Amazônia pode virar floresta seca com piora do clima mundial a partir de 2030
Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) alerta que fome, pobreza, doenças e um grande êxodo podem marcar século 21 se não houver mudança na sociedade
Milhões de famintos, êxodo, conflitos, queda de atividade econômica e crise social. Esses são alguns dos cenários traçados por cientistas diante da constatação de que as mudanças climáticas vão se acelerar nos próximos anos e que, se não houver uma transformação radical de políticas públicas e estrutura da economia, a presença humana no planeta viverá uma nova era, muito mais hostil.
No horizonte, a projeção é de que o aquecimento do planeta provoque em diferentes partes uma “ruptura social”. Mas em todos os cenários para o século 21, as conclusões apontam para a mesma direção: serão os mais pobres e vulneráveis quem pagarão um preço mais elevado - e por vezes insuportável- pela transformação climática.PUBLICIDADE
A partir de segunda-feira, o IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas) começa a publicar uma série de novos informes, num calendário que está previsto para durar até fevereiro de 2022.
Uma das principais constatação dos cientistas é de que o mundo viverá uma transformação de seu clima anos antes do que se previa originalmente. A elevação intensa poderá já ser identificada na década de 2030, cerca de dez anos antes das estimativas feitas no início do século.
No informe, a temperatura pode exceder nos anos 2030 a marca de 1,5°C em relação ao período de 1850-1900, com uma probabilidade entre 40% e 60%.
Os glaciais continuarão a perder massa por pelo menos várias décadas, mesmo que a temperatura global esteja estabilizada. Há uma alta possibilidade de que tanto a Groenlândia quanto as placas de gelo da Antártida continuarão a perder massa ao longo deste século.
O IPCC também desfaz qualquer ilusão sobre a questão das cidades costeiras. “É praticamente certo que o nível médio global do mar continuará a subir ao longo do século 21, com uma provável elevação de 0,28-0,55 m (no cenário menos pessimista) e 0,63-1,02 m (no cenário mais pessimista) em relação à média de 1995-2014”, diz.
No caso da Amazônia, o rascunho do informe inclui a floresta entre os pontos do planeta que poderão caminhar para um “ponto de ruptura”.
DESMATAMENTO NA AMAZÔNIA
“A floresta amazônica como um repositório de biodiversidade, está ameaçada pela relação entre as mudanças no uso da terra e as mudanças climáticas, que poderia levar a uma transformação ecológica em larga escala e a mudanças biológicas a partir de um floresta úmida em floresta seca e pastagens, reduzindo a produtividade e o armazenamento de carbono”, alerta o informe, em sua versão original.
“Eventos extremos mais frequentes e intensos, adicionais às tendências climáticas progressivas, estão empurrando mais ecossistemas para pontos de ruptura além dos quais mudanças abruptas ou transições para um estado degradado ou totalmente diferente podem ocorrer”, alertam.
Num primeiro momento, o documento que está sendo concluído nesta semana afirmará de forma clara que é “muito provável” que as atividades humanas na emissão de CO2 sejam os “principais motores” do aquecimento desde 1979 e “extremamente provável” que a ação humana seja a causa da destruição da camada de ozônio.
Há mais de uma década, o IPCC constatou que as mudanças climáticas já eram uma realidade e seu trabalho foi recompensado com um prêmio Nobel da Paz. Agora, os cientistas apontam que tal cenário está intimamente relacionado com a atividade humana e que não se trata de um ciclo do planeta, um golpe contra negacionistas.
O documento, o primeiro de tal dimensão em sete anos, está sendo negociado por cientistas e representantes de governos. Mas versões iniciais do rascunho do texto, obtidos pelo EL PAÍS, constatam a influência humana para o aumento da umidade atmosférica, para a precipitação e proliferação de eventos extremos.
A influência humana também é considerada “muito provavelmente” como o “principal motor do recuo global das geleiras” e “muito provavelmente” contribuiu para a diminuição observada na cobertura de neve na primavera do Hemisfério Norte desde 1950″.
O levantamento constata ainda que as concentrações atmosféricas de CO2, metano e N2O são mais altas do que em qualquer momento em pelo menos 800 mil anos, e as atuais concentrações de CO2 não foram experimentadas por pelo menos 2 milhões de anos.
Não existem mais espaços para dúvidas: o aquecimento é uma realidade e os eventos climáticos extremos vão se multiplicar pelo século 21, mesmo que a comunidade internacional consiga neutralizar as emissões de CO2.
Os documentos definitivos do IPCC ainda poderão ser modificados, principalmente por pressão de governos. Mas, em suas versões originais e estabelecidas por cientistas, o alerta é claro de que, sem uma ação imediata, o século 21 será um desafio sem precedentes.
Fome
Um dos destaques se refere à capacidade de alimentar sociedades. Num dos documentos que será publicado nos próximos meses pelo IPCC, a mudança climática é projetada como um fator que irá impactar negativamente a segurança alimentar e a nutrição, causando um aumento do número de pessoas em risco de fome em 2050 em até 80 milhões de pessoas.
Segundo o rascunho do informe, “algumas terras secas se expandirão até 2100” e haverá um aumento da concorrência por terra, energia e água através da intensificação da produção de alimentos.
“Os principais impactos projetados da mudança climática no setor agrícola e alimentar incluem um declínio em pesca, aquicultura e produção agrícola, os rendimentos agrícolas serão impactados, especialmente na África Subsaariana, África, América Central e do Sul, Sul e Sudeste Asiático”, alerta o IPCC, indicando para implicações para a segurança alimentar.
Um aumento de temperatura no século 21 de 2,3ºC causaria um declínio de 188-415.000 km2 no uso de terras na Mesoamérica e entre 52-405.000 km2 na América do Sul. A produção de milho seria impactada na Europa, assim como o cultivo de cereais e soja em baixas latitudes são projetadas para diminuir em aproximadamente 5% a cada 1°C de aquecimento. A produção australiana de trigo ainda pode diminuir 7-9% até os anos 2050.
AMAZÔNIA
Os estudos também revelam que produtividade global da pesca marinha e da aquicultura diminuirá, aumentando a insegurança alimentar de milhões de pessoas. O potencial de captura da pesca marinha está projetado para diminuir 40-70% em regiões tropicais, gerando um alto risco de desnutrição na África Ocidental e Oriental.
Os documentos, porém, revelam que o impacto das mudanças climáticas na agricultura já são realidades comprovadas. Nos últimos 30 anos, registrou-se um declínio na safra global entre 4-10%, afetando 166 milhões de pessoas, principalmente na África e América Central. Essas populações, hoje, dependem de assistência humanitária. Na África Subsaariana, a produção de milho e trigo diminuiu em 5,8% e 2,3%, respectivamente.
“Extremos relacionados ao clima, tais como inundações, ondas de calor, secas e episódios de alto nível de concentrações de ozônio aumentaram nos últimos 50 anos em terra e no mar, causando severas perdas localizadas em produção agrícola em muitas regiões”, constatam.
“A variabilidade climática e os extremos afetam negativamente produção e qualidade de alimentos, exacerbam a escassez de alimentos sazonais, aumentam os preços dos alimentos e ameaçam a segurança alimentar, e a nutrição e a subsistência de milhões de pessoas, particularmente na África subsaariana, Ásia-Pacífico, e América Latina”, completam.
Inundações, secas e doenças
O IPCC ainda alerta que, sem adaptação, as mortes causadas pelas inundações aumentarão globalmente em cerca de 130% em comparação ao período entre 1976-2005, num cenário de aquecimento de 2°C.
Mas, ao mesmo tempo, a insegurança hídrica causada pela escassez de água aumentará, afetando potencialmente 170 milhões de pessoas. “Em cenários de maior risco, projeta-se que as cidades sejam negativamente afetadas por secas de até 20 vezes mais até 2100”, alerta.
Um aquecimento de 2,7ºC colocaria entre 21 e 112 milhões de pessoas em estresse hídrico na Mesoamérica, 28 milhões no Brasil e até 31 milhões no restante dos países da América do Sul. No sul da Europa, mais de um terço da população estará exposta ao estresse hídrico se as temperaturas aumentarem em 2°C.
Outro resultado previsto é o aumento de doenças não transmissíveis e infecciosas, incluindo doenças transmitidas por vetores, doenças transmitidas pela água e por alimentos.
“As doenças transmitidas por mosquitos e carrapatos são projetadas para se expandir para latitudes e altitudes mais elevadas”, apontaram os cientistas, indicando uma migração de doenças até agora restritas aos trópicos. “O risco de dengue crescerá e seu alcance será espalhados na América do Norte, Ásia, Europa e África subsaariana, colocando potencialmente outras 2,25 bilhões de pessoas em risco”, destacam.
“As mudanças climáticas provavelmente aumentarão a capacidade vetorial da malária e a infecção em partes da África Sub-Sahariana, África Oriental e Austral, Ásia e América do Sul. Doenças infecciosas ligadas à pobreza se tornarão mais severas, assim como a intensidade de febres hemorrágicas como ébola”, aponta o rascunho do documento do IPCC.
Já na segunda parte do século, com a continuação dos padrões populacionais globais, entre 1,6 bilhão e 2,6 bilhões de pessoas extras são projetadas para viver em regiões com doenças transmitidas pela água, vetoriais e transmissíveis e com deficiências acesso a serviços básicos e infraestrutura de saúde..
“O aquecimento aumenta o potencial para surtos de doenças de origem alimentar, incluindo Salmonella e Campylobacter. O aquecimento apóia o crescimento e expansão geográfica de fungos toxigênicos nas culturas de algas marinhas e de água doce potencialmente tóxicas e bactérias”, indicam.
O IPCC ainda considera como “muito provável” que temperaturas mais altas e chuvas fortes mais frequentes levem a taxas mais elevadas de doenças diarreicas em muitas regiões. “Em países de baixa e média renda na Ásia e na África, o aquecimento a 1°C pode causar um aumento de 7% na diarréia, ligado a um aumento de 8% na E. coli, e um aumento de 3% a 11% nas mortes”, diz.
O desenvolvimento socioeconômico deveria reduzir as mortes por diarréia, mas a mudança climática causaria mortalidade adicional entre as crianças.
Os limites do calor e economia ameaçada
O calor também matará e, para o IPCC, já é hora de começar a avaliar quais são as temperaturas toleráveis. Aumentos substanciais no stress térmico relacionado ao calor levarão a uma maior mortalidade e a morbidez em muitas regiões, especialmente África do Norte, Oeste e Central.
“O excesso de mortes relacionadas ao calor nas cidades australianas é projetado para aumentar entre 200% e 400% durante os anos entre 2031-2080 em relação ao período entre 1971-2020”, diz. Na Europa, o número de pessoas com alto risco de mortalidade triplicará se a temperatura no século aumentar em 3°C.
