RPD || Autores - Edição 30
Confira os autores da revista Política Democrática Online, edição abril de 2021
Veja, abaixo, a relação de todos os autores de conteúdo da 30ª edição mensal da Revista Política Democrática Online (abril de 2021).
A publicação é produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.
José Gomes Temporão: entrevistado especial desta edição. É um médico sanitarista e político luso-brasileiro. Foi ministro da Saúde durante boa parte do segundo mandato do governo Lula, empossado em março de 2007 e sucedido em 1º de janeiro de 2011. Atualmente, é diretor Executivo do Instituto Sul-americano de Governo em Saúde.
Caetano Araújo: entrevistador de José Gomes Temporão. É graduado em Sociologia pela Universidade de Brasília (1976), mestre (1980) e doutor (1992) em Sociologia pela mesma instituição de ensino. Atualmente, é diretor-geral da FAP e consultor legislativo do Senado Federal. Tem experiência na área de Sociologia, com ênfase em Teoria Sociológica e Sociologia Política.
Luiz Santini: entrevistador de José Gomes Temporão. Médico pela Universidade Federal Fluminense (1970). Foi diretor do Instituto Nacional do Câncer (Inca). É mestre em Cirurgia Torácica pela UFF e cursou o doutorado em Planejamento de Saúde pela Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Dirigiu a Faculdade de Medicina da UFF de 1979 a 1982 e foi diretor executivo da Associação Brasileira de Educação Médica.
Renato Ferraz: entrevistador de José Gomes Temporão. Renato Ferraz é jornalista profissional desde 1988. Trabalhou em veículos como Veja, Correio Braziliense, Congresso em Foco e outros. É pós-graduado pelo UniCeub e pela ISE Business School/Universidad de Navarra.
JCaesar
JCaesar é o pseudônimo do jornalista, sociólogo e cartunista Júlio César Cardoso de Barros. Foi chargista e cronista carnavalesco do Notícias Populares, checador de informação, gerente de produção editorial, secretário de redação e editor sênior da Veja.
Vinícius Müller: autor do artigo “A pedagogia do centro”. Possui graduação em História (200), pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), mestrado em Economia (2006) pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho e doutorado em História Econômica (2014), pela Universidade de São Paulo (USP). Atualmente é professor do Instituto de Ensino e Pesquisa (Insper) e do Centro de Liderança Pública (CLP).
Sérgio C. Buarque: autor do artigo “O Brasil foi intubado, e o oxigênio está acabando”. Economista com mestrado em sociologia, professor da Universidade de Pernambuco (UPE), consultor em planejamento estratégico com base em cenários e desenvolvimento regional e local, sócio da Multivisão-Planejamento Estratégico e Prospecção de Cenários e da Factta-Consultoria, Estratégia e Competitividade. É sócio fundador da Factta Consultoria. Fundador e membro do Conselho Editorial da Revista Será? e membro do Movimento Ética e Democracia.
José Luiz Oreiro: autor do artigo “O retorno do dilema juros-câmbio?”. Possui graduação em Ciências Econômicas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1992), mestrado em Economia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (1996) e doutorado em Economia da Industria e da Tecnologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2000). É editor do site que leva seu nome (www.joseluisoreiro.com.br)
Mauro Oddo Nogueira: autor do artigo “Auxílio emergencial: a boia no meio da tormenta”. É graduado em Engenharia Mecânica (1985) e em Administração (1990), pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Mestre em Engenharia de Produção pela UFF (1995) e doutor (2006) em Engenharia de Sistemas e Computação (2006) pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). É pesquisador do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (Ipea) e autor do livro Um pirilampo no porão: um pouco de luz nos dilemas da produtividade das pequenas empresas e da informalidade no Brasil.
Hussein Kalout: autor do artigo “O rastilho de destruição da diplomacia brasileira”. É formado pela Universidade de Brasília (UnB), cientista político, especialista em política internacional e Oriente Médio, professor de relações internacionais e pesquisador da Universidade de Harvard. Foi secretário Especial de Assuntos Estratégicos da Presidência da República (2016-2018). Também atuou como consultor da ONU e primeiro latino-americano a integrar o Advisory Board Havard Internacional Review para exercício de mandato vitalício.
Marcelo Aguiar
Arquiteto, autor do artigo “50 anos sem Anisio Teixeira”, foi secretário de Educação no Governo do Distrito Federal por duas vezes, em 2010 e 2013/2014, e de Ensino Integral em 2009. Também foi secretário executivo do Ministério do Trabalho em 2012 e secretário Nacional do Bolsa Escola no MEC em 2003.
Foi consultor do Unicef para educação na África entre 1999 e 2000 (Angola, Moçambique e São Tomé e Príncipe) e América Latina entre 2001 e 2002 (Equador, Bolívia, El Salvador e México)
Autor dos livros “Educação para enfrentar a pobreza” (2002) e “Educação pós-Covid-19” (2021).
Paulo Baía: autor do artigo “O Brasil não respeita o sagrado ventre do sorriso”. Graduado em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), mestre em Ciência Política pela Universidade Federal Fluminense (UFF), e doutor em Ciências Sociais pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro e pós-doutor em História Social pela UFF. É professor do Departamento de Sociologia da UFRJ e coordenador do Núcleo de Sociologia de Poder e Assuntos Estratégicos.
Cleomar Almeida: autor da reportagem especial sobre crimes cibernéticos. Graduado em jornalismo, produziu conteúdo para Folha de S. Paulo, El País, Estadão e Revista Ensino Superior, como colaborador, além de ter sido repórter e colunista do O Popular (Goiânia). Recebeu menção honrosa do 34° Prêmio Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos e venceu prêmios de jornalismo de instituições como TRT, OAB, Detran e UFG. Atualmente, é coordenador de publicações da FAP.
Martin Cesar Feijó: autor do artigo “Karl Marx, uma biografia para o século XXI”. Doutor em comunicação pela USP e professor de comunicação comparada na Fundação Armando Alvares Penteado (FAAP). É autor, entre outros, de O que é política cultural (1983), Formação política de Astrojildo Pereira (1985) e 1932: a guerra civil paulista (1998, este em parceria com Noé Gertel).
Leandro Consentino: autor do artigo “O ideologismo irresponsável”. Bacharel em Relações Internacionais, mestre e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (USP). Atualmente, é professor no Insper e na Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo.
Juliana Magalhães: Autora do artigo "Polêmica marca anulação das condenações de Lula", é sócia do escritório Trindade Camara Advogados e consultora legislativa do Senado Federal em direito penal e processo penal. Mestre em direito e políticas públicas e especialista em direito processual.
Lilia Lustosa: autora do artigo “Cinema feminino e plural”. Formada em publicidade, especialista em marketing, mestre em história e estética do cinema pela Universidade de Lausanne e doutoranda nesta mesma instituição de ensino superior.
Henrique Brandão: autor do artigo “Doses de felicidade”. É jornalista e amante de cinema.
RPD || Hussein Kalout: O rastilho de destruição da diplomacia brasileira
Ainda é cedo para prever o grau de normalização que será possível alcançar com a saída do ex-Ernesto e a posse do novo chanceler, o embaixador Carlos França, avalia Hussein Kalout, sobretudo se a influência olavista seguir pairando sobre a cabeça no novo ministro
Ernesto Araújo, o sombrio ex-chanceler do governo Bolsonaro, também conhecido como “ex-Ernesto” nas mais do que inspiradas palavras da Senadora Katia Abreu, foi finalmente defenestrado. A experiência de misturar religião com política externa e a intentona de condicionar o futuro do Brasil a um governo estrangeiro, impingiu ao país severos danos. O rotundo fracasso e a consequente derrocada da finda gestão de Araújo, é bom ressaltar, somente teve ponto final após o levante coordenado pelo Senado da República que, altivamente, decidiu dizer: basta!
Setores do estamento estatal acreditaram ou quiseram acreditar que o tempo iria, paulatinamente, moldar a política externa em consonância com a realidade, de tal modo que a distopia em andamento na nossa diplomacia fosse naturalmente corrigida. Já o empresariado, por sua vez, acreditou que, com uma pressão aqui, outra acolá, poderia insular as insanidades ideológicas do governo, para imunizar os interesses político-comerciais brasileiros das diatribes dos “condutores” das relações exteriores do país. Nada se encaminhou como imaginado, e ambos os espectros se equivocaram regiamente.
