Fernando Gabeira: Bem-vindos à Neverlândia

A França cortou os voos com o Brasil, e o primeiro-ministro Jean Castex provocou risos no Parlamento ao falar do uso da hidroxicloroquina por aqui.

Isso que chamam de Brasil soa cada vez mais distante para mim. Guardo um país no escaninho da memória, mas o lugar onde vivo hoje costumo chamar de Neverlândia.

É um lugar realmente estapafúrdio, onde um Bolsonaro presidente troca ideias ao telefone com um senador Kajuru e ameaça dar porradas num quadro da oposição.

No final de tudo, o senador Kajuru está sendo processado por uma apresentadora de TV que ele ofendeu em entrevista, após a conversa com o presidente. Tudo na verdade parece um enredo televisivo, filmado com a luz de padaria e um cenário com cores berrantes.

Em Neverlândia, o presidente incorpora um personagem do programa “Casseta & Planeta”, chamado Maçaranduba, obcecado por dar porradas.

Em Neverlândia , o ministro do Meio Ambiente é acusado pela polícia de se associar a desmatadores para protegê-los da investigação e processo criminal. Isso jamais aconteceu no país chamado Brasil, agora envolto em névoa, pairando sobre meus cansados neurônios.

Em Neverlândia, políticos ainda hesitam em apurar o que acontece, apesar de mais de 370 mil mortos, de a maioria da população ter fome e de alguns doentes amarrados na cama, por falta de sedativos e relaxantes musculares.

Em Neverlândia, um vereador mata um menino a pancadas, e a mãe marca hora com a manicure.

Aquele país chamado Brasil nunca foi perfeito. Seus orçamentos eram irreais. Mas, depois que se transformou, surgem ideias como mandar o líder da Neverlândia para o exterior, para que não o punam pelos crimes fiscais.

A ideia não vingou, não porque era absurda, mas pelo fato de não ter para onde ir: as portas do mundo estão fechadas. Não há saída para quem vive na Neverlândia. A única possibilidade real é buscar de novo aquele país chamado Brasil, que escapou entre os dedos até se tornar isso que está aí.

Será um reencontro difícil. Há muitos Maçarandubas por aí, querendo dar pancadas. Apenas pelos músculos, não são assim tão perigosos. O problema é o crescimento do número de armas, um dos pontos básicos na transição para a Neverlândia.

Para reencontrar o Brasil, é preciso admitir que a Neverlândia sempre esteve por aqui, como uma espécie de mais um estado, não um espaço físico da Federação, mas um estado de espírito.

Nunca conseguiremos mandá-lo integralmente para as terras do nunca mais. O que não é possível é deixar que substitua o Brasil.

Éramos um país feliz, lembram? Havia energia, criatividade no ar. Era o que sentiam os que nos visitavam nos tempos de Brasil. A felicidade era, indiretamente, uma atração turística.

A pandemia revelou o que sabíamos, mas jamais encaramos de frente, que são nossas desigualdades. Ao explodir num momento de trevas num governo de obtusos negacionistas, ela provocou uma tempestade perfeita.

A sobrevivência de países em momentos históricos excepcionais depende da capacidade de unir forças, conjugar talentos e vontades.

Quando se trata de um inimigo externo e visível com o estrago de suas bombas, o trabalho de unir é mais fácil.

Estamos diante de um inimigo invisível, o vírus, e de um adversário interno: a extrema-direita, que sempre existirá, mas jamais nos representará, pois a soma dos seus erros e iniquidades nos transfigurou em Neverlândia.

Diante de tudo isso, a tarefa essencial é recuperar o país chamado Brasil, com o menor número de mortos. Os lideres de Neverlândia eleitoralmente se desmancham com sua própria incompetência.

Mas e os mortos? Na Neverlândia morre mais gente do que nasce. Como estancar a mortandade e chegar vivo a 2022? É uma pergunta que deveria ofuscar todas as pequenas questões políticas, ciúmes e rancores que acabam sendo também uma forma de interiorizar a morte.