Quem não morre hoje acaba perdendo produtividade. “Os limites às tolerâncias fisiológicas humanas de calor foram alcançados em muitas regiões. O aquecimento está associado a uma redução estimada de 5,3% na produtividade do trabalho nos últimos 15 anos, e chega a 10% em países de baixa renda em baixas latitudes”, constata.
De uma forma geral, os impactos da mudança climática sobre os recursos hídricos são projetados para reduzir o PIB em muitos países de baixa e média renda, caso não sejam implementadas medidas adequadas de adaptação ou mitigação.
Apenas pelo impacto no abastecimento de água, projeções publicadas pelo IPCC indicam queda de 0,49% do PIB em 2050, com variações regionais significativas para o Oriente Médio (14%); Sahel (11,7%); Ásia Central (10,7%), Ásia Oriental (7%) e Ásia do Sul (0,9 a 2,7%).
Não existem mais dúvidas de que a variabilidade climática já afetaram negativamente a economia em algumas regiões. “Os impactos econômicos das mudanças climáticas incluem mudanças em produtividade agrícola e trabalhista. As estimativas para os países africanos sugerem que o PIB per capita sobre o período 1991-2010 foi, em média, 13,6% menor em comparação a um cenário com a ausência de aquecimento global. O setor financeiro tem visto perdas entre 2013-2020 de quase 1,2% do PIB da Austrália.
A erosão costeira já afeta o transporte e o comércio internacional, enquanto o turismo está enfrentando mudanças nas características de seus destinos e mudanças na demanda.
Ruptura social: pobreza e o grande êxodo
Para milhões de pessoas pelo planeta, a transformação do clima será traduzido em miséria e fuga de suas próprias terras. Desde 2008, uma média de 12,8 milhões de pessoas são desalojadas anualmente por desastres naturais, sendo as tempestades e enchentes os dois maiores motores. Mas a taxa promete aumentar.
Num dos cenários trabalhados pelo IPCC, o número de pessoas vivendo em extrema pobreza poderá ser incrementada em 132 milhões em relação aos atuais 700 milhões que já se encontram nessas condições. Como resultado, as “futuras mudanças climáticas podem aumentam o deslocamento forçado”. “Mesmo com as mudanças climáticas atuais e moderadas, as pessoas vulneráveis experimentarão uma maior erosão de sua segurança de subsistência que pode interagir com crises humanitárias, como o deslocamento e a migração forçada e conflito violento, e levam a pontos de ruptura social”, alertam.
De acordo com as projeções do IPCC, a migração atual e futura não está relacionada apenas com conflitos armados. Mas com fatores climáticos, padrões de crescimento populacional e da capacidade de sociedades de se adaptar a tal cenário.
Nos próximos anos, entre 634 milhões de pessoas e 1,4 bilhão de pessoas poderão estar expostas a riscos associados à elevação do nível do mar. Só um aumento médio do nível do mar de 0,8 m até 2100 inundariam áreas com uma população total projetada de até 88 milhões.Nos centros urbanos, ilhas de calor urbano poderão deixar entre 350 milhões e 410 milhões de pessoas sem acesso a água.
“Mais 1,7 bilhão de pessoas serão expostas a calor severo, 420 milhões de pessoas a ondas de calor extremo e cerca de 65 milhões de pessoas a ondas de calor excepcionais cada 5 anos se as temperaturas aumentarem de 1,5°C a 2°C ao longo do século”, diz.
No ano de 2080, entre 390 milhões e 490 milhões de pessoas em centros urbanos na África Subsaariana e até 1,1 bilhão na Ásia poderiam ser afetados por mais de 30 dias de calor mortal por ano. Ondas de calor mais frequentes e intensas também afetarão as comunidades mediterrâneas e as da Europa Ocidental, Central e Oriental.
“O deslocamento pode reconfigurar dramaticamente as comunidades com implicações sociais, sistemas de coesão e conhecimento”; alerta o documento. Mas os cenários também revelam como a realidade também será mais complexa: mesmo expulsas de suas terras, milhões de pessoas podem viver uma situação de maior imobilidade ou “aprisionamento”, já que não terão meios de se deslocarem para outros locais.
'O desespero eleitoral está levando o governo à insanidade fiscal', diz Gil Castello Branco
ROSANA HESSEL / Blog do Vicente / Correio Braziliense
O desespero do presidente Jair Bolsonaro para gastar sem freios em 2022, a fim de evitar o aumento galopante da rejeição nas pesquisas e pavimentar a reeleição no ano que vem, pode fazer o chefe do Executivo cometer vários crimes de responsabilidade fiscal. E essa lista não inclui apenas as famosas pedaladas que abriram espaço para o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff, de acordo com o especialista em contas públicas Gil Castello Branco, secretário-geral e fundador da Associação Contas Abertas.
“Esse desespero eleitoral está levando o governo à insanidade fiscal”, alertou Castello Branco, alertando para a falta de critério do governo na busca de recursos para ajudar no aumento da popularidade do presidente e agradar os aliados do Centrão. Segundo ele, uma das medidas cogitadas pela equipe econômica, como o uso de recursos de privatizações para a criação de programas sociais é proibido pelo Artigo 44 da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF): “É vedada a aplicação da receita de capital derivada da alienação de bens e direitos que integram o patrimônio público para o financiamento de despesa corrente, salvo se destinada por lei aos regimes de previdência social, geral e próprio dos servidores públicos”, diz o artigo.
Na avaliação de Castello Branco, o calote institucionalizado que o ministro da Economia, Paulo Guedes, pretende com a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) — que prevê o adiamento no pagamento de precatórios — nada mais é do que uma pedalada fiscal. A proposta ainda prevê a criação de um Bolsa Família mais robusto que vem sendo chamado de Auxílio Brasil e pode ter um fundo para custeio com recursos de privatizações que deverá ser contabilizado fora do teto de gastos — emenda constitucional que limita o aumento de despesas à inflação do ano anterior –, que é será outra burla das regras fiscais.
Apesar de prever uma folga de R$ 25 bilhões a R$ 30 bilhões no limite do teto em 2022, graças à inflação mais alta, esses recursos não serão suficientes para saciar a gana populista de Bolsonaro, que, historicamente, nunca foi um liberal de carteirinha. Já Paulo Guedes vem rasgando todos os manuais do liberalismo econômico e colocando o orgulho de lado para permanecer no poder. O superministro está cada vez mais enfraquecido e desacreditado entre os colegas economistas, pois já perdeu a maior parte do orçamento da pasta para Onyx Lorenzoni, com a criação do Ministério do Trabalho e Previdência, e ainda perdeu Bruno Bianco como secretário-executivo de Onyx, porque Bolsonaro escolheu Bianco para substituir André Mendonça na Advocacia-Geral da União (AGU).
“O governo está tentando dar uma pedalada em dívidas com precatórios que ele poderia ter se programado melhor, porque essas bombas fiscais são mapeadas anualmente com o STF durante a elaboração do Orçamento. Agora, querer criar uma terceira instância para negociar o pagamento de uma ação que não cabe mais recurso é uma afronta ao Judiciário e gera insegurança jurídica”, afirmou. O fundador da Contas Abertas destacou que o fato de o governo querer parcelar em até 10 anos, acima dos cinco anos previstos hoje na Constituição caso o valor de uma determinada dívida supere 15% dos precatórios totais, não deixa de ser “curioso”.
“No desespero eleitoral, o governo está preparando um ‘pacote de bondades’ que vão na contramão da LRF. A principal é o ‘Auxílio Brasil’, um Bolsa Família mais robusto, com maior número de beneficiários, valor médio elevado e, inclusive, um botijão de gás a cada dois meses para as pessoas que integrarem o programa. Como não há recursos para bancar essas iniciativas”, afirmou Castello Branco. “O governo vai ‘ fabricar dinheiro’ com mágicas fiscais que incluem o desrespeito ao teto de gastos, o descumprimento da LRF, a pedalada dos precatórios e o uso de recursos não recorrentes ( dividendos de estatais) para a criação de programas sociais definitivos”, acrescentou o especialista que monitora com lupa as contas públicas.
O secretário-geral da Contas Abertas lembrou ainda que, quando defendia a PEC 187/2019, conhecida como a PEC dos Fundos, a equipe econômica pretendia extinguir fundos e vinculações, porque havia bilhões de reais parados em “gavetinhas” e que poderiam ser melhor aplicados. “Agora, apenas nessas discussões de adiamento de precatórios e do novo Bolsa Família, as autoridades falam em criar mais dois novos fundos, na contramão do discurso anterior”, afirmou.
Assim como Castello Branco, especialistas da área jurídica alertam para o risco de inconstitucionalidade da PEC dos precatórios que Paulo Guedes vem prometendo enviar ao Congresso e que já teria encaminhado a proposta ao ministro-chefe da Casa Civil, Ciro Nogueira, líder do Centrão. Não à toa, o mercado financeiro está preocupado com essa movimentação e com o preço da governabilidade no Congresso que Bolsonaro está pagando, pois parece ser bem alto. Como reflexo, a curva de juros e o dólar sobem e o mercado acionário vem oscilando entre perdas e ganhos nos últimos dias. O Índice Bovespa está mais perto dos 120 mil pontos do que do recorde de quase 131 mil pontos de junho.
E Bolsonaro precisa do novo Bolsa Família mais robusto para conter o aumento da avaliação negativa do governo junto aos mais pobres, que são a maioria da população. Conforme a segunda edição da pesquisa qualitativa sobre as eleições de 2022 da Genial/Quaest a rejeição de Bolsonaro é crescente entre os mais pobres, principalmente, nas regiões Norte e Nordeste. E como a inflação persistente poderá encolher a folga do limite de R$ 25 bilhões a R$ 30 bilhões, estimada pelo Tesouro Nacional, parece que o desespero tirou o governo do prumo e a agenda econômica liberal ficou só no gogó.
Fonte: Blog do Vicente /Correio Braziliense
https://blogs.correiobraziliense.com.br/vicente/o-desespero-eleitoral-esta-levando-o-governo-a-insanidade-fiscal-diz-castello-branco/
Arthur Lira abriu brecha para voto impresso ganhar sobrevida na Câmara
Mariana Carneiros / Coluna Malu Gaspar /O Globo
Em tese, a derrota da proposta que previa a adoção do voto impresso na comissão especial da Câmara por 23 votos a 11 deveria representar o fim da linha no Congresso. Mas a ameaça do presidente da Casa, Arthur Lira, de enviar o projeto para deliberação do plenário mesmo que ele fosse derrubado, deu sobrevida à campanha bolsonarista na Casa.
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O temor entre parlamentares que derrubaram a proposta na noite de quinta-feira é que Lira de fato envie o projeto ao plenário. Confiam ter votos suficientes para derrubá-lo, mas sabem que, até isso acontecer, Bolsonaro terá chance de continuar defendendo a proposta publicamente.
