Dia da Visibilidade Trans, em janeiro, influenciaram algumas instituições privadas a assumirem a responsabilidade social justa de apoiar as datas. Entretanto, faço o convite para irmos além. Explico: esse movimento pontual acaba rompendo com a possibilidade de continuidade e faz de nossa economia óbvia, sem chance de gerar novas tecnologias. Assim, torna-a menos competitiva.

Como empreendedora negra e trans, faço um convite à reflexão: as empresas que marcam época e fazem história são as que ousam e apoiam ousadias. No momento presente, enquanto você me lê, há projetos incríveis que estão sendo elaborados por pessoas trans e pretas. Projetos disruptivos e escaláveis que podem contribuir muito para o avanço das nossas lógicas e perspectivas. É assim que se cria o novo e torna nossa economia mais robusta. Nossa sabedoria nessa década desafiadora consiste em conseguir impulsionar essas iniciativas.

Bayer realiza programa de trainee exclusivo para pessoas negras

Bayer realiza programa de trainee exclusivo para pessoas negras Reprodução. Leia Mais

Nesse sentido, este texto começa destacando aliados que, em mesas de negócios com oportunidades, rompem com lógicas viciadas e destacam projetos de pessoas trans ou pretas.

Para criarmos projetos realmente disruptivos e lucrativos, vamos precisar fazer diferente: teremos de assumir a diferença como parte do processo. Um processo contínuo, fluido e eficaz. Convide pessoas trans e pretas para a sua mesa de negócios —seus números vão agradecer.

* Raquel Virgínia é empreendedora, vocalista da banda As Baías e fundadora da produtora Nhaí!


Fernando Schüler: Estado deveria agir para reduzir desigualdade, mas resultado vem sendo o inverso

Faltou agilidade e senso de urgência ao setor público, e a conta será paga pelos mais pobres

Lucas tem 17 anos e foi trabalhar, leio em uma reportagem. Cursava o último ano do fundamental e largou. Foi no ano passado, em meio à pandemia. A internet em casa não era das melhores para fazer as tarefas da escola e a situação econômica apertou. Quem sabe um dia volta em algum supletivo.

Lucas não é exceção. A evasão escolar sempre foi alta no Brasil. Um estudo do Inep mostrou que, entre 2010 e 2016, apenas 49,3% dos alunos e 61,3% das alunas do sexto ano do fundamental concluíram, no tempo certo, o ensino médio.

A pandemia irá piorar isto e ampliar ainda mais o “gap” de gênero. O Unicef mostrou que o Brasil é um dos cinco países que mais permaneceu com escolas fechadas. Foram 191 dias entre março de 2020 e fevereiro de 2021, contra 52 dias na média europeia.

São evidentes os danos que isso irá gerar. A “geração Covid” terá um déficit de aprendizagem. Terá desvantagem quando for disputar espaços no mercado. O Banco Mundial diz que o percentual de estudantes sem o conhecimento mínimo para ler adequadamente um texto irá de 55% para 77% se as escolas fecharem por 13 meses. Exagero? Não creio.

Há muitas questões aí. A primeira e mais inconveniente é sobre a real utilidade das medidas de fechamento. Estudo da Universidade de Zurique não mostrou alteração do ritmo da pandemia em 131 municípios paulistas que reabriram as escolas.

Guilherme Lichand, coordenador da pesquisa, sugere que “é difícil para a população de menor renda ficar em casa”, e que “o ganho marginal de fechar escolas não supera o alto custo de deixar as crianças sem aulas”.

Há muitos estudos nesta direção. O Centro Europeu de Prevenção e Controle de Doenças apresentou uma ampla revisão de dados, concluindo que as escolas devem fechar apenas em última instância e que “o impacto negativo sobre a saúde física, mental e educacional das crianças, e o impacto econômico na sociedade, provavelmente superaria os benefícios”.

O tema é difícil e é compreensível o receio dos professores. A reabertura, de todo modo, precisa ser feita com prudência, e a vacinação de professores deveria ser prioritária.

Outro resultado da crise será o aumento da desigualdade. O estudo do Banco Mundial diz que irá para quase três anos letivos a diferença de aprendizagem entre os alunos de menor e maior renda. No Brasil, essa cisão equivale basicamente aos alunos que frequentam as redes públicas e privadas de ensino.

Surge aí a pergunta: o que houve com o setor público? O argumento mais cruel que escuto por aí sugere que o problema são os próprios alunos. Dado que boa parte não possui um computador e boa internet, não haveria muito o que fazer. É um argumento confortável, que toma um dado óbvio da realidade brasileira e o transforma numa bela desculpa para nossa inércia.

É evidente que a condição econômica pesa, e é exatamente para isto que existe o Estado. Para dar conta dessas carências e garantir o acesso ao ensino. Se não souber fazer isto, é preciso reconhecer e mudar a nossa maneira de gerir a educação.