Pressionado com a reação do Senado, o presidente da República encontrou, no embaixador Carlos França, os predicados para comandar a diplomacia nacional no mais grave período da história recente do país. Muito se argumentou que o novo chanceler não assumiu o cargo em virtude de experiência comprovada no campo da política externa, mas fruto de uma lealdade já demonstrada no Palácio do Planalto – isso sem falar que a indicação foi subscrita pelos cônsules da ideologização bolsolavista. Essa circunstância, na visão de vários parlamentares, não deixa de lançar dúvida sobre a capacidade do novo ministro de moldar decisões e moderar o ímpeto do próprio presidente.
Uma percepção não foge ao olhar daqueles que acompanham pari passu a política externa brasileira. O método que comandou a escolha do novo chanceler obedeceu ao mesmo réquiem da primeira experiência: diplomata recém-promovido à posição de embaixador, de trajetória discreta, sem nunca ter exercido funções de mais alta responsabilidade e chefia no Brasil e no exterior, desprovido de amplitude política e de denso arco de apoio no espectro nacional. A inferência natural que se fez dentro e fora da chancelaria – ainda que de forma talvez apressada – é a de que a escolha se encaixa naquilo que a ala ideológica do governo buscava assegurar: o controle sobre a diplomacia brasileira.
Apesar da lógica do método, contudo, cumpre ressaltar que a temperança e o bom senso do novo ministro da Relações Exteriores, Carlos França, são inversamente proporcionais aos de seu antecessor, o ex-Ernesto. Não obstante, é importante por ora não elevar as expectativas em demasia sobre quaisquer mudanças essenciais nas linhas da política externa. Apesar do estilo sóbrio e profissional do embaixador Carlos França, ainda é cedo para prever o grau de normalização que será possível alcançar, sobretudo se a espada de Dâmocles olavista seguir pairando sobre a cabeça no novo ministro.
Aliás, o discurso de posse do ministro França centrou-se em ilustrar como a diplomacia poderá contribuir na solução dos principais problemas do país e, especialmente, naqueles que o governo vem fragorosamente falhando em endereçar como: combate à pandemia, preservação do meio ambiente e crescimento da economia. A efetividade e o possível sucesso do trabalho do Itamaraty na solução de tais problemas, à par da boa intenção do discurso, dependem da moderação de uma única autoridade: o presidente da República. E é justamente aí que reside o perigo.
Profundas mudanças nas linhas da política externa somente devem ser aguardadas, portanto, a partir do dia 1 de janeiro de 2023 – se o Brasil eleger, obviamente, um novo presidente. Porém, até lá, é preciso ficar atento aos temas que são – e sempre serão – vitais ao interesse nacional.
Nesse sentido, China e EUA não deveriam seguir sendo opções excludentes no mapa geoestratégico da política externa do atual governo. Um país com vocação universalista como é a do Brasil, definidamente, não pode se condenar a escolher entre um ou outro lado. O pragmatismo e o bom senso recomendam extrair de ambos, chineses e americanos, os maiores benefícios para a sociedade brasileira e para os nossos interesses estratégicos – seja nas áreas comercial, tecnológica, ambiental, sanitária ou política.
Não menos importante, a América do Sul é um imperativo estratégico. O Brasil precisa com urgência redimensionar seu papel como um indutor do processo de desenvolvimento da região e país promotor da paz. Uma “liderança natural” não sobrevive por inércia quando há vácuo de poder. É preciso retomar o diálogo com os países sul-americanos, e cabe ao Itamaraty articular, liderar e impulsionar boas políticas de cooperação regional – saúde e meio ambiente são os fios condutores no momento.
A África, lamentavelmente, inexiste no mapa cartesiano da política externa bolsonarista. É um grave equívoco de avaliação achar que contaremos sempre com apoio dos países africanos mesmo estando ausentes do teatro diplomático e dos principais temas do continente. Aparições esporádicas e ações pontuais não ajudarão a consolidar as relações com a África. De maneira geral, o crescimento econômico dos países africanos, nos últimos anos, tem sido consistente, e as oportunidades econômicas e comerciais têm-se aberto àqueles países que estão sendo capazes de mensurar o valor estratégico do continente africano tais como: China, Turquia, Índia e Alemanha.
O sistema multilateral, por sua vez, sempre foi a melhor raia em que a política externa navegou. É onde construímos nosso prestígio e ampliamos nossa influência desde os tempos de Oswaldo Aranha ou até antes, com a participação marcante de Rui Barbosa na segunda Conferência de Paz na Haia, em 1907. É preciso evitar mais desgaste e recobrar a capacidade do país de evitar o isolamento que se auto impôs nos mais variados foros. É preciso repensar alguns posicionamentos, especialmente, em matérias concernentes ao meio ambiente e aos direitos humanos.
Se conseguir recolocar a política externa minimamente nos trilhos, na linha do que sinalizou em seu discurso de posse, o novo ministro das Relações Exteriores já estaria contribuindo para amainar o rastilho de destruição e minorar os graves prejuízos impostos ao país. A força do Brasil nas relações internacionais sempre foi sedimentada em sua dedicada capacidade de articular e de participar dos grandes palcos globais. Construído a duras penas, esse capital diplomático foi dilapidado nos últimos dois anos. Esperamos que o novo chanceler estanque a hemorragia e estabilize o doente. Diante da crise que nos acomete e das inclinações do presidente da República, isso seria sem dúvida um grande êxito e, quem sabe, um primeiro passo para a recuperação futura de nossa capacidade de defender nossos interesses no cenário internacional. Ao novo chanceler, desejamos boa sorte. Ele vai precisar.
* Hussein Kalout é cientista Político, Professor de Relações Internacionais e Pesquisador da Universidade Harvard. Foi Secretário Especial de Assuntos Estratégicos da Presidência da República (2017-2018).
- ** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de abril (30ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.
- *** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na Revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores, não refletindo, necessariamente, as opiniões da Revista.
RPD || José Luís Oreiro: O retorno do dilema Juros-Câmbio?
Decisão do Banco Central de aumentar a taxa Selic em 0,75% em março passado, no contexto da maior crise econômica da história do Brasil, foi a prova cabal que o país ainda não se livrou da armadilha juros-câmbio, avalia José Luís Oreiro
A sociedade brasileira tem uma patologia grave. Ela se mostra refratária a aprender com os inúmeros erros que vem cometendo nos últimos 40 anos. Trata-se da incapacidade de nossa sociedade, e particularmente dos economistas ditos “ortodoxos”, de reconhecer o estrago que a combinação entre juros altos e câmbio sobrevalorizado tem causado ao tecido produtivo da economia brasileira desde o início do Plano Real e mantido, quase incólume, durante as sucessivas administrações petistas.
A partir de 2017, com o nível de atividade econômica no fundo do poço devido à grande recessão de 2014-2016, o Banco Central do Brasil iniciou processo de (sic) redução lenta, gradual e segura da taxa Selic. Com a pandemia do covid-19, em 2020, a taxa Selic chegou à mínima histórica de 2% a.a em termos nominais, ao passo que a taxa de câmbio apresentava desvalorização de mais de 40% ao longo do ano.
Finalmente, o Brasil parecia ter-se livrado da combinação maldita entre juros altos e câmbio baixo, causa principal da desindustrialização prematura da economia brasileira, conforme mostro no livro Macroeconomia da Estagnação Brasileira, escrito em coautoria com Luiz Fernando de Paula e lançado neste mês pela Alta Books.
A decisão do Banco Central do Brasil em meados de março de aumentar a taxa Selic em 0,75 p.p - no contexto da maior crise econômica da história do Brasil e com contração fiscal já contratada para o ano de 2021 em função de redução de 75% do valor do auxílio emergencial – foi a prova cabal que o país ainda não se livrou da armadilha juros-câmbio.
A decisão “técnica” para o ajuste da taxa de juros – a qual deverá prosseguir nas próximas reuniões do Copom – era que a elevação do IPCA, acumulado nos últimos 12 meses de um patamar abaixo de 2% em junho de 2020 para mais de 5% em fevereiro de 2021, colocava em risco a obtenção da meta de inflação para o ano de 2021, definida em 3,75% a.a pelo Conselho Monetário Nacional, com um intervalo de tolerância de +/- 1,5 p.p. A autoridade monetária reconhece, contudo, que a elevação da inflação se deveu a um choque de oferta adverso – basicamente a elevação dos preços dos alimentos e combustíveis, devido à combinação de aumento dos preços internacionais das commodities e desvalorização da taxa de câmbio – que deverá ser revertido no segundo semestre de 2021. Tanto é assim que a previsão de inflação do mercado financeiro no início de março para o ano de 2021 se encontrava em 3,98%, ligeiramente acima da meta de inflação para o ano, mas confortavelmente dentro do intervalo de tolerância do regime de metas de inflação.