Com o movimento, Lira agradou ao presidente da República e à sua base mais radical. Ao longo do dia, nesta quinta-feira, as redes bolsonaristas se inflamaram com a declaração de Lira. Memes com a foto do presidente da Câmara e links para reportagens sobre a fala do presidente da Câmara foram bastante compartilhadas nos grupos de WhatsApp e Telegram.
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As regras da Casa dizem que as decisões tomadas em comissões especiais não são necessariamente as finais e devem ser enviadas ao plenário. Mas, se houver acordo entre os partidos, isso não precisa ocorrer.
Até agora, os líderes partidários esperavam que Lira fosse enterrar o projeto junto com a comissão especial. Na semana passada, ele disse que a proposta não tinha apoio e que seria perda de tempo colocá-la em votação.
Desde então, porém, Jair Bolsonaro fez a live em defesa do voto impresso que o transformou em investigado no inquérito das fake news e o colocou em rota de colisão com o Supremo Tribunal Federal. Isso fragilizou ainda mais a proposta no Congresso.
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Para Alessandro Molon (PSB-RJ), a larga vitória na comissão indica que, se Lira quiser levar o projeto ao plenário apenas para agradar Bolsonaro, vai ter trabalho. “Foi acachapante Espero que ele não leve, mas se levar perde também”.
Orlando Silva (PC do B-SP) vai na mesma linha: “O centro em peso foi contra a proposta, PSDB, DEM, PSD… a votação mostra a posição da maioria dos partidos”.
Já outros membros da comissão especial são mais cuidadosos. Acreditam que o presidente da Câmara fará contagens dentro dos partidos antes de tomar uma decisão. Isso porque o voto impresso só será aprovado com o apoio de 308 dos 513 deputados, em dois turnos.
Se tiver certeza de que o projeto não passa, Arthur Lira deverá recuar. Até lá, porém, o presidente da República já terá tido tempo e oportunidades para reorganizar sua estratégia.
Forças Armadas: Militares embarcam na tese de fraude nas eleições
Fonte: Malu Gaspar / O Globo
https://blogs.oglobo.globo.com/malu-gaspar/post/lira-deu-sobrevida-voto-impresso-na-camara.html
Manifesto que reuniu empresários diz basta às ameaças de Bolsonaro
Presença entre signatários de pesos pesados dos setores empresarial e financeiro explicita a perda de apoio de Bolsonaro nos segmentos
O manifesto que conectou boa parte da elite da sociedade civil em defesa do sistema eleitoral brasileiro teve como objetivo claro dar um basta às constantes ameaças do presidente Jair Bolsonaro à democracia e seus pilares. Na visão dos próprios signatários, esta e outras conclusões podem ser tiradas da contundente mensagem: indica que, para além das diferenças políticas e disputas eleitorais, os segmentos sociais representados no texto estarão unidos quando os princípios constitucionais estiverem sob risco; além disso, a rápida adesão e o fato de pesos pesados dos ambientes empresarial e financeiro terem assinado o comunicado explicitam a perda de apoio de Bolsonaro em setores importantes.
Lançado na mesma semana em que o Judiciário deu respostas duras às declarações do presidente, o manifesto reuniu empresários, banqueiros, economistas, diplomatas, juristas e diversos outros representantes da sociedade civil. Conforme organizadores, após a publicação em jornais, até o fim da tarde de ontem mais de seis mil pessoas haviam apoiado o documento no site do movimento Eleição se Respeita.
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“A democracia é um dos pilares fundamentais da sociedade brasileira. E a eleição é a base da nossa democracia; logo, ela precisa ser garantida. O direito ao voto é igualitário a toda a população e cabe à população fazer sua escolha, seja boa ou ruim. Me parece que a questão da eleição virou uma forma de tergiversação em relação aos problemas reais de nossa sociedade, que são o meio ambiente, a educação e as reformas estruturais, como a tributária e a política”, disse o presidente da Suzano, Walter Schalka.
Em março, empresários e banqueiros já haviam aderido a uma carta que cobrava o governo federal por medidas efetivas de combate à pandemia. O manifesto pró-eleições e em defesa da Justiça Eleitoral, porém, representou uma mudança de postura, de acordo com Fábio Barbosa, ex-presidente do Santander e da Federação Brasileira de Bancos (Febraban): “O sistema é confiável, e não há razão para duvidar da legitimidade das eleições que aconteceram. Vamos ficar quietos assistindo a isso aqui ou vamos participar e colocar nosso ponto de vista?”.
O movimento começou com cerca de 30 pessoas ligadas ao Centro de Debate de Políticas Públicas (CDPP) e tomou corpo em 24 horas. “(O manifesto) tem um impacto por ser uma manifestação de empresários que normalmente não se manifestam e evitam entrar em discussões políticas”, avaliou Barbosa.
“O meio empresarial se omitiu durante muito tempo”, disse Schalka. “E isso é reflexo da forte presença do Estado da economia, que está ao redor de 40%. Então existe receio de falar, um medo de retaliação. Mas eu tomei a decisão de falar. Porque, quando nos calamos, ficamos mais expostos à situação de deterioração (do País).”
“O Brasil é um País pródigo em regulações e legislações, e o empresariado pode ter muito trabalho se quem está no poder quiser perturbar. É compreensível a demora”, completou Hélio Mattar, presidente do Instituto Akatu de Consumo Consciente e um dos fundadores da rede de lanchonetes America. “À medida que o presidente faz um acordo com os outros poderes para reduzir os ataques institucionais e, poucas semanas depois, o desrespeita, os riscos à democracia crescem”, destacou Mattar.
Para o presidente do Credit Suisse no Brasil, José Olympio Pereira, que também assinou o documento, constata-se a escalada de uma “crise institucional” , que pode minar ainda mais a imagem do País no exterior. “Estamos vendo ameaças ao estado democrático de direito. O que conquistamos de mais valioso enquanto nação é a nossa reputação de um país com instituições fortes, onde se pode investir, onde a regra do jogo é cumprida, onde não há instabilidade institucional”, afirmou. “Se colocarmos isso a risco, cai o prédio. Não podemos brincar com as fundações do prédio. Se você brinca com as fundações, você sabe o destino do prédio, desmorona.”
A piora do ambiente político tem consequências diretas na atividade econômica, alerta a executiva Maria Silvia Bastos Marques, que já presidiu o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômicos e Social (BNDES) e atuou por anos no setor privado, incluindo o comando do banco americano Goldman Sachs no Brasil e da Icatu Seguros. “A economia é feita de expectativas. Se você tiver um cenário previsível, se tiver um ambiente de estabilidade, isso contribui muito para a tomada de decisões, para os investimentos de médio e longo prazos.”
No Brasil, ao contrário, o ambiente tem sido de crescentes ruídos políticos, além da pandemia e de indicadores econômicos que estão piorando, como inflação e juros em alta. “Você tem vários elementos que não contribuem para um ambiente desejável para a tomada de decisão e para novos investimentos”, disse Maria Silvia, para quem a classe empresarial e de executivos do Brasil está ficando mais engajada. “Participo de alguns grupos de discussão do momento do País, do futuro do País e foi onde tomei conhecimento deste manifesto. Chega um momento que é muito importante se manifestar, falar.”
José Olympio entende que é preciso usar as energias para avançar uma agenda positiva. “Temos tanta coisa ainda a fazer, vamos acabar com a radicalização, com o confronto. “Houve avanços importantes na agenda nos últimos anos, como a reforma da Previdência, o marco do saneamento, e agora a privatização da Eletrobras começa a ganhar corpo, e a dos Correios entrou na agenda. Temos uma reforma administrativa que eu adoraria ver ser implementada.”
‘Diversidade’. Economistas como o ex-presidente do Banco Central Arminio Fraga destacam a “diversidade” do manifesto. “Não há substituto para o engajamento das pessoas”, afirmou. “Temos hoje bem consolidado a ideia de que as democracias vão sendo comidas pelas beiras, e é importante que haja um posicionamento mais amplo possível.”
Sócio da Mauá Capital e ex-diretor do BC, Luiz Fernando Figueiredo aponta o sinal de “alerta” da sociedade civil. “Nossa democracia é forte”, disse. “Quando estava no poder, o PT tentou centralizar (com mecanismos para controlar) a imprensa e não conseguiu. O Congresso não aprovou”, disse Figueiredo. Na mesma linha, Carlos Ari Sundfeld, professor de Direito Administrativo da FGV-SP avalia que o recado dado é claro: “A Justiça Eleitoral tem o total apoio dos democratas do País. Existe uma mobilização da sociedade para apoiar a estrutura do Estado que existe para punir abusadores. Se não fica parecendo aos eventuais oportunistas de plantão que o caminho está livre, e não está.”
PEDRO VENCESLAU, FERNANDO SCHELLER, CRISTIANE BARBIERI, KARLA SPOTORNO, ALTAMIRO SILVA JUNIOR e EDUARDO KATTAH
Fonte: O Estado de S. Paulo
https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,manifesto-que-reuniu-empresarios-diz-basta-as-ameacas-de-bolsonaro,70003801854
Exército concorda com reação de Fux e teme cópia de atos golpistas dos EUA
Mesmo críticos da atuação do STF, militares do Alto-Comando dizem acreditar que ofensiva do Judiciário pode frear Bolsonaro
Vinicius Sassine / Folha de S. Paulo
Mesmo sendo críticos da atuação de ministros do STF (Supremo Tribunal Federal), integrantes do Alto-Comando do Exército manifestaram, em conversas reservadas, concordância com o gesto do presidente da corte, Luiz Fux, de interromper o diálogo com o presidente Jair Bolsonaro.
Pela primeira vez, Fux fez um discurso objetivo, em sessão do STF, em que condena textualmente a ofensiva golpista de Bolsonaro e os ataques desferidos pelo presidente contra o tribunal e contra o sistema eleitoral brasileiro.
O ministro afirmou que o chefe do Executivo não cumpre a própria palavra. Fux, então, cancelou reunião marcada com chefes dos Poderes para apaziguar ânimos.
A reação, adotada nesta quinta-feira (5), se soma a outros gestos concretos do Judiciário brasileiro diante da ameaça de golpismo de Bolsonaro.
BOLSONARO EM IMAGENS
O TSE (Tribunal Superior Eleitoral), presidido pelo ministro Luís Roberto Barroso, abriu um procedimento para investigar os ataques de Bolsonaro contra as urnas eletrônicas.
O ministro Alexandre de Moraes atendeu pedido do TSE e incluiu o presidente em inquérito no Supremo que investiga um suposto esquema criminoso de fake news, em razão dos ataques às urnas.
Os dois ministros são atacados pelo presidente da República. A estratégia de Bolsonaro se concentra em Barroso, que preside o TSE.
A relação entre os Poderes não passa pelas Forças Armadas. Mas o próprio presidente envolveu Exército, Aeronáutica e Marinha na crise, de forma direta, ao insinuar golpe e falar, recorrentemente, em "meu Exército".
A empreitada de Bolsonaro tem respaldo do ministro da Defesa, general da reserva Walter Braga Netto.