O Estado de S. Paulo: CPI da Covid põe militares no foco das investigações

Já na mira do TCU, os generais Eduardo Pazuello e Walter Braga Netto devem estar entre os primeiros a serem ouvidos pela comissão parlamentar no Senado

Mateus Vargas e Vinícius Valfré, O Estado de S.Paulo

BRASÍLIA - Nem o presidente Jair Bolsonaro nem os governadores. A Comissão Parlamentar de Inquérito aberta no Senado para investigar a atuação do governo na pandemia deve mirar primeiro nos militares. Os generais Eduardo Pazuello, ex-ministro da Saúde, e Walter Braga Netto, atual ministro da Defesa, que comandou um comitê de crise quando estava na chefia da Casa Civil, entre outros oficiais, devem ir a um incômodo “banco dos réus”. Ambos os generais entraram na mira do Tribunal de Contas da União (TCU) e de membros da CPI.

A convocação de Pazuello já era certa, mas ontem senadores da CPI combinaram de incluir entre os primeiros a serem ouvidos também o atual ministro da Defesa. A decisão ocorre após o Estadão revelar que técnicos do TCU consideraram que Braga Netto não atuou de forma a “preservar vidas” quando comandou o comitê da crise. O general teria entrado em contato ontem com ministros da Corte para se defender e tentar sair da mira do tribunal, cujos relatórios costumam pautar as CPIs. Ao Estadão, o Ministério da Defesa negou que o comitê tenha sido omisso com a crise.

Membro da CPI, o senador Otto Alencar (PSD-BA) disse que as apurações não podem ficar restritas à conduta do ex-ministro Pazuello. “O Ministério da Saúde não é só Pazuello. Existe uma estrutura organizacional de cargos, com responsabilidades. Quando o Pazuello foi ao Senado, por exemplo, o secretário executivo dele (o coronel da reserva Elcio Franco) estava do lado”, disse. Sobre a conduta de Braga Netto, afirmou: “Vamos averiguar, pedir informações ao TCU. A investigação vai ditar os requerimentos de informações e as convocações”.

“Não tenha dúvida que vamos discutir a convocação de Braga Netto. Acompanhamos tudo dos relatórios do TCU, do MPF e denúncias. Vamos atrás de cada uma. O relatório do TCU é muito rico, vai ser uma base importante para os trabalhos”, reforçou o senador Humberto Costa (PT-PE), que também integra a comissão.

“Na medida em que a CPI busca fazer uma radiografia completa da atuação do governo federal no combate à pandemia, avaliar a atuação do comitê presidido pelo ministro Braga Netto será provavelmente indispensável”, complementou o senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE), um dos autores da CPI.

Diante dos novos fatos envolvendo militares, interlocutores do Planalto já avaliam que o governo estará no lucro se os debates da comissão se limitarem a Eduardo Pazuello. Sua equipe mais próxima na Saúde era formada por cerca de 20 nomes da ativa e reserva.

A disposição dos senadores, contudo, é convocar todos a depor em sessões transmitidas ao vivo. Eles não costumam ter parcimônia com seus investigados e a história registra episódios em que depoentes saíram presos de comissões. Razão pela qual é cada vez mais frequente que depoentes acionem o Supremo Tribunal Federal (STF) para não serem obrigados a dar as caras e prestar depoimentos. Uma CPI também tem poderes para quebrar sigilos fiscal, telefônico e bancário.

“Estão fazendo prejulgamento antes de instalar a CPI. Não é um tribunal de inquisição, temos que ter calma. Já estão condenando, isso não funciona. Primeiro, temos que ver o que está acontecendo”, disse o senador Jorginho Mello (PL-SC), um dos dois governistas na CPI, que tem 11 membros.

Alertas

Sob comando de Pazuello na Saúde, o Brasil saltou de cerca de 15 mil óbitos para 300 mil vítimas da pandemia e tornou-se uma ameaça global. Na quarta-feira passada, o TCU acusou o general de alterar o plano de contingência da Saúde na pandemia para livrar o governo de responsabilidades no monitoramento de estoques de medicamentos, insumos e testes.