A teoria econômica e a prática da política monetária mostram que elevações da taxa de juros não devem ser usadas para conter uma aceleração inflacionária produzida por um choque de oferta, pois (i) a aceleração da inflação será de caráter temporário e (ii) uma elevação da taxa de juros irá amplificar, ao invés de amortecer, o efeito negativo do choque de oferta sobre o nível de atividade econômica. Nesse caso, a melhor política é acomodar o aumento temporário da inflação no intervalo de tolerância definido no regime de metas de inflação.
Essa não foi a decisão do Banco Central. Preferiu aumentar a Selic e já deixou claro que deverá continuar aumentando a taxa básica de juros até que a política monetária apresente (sic) o grau de estímulo compatível (sic) com o que é exigido pela situação atual da atividade econômica.
Essa explicação parece basear-se na premissa de que existe relação positiva entre a taxa de juros e o nível de atividade econômica, ou seja, de que por algum mecanismo que só existe na economia brasileira, um aperto na política monetária poderia levar a um aumento, ao invés de redução, do nível de atividade econômica.
Parece que a atual diretoria do Banco Central foi infectada com o vírus do “populismo cambial”, endêmico tanto entre os economistas ortodoxos, como em parte da heterodoxia brasileira. A ideia é a seguinte: elevações da taxa Selic levam a uma apreciação do câmbio, que permite uma redução da inflação, a qual leva a um aumento do salário real e do consumo das famílias. Dessa forma, um aumento da Selic seria compatível com a recuperação do nível de renda e emprego.
Essa política foi adotada ad-nauseam durante os dois mandatos do Presidente Lula e o resultado foi desindustrialização e perda de dinamismo econômico. Campos Neto quer repetir o mesmo experimento fracassado, na esperança de que agora ele finalmente vai funcionar. Irá colher os resultados de sempre.
* José Luis Oreiro é professor do Departamento de Economia da UnB
- ** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de abril (30ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.
- *** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na Revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores, não refletindo, necessariamente, as opiniões da Revista.
RPD || Juliana Magalhães: Polêmica marca anulação das condenações de Lula
A advogada e consultora legislativa do Senado Juliana Magalhães analisa, em seu artigo, os aspectos processuais da decisão do ministro do Supremo Tribunal Federal Edson Fachin no habeas corpus 193.726 PR
Como já é de conhecimento geral, o ministro Edson Fachin do Supremo Tribunal Federal (STF), em sede de habeas corpus impetrado por Luiz Inácio Lula da Silva, declarou a incompetência da 13ª Vara Federal de Curitiba para o julgamento de ações penais (Triplex de Guarujá, sítio de Atibaia, sede do instituto Lula e doações ao mesmo instituto) em desfavor do ex-Presidente, determinando a remessa daqueles autos ao Distrito Federal.
O ministro declarou a nulidade dos atos decisórios praticados nas ações penais, inclusive os recebimentos das denúncias, devendo o juízo competente decidir acerca da possibilidade da convalidação dos atos instrutórios. A decisão, contudo, resta por hora em um “limbo jurídico” em razão do julgamento ulterior, pela 2ª Turma do STF, da suspeição do ex-juiz Sérgio Moro para processar as ações mencionadas.
A decisão do ministro, tal como se tornou comum na comunidade jurídica, causou estranhamento. Não em razão da matéria de fundo, isto é, se, de fato, não há correlação entre os fatos narrados naquelas ações e os diversos episódios de corrupção em desfavor da Petrobrás, cujo mérito não será objeto do artigo. Mas o busílis da questão são as sucessivas manifestações de menoscabo em relação às normas processuais penais pela justiça brasileira, especialmente pelo seu mais importante Tribunal, o STF.
O Estado Democrático de Direito deve estar baseado no devido processo legal, conquista da civilização moderna que sabe, com razoável previsibilidade, a sequência dos atos processuais e suas consequências. A segurança jurídica é um elemento de importância quase espiritual para as nações, pois o homem toma decisões diuturnas com base no seu resultado futuro dessas decisões.
Assim, ainda quando estudantes de Direito, aprendemos as noções básicas sobre o direito processual. Uma delas é que há instâncias ordinárias (primeiro grau, o juiz singular; e segundo graus, os Tribunais de Justiça) e extraordinárias (Tribunais Superiores), devendo esses últimos não revolver provas e fatos na seara recursal, mas decidir questões sobre o direito em tese. Para não existir uma eternização dos litígios, a Constituição criou um modelo em que os Tribunais terão amplíssimo âmbito de cognição (efeito devolutivo da apelação), mas as instâncias extraordinárias se limitariam a analisar o amoldamento dos fatos (tal como decididos pelas instâncias inferiores) em relação ao direito.
Mas, a regra da cognição limitada desses Tribunais foi ignorada pelo Ministro Fachin quando, em sede de habeas corpus, revisitou provas e reapreciou os fatos. Saber se “as condutas atribuídas ao paciente não foram diretamente direcionadas a contratos específicos celebrados entre o Grupo OAS e a Petrobras S/A” é matéria de fato, cuja afirmação ou negação se inseriu no âmbito de cognição das instâncias ordinárias. Revisitar tal tema agora desrespeita a lógica de um sistema processual que deve estar voltado à estabilização de conflitos.
Do mesmo modo, o Tribunal habitualmente deturpa o papel de cada recurso previsto em Lei, provocando a eternização dos litígios, concentrando em si um poder absoluto e quase sempre monocrático. Veja-se que a declaração de incompetência ocorreu no âmbito de um habeas corpus impetrado contra decisão do STJ nos autos do Agravo Regimental no Recurso Especial nº 1.765.139, no ponto em que refutou as alegações de incompetência da 13ª Vara Federal. Cada habeas corpus – e observe-se que HC não é um recurso, mas, um remédio excepcional – impetrado pela defesa do ex-presidente Lula contra uma decisão do STJ, se revela como uma nova possibilidade de o STF modificar integralmente o conteúdo de suas decisões.
Além disso, o sistema de preclusões processuais – elemento central para o funcionamento racional dos Tribunais – foi ignorado pela decisão, ao não observar que a incompetência relativa deve ser mencionada pela parte em sede de exceção de incompetência e, ao ser decidida pelo Tribunal de segundo grau, se torna tese jurídica rejeitada. Se assim não fosse, a marcha processual estaria sujeita a diversos atos de retorno.
Por fim, alerta-se que não se tratou aqui de advogar pela inocência ou culpa do ex-Presidente com relação aos fatos julgados pela 13ª Vara Federal de Curitiba. Como dito, o artigo disso não se ocupou. Cremos, contudo, que os processualistas não devem naturalizar episódios de ofensa ao devido processo legal pelo Tribunal Constitucional do país. Vivemos tempos difíceis e nossa democracia não caminha a passos largos, mas, sempre teremos no devido processo uma das mais importantes armas contra o arbítrio.
*Juliana Magalhães é sócia do escritório Trindade Camara Advogados e consultora legislativa do Senado Federal em direito penal e processo penal. Mestre em direito e políticas públicas. Especialista em direito processual.
- ** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de abril (30ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.
- *** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na Revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores, não refletindo, necessariamente, as opiniões da Revista.
RPD || Leandro Consentino: O ideologismo irresponsável
Brasil corre o risco de ficar de fora das principais mesas de negociações por conta da política externa do Governo Bolsonaro, isolando-se da futura governança global. Estados devem reconstruir os organismos internacionais quando a pandemia tiver fim
O breve governo de Jânio Quadros, inaugurado e concluído em 1961, não costuma trazer grandes lembranças sobre suas iniciativas políticas internas para além das folclóricas proibições do uso de biquinis, lança-perfumes e rinhas de galos. No flanco externo, contudo, o legado é evidente, com a emergência da chamada Política Externa Independente.