Daria para fazer diferente? O Peru, logo no início da pandemia, fez uma compra maciça de equipamentos para os alunos vulneráveis. No Brasil isto custaria R$ 3,9 bilhões, segundo dado do Ipea, percentual ínfimo do que foi gasto com a pandemia. Não fizemos, não nos antecipamos, não compramos, e agora não passa de desculpa fácil dizer que o problema é a condição social dos alunos.

O que falta ao sistema é agilidade e senso de urgência. Na tomada de decisão, na compra de equipamentos, no treinamento dos professores para adaptação ao ensino remoto, para oferecer aulas híbridas, com uma parte dos alunos em casa, outra na escola. Tudo que o setor privado fez não por generosidade, mas pelo risco dos pais irem bater na porta da escola concorrente.

A conta, como de hábito, será paga pelos alunos e famílias que não têm outra porta para bater, que dependem do monopólio do Estado, e sequer têm poder para fazer pressão no sistema político.

Meu colega Naercio Menezes sugeriu uma medida audaciosa: colocar os alunos para cursarem dois anos em um. Dobrar o uso das escolas, se for preciso, de modo a recuperar o máximo do prejuízo educacional. “Acho possível fazer”, diz ele, “mas conhecendo o Brasil, acho difícil que aconteça”.

Também acho. Mas se ao menos pudermos aprender um pouco com este “striptease” feito pelo nosso sistema educacional, já será alguma coisa.​

*Professor do Insper e curador do projeto Fronteiras do Pensamento. Foi diretor da Fundação Iberê Camargo.


Maria Hermínia Tavares: A cadeira das mulheres

Quando se olha a participação no Legislativo federal, o país está na rabeira da América Latina

Autora de um precioso artigo sobre a trajetória política da médica Carlota Pereira de Queiroz (1892-1982), a socióloga Albertina Oliveira Costa gosta de contar que a primeira parlamentar brasileira comparecia às sessões da Constituinte de 1934 com uma dama de companhia para não ficar sozinha no meio de seus 253 colegas homens.

Nenhuma mulher participou da elaboração da Carta de 1946, que legou ao país uma democracia restrita aos alfabetizados. Em 1988, 26 deputadas —5% do total— ajudaram a fazer a Constituição Cidadã. Hoje, as mulheres ocupam 15% dos assentos na Câmara e 13% no Senado.

Progresso houve, mas muito pouco e muito lento. Por isso, entre 2006 e agora, o Brasil perdeu 26 posições no ranking global de igualdade de gênero do Forum Econômico Mundial, ficando na modestíssima 93ª posição entre 156 nações.

Quando se olha apenas o Legislativo federal, o país está hoje na rabeira da América Latina. Nas três décadas em que a democracia se instalou para valer na área, políticas de ação afirmativa —com frequência por meio de cotas fixadas em lei— apoiadas em mobilização política, ativismo social e atuação do Judiciário aumentaram consideravelmente a participação feminina nas instituições políticas. Hoje, quase a metade das cadeiras na Câmara de Deputados e no Senado do México e cerca de 42% na Argentina é ocupada por mulheres.

No Brasil, a primeira lei de cotas para candidatas ao Legislativo data de 1997. A ela se seguiram outras normas fixadas pelo Tribunal Superior Eleitoral que trataram de calafetar brechas. Apesar disso, progrediu-se pouco. As causas de tão pequena mudança rumo a um equilíbrio maior de gênero na representação política foram discutidas em debates recentes promovidos pela ONU Mulheres e pelo Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília, acessíveis no Youtube.

Não há como discordar da professora Flavia Biroli, da UnB, quando afirma que os maiores obstáculos estão nas regras eleitorais e nas estratégias dos líderes partidários.

De um lado, o sistema de lista aberta de candidatos dificulta a vida das mulheres, especialmente daquelas que dispõem de poucos recursos e carecem de redes familiares ou sociais poderosas. A experiência internacional mostra que listas eleitorais fechadas e preordenadas favorecem a representação de mulheres e minorias.

Foi esse o sistema que, em 1933, permitiu a eleição da doutora Carlota. Mais importantes, de todo modo, parecem ser as decisões dos que controlam os partidos e que funcionam como sentinelas que, salvo exceções, os mantêm como fortalezas masculinas.

*Professora titular aposentada de ciência política da USP e pesquisadora do Cebrap


Bruno Boghossian: Kassio Nunes logo terá companhia no STF para fazer estragos

Bolsonaro trabalha para ocupar máquina pública com operadores ultraconservadores

Quando procurava um nome para comandar a Ancine, ainda no primeiro ano de governo, Jair Bolsonaro não escondeu o perfil desejado. O presidente disse que o chefe da agência deveria andar com a Bíblia debaixo do braço, saber recitar 200 versículos e ter os joelhos machucados de tanto rezar.

Pode-se imaginar por que seu governo exigiria essa experiência tão peculiar de candidatos a gerenciar um órgão de incentivo ao cinema. A ocupação de espaços de poder por portadores de um currículo ideológico alinhado ao bolsonarismo sempre foi uma obsessão do presidente.

Bolsonaro transformou em projeto a confusão entre valores conservadores e as ações do governo. O objetivo é implantar à força nessa estrutura uma cultura da ultradireita.