A obediência de Pazuello ao presidente ficou nítida em outubro de 2020, quando cancelou uma compra de 46 milhões de doses da Coronavac. “É simples assim. Um manda e outro obedece”, disse na ocasião. A promessa de aquisição da vacina havia enfurecido Bolsonaro, pois os dividendos políticos iriam para o governador de São Paulo, João Doria (PSDB).

Ainda em fevereiro, um ministro do STF demonstrava, em conversa reservada com o Estadão, a preocupação diante da possibilidade de os militares serem alvo de uma CPI. Mesmo a Comissão Nacional da Verdade, que mirou agentes da reserva e questões da história, havia criado uma crise na cúpula militar e um estranhamento entre o governo Dilma Rousseff e a caserna.

Nesta semana, o ministro Gilmar Mendes disse ao Estadão não temer problemas institucionais. Ele observou que os militares foram “reprovados” na gestão pública e defendeu o direito da CPI de investigá-los. Em julho de 2020, o ministro já havia afirmado que o Exército estava se associando a um “genocídio”.

Enquanto Bolsonaro atacava a vacina, as Forças Armadas foram vitais para turbinar a produção da cloroquina, sem eficácia comprovada contra a covid-19. O Laboratório do Exército fez 3,2 milhões de comprimidos na pandemia. O lote anterior, de 2017, foi de 256 mil. A passagem de Pazuello na Saúde ainda ficou marcada por críticas sobre a omissão do governo no colapso no Amazonas. 

O Ministério da Saúde afirmou que “desde o início da pandemia tem trabalhado incansavelmente para salvar vidas”. Braga Netto não quis comentar.

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El País: O esforço mundial para reduzir as emissões dos gases de efeito estufa

Investida global demandará mobilização social, incentivos convincentes, facilidade de financiamento, respaldo tributário e boa normatização. O Brasil é o quinto país no ranking global de emissões. Sua política ambiental continua capturada pelo negacionismo

Carlos Bochhy, El País

O desafio das mudanças climáticas precisa de um amplo engajamento mundial, sob o risco de chegarmos a um momento sem volta, com consequências dramáticas para todos. Atualmente, estamos na perigosa rota de aumento de 3,7 graus da temperatura até o fim do século. O ex-presidente dos Estados Unidos Donald Trump, seguido por outros líderes como Jair Bolsonaro, do Brasil, infelizmente promoveu atrasos nas políticas globais relacionadas ao meio ambiente e aquecimento global. Trump abandonou o Acordo de Paris em 2017, e o Brasil se recusou a sediar a cúpula climática em 2019, abandonando a liderança que sempre exerceu nessa área.

Apesar de Trump, Estados e cidades americanas resistiram e continuaram a perseguir as metas mais ambiciosas de redução dos gases de efeito estufa (GEE), com aumento de apenas 1,5 grau na temperatura até 2.100. O presidente Joe Biden, ao assumir no começo deste ano, exorcizou o negacionismo de Trump e retomou à linha de Barack Obama. Biden sinaliza agora com US$ 2,3 trilhões em investimentos para sustentabilidade, e boa parte desses recursos, segundo o Enviado Especial para o Clima, John Kerry, virão da iniciativa privada.

Uma nova estratégia de ambição climática já vinha sendo defendida pela Comunidade Europeia há algum tempo, principalmente pela chanceler alemã Angela Merkel. Trata-se de acelerar o processo estabelecendo metas mais ambiciosas na redução de GEE. Note-se que os seis maiores responsáveis, por 58% das emissões globais de GEE, são Estados Unidos (12,9%), China (23,7%) Índia (6,5%), Rússia (4,2%), União Europeia (7,4%) e Brasil (3,2%).

Promover esforços para a redução das emissões é uma tarefa humanitária diante das consequências nefastas do aquecimento global. Para atingir a meta de 1,5 º C até o ano 2.100 será preciso a firme ação dos governos, estabelecendo diretrizes para a sustentabilidade, rompendo com a era dos combustíveis fósseis e promovendo a transição para tecnologias limpas. Demandará mobilização social, incentivos convincentes, facilidade de financiamento, respaldo tributário e boa normatização.