Buscando diversificar os contatos externos e não se alinhar a nenhum dos dois lados da Guerra Fria, evitando a bipolaridade reinante por meio de princípios como a não-intervenção e a auto-determinação dos povos, o novo paradigma de política externa brasileira foi conduzido brilhantemente por nomes como Afonso Arinos de Melo Franco e San Tiago Dantas, durante os governos de Quadros e de seu vice, João Goulart.
Com a ruptura democrática e a ascensão do Regime Militar, a Política Externa Independente foi brevemente substituída por um alinhamento automático aos Estados Unidos e, consequentemente, ao bloco capitalista. O interesse nacional acabou, então, subordinado ao interesse norte-americano, o que ficou patente pelas palavras do então embaixador brasileiro em Washington, Juraci Magalhães: “O que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil”.
O alinhamento, contudo, não durou muito tempo e, na década seguinte, esta postura subserviente cedeu espaço, paulatinamente, para uma espécie de reedição da Política Externa Independente, cujo ápice ocorreria em pleno governo do general Ernesto Geisel. Sob a batuta do então chanceler Antônio Francisco Azeredo da Silveira, o novo modelo foi batizado de Pragmatismo Ecumênico e Responsável, apontando exatamente para uma política exterior pautada em uma postura realista e pouco afeita a constrangimentos de natureza ideológica, sobretudo no que diz respeito às negociações econômicas e comerciais.
O pragmatismo responsável, como ficou mais conhecido, orientava-se pelo significado semântico de seu título e buscava assegurar, sem maiores preocupações com a orientação política dos governos com quem travava acordos, a primazia de nosso interesse, sobretudo em um ambiente internacional desfavorável, atingido pela escalada da Guerra Fria e pelo primeiro choque do petróleo. Os resultados não tardaram e aprofundaram nossos laços com regiões e países bastante diversos, com especial destaque para a África, o Leste Europeu e o Oriente Médio, além de nos garantir importante participação e até protagonismo em organismos internacionais.
Com o fim do governo Geisel e posteriormente do próprio regime ditatorial, o advento da Nova República não abandonou tais princípios universalistas e legitimou, ao longo dos sucessivos governos democráticos, a inserção do país nos regimes internacionais, sempre pautado pela autonomia quanto às superpotências, em especial os Estados Unidos da América.
Não obstante seus diversos problemas internos, o Brasil logrou posição de destaque na esfera multilateral, principalmente marcada pela continuidade de sua política externa, independente da disputa entre as forças políticas. As conquistas consolidadas por um governo – seja na esfera econômica, comercial, ambiental ou de direitos humanos - alicerçariam as bases para as conquistas posteriores, ainda que o presidente seguinte fosse de oposição ao anterior.
Este círculo virtuoso foi bruscamente interrompido com a vitória de Jair Messias Bolsonaro, em outubro de 2018, e a subsequente nomeação de Ernesto Araújo para o cargo de Ministro das Relações Exteriores. Com uma visão que preconizava completo alinhamento com os Estados Unidos, à época governados por Donald Trump, e outros países governados por populistas conservadores, a política externa brasileira esposou a antítese do paradigma de Azeredo da Silveira, pautando-se por um ideologismo irresponsável.
De maneira cada vez mais alheia aos anseios brasileiros, o governo de turno prefere privilegiar suas convicções políticas e ideológicas em detrimento do interesse nacional, colocando em risco os esforços de política externa, conquistados nas últimas décadas e prejudicando a economia e a sociedade brasileira em um momento tão grave como o atual. Foi dessa forma que ficamos para trás na corrida pelas vacinas e que tivemos os insumos atrasados por algumas semanas, perdendo centenas de vidas pelo caminho.
Assim sendo, quando a pandemia tiver fim e os Estados decidirem a reconstrução de organismos internacionais pautados na questão sanitária e na recuperação da economia, o Brasil pode não ser convidado às principais mesas de negociações, isolando-se da futura governança global. Eis o risco que ora enfrentamos e que precisamos evitar a todo custo.
Como disse o próprio Azeredo da Silveira: “a melhor tradição do Itamaraty é saber renovar-se”. Ainda que sem grandes esperanças para o curto prazo, esperemos que essa renovação venha em breve, retirando a viseira ideológica que nos tolda a visão para buscar os reais interesses de nosso país.
* Leandro Consetino é bacharel em Relações Internacionais, Mestre e Doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (USP). Atualmente, é professor no Insper e na Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo.
- ** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de abril (30ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.
- *** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na Revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores, não refletindo, necessariamente, as opiniões da Revista.
RPD || Lilia Lustosa: Cinema feminino e plural
Apesar da tragédia da pandemia do novo coronavírus, 2021 marca positivamente a história do cinema ao destacar a presença feminina, com duas mulheres concorrendo à categoria de Melhor Direção
Quantas diretoras de cinema você conhece? Dá para encher uma mão? E diretores? Muito mais fácil de lembrar, não? Eles são tantos!
A verdade é que a indústria cinematográfica sempre foi dominada pelos homens, embora as mulheres tenham tido participação fundamental em sua consolidação. No entanto, como costuma acontecer em outras áreas, muitas dessas personagens femininas foram apagadas, esquecidas, editadas ou simplesmente cortadas da História. Ora, todos já ouvimos falar dos Irmãos Lumière, de Méliès, de Edison, certo? Mas quem conhece Alice Guy ou Lois Weber? Mulheres que, desde os primórdios do cinema, já atuavam por detrás das câmeras, mas cuja passagem pelos estúdios e salas escuras ficou perdida lá no passado!
No Brasil, também foram muitas as que atuaram na construção do nosso cinema, como Carmem Santos, atriz, roteirista, diretora e produtora, que, já nos anos 20, criou a Film Artistico Brasileiro (F.A.B.) e, nos anos 30, com a chegada do sonoro, a Brasil Vita Filmes. Ou ainda Cléo de Verberena, atriz e produtora, primeira mulher a dirigir um longa de ficção no país, o desaparecido O Mistério do Dominó Preto (1931). Isso sem falar de Adélia Sampaio, Helena Solberg, Helena Ignez… Tantas, mas das quais sabemos tão pouco!
Ao que tudo indica, porém, o ano de 2021, apesar de seu roteiro mais para cyberpunk ou filme-catástrofe, parece que vem para marcar positivamente a história do cinema. Pelo menos no quesito conquista feminina! Isso porque o filme que vem roubando todas as atenções e levando os prêmios mais importantes da temporada é Nomadland, dirigido, roteirizado, montado e produzido por Chloé Zhao, uma chinesa radicada nos Estados Unidos. Um roadmovie que mistura realidade e ficção, ao percorrer o oeste dos EUA retratando a vida dos novos nômades do país, tendo como protagonista a já oscarizada Frances McDormand.
A origem asiática da diretora chama também a atenção, já que estamos assistindo, na vida real, a um aumento da violência contra essa gente, a quem muitas vezes tem sido atribuída a culpa pelo surgimento do coronavírus. Um cenário macabro de uma ficção científica rasa e injusta! Mas enquanto o movimento Stop Asian Hate ganha forças nas ruas, Cloé Zhao brilha absoluta nos palcos dos festivais e nas telas de cinema, televisores, computadores, tablets ou smartphones de todo o mundo. Em fevereiro último, ela se tornou a primeira diretora a ter uma produção premiada com o Globo de Ouro de melhor filme, além de ser a segunda a levar a estatueta de melhor direção e a primeira asiática a conseguir esse feito. No Critics Choice Award, Zhao também saiu com o prêmio de direção, e Nomadland, com o de melhor filme. Fato que se repetiu no PGA Awards, premiação do Sindicato dos Produtores de Hollywood, em que seu filmefoi laureado mais uma vez como o melhor do ano.
Resta agora o prêmio mais badalado da terra do tio Sam: o Oscar. No dia 25 deste mês, Nomadland concorrerá ali em seis categorias: melhor longa, direção, roteiro adaptado, montagem, fotografia e atriz. Dessas indicações, quatro levam a assinatura de Zhao. Uma proeza e tanto para tempos em que a desigualdade de gênero ainda é a regra do mercado!