As Forças estão vinculadas à pasta comandada pelo general, que defende voto impresso —mesmo sem existir qualquer relação do assunto com o ministério que comanda— e que ameaçou a CPI da Covid no Senado, por meio de uma nota subscrita pelos comandantes das três Forças.
Generais que integram o Alto-Comando do Exército têm uma visão crítica em relação à atuação de ministros do STF. Eles entendem que o tribunal avança nas esferas de atuação de Executivo e Legislativo.
Um caso sempre citado é a decisão de Moraes de barrar, em abril de 2020, a nomeação do delegado Alexandre Ramagem, amigo da família Bolsonaro, para o cargo de diretor-geral da Polícia Federal. Ramagem é diretor-geral da Abin (Agência Brasileira de Inteligência).
PROTESTOS CONTRA BOLSONARO
A escalada da crise, porém, e o temor do que pode ocorrer em 2022, ano de eleição presidencial, explicam uma aceitação entre integrantes do Alto-Comando dos gestos concretos do Judiciário contra o presidente da República.
Em conversas reservadas, generais afirmam que a reação de Fux faz sentido, diante do reiterado comportamento de Bolsonaro, que deixa claro que não quer conversa, na visão desses militares.
O procedimento aberto pelo TSE, a inclusão do presidente como investigado no inquérito das fake news e o cancelamento da reunião entre chefes de Poderes —precedido de um discurso do presidente do STF em que diz que o presidente da República não tem palavra— podem fazer Bolsonaro "baixar a bola", conforme disseram integrantes do Alto-Comando do Exército.
Eles entendem, porém, que o efeito deve durar pouco. A crise deve se prolongar, com novos arroubos autoritários do presidente, que não segue a liturgia mínima do cargo que ocupa, na visão de generais da cúpula do Exército.
Esses mesmos generais afirmam inexistir a possibilidade de um golpe capitaneado por Bolsonaro e de uma consequente ruptura do processo democrático. Segundo eles, o simples exercício de imaginar o dia seguinte a um golpe mostraria a inviabilidade de uma iniciativa nesse sentido.
No Alto-Comando, existe um temor real de que se repitam no Brasil as cenas vistas nos Estados Unidos após a derrota do republicano Donald Trump, ídolo de Bolsonaro, para o democrata Joe Biden.
DEMOCRACIA BRASILEIRA
Em 6 de janeiro, dia da sessão que confirmou a vitória de Biden, Trump insuflou apoiadores a invadirem o Congresso americano. A invasão chegou a interromper a sessão. Cinco pessoas morreram no ataque ao Capitólio.
Trump estimulou apoiadores radicais com o discurso de fraude nas eleições. É a mesma cartilha seguida por Bolsonaro, um ano e dois meses antes das eleições de 2022.
Nos EUA, as Forças Armadas não embarcaram na aventura golpista. No Brasil, o ministro da Defesa tem se mostrado alinhado à postura do presidente.
Integrantes do Alto-Comando do Exército dizem não enxergar risco de ruptura com suporte das Forças Armadas. Para esses generais, o risco está na atuação de policiais nos estados, em um cenário de eventual derrota de Bolsonaro nas urnas.
O presidente faz reiterados acenos a forças de segurança locais, e uma parcela expressiva de policiais civis e militares é bolsonarista.
Fonte: Folha de S. Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/poder/2021/08/alto-comando-do-exercito-concorda-com-reacao-de-fux-e-teme-copia-de-atos-golpistas-dos-eua.shtml
Bolsonaro toca fogo e despacha bombeiros para apagar o incêndio
Ministros do Supremo perderam a disposição de fazer papel de bobo
Ricardo Noblat / Blog do Noblat / Metrópoles
É um truque que já não funciona, mas que o presidente Jair Bolsonaro sempre aplica toda vez que uma crise detonada ou agravada por ele o ameaça.
Engrossada, agora, com a aquisição do senador Ciro Nogueira (PP-AL), líder do Centrão e novo chefe da Casa Civil da presidência, a tropa de bombeiros entrou novamente em cena.
Quem tem relações com ministros do Supremo Tribunal Federal começou a procurá-los depois dos recentes ataques de Bolsonaro aos ministros Luís Roberto Barroso e Alexandre de Moraes.
O que acendeu a luz vermelha no Palácio do Planalto foi o duro pronunciamento do presidente do Supremo, Luiz Fux, em defesa dos seus pares e com críticas indiretas a Bolsonaro.
Os donos das mais prestigiadas togas da República conhecem o truque e já foram alvos dele no passado. Não parecem dispostos a se deixar enganar outra vez.
O enredo é sempre o mesmo: Bolsonaro não quis dizer o que disse; o que ele eventualmente disse foi tirado do contexto; são coisas da política e o presidente também deve satisfações aos seus devotos.
O antecessor de Fux na presidência do tribunal, o ministro Dias Toffoli, acreditou que poderia domesticar Bolsonaro ou pelo menos conter as manifestações dos seus instintos mais primitivos.
Foi Toffoli quem primeiro falou em um pacto dos três Poderes da República pelo bem do Brasil. Deu em nada. Fux o sucedeu embalado pela mesma ideia. Abdicou dela.
Ninguém no tribunal, salvo o ministro Nunes Marques que deve sua nomeação a Bolsonaro, imagina que ele mudará de postura. O trabalho dos bombeiros será bem-vindo, porém inócuo.
Por ora, voo rasante sobre o prédio do STF é uma ideia arquivada
A que ponto chega a insanidade de Bolsonaro ao sentir-se contrariado
Conta quem testemunhou a conversa e espantou-se com a sugestão feita pelo presidente Jair Bolsonaro ao então ministro da Defesa, o general Fernando Azevedo e Silva.
Sexta-feira, 26 de março último. Em despacho com o general no Palácio do Planalto, Bolsonaro queixou-se do pouco engajamento das Forças Armadas no seu governo.
Foi uma conversa demorada. A certa altura, Bolsonaro passou a falar mal do Supremo Tribunal Federal que, segundo ele, cerceava a maioria de suas ações. Estava quase apoplético.
Então teve uma ideia: por que um dos jatos supersônicos da FAB não dava um voo rasante sobre o prédio do Supremo na Praça dos Três Poderes? Isso aconteceu uma vez no passado por acidente.
O voo rasante estilhaçaria os vidros do prédio como da vez anterior. Serviria como aviso aos ministros, e como acidente novamente seria tratado. O presidente falava sério.
O general discordou da ideia e, alegando cansaço, marcou para retomar a conversa na segunda-feira, dia 29. Nesse dia, mal entrou no gabinete de Bolsonaro, ouviu dele que estava demitido.
Em carta onde anunciou sua saída do governo, Azevedo e Silva escreveu como se fosse uma mensagem cifrada que só poucos seriam capazes de entender:
“Nesse período, preservei as Forças Armadas como instituições de Estado”.
Braga Neto, também general, sucedeu Azevedo e Silva. A pedido de Bolsonaro, sua primeira decisão foi demitir os comandantes do Exército, Marinha e Aeronáutica.
A ideia do voo rasante sobre o prédio do Supremo foi arquivada, mas esquecida não.
Fonte: Blog do Noblat / Metrópoles
https://www.metropoles.com/blog-do-noblat/ricardo-noblat/bolsonaro-toca-fogo-e-despacha-bombeiros-para-apagar-o-incendio
Ameaças de Bolsonaro e Distritão atropelam, um ano antes, eleições 2022
Brasília ferve com a investida desenfreada do presidente contra o sistema eleitoral e a tentativa de parlamentares de mudar as regras do pleito sem qualquer discussão com a sociedade
As eleições de 2022 no Brasil estão apanhando um ano e três meses antes de acontecerem. Neste momento, Brasília ferve com a investida desenfreada do presidente Jair Bolsonaro que se empenha reiteradamente em desacreditar o sistema das urnas eletrônicas com uma campanha que acusa fraude usando argumentos mentirosos. Irritado por ter sido incluído pelo ministro Alexandre de Moraes no inquérito que investiga a máquina de fake news no país, chegou a sugerir que buscaria soluções fora da democracia para lidar com a pressão nesta quarta-feira. “Está dentro das quatro linhas da Constituição? Não está. Então o antídoto para isso também não é dentro das quatro linhas da Constituição”. Durante uma entrevista à rádio de viés governista Jovem Pan, o presidente voltou a investir contra o sistema eletrônico com argumentos enviesados para sugerir que as urnas em 2018 foram atacadas. Seu filho, Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), emendou a narrativa com uma live sugerindo que havia fraude desde 1996, embora todas as suspeitas já tenham sido derrubadas pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) há anos.
Além de Bolsonaro, o Congresso também decidiu aproveitar a instabilidade política do momento para impor uma mudança no modelo de votação que o Brasil conhece hoje — o sistema proporcional, onde parlamentares mais votados de um partido acabam elegendo outros, do mesmo grupo, que foram menos votados pelo eleitor —que seria substituído pelo chamado Distritão, alterando completamente a forma como o brasileiro iria votar em 2022. Pelo sistema, um município e Estado funcionam como um distrito eleitoral que elegerá apenas os que tiverem mais votos.
O proporcional abre espaço para a entrada dos chamados puxadores de voto, nomes mais fortes e até subcelebridades que se elegem com milhões de votos e acabam puxando outros parlamentares com votação mínima pelo chamado coeficiente eleitoral: soma de votos dos parlamentares eleitos e votos na legenda, dividido pelo número de vagas de cada partido. A fórmula abre espaço muitas vezes a fisiologistas ou negociadores de interesses corporativos, sem a menor empatia com projetos populares. A ideia de aperfeiçoar o modelo eleitoral é bem-vinda. Mas no Brasil de 2021, o presidente da Câmara Arthur Lira (PP-AL) impôs um debate acelerado numa Comissão Especial que realizou uma sessão por volta das 23h de quarta-feira, 4, acompanhada no youtube por pouco mais de 600 brasileiros num país com 212 milhões de pessoas. Por falta de acordo entre os parlamentares, a comissão acabou adiando a votação para esta quinta-feira.
Embora o sistema atual seja imperfeito e questionável, o Distritão enfraquece partidos e reduz a participação de minorias, limitando a diversidade num Congresso que já é engessado. As mulheres, por exemplo, representam somente 15% dos parlamentares, e podem ter sua voz ainda mais restrita numa sociedade com mais de 50% de brasileiras. “Só quatro países no mundo adotam o Distritão. Nenhuma democracia madura adota esse modelo”, disse o deputado Henrique Santana (PT-RS). “Atenção eleitor, 70% dos votos serão jogados na lata do lixo na disputa para deputado federal”, completou.