Biden está alinhado com o discurso de Nicholas Stern, conselheiro da coroa britânica: é preciso criar uma infraestrutura para a sustentabilidade e há uma janela de tempo para que isso ocorra, caso contrário a capacidade de investimento global não conseguirá enfrentar o problema, que se tornará impagável diante do agravamento da crise climática. Os EUA apostam em resultados a partir de seu primeiro chamamento à ação, que ocorrerá no Dia da Terra, em 22 de abril. Foram convocados os 40 maiores emissores de GEE para afinar a orquestra das nações frente à Cúpula do Clima, prevista para novembro, em Glasgow, na Escócia.

O primeiro-ministro da índia, Narendra Modi, declarou entusiasmo com a proposta de metas mais ambiciosas. Com forte apoio comercial americano, as negociações avançam na Índia para a produção de 450 gigawatts em energia limpa nos próximos 10 anos, eliminando as fontes poluentes do carvão.

Os EUA pretendem injetar bilhões de dólares em avanços tecnológicos, obviamente recheados de interesses de empresas norte-americanas. Se a iniciativa prosperar, os benefícios de pesquisas, visando tecnologias para energia limpa, poderão apresentar resultados notáveis. A construção de uma nova infraestrutura global “verde” abre um universo de possibilidades lucrativas, assim como a limitação comercial para os combustíveis fósseis, a ponto de poder convencer os países árabes produtores de petróleo, reunidos na Opep, a se dedicaram a pesquisas em hidrogênio.

Entre os três maiores emissores de GEE, EUA, China e Índia, a grande incógnita é qual será o grau de envolvimento da China. Apesar de apresentar alta vulnerabilidade diante dos efeitos das mudanças climáticas, a China assume metas, mas tenta empurrá-las de 2.050 para 2.060, assim como o Brasil. Diplomaticamente, Kerry tem afirmado que a China poderá exercer grande liderança neste processo e avançar mais em suas metas.

Com alguns compromissos já externados pela China, a Rússia ficou mais isolada frente à Comunidade Europeia. Sua reticência para redução de emissões está sob permanente pressão. Dependentes de exportações, suas indústrias pesadas vêm sendo enquadradas pela legislação ocidental e por investidores mais exigentes com a regularidade ambiental. Até junho deste ano, a UE deve anunciar novas medidas de taxação sobre bens de países que não anunciaram metas ambientais responsáveis.

Apesar da resistência dos países emergentes à taxa carbono da UE (carbono border adjust mecanism), com a alegação de que a medida descumpre a lógica de metas diferenciadas (INDCs – Contribuições Pretendidas Nacionalmente), a prevalência deve ser a de seguir a linha de Biden e fortalecer a lógica de metas mais ambiciosas para todos. A França vem pressionando a Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE) no desenvolvimento do Programa Internacional de Ação sobre o Clima (IPAC), com a finalidade de mensurar a descarbonização das economias. Ao que tudo indica, haverá forte pressão com novos mecanismos econômicos para o enquadramento de Rússia, China e Brasil.

A convocação dos países para a estratégia de metas ambiciosas possui um lado excludente, pois nesta fase da cúpula climática americana não foram convidados ― e não serão ouvidos ― países em situação de penúria financeira e vulneráveis às mudanças climáticas. Como, por exemplo, o Paquistão, sobre o qual se revela uma forte obsessão americana por segurança antiterrorismo. Sua fronteira com o Afeganistão traz frequentes suspeitas sobre a proximidade com grupos extremistas. Do ponto de vista humanitário, deveria prevalecer a urgência de sua altíssima vulnerabilidade hídrica, já que a região fronteiriça, cortada pelo rio Cabul, afluente do Indo, abriga nada menos do que 25 milhões de pessoas de ambos os países.

O Brasil é 5º país no ranking global de emissões GEE. Sua política ambiental continua capturada pelo negacionismo, enquanto persiste um alto índice de ineficácia no combate aos crimes contra o meio ambiente. Segundo a instituição Imazon, o mês de março de 2021 registrou, na Amazônia, o maior índice de desmatamento em seis anos. É amplamente conhecido o desmantelamento da administração ambiental brasileira, a perda de qualidade do Sistema Nacional de Meio Ambiente (Sisnama) e dos elementos de transparência e participação social.