E o melhor de tudo é que a diretora nascida em Pequim não está sozinha nessa empreitada, já que a britânica Emerald Fennell também concorre ao prêmio de direção por seu inusitado Bela Vingança (2020), sendo este o primeiro Oscar a ter duas mulheres disputando essa categoria. Até então, em suas 93 edições, apenas cinco haviam sido indicadas por direção, mas nunca duas ao mesmo tempo. Fennell concorre ainda por roteiro original, e Bela Vingança, que tem a violência contra mulher como tema central, por melhor filme e montagem. Uma trama cheia de dores, cores e dissabores, e que traz uma Carey Mulligan esbanjando talento no papel da vingativa Cassandra, o que lhe rendeu, aliás, a indicação ao Oscar de melhor atriz.
Fora Zhao e Fennell, outras tantas profissionais estão concorrendo nas mais diversas categorias. Sem dúvida, um grande passo para a tão almejada igualdade, mas que não deixa de sublinhar o triste fato de que, em pleno século 21, ainda tenhamos que aplaudir de pé a indicação de duas mulheres às categorias principais do Oscar. Pergunto-me então o que teria gerado essa “evolução”? A luta de tantos anos? Mudanças na composição dos boards dos prêmios? Ou será que o confinamento levou à reflexão, fazendo-nos entender de uma vez por todas que há espaço para talentos de todos os gêneros e raças nos sets de filmagem?
Que venham as estatuetas!
*Lilia Lustosa é crítica de cinema e doutora em História e Estética do Cinema pela Universidad de Lausanne (UNIL).
- ** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de abril (30ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.
- *** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na Revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores, não refletindo, necessariamente, as opiniões da Revista.
RPD || Marcelo Aguiar: 50 anos sem Anísio Teixeira
Perseguido pelo golpe de 1964 e morto em 1971 em circunstâncias nunca esclarecidas, Anísio Teixeira foi educador, escritor, jurista e um dos fundadores da Universidade de Brasília (UnB). Nos anos 1930, lançou as bases da escola pública, gratuita, laica e universal
“Só existirá democracia no Brasil no dia em que se montar no país a máquina que prepara as democracias. Essa máquina é a escola pública.”
Anísio Teixeira, in Educação para a Democracia (1936)
No final da manhã de uma ensolarada quinta-feira no Rio de Janeiro, Anísio Teixeira saiu a pé da sede da Fundação Getúlio Vargas, em Botafogo, para visitar o amigo Aurélio Buarque de Holanda, que morava ali perto e com quem almoçaria e pediria voto. Era candidato à Academia Brasileira de Letras. Nunca chegou ao almoço. Aquele 11 de março de 1971 ficaria marcado na história da educação brasileira como o dia em que a ditadura eliminava mais um intelectual que lutava por uma educação pública para todos, gratuita, laica e de qualidade.
No outro dia, a família recebeu a notícia, pelo acadêmico Abgar Renault, que soube do então comandante do Exército, Sizeno Sarmento, que Anísio estava “detido para averiguações” nas dependências da Aeronáutica. Dois dias depois o educador foi encontrado no fosso do elevador do edifício onde residida Aurélio Buarque de Holanda, com duas grandes lesões no crânio, incompatíveis com a suposta queda. Ao lado do corpo, um taco de madeira, causador das lesões.[1]
Defensor de uma educação que atendesse a todos, independente de raça, credo ou condição financeira, e que olhasse para os interesses da comunidade em que estava, Anísio Teixeira queria uma escola que deixasse de ser feita para a elite e desse início a uma sociedade mais justa. Para ele, a educação era a verdadeira geradora de mudanças. Considerado americanófilo pela esquerda e comunista pela direita, era membro do movimento “Escola Nova”, que visava a renovação do modelo de educação e, logo, da escola. Um verdadeiro “escolanovista”, herdeiro da influencia do filósofo americano John Dewey, de quem foi aluno nos EUA.
Para ele, as novas responsabilidades da escola eram a de educar em vez de instruir, formar homens livres em vez de homens dóceis, preparar para um futuro incerto em vez de transmitir o passado claro, e ensinar a viver com mais inteligência, mais tolerância e mais felicidade. Defendia que, numa escola democrática, professores e alunos devem trabalhar em liberdade, desenvolvendo a confiança mútua. “Estamos passando de uma civilização baseada em uma autoridade externa para uma baseada na autoridade interna de cada um de nós”, dizia em seu livro Pequena Introdução à Filosofia da Educação.
Como intelectual orgânico que era, não somente defendia suas idéias, mas concretizou diversas delas. Em 1961, como Secretário de Educação da Bahia, criou a primeira Escola Parque, modelo de Educação Integral, em Salvador. Logo depois, nomeado diretor do Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos, que viria a ser o INEP de hoje, inicia o projeto de construção de 28 Escolas Parque em Brasília, recém-inaugurada. Não conseguiu. Foram construídas apenas cinco unidades do projeto, todas no Plano Piloto da Capital. Com o golpe de 1964, foi afastado do cargo de Reitor da Universidade de Brasília, que havia criado junto com Darcy Ribeiro, e passou a dar aulas em universidades americanas.
Nasci em Brasília e cresci ouvindo que o sistema educacional da cidade foi inspirado nos ensinamentos de Anísio Teixeira. Estudar nas famosas Escolas Parque, onde os alunos tinham Ensino Integral e desenvolviam no contraturno atividades culturais, esportivas e aprendiam línguas, era o sonho de toda criança naquela época. Sonho para poucos. Aluno da escola pública e morando na periferia de Brasília, numa das chamadas Cidades Satélites, nunca tive esse privilégio.
Já adulto, como Secretário de Educação do DF, tive a honra de implantar, em 2014, as duas únicas novas Escolas Parque abertas 54 anos após a inauguração da Capital. Fiz questão que fossem fora do Plano Piloto, nas cidades de Ceilândia e Brazlândia, periferia de Brasília. A primeira, a maior cidade do Distrito Federal, surgida a partir de um programa de erradicação de invasões, e a segunda, a mais rural e distante cidade do centro da capital. Em Brazlândia, chama-se Escola Parque da Natureza; já em Ceilândia, Escola Parque Anísio Teixeira.
Foi a forma de homenagear o pensador, não só dando seu nome a uma das unidades, mas também seguir seus ensinamentos. Estão perto dos mais pobres e oferecem a esses alunos acesso a toda a grandeza, complexidade e resultados que uma proposta como essa proporciona. Hoje, 50 anos após sua morte, seu legado segue vivo, pulsante e ainda à frente de seu tempo.
[1] Informações constates no Relatório da Comissão Anísio Teixeira de Memória e Verdade da Universidade de Brasília, Brasília: FAC-UnB, 2016.
* Marcelo Aguiar é arquiteto, foi secretário de Educação no Governo do Distrito Federal por duas vezes, em 2010 e 2013/2014, e de Ensino Integral em 2009. Também foi secretário executivo do Ministério do Trabalho em 2012 e secretário Nacional do Bolsa Escola no MEC em 2003. Foi consultor do Unicef para educação na África entre 1999 e 2000 (Angola, Moçambique e São Tomé e Príncipe) e América Latina entre 2001 e 2002 (Equador, Bolívia, El Salvador e México). Autor dos livros “Educação para enfrentar a pobreza” (2002) e “Educação pós-Covid-19” (2021).
- ** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de abril (30ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.
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RPD || Martin Cezar Feijó: Karl Marx, uma biografia para o século XXI
Em seu artigo, Martin Cezar Feijó faz uma análise contundente do novo livro de José Paulo Netto, fruto de uma vida inteira dedicada ao estudo da obra marxiana
Marx está morto. Sim. Desde 1883. Marx está vivo! O filósofo do materialismo histórico está mais vivo do que nunca. É o que demonstra um marxista “impenitente”: José Paulo Netto. E é de Marx que quero falar aqui, mais particularmente de uma biografia recém-lançada por ele escrita sobre um pensador combativo do século XIX e sua presença no quadro do século XXI: Karl Marx – uma biografia (Boitempo, 2020).
Primeiro, quero falar do autor, que conheço bem. E devo muito. Quando eu cursava minha graduação no departamento de História (FFLCH-USP) na década de 1970, reclamávamos muito que não tínhamos Marx em nossos currículos.
Puxa vida! A direita até hoje diz que a escola pública, principalmente a universidade pública, é um antro de comunistas, e nós não estudávamos o fundador do comunismo?!