A consequência é a ruína generalizada da máquina pública. O departamento bolsonarista de recursos humanos adotou como itens de suas entrevistas de emprego crenças exóticas como o antiglobalismo, o culto à cloroquina, o anticomunismo e o armamentismo. Só faltou procurar alguém que respeitasse as leis e soubesse o que está fazendo.

Essa invasão política ajuda Bolsonaro a manter coesa sua base eleitoral. Quanto mais ele esbraveja a favor das armas ou usa argumentos religiosos para atacar adversários, mais firme fica seu vínculo com os segmentos ligados a esses valores.

Os prejuízos coletivos aparecem em casos como a inútil discussão no STF sobre o fechamento de igrejas na pandemia. O ministro Kassio Nunes Marques ignorou o morticínio nacional e o risco de transmissão do vírus e disse que aquela medida era desproporcional.

Candidato ao tribunal na vaga reservada a um ministro “terrivelmente evangélico”, Augusto Aras afirmou que “o Estado é laico, mas as pessoas não são”. Seu principal concorrente, André Mendonça, citou versículos bíblicos e disse que os cristãos “estão sempre dispostos a morrer para garantir a liberdade de religião”.

Sozinho, Kassio já produz estragos, mas logo deve ganhar companhia.


Vinicius Torres Freire: Com menos dinheiro no bolso do povo e menos votos, Bolsonaro fica mais agressivo

Renda de benefícios cai, restrições da epidemia crescem, presidente perde votos

Até março de 2020, a soma de certos dinheiros que o governo federal transfere para pessoas físicas era de R$ 69 bilhões por mês. Em abril, essas transferências passaram para R$ 105 bilhões, graças ao auxílio de renda do período de epidemia. No pico, em junho, foram a R$ 149 bilhões mensais. Em janeiro e fevereiro deste ano, a média desses pagamentos regredira a R$ 69 bilhões mensais.

Os brasileiros voltaram a sacar dinheiro das cadernetas de poupança nos primeiros três meses do ano. Tomaram menos empréstimos nos bancos no primeiro bimestre. A renda disponível para consumo caiu para a massa de pessoas sem ganhos do capital ou de aplicações financeiras.

As transferências do governo federal são benefícios de INSS, Bolsa Família, Benefício de Prestação Continuada (BPC, para idosos e deficientes muito pobres), abono salarial, seguro-desemprego e alguns outros quebrados.

Essas transferências foram engordadas pelo auxílio emergencial, pelo programa de complementação de salário (BEm) e por antecipações da data de pagamento de benefícios. Não estão incluídas nessa conta aposentadorias de servidores (que variam pouco a curto prazo) e transferências estaduais e municipais —as extraordinárias da epidemia, em particular, não devem ter aumentado até fevereiro, porém.

A popularidade de Jair Bolsonaro chegou ao auge entre agosto e outubro do ano passado, quando os auxílios ainda eram grandes, a renda do trabalho se recuperava um pouco e eram relaxadas medidas sanitárias de restrição de movimento e aglomeração. Desde janeiro, o prestígio de Bolsonaro cai.

A despiora da economia e da situação do trabalho compensou em parte o fim dos benefícios emergenciais —na média. Na realidade, muita gente ficou sem auxílio e continuou sem trabalho, em particular os mais pobres. O descompasso tem um efeito econômico (os pobres consomem sua renda inteira ou quase isso) e sociopolítico, óbvio.

A pobreza voltou a aumentar, de setembro até o fim do ano (não há dados mais recentes para fazer as contas. Difícil que não tenha aumentado). Há sinais de estresse entre os remediados (entre pobres, há fome).

A poupança perde dinheiro, embora os saldos ainda sejam grandes. Até março de 2020, o total acumulado na poupança crescia ao ritmo de uns R$ 20 bilhões. Em março deste 2021, ainda havia nas contas R$ 120 bilhões a mais que em março de 2020, mesmo depois do saque total de R$ 27,5 bilhões no primeiro trimestre. Mas há saques.

O governo federal pretende pagar uns R$ 44 bilhões nos três meses desta rodada de auxílio emergencial. Era o que pagava, por mês, de maio a agosto de 2020. Ou o que pagou em setembro e outubro de 2020. O auxílio valerá menos também porque foi comido pela inflação.

O receio de gastar (“poupança precaucional”), o medo da morte e as restrições oficiais de movimento vão derrubar consumo, renda e emprego (saberemos quanto apenas lá por junho).

Bolsonaro não vai poder contar com auxílios e o efeito de alívio da reabertura da economia no terceiro trimestre de 2020, se foram de fato esses os motivos da recuperação da sua popularidade. Talvez por isso ora ponha fogo na sua campanha eleitoral-golpista permanente.

Nesta quarta-feira (7), reclamou de novo da Petrobras, atacou os “lockdowns”, ameaçou botar as Forças Armadas na rua contra o tumulto social e outros horrores do repertório. Antes de jantar com empresários, vomitava no país.