Será necessário verniz facial substancial ao ministro Ricardo Salles para ir à conferência americana em 22 de abril. De chapéu na mão, anunciou que pedirá US$ 1 bilhão em 12 meses para reduzir o desmatamento. Tarefa difícil, depois de degringolar o Fundo Amazônia e sem poder comprovar a eficácia do Exército para conter o desmatamento da Amazônia durante a operação de Garantia da Lei e da Ordem (GLO), que consumiu R$ 530 milhões.

A diplomacia climática de John Kerry poderá sinalizar, de forma generosa, que estamos diante da oportunidade de uma esperançosa retomada de liderança do Brasil na área climática. Na prática, diante do caos, seria necessária uma mudança radical no comando presidencial e ministerial. Se o Brasil continuar com baixa eficiência em planejamento e administração ambiental, não conseguirá enfrentar o cenário de vulnerabilidades climáticas, nem promover firmes ações de adaptação para sua imensa área costeira, assentamentos humanos, florestas, ecossistemas de produção de água e agricultura.

O Brasil já conta com potencial hidrelétrico instalado e os planos de devastar florestas para construir novas barragens estão sendo afastados pela experiência histórica. Os investimentos necessários para a transição total para uma matriz energética limpa, como terão de fazer Estados Unidos, China, Índia e Rússia, estão longe de nossa realidade. O Brasil terá de ampliar a geração de energia limpa, controlar as fontes móveis (veiculares) e fixas (industriais) e evitar o avanço dos incineradores e das usinas termelétricas.

É preciso enfrentar os interesses de uso abusivo do solo e a devastação ambiental, responsáveis por quase metade de nossas emissões; e conter o desmatamento e ser inflexível na obrigatoriedade de recomposição das áreas desmatadas, o que já está explicitado em nossa legislação, independente de questões climáticas.

Abençoado por Deus, bonito por natureza e com legislação ambiental avançada, a ambição climática do Brasil deve ser principalmente a de se livrar do negacionismo, da má gestão e da criminalidade.

Carlos Bocuhy é presidente do Instituto Brasileiro de Proteção Ambiental (Proam).


CNN Brasil investiga denúncia de racismo contra jornalista Basília Rodrigues

Funcionários da emissora relatam comentários pejorativos sobre cabelo e pele, além de tentativa de retirá-la de cena

Thaiza Pauluze, Folha de S. Paulo

A jornalista Basília Rodrigues, comentarista da CNN Brasil, teria sido vítima de racismo por parte de colegas da emissora, segundo relatos publicados nesta quinta-feira (15) pelo site do Alma Preta, uma agência de jornalismo especializada na temática racial, e confirmados pela Folha.

Funcionários teriam reclamado sobre ela estar "descabelada", "desgrenhada", "com olheiras". O "fundo" dos vídeos gravados enquanto a jornalista trabalhava em home office, por suspeita de Covid-19, também não agradou a chefia, segundo os relatos. A edição do canal teria optado por ocultar a sua imagem, deixando apenas a voz no ar.

Basília é comentarista política da CNN desde março de 2020, a estreia do canal no Brasil, e faz entradas ao vivo com informações dos bastidores de Brasília. Antes, ela foi repórter da rádio CBN por 12 anos na capital federal e recebeu prêmios como o Troféu Mulher Imprensa.

Em nota, a CNN Brasil afirma que a acusação "é gravíssima". O canal informa que o caso está sendo investigado pelo departamento de compliance —setor que busca garantir que a empresa aja dentro das normas.

Segundo o canal, Basília Rodrigues afirmou não ter conhecimento dos fatos narrados. A Folha ainda não conseguiu conversar com a jornalista. A emissora também informa que "não tolera qualquer tipo de discriminação, seja racial ou de outra natureza, e apura com rigor e transparência qualquer denúncia".