Mas foi por isso que um grupo de estudantes, do qual fiz parte, resolveu criar uma célula voltada à pesquisa: Associação dos Universitários para a Pesquisa em História do Brasil (AUPHIB). E sabíamos que o estudo de Marx seria importante em nossa formação intelectual. Foi por isso que no inicio da década de 1980 soubemos da volta do exílio, com a anistia, de um estudioso em Marx, José Paulo Netto, com quem organizamos um curso de introdução à Marx. O curso era ministrado em uma sala alugada na Galeria Metrópole no centro de São Paulo. Por vários sábados na parte da manhã assistíamos aquelas aulas entusiasmadas de um pesquisador sobre o tema.
Desde então, sempre acompanhei a trajetória de “Zé Paulo” (daqui para frente, JPN) em seus estudos marxistas. Aliás, devo a ele uma das experiências profissionais mais decisivas em minha vida, a de ter sido convidado em 1985 para editar as páginas de cultura do semanário Voz da Unidade, onde fiquei até 1989.
Então, não surpreende a publicação de um livro que já nasceu também clássico, com suas 815 páginas densas da mais refinada erudição e profundidade, que resenha nenhuma dará conta. Principalmente de um resenhista que não esconde seu lado, nem sua admiração.
Em Karl Marx – Uma biografia, ficamos sabendo sobre o biografado; de sua origem, sua família, seus estudos, sua militância política, até sua vida privada. E, claro, seu amor por Jenny von Westphalen. Uma vida difícil, com momentos de total carestia, como o período em que viveram em Londres. Não fosse a ajuda do amigo Engels (de quem se fala muito no livro), a fome seria ainda pior para a família toda, em um momento em que suas pesquisas dariam origem ao Capital.
Mas os estímulos intelectuais de Marx foram os mais variados, principalmente, antes da economia política, seus interesses literários, principalmente por nomes como Homero, Shakespeare, Schiller e Goethe. Sem falar de sua atenção com o desenvolvimento da ciência, tendo lido e acompanhado as polêmicas envolvendo Darwin. O nome que marcou definitivamente sua formação foi o filósofo G.W.F. Hegel (1770-1831) e um contexto de dissolução da filosofia clássica alemã, que envolveu também Kant e Fichte.
Depois de uma experiência rica, mesmo que curta, na imprensa como jornalista da Gazeta Renana (1841-1843), Marx sentiu, com a descoberta da economia, uma “necessidade urgente de qualificar-se teoricamente e compreender a vida social” (p.65). Desse processo surgiram textos como Crítica da Filosofia do Direito em Hegel e Sobre a Questão Judaica, obras fundamentais e maduras para se entender a complexidade do pensamento de Marx.
Mas é em Paris, segundo JPN, o aprofundamento da crítica a Hegel, e a “descoberta do mundo”. Marx passa a se dedicar ao “mundo do trabalho”, mas também a uma militância política que o levou ao exílio belga, um “exílio tranquilo”, onde formula em 1845 as famosas Teses sobre Feuerbach: “Os filósofos apenas interpretaram o mundo de diferentes maneiras, o que importa é transformá-lo”.
A vida intelectual se somou a uma intensa militância ao lado de Engels, figura decisiva, aderindo a uma prática revolucionária na Liga dos Comunistas, sobre a qual escreve com o amigo um dos textos mais influentes da história: o Manifesto do Partido Comunista. Em Londres, apesar da penúria, até miséria, entre 1849 e 1867, Marx atinge seu pleno apogeu intelectual, a plenitude de uma obra, cuja compreensão exige muito esforço e dedicação, o que faz JPN neste estudo voltado para o século XXI.
Marx morreu no dia 14 de março de 1883, mas sua obra se tornou uma realidade no século XX, no plano teórico e na prática histórica, assim como um imenso desafio para o século XXI.
E, para terminar com um spoiler, usando um termo da moda, o epílogo vira prólogo, com citações de Carlos Drummond de Andrade – A rosa do povo, “Cidade prevista” - e John Lennon – “Imagine”, assumindo um toque de poesia e um conhecimento nascido do rigor da filosofia e da ciência. Marx ainda nos faz pensar. Não só pensar, mas agir, ou como John Lennon, sonhar: “Você pode dizer que sou um sonhador, mas não sou o único”, politizando uma aspiração individual.
*Martin Cezar Feijó é historiador e professor titular-doutor na Facom da Faap (Fundação Armando Álvares Penteado).
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RPD || Mauro Oddo Nogueira: Auxílio Emergencial - A boia no meio da tormenta
Benefício manteve acesa parte da demanda, evitando uma queda ainda maior do PIB em 2020 e permitiu que mais de 50 milhões de brasileiros e seus familiares não se vissem privados de qualquer fonte de renda
O cenário brasileiro das últimas semanas foi marcado por tal quantidade de fatos relevantes que chega a ser difícil acompanhá-los, digeri-los, analisá-los. Dentre eles, sublinho a renovação do Auxílio Emergencial, com início programado para a primeira semana de abril. Acredito, porém, que o destaque não tenha sido o merecido. Digo isso por conta da dimensão dos impactos do programa na economia nacional. A rigor, não há como se fazerem avaliações precisas desses impactos, uma vez que ainda não se produziram os dados estatísticos que o permitirão. Uma dose de bom senso, contudo, somada a um olhar atencioso para a realidade, permite uma estimativa razoável.
O número mais esclarecedor é o do PIB. As estimativas para o PIB de 2020 quando do início da pandemia variavam, dependendo do otimismo de quem as fazia, entre uma queda de 6% até mais de 9%. Mas o resultado final foi de “apenas” 4,1%. E, por óbvio, isso não se deveu à pandemia ter sido menos virulenta ou duradoura do que se supunha. Muito pelo contrário.
O que impediu, então, que o PIB desmoronasse em um grau ainda maior do que o dessas previsões? A explicação que parece fazer sentido – principalmente cotejando-se o PIB com os índices de desemprego e desalento – é a de que o Auxílio Emergencial manteve acesa parte da demanda. Lembremo-nos de que os principais atingidos pelos fakedowns(modalidade tupiniquim de lockdown) são exatamente os autônomos e os informais. Ou seja, os que não têm reserva de capital, não conseguem mecanismos outros para se manterem de algum modo operando e atuam majoritariamente nos segmentos mais impactados. O Auxílio permitiu que mais de 50 milhões de brasileiros e seus familiares não se vissem privados de qualquer fonte de renda. Isso certamente evitou uma convulsão social – inclusive com a possibilidade de distúrbios de massa e saques – que se chegou a ver desenhada no horizonte.
Para a felicidade de quase todos, a pífia proposta de Auxílio inicialmente elaborada pelo governo foi ampliada pelo Congresso por pressão da sociedade. Não fosse isso, por render graças à Sua Majestade o Equilíbrio Fiscal (dogma abandonado desde o início da pandemia pelas economias mais liberais do planeta, como os EUA, Alemanha e Reino Unido), suas condições não teriam evitado a catástrofe.
Acontece que, para além dos impactos econômicos, há ainda três impactos de ordem moral.
O primeiro foi tornar visíveis os invisíveis. Houve susto generalizado quando cerca de 60 milhões de pessoas se apresentaram para receber o Auxílio. A despeito desse contingente de concidadãos aparecer claramente nas bases estatísticas – como a Pnad Contínua do IBGE, por exemplo – e ser objeto de numerosos estudos e publicações científicas, parece que os gestores públicos e a mídia em geral os desconheciam.
O segundo está condicionado a se admitir como verdadeira a hipótese que muitos economistas têm defendido, a de que parte da inflação – especialmente dos gêneros alimentícios – é consequência da elevação do dólar. E que parte decorre da pressão de demanda sobre esses itens de consumo (leite, arroz, feijão etc.), resultado dos efeitos positivos do auxílio emergencial sobre a renda das pessoas. Ocorre que tais produtos são classificados como bens com elasticidade-renda da demanda menor ou igual a zero. Trocando em miúdos, trata-se daquelas coisas que as pessoas não compram mais porque estão ganhando mais. Trocando mais em miúdos ainda, ninguém se empanturra de arroz e feijão porque teve um aumento salarial. Em alguns casos, até se compra menos desses produtos porque os substitui por outros mais caros. Esse comportamento da elasticidade só não se verifica em uma situação: quando a renda anterior do indivíduo não era suficiente para que adquirisse esses tais alimentos “básicos”. Portanto, admitir a veracidade desse componente inflacionário é reconhecer o nível de miséria a que estão submetidos milhões de brasileiros e que se traduz em uma amarga palavra de quatro letras: fome.