Se o motivo da ofensiva é esse mesmo, o trimestre por vir será mais tenso. Como se isso ainda fosse possível.


Adriana Fernandes: Crise do Orçamento deixou mágoas na relação entre Congresso e governo

Independentemente do tamanho do acerto do presidente Jair Bolsonaro com o comando do Congresso para a saída do impasse sobre as emendas parlamentares do Orçamento de 2021, a crise política já deixou mágoas e feridas abertas na relação entre o Senado e a Câmara e também com o governo.

As cicatrizes poderão ser maiores ou menores a depender da forma como o presidente vai bater o martelo. Bolsonaro tem prazo até dia 22 para sancionar o Orçamento. De hoje até lá, parece uma eternidade.

Foi assim em 2020, quando impasse orçamentário semelhante se instalou na República, no momento em que a pandemia da covid-19 mostrava a sua cara no Brasil. A diferença é que agora Senado e Câmara estão divididos. Lideranças já avisaram que o rancor é grande no Senado com Paulo Guedes pela postura que consideram errática do ministro da Economia em relação ao acordo feito pelo governo para acomodar o aumento das emendas parlamentares com cortes de despesas obrigatórias.

O Senado ficou com a imagem chamuscada porque não cumpriu o acordo das emendas e aumentou a parcela para obras de interesse dos senadores. Será, portanto, o mais atingido pelo desfecho da crise, que ainda não está fechado e terá de passar pelo arbítrio do presidente Bolsonaro. Por sua vez, a Câmara vai ficar com o que já tinha negociado antes da votação. É para isso que o presidente da Casa, Arthur Lira, luta e sobe o tom: garantir o mesmo valor das emendas parlamentares para os deputados que já estava acertado. Nenhum centavo a mais ou a menos.

A crise causa frisson e explica o vaivém de rumores que têm surgido no mercado com o processo “estica a corda” do Centrão. É o jogo de pressão funcionando.

No mercado financeiro, enquanto reunião sobre Orçamento acontecia em Brasília, a especulação que corria era de que, se não houvesse acordo, Guedes poderia cair. Quem não gosta do ministro da Economia pega carona na crise para desgastá-lo ainda mais.

Enquanto a corda estica, o recado que vem sendo transmitido pelos líderes é que haverá maior dificuldade para aprovação dos projetos de interesse da área econômica. Muitos falam em retaliação a Guedes que na visão deles trava o acordo.

Um aperitivo já foi dado pelo Senado que colocou na pauta de votação projeto que permite às empresas cortarem jornada e salário dos funcionários ou suspenderem contratos neste ano, nos mesmos moldes do programa adotado em 2020, o BEm.

Na hesitação do governo sobre como bancar o BEm em alinhamento às regras fiscais, o Senado foi lá e cravou uma no governo, que no mesmo dia saiu do muro e mandou projeto para alterar a Lei de Diretrizes Orçamentárias e abrir caminho ao financiamento do BEm por meio de créditos extraordinários e sem compensação de aumento de arrecadação ou mais corte de despesa.

O recado político do Congresso, que tem chegado até empresários e banqueiros, é o de que haverá distensão política com uma saída honrosa para a crise do Orçamento e que o tamanho das emendas não será o que foi aprovado.

Mas esse mesmo PIB, que fica cobrando publicamente as reformas, já sabe que não terá mais nenhuma aprovada. Ninguém tem expectativa de reforma nem sonha mais com elas.

Por outro lado, o recado transmitido por empresários a interlocutores do governo é que pare de meter os pés pelas mãos (ou seja, de fazer besteira) para chegar até o ano que vem, quando haverá folga orçamentária pela correção do teto de gastos pela inflação mais alta.

“Não regredir mais” virou o ponto mais alto do sarrafo das cobranças dos empresários junto com mais vacina e melhoria das relações diplomáticas. São oito meses até o fim do ano. Depois é só eleição e nada mais.

Guedes tenta evitar a decretação de calamidade (tema da última coluna) e quer administrar a edição de novos créditos extraordinários de medidas de combate ao impacto da pandemia na base do conta-gotas para controlar a expansão dos gastos.

E o presidente do Banco CentralRoberto Campos Neto, trabalha para comunicar o dilema orçamentário apontado pelo Copom como risco adicional para a inflação que pode levar a uma alta maior dos juros, como apontado por ele em entrevista ao Estadão publicada no domingo.

Guedes e Campos Neto estariam com Bolsonaro nesta quarta-feira em jantar com empresários. Tentativa do governo de estancar a sangria que faz com que o presidente esteja perdendo apoio na parcela do PIB brasileiro que o ajudou na sua eleição em 2018.


Ricardo Noblat: Jantar de Bolsonaro com empresários foi uma ação entre amigos

O presidente reafirmou o que pensa e acabou ovacionado

Nos oito anos dos governos de Fernando Henrique Cardoso, e nos oito de Lula, não foi preciso selecionar com rigor nomes de empresários dispostos a jantar com eles para driblar o risco de serem fortemente pressionados por isso ou por aquilo. Fernando Henrique estava à vontade no meio deles. Lula, também.