Em seu perfil no Twiter, a jornalista agradeceu o apoio do canal e lamentou enfrentar o racismo cotidianamente.PUBLICIDADE

“Agradeço às mensagens de solidariedade e apoio que recebi. Agradeço também pela posição adotada pela CNN Brasil. O relato é grave e está sendo apurado. Deixa reflexões para todos sobre o que não queremos ser, parecer, nem deixar dúvidas, sobre o que não queremos para nós nem para os outros", escreveu Basília.

"Por fim, dizer a vocês que o racismo e o negro convivem dia a dia. É uma relação insuportável, uma companhia inconveniente que está a bordo, em uma mesma viagem. Às vezes, me pergunto, haverá ponto final? Logo, penso que esse não é o mal do negro, esse é o mal do racismo", disse a comentarista na rede social.

Folha ouviu funcionários da emissora que reafirmaram que a jornalista sofre uma espécie de perseguição no canal e recebe tratamento diferenciado dos colegas.

Por exemplo, embora seja comum orientar os jornalistas, quando estão ao vivo, a arrumar o cabelo, um editor teria reclamado para a equipe que Basília estava "descabelada”, sem a ter alertado, como seria a praxe.

Um funcionário que preferiu não ter seu nome divulgado por temer retaliações afirma que o comum seria dizer algo do tipo “Basília, quando você mexeu o seu cabelo de um lado para o outro, ele ficou fora do lugar. Só mexer ele de novo", acrescentando que um cuidado mantido com qualquer apresentador não foi estendido à jornalista.

Nesse momento, ainda segundo os relatos, outro funcionário teria questionado o editor se a analista fosse loira e de olho azul, ele estaria "enchendo o saco"

Quanto ao cabelo de Basília, diz a emissora em nota que "nunca houve e nunca haverá qualquer pedido de mudança a ela e a nenhum outro colaborador". "A CNN entende que o cabelo afro é um símbolo importante de resistência e empoderamento."

Há ainda relatos de que editores de imagem estariam ocultando a comentarista, deixando apenas a voz dela no ar, com uso de imagens de apoio para ilustrar as entradas ao vivo.

Teria havido ainda reclamações do fundo que aparecia nas entradas que a jornalista fazia de sua casa, por causa das restrições da pandemia. Foram criticadas uma parede toda branca e outra com uma prateleira. Em outra das entradas ao vivo, a reclamação foi de que Basília estaria olhando para cima no vídeo.

O funcionário ouvido pela Folha explica que, quando a pessoa começa a falar, seu rosto aparece em tela cheia, sem os demais participantes, e que a imagem do jornalista se alterna com imagens sobre o tópico em debate. No caso de Basília, entrava apenas a imagem alternativa, não a da jornalista, disse.

Outro funcionário afirmou que os motivos para a cobertura da imagem de Basília era seu cabelo e o cenário —este último desagradaria a chefia.

Segundo os relatos, é difícil determinar de quem teria vindo a ordem. Um dos funcionários ouvidos cita uma deliberação de várias pessoas com cargo de chefia, entre gestores e diretores de redação, que coordenam e avaliam o que vai para o ar.

Segundo a CNN Brasil, foram feitos ajustes no set da casa da jornalista como a correção do fundo e da iluminação, um procedimento padrão da emissora.

Ainda de acordo com o canal, não há diretriz nenhuma para não mostrar a imagem da jornalista. "Nunca houve qualquer orientação neste sentido. Quem acompanha a nossa programação sabe que Basília é presença constante em nosso vídeo desde nossa estreia, sendo reconhecida por seu profissionalismo e amplo conhecimento dos bastidores políticos de Brasília", escreve a emissora.

Por enquanto, a apuração interna não encontrou nenhuma evidência, ou mesmo indicação, de perseguição racial, segundo a emissora. "Continuamos em busca de fatos que comprovem a reportagem publicada pelo Alma Preta para, de imediato, tomarmos todas as medidas cabíveis", disse a CNN.


Alma Preta: Paraíba adotará cotas raciais na aplicação da Lei Aldir Blanc

Medida integra pacote de ações para auxiliar a classe artística preta e periférica do estado com uma renda emergencial durante o período de pandemia da Covid-19

Trabalhadoras e trabalhadores pretos e periféricos da cultura na Paraíba serão beneficiados com cotas raciais na aplicação dos recursos federais da Lei de Emergência Cultural Aldir Blanc. A medida foi acordada na sexta-feira (16), em reunião conduzida pelo Ministério Público Federal (MPF) e Defensoria Pública da União (DPU). A medida também prevê criação de comissão de heteroidentificação para evitar fraudes no acesso às cotas.