O terceiro, por fim, tem origem nas indefinições que se arrastaram por semanas. Nas idas e vindas em relação à sua renovação, valores que serão concedidos, critérios de elegibilidade, data de início e duração. Esse impacto moral é bem mais simples de se compreender. Basta que a gente se coloque no lugar de quem depende desse dinheiro para colocar comida nos pratos de seus filhos.
*Doutor pela Coppe/UFRJ e pesquisador do Ipea. É autor do livro Um pirilampo no porão: um pouco de luz nos dilemas da produtividade das pequenas empresas e da informalidade no Brasil.
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RPD || Paulo Baía: O Brasil não respeita o sagrado ventre de um sorriso
Imagem de Marielle Franco vai sendo apagada para que o esquecimento recaia sobre o crime, escreve Paulo Baia em seu artigo. “Um crime político com endereço para qualquer uma que se aventure a desafiar as oligarquias da cidade do Rio de Janeiro”
Eu, Marielle Franco, mulher, preta, favelada, eleita vereadora pela cidade do Rio de Janeiro, levei quatro tiros no dia 14 de março de 2018.
Era a expressão de alegria. Nosso país não suporta uma mulher com um sorriso largo e sincero. Aberto e franco. O Brasil é o país da misoginia. Marielle subverteu não só pelas origens pobre e negra, mas também por seu currículo, seu brilhantismo profissional e acadêmico. Sua subversão maior era o sorriso escancarado. Brasil que estupra mulheres indígenas e pretas. Sou filho e neto de tais mulheres. Desejo suas vozes ouvidas. O Brasil não respeita o ventre de um sorriso.
Eu, Marielle Franco, fui assassinada no dia 14 de março de 2018, levei três tiros na cabeça e um no pescoço por um carro que me encurralou no Estácio. Como a música de Luiz Melodia: Se alguém que matar-me de amor, que me mate no Estácio, Bem no compasso, bem junto ao passo, Do passista da escola de samba, Do Largo do Estácio, O Estácio acalma o sentido dos erros que faço, Trago, não traço, faço, não caço, O amor da morena maldita domingo no espaço, Fico manso, amanso a dor, Holiday é um dia de paz... Os assassinos dispararam com uma submetralhadora. Queriam me executar para calar as minhas vozes: mulher, preta e favelada.
Eu já quero ser a segunda voz dela. Quero ser aquele que escuta. Como um velho, menos analista e mais antropólogo.
Peço permissão à ancestralidade feminina escravizada e violada nesse nosso torrão, a terra como Gaya, para ouvir Marielle. Desejo falar do lugar do feminino. Embora não possa incorporar o lugar de fala exclusivo dela. Desejo reunir forças para poder realizar esta homenagem. Somos seres simbólicos. É deles que marcamos o nosso compasso neste chão árido, seco, desértico e que machuca feito pelas dores de muitas mulheres. A terra é a simbologia mais antiga do feminino. Ela gira em torno do sol. E Marielle foi apagada antes de terminar a sua própria gira carregada de brilho e cheia de potência em defesa das mulheres faveladas. Das pretas. Ela lutava contra a perpetuação de um movimento de opressão cometido há séculos contra os pretos desde a colonização - a eterna escravidão que nos assombra cotidianamente.
Marielle era a terra fértil que ria e celebrava. Poderia uma mulher rir e celebrar? Sacralizar o riso, o corpo e a força do feminino é o meu desejo neste artigo. Tanto já foi dito a respeito de sua morte, sobre os assassinos, quem mandou matar que até hoje, no dia 02 de abril de 2021 (data que o autor escreveu o artigo), ainda não sabemos quem mandou executá-la. Os dias passam. O tempo corre. E a imagem vai sendo apagada para que o esquecimento recaia sobre este crime político.
Eu, Marielle Franco, fui assassinada, os tiros vieram de repente com força e não restou tempo para reação, caí morta, perdi a minha vida em meio à barbárie.
Permaneço preso ao ensaio antropológico e mágico. Feito um ritual de despedida e com o desejo de que sua morte não tenha sido em vão como tantas outras. O momento mais forte veio com a lavagem do chão cheio de sangue. No local onde a mataram no Estácio. Foi uma limpeza feita com ervas. E tambores. Marielle era a terra fértil que ria e celebrava o direito de vida dado a todos pela constituição de 1988, promulgada após a redemocratização. Nossa miscigenação é o fruto de estupros coletivos e continuados de mulheres indígenas e negras por séculos. É o machismo reprodutor assassinando mulheres vandalizadas e matáveis. Pai perverso e assassino de filhos mestiços pretos, quase pretos. Marielle é o retrato perfeito de séculos de violações aos corpos femininos.
Eu, Marielle Franco, fui morta de forma brutal sem direito à defesa. Nasci com a marca da exclusão e com a certeza de que deveria permanecer calada, distante do jogo político feito entre homens misóginos e racistas. A política feita para poucos que lutam por seus negócios embolados aos prazeres espúrios. E certamente com muitas garotas de programa em suas festinhas regadas a comida, bebidas, entre outras coisas.
Permaneço no meu ritual vivenciando uma eterna despedida de um antropólogo que se despe e veste a roupa do cientista político para dizer que a morte de Marielle foi o fim de um sonho e um crime político com endereço para qualquer uma que se aventure a desafiar as oligarquias da cidade do Rio de Janeiro.
Eu, Marielle Franco perdi a voz, mas renasço em todas as mulheres pretas, pobres e faveladas que trabalham e enfrentam o cotidiano de opressão. A vida é circular. E a Terra é redonda e gira em torno do sol.
O ritual de despedida homenageou o sorriso largo de uma mulher potente, vibrante, capaz de no sorrir rodopiar as energias, realizando a gira no meio do chão de terra das favelas cariocas. E é deste sagrado sorriso que o país precisa girar para recuperar a sua força e potência.
* Paulo Baía é sociólogo, cientista político e professor da UFRJ.
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RPD || Sérgio C. Buarque: O Brasil foi intubado ... e o oxigênio está acabando
Sem medidas para o isolamento social e a vacinação em massa, calamidade sanitária que o país enfrenta leva diretamente ao desastre humano e econômico, avalia Sérgio C. Buarque
No primeiro trimestre do ano, o Brasil viveu o maior desastre sanitário da sua história com o colapso do sistema de saúde e número assustador de vítimas do Covid-19. Em março, foram 66.868 óbitos, cerca de 21% de todas as mortes pelo vírus no ano passado e o dobro do que foi registrado em julho, no auge da pandemia em 2020. O Brasil tornou-se grave ameaça internacional, sendo responsável hoje por cerca de 27% das mortes diárias no planeta e pela propagação de uma nova cepa mais contagiante e de maior agressividade. Esta dramática situação é o resultado direto da nefasta atuação do presidente da República na desqualificação das medidas de prevenção, no atraso da compra de vacinas e na tentativa de quebra das iniciativas de confinamento social dos governadores. Difícil imaginar mudança do comportamento e das decisões do presidente Bolsonaro no futuro imediato.
A calamidade sanitária leva diretamente ao desastre humano e econômico. A economia brasileira já estava patinando no primeiro trimestre, mesmo antes das modestas restrições implantadas em março, quando os casos e mortes pelo Covid-19 explodiram. Segundo o IPEA, o PIB dos três primeiros meses deste ano registrou queda de 0,5% em relação ao trimestre anterior. A dimensão do desastre sanitário e as incertezas em relação aos desdobramentos da contaminação e às decisões governamentais comprometem a economia e desestimulam os investimentos. Além disso, a nova variedade do vírus tem tido maior taxa de contaminação e de letalidade na população jovem[1] (qualificada para o trabalho) com a destruição de capital humano de efeito estrutural negativo na economia.
Para frear a cadeia de transmissão do vírus nos próximos meses, moderando a dimensão da trágica calamidade sanitária, será imperiosa a implantação de medidas drásticas de isolamento social. Como resultado, forte retração da economia: aumento do desemprego, da falência de empresas e da vulnerabilidade social. Entretanto, diante da gravidade da pandemia, se não forem adotadas medidas duras e impopulares, mantido o ritmo atual de mortos pelo Covid-19, até o final do semestre, o Brasil vai registrar a dolorosa marca de mais de meio milhão de vítimas do vírus. A implantação de um confinamento mais profundo demanda medidas compensatórias do Estado mais amplas do que foi aprovado na PEC emergencial. As quatro parcelas de R$ 250,00 em média para 45,6 milhões de famílias e os R$ 10 bilhões para o BEM-Programa de manutenção do emprego e renda[2] serão claramente insuficientes, para o enfrentamento dos efeitos econômicos e sociais negativos de algum nível de lockdown.