Em meio a uma pandemia que exige todos os olhos dos governantes, e ainda sob uma Comissão Parlamentar de Inquérito no Senado que investiga as responsabilidades do presidente da República na gestão sanitária que levou à morte de 550.000 pessoas, as manobras políticas para mudar o pleito passam despercebidas para a grande maioria dos eleitores. Ainda que lideranças na sociedade civil ensaiem reação às novas investidas. Se a CPI e o avanço da vacinação estimularam partidos de esquerda a levar seus eleitores para a rua, agora a elite e formadores de opinião decidiram tomar posição. Nesta quinta-feira, um manifesto de empresários, banqueiros e líderes religiosos, publicado nos principais jornais do país, faz defesa da democracia e das eleições em especial.
Tudo para amplificar a voz do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) que reage como pode à campanha de difamação do presidente Bolsonaro. Na entrevista à Jovem Pan desta quarta, Bolsonaro, que já admitiu não ter provas contra as urnas eletrônicas, apresentou relatório da Polícia Federal que investigava o ataque hacker ao sistema do TSE, e sugeriu que seria fácil alterar o código fonte dos programas para favorecer um ou outro candidato. Mas Bolsonaro não explicou que o assunto foi amplamente divulgado pelo tribunal na ocasião e que o TSE já havia detalhado que não havia risco para os resultados de 2018 —num pleito vencido com ampla vantagem não só por Bolsonaro, como por todos os candidatos que atrelaram suas campanhas ao nome dele.
Em nota, o TSE esclareceu que não houve risco aos resultados do pleito, uma vez que os chamados códigos fonte passam por “sucessivas verificações e testes, aptos a identificar qualquer alteração ou manipulação. Nada de anormal ocorreu”, diz o tribunal. “Cabe acrescentar que o código-fonte é acessível, a todo o tempo, aos partidos políticos, à OAB, à Polícia Federal e a outras entidades que participam do processo. Uma vez assinado digitalmente e lacrado, não existe a possibilidade de adulteração. O programa simplesmente não roda se vier a ser modificado.”
Bolsonaro insiste em sua cruzada, num momento em que se vê acossado por uma queda de popularidade e um aumento na rejeição a seu nome. Ironicamente, tornando mais palatável ao eleitor a volta ao poder de seu maior rival, o ex-presidente Lula, como mostram as pesquisas de opinião mais recentes. O presidente brasileiro insiste na fórmula tentada sem sucesso pelo ex-presidente Donald Trump, que incentivou a invasão do Capitólio em 6 de janeiro. O método chegou a ser replicado pela candidata derrotada no Peru, Keiko Fujimori, que instigou seus seguidores a contestar o resultado das eleições vencidas no mês passado por Pedro Castillo —peruanos seguidores de Keiko também marcharam até o Palácio do Governo em Lima e chegaram a atacar carros de ministros.
Se perde o apoio popular, Bolsonaro mantém o apoio dos militares que estão no Governo, assim como o bloco dos deputados Centrão, que agora entra no Governo com a posse de Ciro Nogueira (PP-PI) como ministro da Casa Civil. Nogueira e Arthur Lira, presidente da Câmara, são as principais lideranças desse grupo. A um ano e três meses da eleição, os brasileiros só têm certeza de uma coisa: as eleições de 2022 serão um campo de batalha interminável.
Fux diz que Bolsonaro não quer diálogo e cancela reunião dos Poderes com presidente
Presidente do STF afirma que presidente da República tem feito reiteradas ofensas e ataques de inverdades contra ministros da Corte
Weslley Galzo/Brasília e Rayssa Motta/São Paulo / O Estado de S. Paulo
O presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Luiz Fux, realizou um novo discurso nesta quinta-feira, 5, para anunciar o cancelamento da reunião entre os líderes dos três Poderes, inicialmente prevista para ocorrer nesta semana.
Em um duro e breve pronunciamento, o magistrado afirmou que “diálogo eficiente pressupõe compromisso permanente com as próprias palavras”, em referência à conversa que teve com o presidente Jair Bolsonaro, no dia 14 de julho, na qual o chefe do Executivo se comprometeu em moderar o discurso belicoso em relação aos ministros que integram a Corte, assim como cessar os ataques ao sistema eleitoral. Ao encerrar, Fux disse que, “infelizmente, não temos visto” comprometimento com as próprias palavras no cenário atual.
“Como tem noticiado a imprensa brasileira nos últimos dias, o Presidente da República tem reiterado ofensas e ataques de inverdades a integrantes desta Corte, em especial os Ministros Luís Roberto Barroso e Alexandre de Moraes. Além disso, Sua Excelência mantém a divulgação de interpretações equivocadas de decisões do Plenário, bem como insiste em colocar sob suspeição a higidez do processo eleitoral brasileiro”, afirmou Fux.
“Diante dessas circunstâncias, o Supremo Tribunal Federal informa que está cancelada a reunião outrora anunciada entre os Chefes de Poder, entre eles o Presidente da República”.
Leia a íntegra do pronunciamento do presidente do STF:
Como Presidente do Supremo Tribunal Federal, alertei o Presidente da República, em reunião realizada nesta Corte, durante as férias coletivas de julho, sobre os limites do exercício do direito da liberdade de expressão, bem como sobre o necessário e inegociável respeito entre os poderes para a harmonia institucional do país.
Contudo, como tem noticiado a imprensa brasileira nos últimos dias, o Presidente da República tem reiterado ofensas e ataques de inverdades a integrantes desta Corte, em especial os Ministros Luís Roberto Barroso e Alexandre de Moraes. Além disso, Sua Excelência mantém a divulgação de interpretações equivocadas de decisões do Plenário, bem como insiste em colocar sob suspeição a higidez do processo eleitoral brasileiro.
Diante dessas circunstâncias, o Supremo Tribunal Federal informa que está cancelada a reunião outrora anunciada entre os Chefes de Poder, entre eles o Presidente da República. O pressuposto do diálogo entre os Poderes é o respeito mútuo entre as instituições e seus integrantes.
Como afirmei em pronunciamento por ocasião da abertura das atividades jurisdicionais deste semestre, diálogo eficiente pressupõe compromisso permanente com as próprias palavras, o que, infelizmente, não temos visto no cenário atual.
O Supremo Tribunal Federal, de forma coesa, segue ao lado da população brasileira em defesa do Estado Democrático de Direito e das instituições republicanas, e se manterá firme em sua missão de julgar com independência e imparcialidade, sempre observando as leis e a Constituição.
Fonte: O Estado de S. Paulo
https://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/fux-diz-que-bolsonaro-nao-quer-dialogo-e-cancela-reuniao-dos-poderes-com-presidente/
Bolsonaro admite que perdeu para Barroso a guerra do voto
Para o presidente, pouco importava vencer ou perder. O que importa é criar tumulto para justificar sua eventual derrota no ano que vem
Ricardo Noblat / Blog do Noblat / Metrópoles
O presidente Jair Bolsonaro não tem muito mais o que fazer para reverter a clara tendência da Câmara dos Deputados em votar contra o restabelecimento do voto impresso. Só faltava que admitisse a própria derrota – e ele finalmente o fez em entrevista ao canal da TV Piauí, no Youtube.
“Eu não quero adiantar, eu tenho que no plenário temos mais do que suficiente, mas como está se encaminhando essa votação na comissão a tendência é ser rejeitada na comissão por interferência do ministro Barroso”, disse Bolsonaro. Barroso é Luís Roberto, presidente do Tribunal Superior Eleitoral.
O projeto do voto impresso será votado no âmbito de uma comissão especial da Câmara e, mais adiante, submetido ao exame do plenário. Para ser aprovado ali, precisará de um mínimo de 308 dos 512 votos possíveis, uma vez que o presidente da Câmara só vota em caso de empate. Não há sinais de que isso acontecerá.
“O ministro Barroso foi para dentro do Congresso brasileiro, se encontrou com vários líderes e no dia seguinte, vários desses líderes começaram a trocar os integrantes da comissão por aqueles que votariam contra o voto impresso”, acusou Bolsonaro, e mais uma vez mentiu, como de resto está acostumado.
Barroso, que é também ministro do Supremo Tribunal Federal, foi convidado pela comissão especial para discutir o projeto do voto impresso, e explicou por que é favorável à manutenção do voto eletrônico que existe por aqui há 25 anos. Onze partidos lhe deram razão. Barroso não venceu, foi Bolsonaro que perdeu.
A história do voto em cédula no Brasil é a história de eleições fraudadas em série. Não há um único registro de eleição fraudada com o voto eletrônico. Os atuais deputados e senadores, e os que o antecederam, e Bolsonaro e seus filhos foram eleitos com o voto eletrônico. Por que duvidar dele agora? Com base no quê?
Bolsonaro diz que duvida para desacreditar os resultados das próximas eleições se for derrotado. Salvo os parlamentares bolsonaristas de raiz, os demais nada têm a ver com isso, é problema dele. Qual parlamentar bolsonarista vitorioso em 2022 dirá que a eleição foi fraudada? Político morre, mas não se suicida.
Só o presidente Getúlio Vargas, em 1954, suicidou-se – e mesmo assim para continuar vivo na memória dos brasileiros.
Alexandre de Moraes guarda forte munição contra o clã Bolsonaro
Uma história que ficará na gaveta ou que sairá dela um dia
O inquérito aberto no Supremo Tribunal Federal para investigar a produção de fakes news e o financiamento de manifestações contra a democracia trouxe à luz uma série de subprodutos, e um deles é nitroglicerina pura contra a família Bolsonaro – o pai, presidente da República, e os filhos Flávio, Carlos e Eduardo, os três zeros.
Puxa daqui, puxa dali, aceitas contribuições espontâneas de terceiros, dados cruzados, e de repente viu-se contada a história da construção da fortuna do clã desde que Bolsonaro se elegeu vereador pelo Rio e depois passou a ajudar a eleger os filhos. A história cobre o período de 30 anos – de 1989 até 2019.
Registra passo a passo a evolução patrimonial da família confrontada com a renda obtida por meio do exercício dos mandatos. A conta simplesmente não fecha. Foi renda de menos para aquisições demais. O ministro Alexandre de Moraes, que preside o inquérito, guarda tudo isso em segredo.
Alexandre sucederá o colega Luís Roberto Barroso na presidência do Tribunal Superior Eleitoral. É ele que comandará as eleições do próximo ano.
Fonte: Blog do Noblat / Metrópoles
https://www.metropoles.com/blog-do-noblat/ricardo-noblat/bolsonaro-admite-que-perdeu-para-barroso-a-guerra-do-voto
'Bolsonaro está armando pessoas contra nós', diz Megaron Txucarramãe
Em entrevista exclusiva, liderança Kayapó denuncia como os políticos estão se organizando para remover direitos indígenas e que a violência no campo vai aumentar
Por Cristina Ávila / Amazônia Real
Contaram os irmãos Villas-Bôas que Kayapó era uma designação cabocla, dada principalmente pelos seringueiros aos indígenas que usam botoque de madeira no lábio inferior. “São os Jê-Botocudo. Os Juruna, vizinhos mais próximos dos Botocudo do Xingu, chamavam-nos Txucarramãe, poderosa nação que resistiu energicamente ao contato” com a sociedade envolvente e mantinha constante vigilância sobre seu território, não permitindo ingresso de quaisquer estranhos.