Já foi o caso do presidente Jair Bolsonaro até, pelo menos, metade do ano passado. Desde então deixou de ser, daí os cuidados tomados em ocasiões como essas. Recentemente, centenas de economistas, empresários e banqueiros pesos pesados do PIB assinaram um manifesto fazendo duras cobranças a Bolsonaro.

Não se tem notícia se alguns deles participaram do jantar oferecido a Bolsonaro, ontem, em São Paulo, por Washington Cinel, dono da empresa de segurança Gocil. Mas nomes graúdos compareceram. E os primeiros relatos indicam que Bolsonaro foi muito bem recebido e chegou a ser ovacionado quando discursou.

O que ele disse para merecer aplausos? No dia em que o Brasil ultrapassou a marca de 340 mil mortos pela Covid-19, o presidente fez duras críticas a Estados e prefeituras que defendem restrições mais severas de isolamento social. E defendeu a manutenção de igrejas e templos abertos, segundo o jornal VALOR.

O encontro fora planejado para apresentar um Bolsonaro mais moderado à parte do empresariado paulista. Mas ele foi o de sempre. “Tem de olhar o lado bom do país. Os investidores estão acreditando no Brasil. Basta olhar, hoje, o leilão dos aeroportos. Não existe terra melhor do que essa!”, disse o presidente.

Que em seguida disparou: “Podem me dar porrada à vontade. […] Imagina se o [Fernando] Haddad tivesse ganhado a eleição?”. E ele mesmo respondeu: “O Brasil teria afundado. Se os atuais presidenciáveis tivessem no meu lugar, tinha virado o caos social”. A agressiva retórica entusiasmou os convidados.

Eles se sentiram então mais à vontade para, a salvo dos jornalistas, impedidos de testemunhar a cena, criticarem as medidas mais duras de isolamento do governador João Doria (PSDB). Muitos aproveitaram para falar mal dos governos do PT e disseram ver Lula como seu inimigo número um.

“Estamos com o senhor. O Brasil não volta para ladrão e vagabundo”, gritou um empresário, para quem falta compreensão de certa parcela do público para entender o quanto Bolsonaro é autêntico. Flávio Rocha, um dos apoiadores de Bolsonaro, pediu a aprovação das reformas econômicas ainda este ano, e prometeu:

– Vamos te dar apoio.

Falou-se de vacinação, por suposto, mas nada que pudesse constranger o presidente, outra vez aplaudido ao afirmar que o Brasil é um dos poucos países do mundo que produzem imunizantes. Não disse que sem os insumos fornecidos por outros países, o Brasil seria incapaz de produzir as vacinas que usa.

“Foi uma conversa boa, eu gostei, me deu tranquilidade”, definiu Rubens Menin, controlador de MRV, Banco Inter e da rede de televisão CNN. Questionamentos sobre o viés ideológico de Bolsonaro ficaram de fora da pauta do jantar. “Foi uma conversa de alinhamento, não de confusão”, segundo Menin.


Eugênio Bucci: Os dez mandamentos do desmando

Verás teu povo fenecer sem o sopro da vida e isso te insuflará a embriaguez de poder

1 – Profanarás o Estado laico.

A maior notícia da temporada não tem que ver com sepultamentos noturnos extenuantes ou com reuniões angustiantes entre empresários e o presidente da República. A maior notícia é que entrou em cartaz na TV Brasil – emissora da Empresa Brasil de Comunicações, a EBC, vinculada ao governo federal – a novela Os Dez Mandamentos, produzida e já exaustivamente exibida pela TV Record. Segundo foi noticiado, a EBC pagou R$ 3,2 milhões pelos direitos de sua nova atração. Com isso vem abaixo qualquer aparência de laicidade que pudesse ainda resistir na comunicação pública da União. É verdade que a TV Cultura, de São Paulo, exibe desde sempre a missa dominical de Aparecida, mas Os Dez Mandamentos chegam à TV Brasil para explodir com todos os limites. Se a TV Cultura tem uma face de coroinha, a EBC é agora um canal escancaradamente missionário, com préstimos do dízimo do erário.

2 – Transformarás a política em fanatismo.

A mistificadora novela na TV governamental pode ser vista como um curso de formação (e de deformação) política. Nela se encena a regressão do neopentecostalismo a uma forma religiosa pré-cristã, decalcada no monoteísmo judaico. O objetivo não é espiritual. Não se trata de expandir os horizontes da fé. Trata-se apenas de catequizar as massas para convertê-las às maravilhas da autocracia.

Moisés, na trama da Record, é um líder acima de todos porque está em linha direta com Deus, alegadamente acima de tudo. Em vez de dialogar, ordena. Sua liderança exige obediência, em lugar de raciocínio. Ele não tem aliados, mas fiéis. A novela reduz a fanatismo o que há de política no Velho Testamento.

3 – Xingarás a ciência de bruxaria.