Não se pode ignorar, contudo, que as restrições fiscais deste ano são mais graves que as de 2020, em grande parte por conta das medidas de proteção e incentivos adotadas pelo governo, que gerou déficit fiscal de R$ 844,6 bilhões e ampliou a dívida pública para cerca de 100% do PIB. Mesmo com os gatilhos de redução das despesas correntes aprovados na PEC 109[3], o aumento do auxílio emergencial e do apoio ao emprego e às empresas para compensar o confinamento social deve agravar o quadro fiscal do Brasil. Mas, apesar dos riscos fiscais, o Brasil não tem alternativa de curto prazo. A calamidade permite suspender, transitoriamente, o Teto de Gastos e empurrar os compromissos para o futuro, ao passo que são concebidas e negociadas mudanças estruturais que viabilizem a recuperação das finanças públicas e a reanimação da economia.
O primeiro semestre já está perdido. O desempenho econômico do segundo depende das decisões atuais sobre a intensidade do confinamento e a velocidade do processo de vacinação. E, claro, da ação compensatória do Estado. Se não conseguir acelerar o ritmo de vacinação, até o final do semestre, o Brasil terá vacinado cerca de 84,4 milhões de brasileiros, apenas 40% da população, muito abaixo dos 70% considerados necessários pelos infectologistas para a imunização de massa. Embora muito mais grave do que o ciclo do ano passado, a nova onda do Covid-19 pode ser mais curta se forem adotadas medidas rígidas que quebrem a cadeia de transmissão do vírus e aceleram o processo de vacinação. O custo muito alto no presente, inclusive político, teria resultados mais rápidos e consistentes na recuperação da economia brasileira[4] no restante do ano.
- [1] Em São Paulo, a idade média dos pacientes internados nos hospitais caiu de 65 anos, em julho de 2020, para 37 anos em fevereiro de 2021; em Minas Gerais, 20% das mortes por Covid são de pessoas com menos de 60 anos; e, no Rio Grande do Sul, este percentual chega a 27,8%.
- [2] Muito abaixo do auxílio emergencial do ano passado que custou cerca de R$ 50 bilhões mensais e dos incentivos do BEM-Programa de Manutenção do Emprego e Renda que chegou a R$ 33 bilhões.
- [3] Os gatilhos aprovados pelo Congresso reduziram em muito a capacidade de manobra do governo, tanto nas despesas com pessoal (impedindo a suspensão das promoções), quanto na redução da renúncia fiscal de 4% para apenas 2% do PIB.
- [4] O crescimento da economia internacional, que poderia favorecer o desempenho econômico do Brasil, também estará sofrendo as consequências de novas ondas da pandemia, neste primeiro semestre, embora deva se beneficiar da recuperação da China e dos elevados investimentos do governo americano (US$ 1,9 trilhões) para combate aos efeitos da propagação do vírus, combinados com a aceleração da vacinação.
*Sergio C. Buarque é economista, com mestrado em sociologia, professor aposentado da FCAP/UPE, consultor em planejamento estratégico com base em cenários e desenvolvimento regional e local.
- ** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de abril (30ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.
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RPD || Vinícius Müller: A pedagogia do centro
Vinícius Müller avalia que, se não houver um passado que dê substância à formação de um centro político, este espaço será ocupado por candidatos polares como Lula e Bolsonaro, que o usam apenas de modo instrumental
Há uma expressão, comum e ingênua, que revela um modo particular de nosso entendimento sobre a História: ‘o problema é que nunca tivemos uma guerra para, de fato, resolvermos nossas feridas mais profundas’. Ou, especificamente, ‘se tivéssemos feito uma guerra de independência ou uma revolução contra escravidão teríamos um país mais justo e desenvolvido’.
A ingenuidade desta premissa reside na própria História. Os EUA, por exemplo, fizeram uma guerra para acabar com a escravidão e nem por isso resolveram a desigualdade racial que até hoje revela que esta ferida é muito maior do que uma guerra pode ser.
Contudo, esta premissa revela uma pedagogia, e sua instrumentalização resulta na condenação moral de qualquer tipo de ajustamentos ou negociações que porventura tenham sido feitos no passado ou que possam se efetivar no futuro.
É assim que há muito tempo temos oferecido nossa história pública: uma soma de arranjos feitos por quem, no fundo, não quer mudar nada. E se há – e certamente há – alguma verdade nisso, não parece razoável que essa seja a única versão da História. O outro lado é a glorificação, tão justa quanto supervalorizada, da ideia de que por seu ‘passado de luta’, por si só, alguém deva nos servir como referência. Muitas vezes, e pelo contrário, é o ‘passado de negociações e capacidade de fazer acordos’ que deve, por ser tão ou mais relevante à nossa trajetória, servir-nos de referência.
Pensar sobre isso nos ajuda a superar alguns de nossos atuais desafios: como criar uma outra pedagogia que rompa com esse modo parcial de contar a História? Como criar uma narrativa que envolva, primordialmente, os arranjos e acordos? E como fazer isso sem parecer oportunista?
Estas são barreiras na medida em que a declaração conjunta feita por possíveis candidatos de centro à presidência da República (Ciro, Doria, Amoedo, Huck, Mandetta e Leite) pode ser esvaziada se duas lacunas não forem rapidamente preenchidas. A primeira é a fragilidade da proposição que vê o problema apenas na inexistência de um projeto comum entre eles. Não é o futuro que conta, e sim o passado. Ou seja, o que precisam fazer é, antes de um projeto comum, encontrar um passado que os una ou que, no mínimo, justifique este ensaio de aproximação. A segunda é que, sem isto, os laços serão frágeis e, consequentemente, o fortalecimento do centro não significará nada de muito diferente do que é para os candidatos polares, Lula (PT) e Bolsonaro (Sempartido). Ou seja, se não houver um passado que dê substância à formação de um centro político, este espaço será ocupado por aqueles que o usam apenas de modo instrumental.
Para tanto, é necessária a criação de uma pedagogia do centro, que não só repudie a narrativa histórica da ’luta’ - característica daqueles que atiçam a polarização e usam o centro apenas como ferramenta -, mas também identifique os valores que são vistos no passado e transferíveis ao futuro. E esta pedagogia pode seguir alguns passos: a) leitura do contexto não pode ser capturada pela tentação da polarização. O esforço é achar, no contexto, os elementos que engrandecem a narrativa do ‘acordo’ e condenam a viciada e, hoje irresponsável, narrativa da ‘luta’; b) exaltar em nossa trajetória exemplos de arranjos e acordos que nos ajudaram a avançar e, ao mesmo tempo, enfrentar a narrativa que encontra em nossa trajetória apenas os acordos e arranjos que nos atrasaram; c) nomear os riscos e problemas criados em nossa trajetória pela ética da ‘luta’. Ela não pode, porque efetivamente não é, ser vista como moralmente superior à ética do ‘acordo’; e d) encontrar uma linguagem que facilite o entendimento de que ser do centro é a definição de um valor enraizado em nossa trajetória e que, mesmo responsável por alguns resultados ruins, também foi elemento fundamental para grandes avanços.
São esses os passos, em resumo, que criarão um ambiente favorável para que o centro deixe de se posicionar como o ‘negativo’ à polarização e seja o ‘positivo’ de nossa trajetória e de nosso futuro. Ou seja, aquele que carrega - porque identifica, valoriza e comunica - os avanços que tivemos em nossa história quando conseguimos anular a retórica da ‘luta’; e não o refúgio daqueles que só querem reproduzir nossos males.
Assim não seremos engolidos por aqueles que fazem do centro um instrumento oportunista. Ou alguém tem dúvida de que Bolsonaro acena ao centro apenas por uma lógica tática e de curto prazo? Ou de que o discurso de que Lula é o verdadeiro centro é só oportunismo?
*Vinícius Müller é doutor em História Econômica, professor do Insper e do CLP (Centro de Liderança Pública)
- ** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de abril (30ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.
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