Por meio da Lei Aldir Blanc, foi destinado à Paraíba, em 2020, o montante de R$ 36.605.274,22, dos quais restou um saldo estimado em pouco mais de R$ 19 milhões. Além da Paraíba, os estados do Ceará, Bahia e Pará também solicitaram a prorrogação de execução da lei ao STF.

Para a integrante do Fórum de Artistas Pretes, Pretas e Pretos na Paraíba, a atriz e contadora de histórias, Fernanda Ferreira, a adoção das cotas raciais pelo estado da Paraíba, na Lei Aldir Blanc, é uma conquista dentre as muitas reivindicações dos movimentos sociais e culturais de pessoas negras organizadas em todo o Brasil, na luta por equidade racial. 

“A adoção de 30% para es artistas negres nos editais gerais lançados pela SecultPB (Secretaria de Estado da Cultura da Paraíba), constitui uma possibilidade de fazer justiça numa conquista que pode ser considerada um marco histórico, em nível nacional, uma vez que nenhum outro estado brasileiro assumiu esse compromisso com a parcela negra/preta da população, neste momento de pandemia, em que a comunidade artística/cultural é um dos setores mais prejudicados e os negros/as estão em maior condição de vulnerabilidade diante da crise sanitária por que passa o nosso país”, observou.

Novos editais serão abertos

De acordo com o secretário da Cultura, Damião Ramos Cavalcanti, novos editais poderão ser divulgados na próxima quinta-feira (22). "A utilização dos 19 milhões restantes, nessa segunda fase, cuja aprovação sairá, com muita probabilidade, na próxima quinta-feira, abrirá muitos e diversificados editais, que, em quantidade e qualidade, serão significativos quanto a essas necessidades emergenciais.", afirmou.


Janio de Freitas: Fissura em relação com Exército é o pior enfraquecimento que Bolsonaro pode sofrer

A importância dessa reversão é grande e pode ser decisiva na CPI do genocídio

A perda de Bolsonaro com a encrencada substituição de comandos militares encontrou rápido meio de aferição. Em resposta à aprovação da CPI, no meio da semana voltou à insinuação ameaçadora: “O pessoal fala que eu tenho que tomar providências, eu estou aguardando o povo dar uma sinalização”. Para depois dizer que faz, ou fará, “o que o povo quer”. Nenhuma repercussão.

A interpretação geral daquele episódio, com o pedido de demissão conjunta decidido pelos comandantes do Exército, da Marinha e da Força Aérea, foi a de demonstrar o surgimento de uma distância, no mínimo uma fissura, que rompe a conexão do Exército com Bolsonaro tal como induzida ainda na campanha eleitoral. Esse é o pior enfraquecimento que Bolsonaro pode sofrer nos seus recursos para ver-se sustentado a despeito do que faz e diz.

A importância da reversão é grande e pode ser decisiva na CPI do genocídio. Antes, o Exército não precisaria explicitar insatisfação com a CPI para inibir-lhe a criação ou a atividade. Sua identificação com Bolsonaro o faria, por si só. A maneira distensionada como os senadores procederam nas preliminares para a CPI já foi claro fruto do novo ambiente sem cautelas e temores. O grau em que os senadores se sentiram desamarrados mostra-se ainda maior por terem um general da ativa, Eduardo Pazuello, entre os itens mais visados pelo inquérito.

Estudos recentes, publicados nas revistas científicas Science e Lancet, juntam-se agora a estudos científicos brasileiros e proporcionam levantamentos e análises primorosos para poupar à CPI muitas pesquisas e apressá-la. Ainda que não seja a ideal, sua composição é satisfatória; não será presidida por Tasso Jereissati, como deveria, mas conta com sua autoridade; e Renan Calheiros, se agir a sério, tem competência como poucos para um trabalho relatorial de primeira.