Na cosmogonia fraudulenta da novela em reprise na EBC, só a renúncia à razão pode salvar os aflitos. Somente os milagres produzem soluções – e os milagres não são acessíveis à compreensão humana. Quem busca de entender os mistérios da natureza por meio da experiência e da crítica atenta contra o sagrado. Melhor morrer cumprindo as ordens do profeta do que buscar a cura pela inteligência. A ciência é um tipo de feitiçaria e seus praticantes são apóstatas, assim como a democracia é uma tentação demoníaca.

4 – Invocarás o nome de Deus em vão, sim, Senhor.

O mandatário maior fica autorizado a, mesmo sem crer, imitar Moisés, agindo como se tivesse parte com aquilo que está acima de tudo e de todos. Assim aglomerará crédulos ao seu redor, enquanto outros se amontoarão em seu nome. Primeiro, vivos. Depois, mortos.

5 – Não te compadecerás dos que padecem no abandono.

Dizendo de outro modo: verás teu povo fenecer sem o sopro da vida e isso te insuflará a embriaguez de poder. O anjo da morte na porta do teu próximo avivará tua vaidade.

6 – Não honrarás a verdade dos fatos.

site da TV Brasil promete sensações indescritíveis, gozosas, fáceis e falsas: “A novela Os Dez Mandamentos é repleta de conflitos familiares, intrigas, luta pelo poder, traições, inveja, ódio, paixões proibidas e amores impossíveis, em tramas recheadas de muita emoção”. Eis a que se reduz o nome de Moisés na programação da emissora estatal. A propaganda, em tempos de asfixia generalizada, é de perder o fôlego. Enquanto isso, fora do site da TV Brasil, proliferam as garantias de que tudo não passará de uma “gripezinha”, sob aplausos excitados. O discurso do Planalto leva os desinformados a crer que a moléstia que os consome não passa de um embuste armado por jornalistas, cientistas, comunistas, professores, intelectuais e artistas, todos em conluio. Fechar o comércio é fazer o jogo dos covardes, diz alguém. Os autoproclamados corajosos exultam.

7 – Matarás.

Ele se olha no espelho e se vê mito. Crê ter sido predestinado a livrar o Brasil da praga do comunismo. Está acima do certo e do errado. O que é a morte de alguém, ainda que famoso, diante de tão grandiosa missão? No stalinismo, tudo era permitido em nome da classe. No nazismo, tudo era imperativo em nome da raça, incluído o genocídio: os que morreram nos campos de extermínio eram a doença, eram um vírus maligno. Ele repete: morrer faz parte. Está convicto: se todos vamos morrer um dia, que partam antes os fracos e os maricas.

8 – Conspurcarás todas as profecias.

Trazida para a TV Brasil, altar de todos os falsos testemunhos, a novela Os Dez Mandamentos tem o propósito indigno de urdir a mensagem de que as autoridades cumprem desígnios divinos. O que pode haver de mais antimoderno?

9 – Amaldiçoarás pensamentos e desejos.

Nada que não seja a obediência tem status de virtude na EBC. O pensamento foi declarado uma ameaça. O desejo, perdição – a não ser o do chefe.

10 – Não amarás a ninguém, mas adorarás a ti mesmo.

Na novela, um Moisés fake. Fora dela, um imitador barato. Cidadãos fanatizados acreditam na liberdade de levar o contágio uns aos outros. Julgam-se livres para matar e morrer. Adoram quem os condenou a parar de respirar. Não amam ninguém. Não sabem o que é amor.

*Jornalista, é professor da ECA-USP


Monica de Bolle: Os desafios de um país que está no futuro do pretérito

O passado sempre pesou mais sobre o Brasil do que o futuro ou mesmo o presente, mas, no futuro do pretérito, as discussões conjunturais perdem decididamente qualquer sentido

Há doze meses, o Brasil não imaginava que um ano depois estaria em seu pior momento da pandemia. Há nove meses, o Brasil pensava que tudo haveria de se resolver por si só, sem que qualquer ação real fosse tomada. Há seis meses, o Brasil achava que o pior tinha passado. Há três meses, o Brasil cogitava que 2021 seria o ano da retomada. Durante todo esse tempo o país não se deu conta do quão preso estava e está aos seus traumas. O Brasil é um país no futuro do pretérito. E essa é mesmo a imagem perfeita, pois que o tempo verbal expressa a ideia de um futuro construído em um momento passado e ligado a ele. O passado sempre pesou mais sobre o Brasil do que o futuro ou mesmo o presente, mas, no futuro do pretérito, as discussões conjunturais perdem decididamente qualquer sentido.