“Não há quem não tenha ouvido falar dos Kayapó, nação temida por sua altivez e rebeldia e, atualmente, uma das mais numerosas do nosso vasto sertão”, relataram, no livro A marcha para o oeste: a epopeia da expedição Roncador-Xingu, os irmãos Orlando (1914-2002) e Cláudio Villas-Bôas (1916-1998). Foram os Villas-Bôas que os contataram nos anos 1950, deixando registros em diários escritos durante a sua permanência entre povos amazônicos.
Megaron Txucarramãe, um dos principais líderes indígenas do Brasil, mantém a altivez. E a mesma determinação na vigilância de territórios e de direitos, hoje não somente de seu povo, mas de todos os indígenas brasileiros, que desde os anos 1980 se articulam em lutas coletivas nacionais. Sobrinho do cacique Raoni Metuktire e pai de Mayalú Kokometi Waurá Txucarramãe, que desponta como guerreira de sua nova geração, ele mora na Terra Indígena Capoto/Jarina, no norte do Mato Grosso. É presença marcante nos embates com o governo Jair Bolsonaro e com o Congresso promovidos pelas organizações indígenas.
Há mais de 30 anos, os Kayapó acampam, de tempos em tempos, em Brasília para travar lutas. Nesse período, o cacique Megaron acompanhou seu tio Raoni na liderança dos guerreiros que sempre impressionaram por sua beleza e disciplina espartana no cumprimento de rituais sagrados. Impressionam pelos espetaculares movimentos de dança ordenados por gritos de guerra, sacudindo a Esplanada dos Ministérios com pés pesados e corpos pintados com o negro jenipapo e o rubro urucum.
Um dos cocares multicoloridos dos Kayapó foi parar na cabeça do então presidente da Assembleia Nacional Constituinte, Ulysses Guimarães (1916-1992) em 1987, que assim espantado na porta de seu gabinete na Câmara dos Deputados recebeu o documento com as reivindicações que seriam negociadas no Capítulo dedicado aos povos indígenas da Constituição Federal, homologada em 1988. Foram momentos de tensão vividos pelas organizações indígenas que no primeiro momento não puderam sequer entrar no Congresso. As organizações sofreram derrotas em comissões, mas acabaram com a vitória de 497 votos favoráveis, 5 contra e 10 abstenções em plenário.
Na história de luta de Megaron Txucarramãe, consta a inédita indenização por dano espiritual pago pela empresa aérea Gol aos Kayapó da TI Capoto-Jarina. Em 29 de setembro de 2006, um Boeing da Gol se chocou com um jato Legacy e caiu de bico na floresta. Por 20 dias, Megaron participou do grupo de indígenas que auxiliou militares no resgate dos corpos, como narrou a agência Pública. Em 2010, Raoni e Megaron procuraram a companhia aérea para retirar os destroços da aeronave. Diante da recusa, sob alegação de danos ambientais, os indígenas afirmaram que a área em torno dos destroços ficariam interditados para sempre. A indenização foi de 4 milhões de reais.
Sobrinho de Raoni, Megaron informou à reportagem da Amazônia Real que seu tio já está totalmente recuperado da Covid-19, depois de duas internações em 2020, uma por hemorragia digestiva (em julho) e outra por pneumonia (em agosto). Mas Raoni também está preocupado com as atuais ameaças que sofrem os povos indígenas.
“Não esteve em Brasília porque ainda está de luto pela esposa (Bekwyjka Metuktire) que morreu no ano passado. Mas ele está pensando, preocupado, acompanhando o movimento em Brasília. Pergunta como estamos, como está o andamento do projeto, tudo ele está sempre perguntando. Está forte, está bem” disse.
Em maio de 2018, meses antes da eleição de Bolsonaro, Megaron já demonstrava sua inquietude com a campanha eleitoral e os riscos para as populações indígenas. Desta vez, em nova entrevista exclusiva à Amazônia Real, o líder Kayapó alerta que as ameaças agora ganharam abrigo no poder central. Leia a seguir:
Amazônia Real – Sua luta tem mais de três décadas. Como vê o atual momento para os povos indígenas?
Megaron Txucarramãe – Estou de novo em movimento com outros parentes indígenas de todos os Estados do Brasil contra o projeto de lei votado no Congresso (PL 490/2007) que tenta alterar direitos garantidos nos artigos 231 e 232 da Constituição Federal, escritos em 1988 pelos deputados nos dando direito de ocupar terras tradicionais. Eles querem agora modificar terras indígenas demarcadas, homologadas de acordo com a Constituição. Tudo isso está sendo mudado. E estou, depois de tantos anos de isso tudo aprovado, com jovens indígenas fazendo um movimento contra esse projeto.
Amazônia Real – Durante a Constituinte, havia diálogo com as lideranças indígenas. Hoje há receptividade do Congresso para as demandas dos povos?
Megaron – Naquele tempo a Funai (Fundação Nacional do Índio) dava apoio aos indígenas nos movimentos em Brasília. Era diferente dos dias de hoje. A Funai era outra, o governo era outro, as pessoas eram outras. Hoje, não. O presidente da República é contra nós, o presidente da Funai é contra indígenas, o presidente do Senado, da Câmara devem estar tudo contra nós indígenas porque eles querem aprovar esse projeto. Estamos vendo quem são nossos inimigos, que querem acabar com nós através de papel, não à bala. Eles querem tomar nossas terras. Querem ocupar a terra indígena, querem mandar mineradora, garimpeiro, madeireiro, querem que nós arrendemos as terras indígenas. Essa lei aí nos obriga a arrendar a terra. Antigamente a gente não podia arrendar a terra. Eles querem tomar tudo de nós, indígenas.
Amazônia Real – Então está mais difícil a luta no Congresso Nacional?
Megaron – Está difícil eles aceitarem acordos, conversarem, negociarem com os índios. Está difícil. Jogaram bomba de gás, jogaram spray de pimenta, machucaram dois índios e dois policiais. A gente vai ver a violência agora no campo. Isso vai se refletir lá no campo. Bolsonaro está armando pessoas no campo contra nós, pessoas compram armas, munição; enquanto nós não temos armas. Nós não compramos armas. Se é assim, vamos ter que comprar armas também?
Amazônia Real – Os invasores estão arrogantes, violentos, entram nas terras como se fossem donos, não é?
Megaron – Bolsonaro quer é isso. E tem parente indígena ainda que vai lá tirar foto com ele, vai lá, apoia ele. Nós não apoiamos Bolsonaro, não. Se viu em Brasília [em 23/6, dia de votação do PL na Comissão de Constituição e Justiça], mais de 1.200 indígenas do Brasil fazendo movimento contra. Todos nós indígenas viemos sofrendo desde que chegou o homem branco. Não é só agora que temos esse problema de massacre, envenenamento, de tudo, tomada de terras, extinção de etnias. Não é de hoje que sofremos esses ataques, essas guerras que querem fazer contra nós.
Cristina Ávila fez comunicação na PUCRS e iniciou o jornalismo em pequenos diários de Porto Velho, em Rondônia, onde foi atraída por coberturas sobre meio ambiente, questões indígenas e movimentos sociais. Por mais de duas décadas trabalhou em redações de jornais, especialmente no Correio Braziliense. Em Brasília, entre 2009 e 2015 trabalhou no Ministério do Meio Ambiente, responsável por assuntos como mudanças climáticas e políticas públicas relacionadas a desmatamento. Nesse período teve oportunidade de prestar algumas consultorias ao PNUD. Atualmente atua na imprensa alternativa.
Fonte: Amazônia Real
https://amazoniareal.com.br/bolsonaro-esta-armando-pessoas-no-campo-contra-nos-diz-megaron-txucarramae/
'Não há genocídio que não tenha sido precedido por discursos de ódio'
Em entrevista exclusiva ao portal Pública, Alice Wairimu Nderitu, do Escritório para a Prevenção do Genocídio da ONU explica por que o Brasil está no radar da instituição
IHU Online / Agência Pública
Garimpeiros ilegais atacando indígenas Yanomami, na região de Palimiu (RR), e Munduruku, em Jacareacanga (PA). A tentativa de regularizar a mineração nas terras indígenas (TIs), sem consulta prévia aos afetados. A total paralisação dos processos de demarcação de TIs pelo Ministério da Justiça e pela Funai – que vem sistematicamente atuando contra a proteção jurídica dos territórios. A falta de ação do governo federal para proteger as populações indígenas durante a pandemia de Covid-19.
A forma como a gestão de Jair Bolsonaro lida com as populações indígenas vem chamando atenção da comunidade internacional e provocando reações de organismos de proteção aos direitos humanos. Uma denúncia contra Bolsonaro por incitar o genocídio e promover ataques sistemáticos contra os povos indígenas do Brasil está sob inédita análise preliminar do Tribunal Penal Internacional (TPI), e outras representações contra o mandatário foram apresentadas ao órgão. Paralelamente, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) emitiu uma série de medidas cautelares, solicitando que o Brasil aja para proteger diversos povos indígenas, incluindo os Yanomami e Ye’kwana, os Munduruku, além dos Guajajara e dos Awá.
Em junho, o Brasil sob Bolsonaro alcançou mais um feito inédito: pela primeira vez, o país foi citado no âmbito do Escritório para a Prevenção do Genocídio e a Responsabilidade de Proteger da Organização das Nações Unidas (ONU). A menção foi feita pela conselheira especial para a Prevenção do Genocídio, Alice Wairimu Nderitu, em seu discurso na última Sessão do Conselho de Direitos Humanos da ONU. Um mês antes, outros oito relatores especiais das Nações Unidas já haviam cobrado explicações do Itamaraty sobre ataques contra povos indígenas no país.
Em sua fala perante o Conselho, a queniana destacou estar “particularmente preocupada com os povos indígenas” na região das Américas. “No Brasil, Equador e outros países, eu peço aos governos para proteger comunidades em risco e garantir justiça para crimes cometidos”, disse.
À Pública, a conselheira especial da ONU afirmou que sua equipe mantém interlocução com movimentos sociais no Brasil e que pretende visitar o país. Segundo ela, a inclusão do Brasil se deve a “processos que não asseguram o Consentimento Livre, Prévio e Informado [de Povos Indígenas e Comunidades Tradicionais], preocupações com a situação das terras indígenas e da demarcação, além de problemas ligados a instituições nacionais de proteção, especialmente a FUNAI”.
Em entrevista exclusiva, Wairimu Nderitu destacou a tese do “Marco Temporal” e os projetos visando à regularização da mineração em TIs como preocupações especiais, já que podem levar ao “despejo” das populações indígenas. A conselheira apontou também preocupação com o aumento do discurso de ódio contra populações vulneráveis no país e cobrou que o Brasil cumpra a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que prevê o Consentimento Livre, Prévio e Informado.
Alice Wairimu Nderitu (Foto: ONU | Reprodução)
A entrevista é de Bárbara D'Osualdo e Rafael Oliveira, publicada por Pública, 03-08-2021.
Eis a entrevista.
Em sua fala na 47ª Sessão do Conselho de Direitos Humanos, o Brasil foi citado pela primeira vez por um membro do Escritório para a Prevenção de Genocídio da ONU. O que motivou a inclusão do Brasil em sua fala? Você recebeu alguma informação recente que a motivou?
A minha equipe já havia realizado uma visita ao Brasil em dezembro de 2018, com o objetivo de avaliar a situação no país da perspectiva do meu mandato, que é a Prevenção do Genocídio e a Responsabilidade de Proteger. A visita foi conduzida com base nos fatores de risco e indicadores que nosso escritório utiliza como parâmetro para a análise de crimes de atrocidade. Essa missão de avaliação foi motivada por relatórios iniciais que recebemos por meio de interações periódicas com representantes de comunidades vulneráveis, especialmente grupos indígenas e de afrodescendentes, além de organizações da sociedade civil e equipes da ONU no Brasil.
Meu mandato busca, antes de tudo, a identificação de comunidades vulneráveis, dos riscos aos quais elas estão expostas e a identificação de opções de como resolver essas questões. Então, em minha fala no Conselho de Direitos Humanos, eu mencionei minha preocupação com relação às populações indígenas no Brasil e em outros países da América do Sul, com base no trabalho que eu acabei de mencionar, conduzido pelo meu predecessor, além de preocupações recentes e relatos que temos recebido sobre supostos déficits no sistema de proteção dessas populações. Especificamente no caso do Brasil, essas reclamações se referem a processos que não asseguram o Consentimento Livre, Prévio e Informado [de povos indígenas e comunidades tradicionais], à situação das terras indígenas e de sua demarcação, além de problemas ligados a instituições nacionais de proteção, especialmente a Funai.
Assim como em outros países da região, meu escritório acredita que é extremamente importante que o Brasil enfrente déficits duradouros na implementação de obrigações legais nacionais e internacionais. E, mesmo que a consulta prévia [às comunidades indígenas] seja um requerimento legal em virtude de obrigações internacionais, como a Convenção 169 da OIT, eu recebi alertas de que, no Brasil, isso tem sido limitado a um pequeno número de processos.
Ao longo dos anos, meu escritório recebeu também alertas sobre o processo de demarcação de terras indígenas e sobre a aplicação da tese do Marco Temporal a todos os processos de demarcação. Eu entendo que, sob essa tese, o direito à terra é atribuído àqueles que a ocupavam no momento da adoção da Constituição Federal de 1988, não àqueles com direitos ancestrais sobre ela. Isso pode levar à expropriação legal de um número significativo de terras ancestrais de seus donos originais. Eu recebi também alertas sobre o impacto de regulamentações da extração de recursos naturais, contribuindo ainda mais para o despejo dos povos indígenas de suas terras.
Alguns desses problemas são específicos do Brasil, mas seguem padrões gerais observados na região [América do Sul]. Por exemplo, eu recebi denúncias sobre falhas nos processos de Consentimento Livre, Prévio e Informado planejados ou implementados em diversos países. Isso não é apenas contra obrigações internacionais sob a Convenção 169 da OIT, mas também contra o texto das constituições de diversos países da região, que protegem os direitos das populações indígenas.
No contexto da Covid-19, ao redor do mundo a pandemia contribuiu para tornar a situação de populações vulneráveis ainda mais vulnerável. E, em muitos lugares, comunidades minoritárias têm sido acusadas erroneamente de espalhar o vírus ou usadas como bodes expiatórios em lugares onde a resposta do governo nacional à pandemia é limitada. Isso também aumenta o discurso de ódio contra elas. Eu recebi também denúncias de que isso está acontecendo com comunidades indígenas em toda a região. Por isso, eu senti uma grande necessidade de falar sobre o Brasil no Conselho de Direitos Humanos. E eu acho que é importante que nós multipliquemos os esforços para enfrentar essas dinâmicas.
Nos últimos meses, a Suprema Corte brasileira determinou que o governo federal tomasse uma série de medidas para proteger as populações indígenas durante a pandemia de Covid-19. O governo não cumpriu boa parte delas, no entanto. Essa resistência do governo brasileiro em proteger as populações indígenas, mesmo após decisões judiciais, é também um motivo de preocupação para vocês?
Sim. Como eu mencionei na resposta anterior, minha preocupação se baseia em denúncias que o meu escritório tem recebido com muita frequência. Eu não recebi nenhum detalhe sobre as ações que têm sido tomadas em resposta às preocupações com a proteção [das populações indígenas]. Mas eu sei que propostas de lei que estão em avaliação no Congresso podem contribuir com o agravamento da situação das comunidades indígenas.
Por isso, eu gostaria de pedir ao governo e a todos no Congresso, às pessoas em posições de responsabilidade, que considerem as obrigações do Estado sob a Convenção 169 da OIT, além das obrigações internacionais de prevenção que emanam da Convenção de 1949 para a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio. Todos os países, incluindo o Brasil, se comprometeram a proteger suas populações do genocídio, dos crimes de guerra, da limpeza étnica e de crimes contra a humanidade com a adoção do princípio da Responsabilidade de Proteger no documento final da Cúpula Mundial de 2005.
Durante alguns anos, o próprio Brasil conduziu os esforços para solucionar as falhas na implementação desse princípio na Líbia, na chamada iniciativa “Responsibility while Protecting” (“Responsabilidade ao Proteger”). É esse tipo de papel de liderança que eu encorajo as autoridades brasileiras a ocupar quando se trata de proteger a própria população. E eu estarei e me manterei à disposição para dar apoio a esses esforços como for necessário.
Meu escritório trabalhou muito bem no passado com o Ministério Público [Federal], que, pelo que eu sei, é um grande defensor dos direitos das populações indígenas. E eu vejo que meus predecessores também estiveram em contato com diversas organizações comunitárias de base, trabalhando continuamente para defender os direitos dos povos indígenas e pela sua proteção. Então é extremamente importante que aqueles no alto escalão não apenas repliquem os esforços que estão sendo feitos no nível local, mas também conduzam esses esforços o máximo possível.
O Brasil está oficialmente sob observação pelo seu escritório?
Eu diria que nós observamos o mundo todo. Inclusive, temos uma reunião daqui a duas horas para analisar o mundo todo com base no nosso sistema para a prevenção de atrocidades, que utiliza fatores de risco para analisar a situação dos países. Esses fatores de risco são fatores que existem em um país, região ou espaço onde um genocídio ocorreu no passado. Então nós vemos que há certos fatores recorrentes como pouca governança, lideranças autocráticas, presença de milícias armadas, planos visando populações étnicas, religiosas ou raciais específicas – esse tipo de coisa.
Então nós analisamos esses países e, com base nessas análises, decidimos em que situação esse país se encontra. E é com base nessa análise que nós decidimos que tipo de ação tomar com cada país. Então, sim… quando fazemos nossa análise, o Brasil é realmente um dos países sobre os quais temos que discutir em relação às populações indígenas e às populações vulneráveis em geral.
Você já mencionou isso rapidamente antes, mas gostaríamos de desenvolver um pouco mais a questão: há uma série de projetos de lei considerados “anti-indígenas” por especialistas tramitando no Congresso brasileiro. Eles incluem a exploração de terras indígenas, a legalização do garimpo e o enfraquecimento da demarcação de terras. Por que razão isso é um motivo de preocupação para o seu escritório?
É um motivo de preocupação porque populações indígenas no mundo todo correm risco de extinção. E parte do motivo tem a ver com leis como as que você descreveu. Leis que funcionam para separar os povos indígenas de suas terras ancestrais. Leis que se utilizam do fato de que terras ancestrais geralmente não têm documentos de posse ou qualquer tipo de papel que você consiga obter para dizer que a terra é sua, a não ser o fato de que seus ancestrais estão enterrados ali e que é onde você tem vivido.
[Além disso,] populações indígenas muitas vezes não têm o tipo de representação de que precisam para que suas vozes sejam ouvidas nos espaços que tomam decisões sobre elas. Isso significa que decisões são tomadas por elas, sobre elas, sem elas. Então é extremamente importante que nós façamos algo quanto a isso.
Em seu discurso, você enfatiza a importância de atuar preventivamente para evitar genocídios. Você pode falar um pouco sobre isso?
Muito do trabalho que eu faço, que é feito pelo meu escritório, é focado na prevenção. Nós apagamos muitos incêndios, não esperamos que as situações se tornem genocídios. Nós trabalhamos duro para garantir que isso não aconteça. Meu maior pesadelo seria que um genocídio acontecesse sob a minha supervisão. Quando se trata de riscos, a prevenção é a melhor resposta.
Meu papel é identificar riscos com base em um conjunto de fatores e indicadores que, como eu descrevi antes, são usados na nossa análise sobre crimes de atrocidade. Esse documento específico aborda não só genocídio, mas também crimes de guerra, limpeza étnica e crimes contra a humanidade.
A partir dessa análise, meu escritório procura dar suporte aos Estados para promover medidas de proteção. No caso do Brasil, nós faríamos o que já fizemos com vários outros países. Isso começa, logicamente, com avisos iniciais, advocacy, quando e onde há preocupação. Na minha fala no Conselho de Direitos Humanos, eu mencionei diversas situações com as quais nos preocupamos. Isso é parte do trabalho de advocacy. Como parte do meu mandato, eu faço o máximo possível para engajar Estados membros, para encorajá-los a não medir esforços para proteger aqueles que consideramos correr mais risco.
Mas advocacy é apenas o primeiro passo, e normalmente não é o suficiente. É importante que as autoridades nacionais ajam em resposta aos alertas de maneira e no tempo apropriados. Porque, afinal de contas, isso é um compromisso que todos os Estados membros, incluindo o Brasil, assinaram em 2005, quando adotaram [o princípio da] Responsabilidade de Proteger.
Eu não estou em posição de aconselhar diretamente sobre as ações específicas que podem ser tomadas no caso do Brasil, pois eu ainda não tive a oportunidade de discutir essas questões com autoridades nacionais ou de visitar o país – espero visitar o país e vou fazer esse requerimento. Mas existem linhas gerais de conselhos que são conhecidas por todos os Estados membros. Em termos de assegurar a implementação de convenções internacionais, como a 169 da OIT; em termos de fortalecer as instituições nacionais de proteção, assim como garantir que todas as comunidades vulneráveis possam opinar em assuntos que as afetam; e em termos de garantir que não haja impunidade para crimes cometidos contra elas. E, claro, todas essas [questões] são críticas, nenhuma é mais importante que a outra.