Em 1985 o Brasil não imaginava que em 2021 estaria se debatendo com o espectro da ditadura. O golpe militar de 1964 iniciou a ditadura de duas décadas que deixaria um rastro de destruição cujo legado conosco está até hoje. Morte, tortura, crises de dívida, crises externas, fome, pobreza, desigualdade, hiperinflação. Hiperinflação, aí está um dos motivos para que o país permaneça preso nesse passado que o atormenta. Tudo é motivo para pensar na hiperinflação. A crise externa de 1999 trouxe à tona o fantasma da hiperinflação, que tornaria a assombrar na crise externa de 2002/2003. Mas, apesar dos desequilíbrios e problemas, hiperinflação não houve. O Brasil se pouparia dos temores hiperinflacionários ao longo de boa parte dos anos 2000, e o espectro não surgiria sequer em 2008, ano da crise financeira internacional. Na verdade, os temores hiperinflacionários só voltariam em 2015, quando os abalos da política econômica de Dilma Rousseff ganharam expressão em dados e se fizeram sentir na vida. Novamente, os temores seriam frustrados. Escrevo estas palavras como alguém que também temeu a hiperinflação em todas essas ocasiões sem saber indicar ao certo o porquê. Afinal, trauma é trauma.

Pessoas têm traumas. Países, compostos por pessoas, têm traumas. O trauma do Brasil é a longa convivência com a hiperinflação para aqueles que dela se lembram. E há muita gente que se lembra dela. O trauma da Argentina, outro país que conviveu com a hiperinflação mais ou menos no mesmo período, ainda que por menos tempo, não é a hiperinflação. O trauma argentino é a crise da dívida de 2001, que o país insiste em reviver não somente na memória. Não falo da Argentina por acaso. Quem viveu a hiperinflação certamente se lembra do “efeito Orloff”, a peça de publicidade da vodka que pregava “eu sou você amanhã”. O Brasil viveu no futuro do pretérito com a Argentina, a Argentina viveu nesse mesmo tempo verbal com o Brasil. Até que chegaram os anos 90 e o efeito etílico se desfez com o Plano Real. Contudo, nem o Plano Real foi capaz de apagar o trauma.

Estamos em 2021, no meio de uma pandemia: a pior do século XXI e apenas comparável em escala à do início do século passado, a gripe espanhola. A atual pandemia desarticulou tudo. Cadeias de produção foram abaladas, empregos foram perdidos, empresas e negócios foram obrigados a se reinventar. Ainda que a imagem da guerra não seja a ideal para pensar a crise humanitária proveniente da covid-19, ela serve para que pensemos na inflação e na sua versão mais severa, a hiperinfllação. Como mostram os exemplos históricos, guerras afetam cadeias de produção, o suprimento de insumos, o fornecimento de serviços sem os quais algo não pode ser produzido. Por essas razões, desponta a escassez de bens. A demanda por muitos bens e serviços também cai quando há guerras, afinal, há um empobrecimento geral em meio à destruição, mas há certos produtos que as pessoas não podem deixar de consumir. A escassez de oferta, nesses casos, ocasiona inflação. O raciocínio pode ser estendido para a pandemia. Se países reduzem a exportação de determinados produtos, se as medidas sanitárias interrompem o suprimento de determinados bens ou causam a ausência de alguns serviços, cadeias de produção serão abaladas. Preços irão subir, como vimos ocorrer com os preços de alimentos no Brasil e no mundo. Essa inflação é inerente à pandemia, como é inerente às guerras. O medo de que se descontrole é justificável? Em certa medida, é. Mas não pelos motivos articulados no Brasil.

O medo da hiperinflação manifesto no Brasil, hoje, está ancorado na premissa de que estamos de volta ao passado. Ainda que assim pareça quando ouvimos o presidente da República e o uso corrente das palavras “golpe” e “militares”, o momento é outro. O país está sem lideranças no meio de uma pandemia que ceifou cerca de 3 milhões de vida no mundo todo e mais de 320.000 no Brasil. Esse país sem lideranças, que faz asfixiar e morrer, lembra o terrível passado ditatorial, mas não é igual a ele. Em alguns aspectos, é pior: foram mais mortes evitáveis em pouco mais de um ano do que ao longo de todo o período da ditadura. Em outros sentidos, não é nem melhor, nem pior, mas diferente. O Brasil está à deriva não porque sofreu uma crise de dívida externa, porque as taxas de juros globais estão subindo, ou mesmo porque não sabe controlar o déficit público. O Brasil está à deriva porque não adotou qualquer das medidas necessárias para combater a pandemia e sustentar a economia. Não planejou a campanha de vacinação, resistiu e continua a resistir às medidas de isolamento e quarentena, inventou uma data fictícia para o término do estado de calamidade, não impediu o desmantelamento das cadeias de produção por meio do apoio a pequenas e médias empresas. Fez o auxílio emergencial, é verdade. Mas o desfez para agora pôr no lugar algo pior por medo, em parte, da hiperinflação que não existe.

Nos Estados Unidos, de onde escrevo, mesmo Donald Trump adotou medidas para impedir o desmantelamento das cadeias de produção. Sua adoção evitou uma alta generalizada de preços, embora alguns produtos estejam hoje muito mais caros do que há um ano. Nem todo desmantelamento pôde ser evitado, pois uma parte é atrelada ao comércio internacional, e este também foi impactado. Mas a comparação faz ver que a realidade é que, se hoje o Brasil está preso no futuro do pretérito inflacionário, as causas não são o auxílio emergencial, nem o déficit e a dívida mais elevados. As razões estão no desprezo pelo papel do Estado na contenção de uma crise sem precedentes, o que nos põe em uma posição curiosa: o Brasil vive o trauma inflacionário não devido a um Estado excessivamente intervencionista, mas devido a um Estado ausente.