Uma questão com a qual meu escritório pode ajudar diretamente hoje é o enfrentamento dos discursos de ódio. Isso é uma preocupação no Brasil assim como em diversos outros países e que se deteriorou muito no contexto da pandemia de Covid-19. Meu escritório é um ponto focal no sistema das Nações Unidas para o enfrentamento de discursos de ódio. Não há um único genocídio – o Holocausto, qualquer crime de guerra, crime contra a humanidade – que não tenha sido precedido de discursos de ódio.
Por isso, nós trabalhamos para auxiliar na implementação da Estratégia e do Plano de Ação das Nações Unidas contra o Discurso de Ódio, que foram lançados pelo secretário-geral em 2019. Nós temos ajudado as equipes da ONU nos países a desenvolver seus próprios planos de ação para essa questão. Isso é algo que também podemos fazer no Brasil. Nós temos ajudado a sociedade civil e também agências governamentais a elaborar seus próprios planos de ação contra o discurso de ódio. É algo que podemos fazer imediatamente.
Outra coisa que podemos fazer imediatamente é trabalhar com a equipe da ONU no país para desenvolver um sistema próprio ao Brasil de análise para a prevenção de atrocidades, mapear os fatores de risco que existem no Brasil a partir de uma perspectiva brasileira.
Quais lições aprendidas ao longo de sua trajetória como pacificadora e mediadora de conflitos no Quênia e em outros países africanos podem se aplicar ao caso brasileiro?
Eu aprendi que não há muito que possa ser alcançado pela força, com proeza militar. Que usar armas não resolve um problema, que ele continua lá e não avança. É extremamente importante que os governos ouçam e que o façam com o objetivo de agir sobre o que ouviram. E sei, da perspectiva do meu mandato, da prevenção de crimes de atrocidade, que a inclusão e a promoção de vozes plurais também são fundamentais.
Em termos de sustentabilidade de qualquer ideia a ser discutida, [é preciso] incluir todos os segmentos da população – mulheres, comunidades indígenas, LGBTs, todo mundo que geralmente é excluído. Quando você os inclui na tomada de decisão, você garante a sustentabilidade das decisões que toma, porque mais pessoas a validarão. Isso é extremamente importante.
Já em termos de avaliação de situações [de risco] e análise, é importante ouvir o maior número possível de interlocutores – em diferentes ramos do governo, na capital, nas províncias, pessoas da sociedade civil, de organizações comunitárias. Todo mundo tem algo a dizer.
Da mesma forma, do ponto de vista da resposta, a prevenção constitui uma responsabilidade coletiva. E, geralmente, quanto mais amplo for o “kit de ferramentas”, maior será o número de atores em posição de agir. O que precisamos é de boa sinergia e de coordenação. Assim, o todo pode se tornar maior do que a soma de suas partes.
Outra coisa que aprendi é que a imprensa livre é extremamente crucial para o sucesso na prevenção do genocídio e de crimes de atrocidade. Como diz Amartya Sen, ganhador do Prêmio Nobel da Paz, é difícil encontrar um lugar onde haja uma imprensa livre e onde também haja fome coletiva. Se ela é de fato livre, ela é capaz de se articular, e essas preocupações são suficientes para que uma ação seja tomada. É a mesma coisa com conflitos: se você tiver uma imprensa livre, que seja livre para expressar que há algo acontecendo no país e que é extremamente importante agir, então se torna muito mais fácil resolver esses problemas.
Outra coisa que aprendi é que muitos conflitos são localizados. Na minha experiência, e em pesquisas também, se você olhar para 90% dos conflitos violentos que acontecem, eles ocorrem entre comunidades no nível local. Portanto, no cumprimento do meu mandato, pretendo colocar muita ênfase no envolvimento das comunidades de base em ações preventivas. E isso inclui apoiar grupos que representam os interesses das mulheres e promovem seus direitos para [que possamos] avançar, inclusive na prevenção de atrocidades.
Eu gostaria de concluir apenas dizendo que as lições aprendidas cresceram com a inspiração de muitas pessoas, pessoas em comunidades que fazem tudo o que podem e muitas vezes têm sucesso em causar mudanças nos lugares em que vivem. Eles realmente são os verdadeiros defensores da paz. Eu vi esse compromisso inspirador, a força de vontade de tantos jovens em todo o mundo que pensam que um mundo melhor é possível e que desejam ser agentes ativos de mudança
Eu acabei de voltar da Bósnia e Herzegovina, e o que acabei de descrever, as lições que eu aprendi, eu também vi por lá na prática. Vi comunidades que, na ausência de lideranças que se unam para reconciliar o país, se reúnem e decidem o que vão fazer dali para a frente. Então, eu realmente gostaria de encorajar as pessoas no Brasil a continuar se manifestando, a continuar nos escrevendo. Elas têm escrito muito para o nosso escritório através do e-mail disponível em nosso site, e eu as encorajo a continuar.
Há uma denúncia apresentada ao Tribunal Penal Internacional contra o presidente brasileiro por genocídio contra a população indígena em análise preliminar, e outras denúncias foram apresentadas na corte. Além disso, órgãos como a Comissão Interamericana de Direitos Humanos também já demonstraram preocupação com o cenário para os indígenas do Brasil. Essa é uma preocupação generalizada da comunidade internacional?
Em relação ao Tribunal Penal Internacional, é uma jurisdição completamente separada de nós. E normalmente nosso escritório não determina se situações específicas, em curso ou do passado, realmente se qualificam legalmente, seja como crimes de genocídio, crimes contra a humanidade, crimes de guerra ou crimes que podem ir para o TPI. Já existem mecanismos legais para isso, que fazem essa determinação. Portanto, o que fazemos é avaliar se existe o risco de algum desses crimes ocorrer em uma situação específica, e trabalhamos para prevenir ou parar esses crimes – caso haja suspeita de que já estejam ocorrendo. E então, é claro, por causa do nosso advocacy, outras instituições como o TPI podem pegar o caso. No entanto, devo dizer, só sei o que está acontecendo em nosso escritório. Não sei o que outras organizações estão dizendo sobre o Brasil, porque estou falando de preocupações muito específicas que foram levantadas pela avaliação que já foi realizada pelo nosso escritório.
Você mencionou que o Brasil é signatário de uma convenção sobre o genocídio. O que pode ser feito caso o governo não cumpra as obrigações que assumiu?
Depois de reunirmos informações sobre situações que despertam preocupação, a fim de avaliar o risco de crimes de atrocidade, nós realizamos missões de campo para consolidar nossa análise. Nós precisamos consolidar nossa análise para compreender situações específicas em questão, mas sem realizar investigações criminais sobre incidentes específicos. Não temos nenhum mandato para instruir, por exemplo, as pessoas sobre o que fazer.
O TPI, por exemplo, é um órgão judicial independente que não faz parte da ONU. E temos um acordo entre a ONU e o TPI, que estabelece o quadro jurídico de cooperação entre as nossas duas instituições. Mas, a partir daí, acho que seria prematuro da minha parte apontar o que poderíamos fazer. Acho que, no momento, o que precisamos fazer é obter o máximo de informações possível e, em seguida, mantê-los informados, porque posso garantir que estarei sempre disponível para falar com vocês. E para mantê-los informados sobre tudo o que nosso escritório está fazendo.
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http://www.ihu.unisinos.br/611707-nao-ha-um-unico-genocidio-que-nao-tenha-sido-precedido-por-discursos-de-odio
TCU pede explicações a Braga Netto e Guedes sobre dinheiro do SUS em gastos militares
Relatório enviado à CPI da Covid indicou uso de dinheiro da pandemia para despesas como material de cama, mesa e banho e manutenção de prédios da Defesa
Vinicius Valfré, O Estado de S.Paulo
BRASÍLIA – O Tribunal de Contas da União (TCU) determinou que os ministérios da Defesa e da Economia ofereçam explicações sobre o uso de recursos do Sistema Único de Saúde (SUS), destacados para o combate à pandemia, para gastos corriqueiros de militares.
O despacho de segunda-feira, 2, de autoria do ministro Bruno Dantas, tem o propósito de apurar suspeitas de irregularidades na descentralização de recursos do Ministério da Saúde, em 2020, para execução de ações de saúde pelo Ministério da Defesa.
Os indícios de mau uso da verba vieram à tona em estudo da procuradora Élida Graziane, do Ministério Público de Contas de São Paulo, enviado à CPI da Covid.
Dos recursos extraordinários desembolsados em 2020 pela União para o combate à covid, a Defesa ficou com R$ 435,5 milhões. Do dinheiro que deveria ter ido ao SUS, a Defesa gastou R$ 58 mil com material odontológico, R$ 5,99 milhões com energia elétrica, água e esgoto, gás e serviços domésticos. Também há gastos com R$ 25,5 mil com material de coudelaria ou de uso zootécnico, R$ 1 milhão com uniformes e R$ 225,9 mil com material de cama, mesa e banho e R$ 6,2 milhões com a manutenção e a conservação de bens imóveis.
Outros R$ 100 milhões foram para despesas médico-hospitalares com materiais e serviços em hospitais militares, “sem que se tenha prova de que foram gastos em benefício da população em geral, ao invés de apenas atender aos hospitais militares, os quais se recusaram a ceder leitos para tratamento de pacientes civis com covid-19”.
A procuradora sustenta que usar dinheiro de um crédito extraordinário para cobrir gastos cotidianos seria uma burla ao teto dos gastos. No documento enviado à CPI, Graziane também salienta que, apesar de ter tido uma dotação autorizada de R$ 69,88 bilhões para enfrentamento da pandemia, dos quais R$ 63,74 bilhões foram destinados ao Ministério da Saúde, o SUS efetivamente só contou com R$ 41,75 bilhões “porque o governo federal deixou de executar praticamente o expressivo saldo de R$22 bilhões em relação aos créditos extraordinários abertos no Orçamento de Guerra (Emenda 106/2020) no ano passado.”
“É preciso que a CPI da Pandemia, o MPF (Ministério Público Federal), o TCU (Tribunal de Cotas da União) e o CNS (Conselho Nacional de Saúde) apurem, mais detidamente, a motivação e a finalidade de várias despesas oriundas de recursos do Fundo Nacional de Saúde realizadas por diversos órgãos militares”, afirma a procuradora, no relatório.
No despacho, Bruno Dantas deu 15 dias para que o Ministério da Defesa, chefiado pelo general Braga Netto, e o da Economia, de Paulo Guedes, apresentem uma série de explicações. Eles deverão informar os objetivos pormenorizados da descentralização e as orientações às unidades orçamentárias para a execução dos créditos da Saúde.
Sobre o relatório da procuradora, a Defesa informou ao Estadão, no mês passado, somente que “os assuntos pautados na Comissão Parlamentar de Inquérito da covid-19, no Senado Federal, serão tratados apenas naquele fórum”. Procurada novamente nesta terça, 3, a pasta não se manifestou. A Economia também não respondeu até a publicação desta reportagem.
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https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,tcu-pede-explicacoes-a-braga-netto-e-guedes-sobre-dinheiro-do-sus-usado-em-gastos-militares,70003799462