Diante desse descalabro, não há discussão de conjuntura que faça sentido. Dela, portanto, tomo a liberdade de me ausentar por tempo indeterminado.

Monica de Bolle é economista, PhD pela London School of Economics e especializada em medicina pela Harvard Medical School. É professora da Universidade Johns Hopkins, pesquisadora-Sênior do Peterson Institute for International Economics e mestranda em Imunologia e Microbiologia na Georgetown University.


Luiz Carlos Azedo: Muito além das igrejas

É surreal a polêmica que ocorre no Supremo, no momento mais dramático da pandemia, que registrou 3.829 mortes por covid-19 e 92.625 novos casos nas últimas 24 horas

O julgamento iniciado, ontem, no Supremo Tribunal Federal (STF), com o voto contrário do relator, ministro Gilmar Mendes, à liberação de celebrações religiosas presenciais, como cultos e missas, em razão da pandemia da covid-19, extrapola a crise sanitária e diz respeito à existência de um Estado laico e sua relação com a sociedade no Brasil. A ideia da separação entre a política, o Estado, e a religião, ou seja, as igrejas, não é um assunto tão pacificado como deveria, embora preconizada por Nicolau Maquiavel, em O Príncipe, desde o século XVI.

A discussão na Corte foi provocada por liminar do ministro Kassio Nunes Marques a favor da liberação dos cultos, a pretexto de defender a liberdade religiosa, acolhendo pedido da Associação Nacional dos Juristas Evangélicos. Sua decisão acabou confrontada por outra liminar, do ministro Gilmar Mendes, em favor do governo de São Paulo, que proibiu as celebrações em razão das medidas de distanciamento social para combater a pandemia.

Há jurisprudência do Supremo reconhecendo as prerrogativas de governadores e prefeitos para agirem dessa forma, mas não há súmula vinculante. A novidade é o entendimento de três aliados do presidente Jair Bolsonaro, com viés “terrivelmente evangélico”: o ministro Nunes Marques, indicado por Bolsonaro, o mais novo integrante da Corte; o advogado-geral da União, André Mendonça, que citou várias vezes a Bíblia e nenhuma vez a Constituição de 1988 no julgamento; e o procurador-geral da República, Augusto Aras, que também deveria defender o caráter laico do Estado, mas adotou uma linha juridicamente enviesada.

“As pessoas têm o direito de professar sua fé, direitos e garantias são postos em defesa do cidadão contra o Estado e não em favor do Estado contra cidadãos. A ciência salva vidas; a fé também”, argumentou Aras, em defesa da liberação de cerimônias religiosas em todo o país. O procurador-geral da República disputa com o advogado-geral da União a indicação, pelo presidente Jair Bolsonaro, para a vaga do ministro Marco Aurélio Mello no STF. O decano da Corte se aposentará em 5 de julho.

Essa polêmica é surreal, pois ocorre no momento mais dramático da pandemia, que registrou, nas últimas 24 horas, 3.829 mortes por covid-19 e 92.625 novos casos, aumentando o número de óbitos pela doença para 340.776. O total de casos confirmados se aproxima de 13,2 milhões. O Supremo já assegurou autonomia aos estados e municípios para que tomem medidas de combate ao coronavírus, mas a decisão é questionada pelo presidente Bolsonaro.

Duas liberdades
Ao defender sua posição, André Mendonça invocou o filósofo britânico Isaiah Berlin, autor de um clássico do liberalismo do século XX: Dois conceitos de liberdade (Editora Universidade de Brasília). Berlin discute os conceitos de “liberdade positiva”, a ausência de impedimentos à ação do indivíduo, e “liberdade negativa”, a qual estabelece condições para que os indivíduos ajam de modo a atingir seus objetivos.

Berlin sustenta que o indivíduo só é livre na medida em que nenhum outro homem, ou grupo, interfira em suas atividades. O julgamento ocorre na fronteira entre as vidas privada e pública. A ideia de liberdade positiva tangencia o conceito de liberdade civil de Rousseau: “Quanto mais eu obedeço a lei civil, mais livre eu sou, já que ajudo a elaborá-las”. Simplificando, é como se dissesse que, para o próprio bem, o indivíduo não está sendo coagido.

A Constituição de 1988, fortemente influenciada pelo liberalismo radical do deputado Ulysses Guimarães, pautou-se por outro pensador inglês, Stuart Mills, para quem devemos ter “liberdade na busca pelo nosso próprio bem, da forma que melhor nos apetece, desde que isso não interfira na possibilidade de os outros fazerem o mesmo”. O indivíduo pode até ser livre para causar dano a si mesmo, mas não aos outros; dependendo das circunstâncias e dos interesses da maioria, a liberdade pode ter limitações. Esse é o xis da questão na crise sanitária, que Bolsonaro não está levando em conta.

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