Bolsonaro tange o Brasil para os 400 mil mortos. Tem sido o seu matadouro. Estudo do neurocientista Miguel Nicolelis conclui que ao menos três em cada cinco mortos não precisariam ter morrido, no entanto foram vitimados pela incúria, a má-fé e os interesses com que Bolsonaro e seus acólitos têm reprimido a ação da ciência. Uma torrente de homicídios que não podem ficar esquecidos e impunes. Do contrário, este país não seria mais do que uma população de Bolsonaros.

A ENGANAÇÃO

Joe Biden insinua outra Guerra Fria. É curiosa a atração entre os democratas, não os republicanos, e as guerras. Os Estados Unidos entraram na Primeira Guerra sob a presidência do democrata Wilson. Na Segunda Guerra, a presidência era do democrata Roosevelt. Bem antes dos chineses, em 1950 os Estados Unidos entregaram-se à Guerra da Coreia levados pelo democrata Truman. O democrata Kennedy criou a Guerra do Vietnã. E pôs o mundo a minutos de uma guerra nuclear, de EUA e URSS, na crise dos mísseis em Cuba.

É contraditória a inadmissão de uma China em igualdade com os Estados Unidos e a determinação de sustar o aquecimento global. A primeira abre um risco de guerra em que questões como ambiente e clima não subsistem.

Apesar disso, nos dias 22 e 23 os governantes de 40 países fazem uma reunião virtual sobre clima, por iniciativa de Biden. Os americanos esperam comprar de Bolsonaro, por US$ 1 bilhão, o compromisso de medidas verdadeiras contra o desmatamento na Amazônia, essenciais para deter o aquecimento climático.

Esse bilhão sairá caríssimo ao Brasil, porque o compromisso de Bolsonaro será tão mentiroso quanto as afirmações que fará, como já fez em carta a Biden, sobre os êxitos do governo na preservação da Amazônia.

Em março, o desmatamento foi recordista: 13% maior que o de março de 2020. Desde o início do governo Bolsonaro, o desamamento por fogo, o roubo de madeira e o garimpo aumentam sem cessar. O setor de fiscalização do Ibama foi destroçado. Bolsonaro protege o garimpo ilegal, pondo-se contra a destruição de seu maquinário. O ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, protege os madeireiros criminosos.

Apresentado há três dias, o Plano Amazônia 2021/2022 não é plano, nem outra coisa. Sua meta de redução de desmatamento é maior do que o encontrado por Bolsonaro. Não contém restauração dos recursos humanos, nem as verbas condizentes com esforços reais. Mas “o governo dos Estados Unidos espera seriedade e compromisso de Bolsonaro” na reunião. Espera o que não existe.


Bruno Boghossian: CPI vai apurar papel de Bolsonaro na propagação intencional do vírus

Senadores citam incentivo à imunidade de rebanho como item a ser investigado

Nas primeiras semanas da pandemia, Jair Bolsonaro mostrou que seu plano era trabalhar para que o coronavírus se espalhasse pelo país. “Como dizem os infectologistas: 60%, 70% da população será infectada, e só a partir daí nós teremos o país considerado imunizado”, disse o presidente, em abril de 2020.

Não se sabe que infectologistas eram aqueles ou de onde veio a matemática macabra, mas o incentivo à imunidade de rebanho se tornou estratégia oficial do governo. O presidente estimulou contaminações, agiu para derrubar restrições impostas para conter o vírus e atrasou uma campanha de imunização inteligente a partir da vacinação em massa.

A CPI da Covid deve se debruçar sobre o papel de Bolsonaro na propagação deliberada do vírus –já apontado numa pesquisa de Deisy Ventura, Fernando Aith e Rossana Reis, da USP. A oposição e o senador Renan Calheiros (MDB), cotado para a relatoria da comissão, citam a defesa da imunidade de rebanho como um dos itens que serão investigados.

O estímulo ao alastramento da doença foi uma opção do presidente. Em maio, o Ministério da Saúde dizia que a imunidade de rebanho não era "a melhor estratégia se você não tem vacina". Mesmo assim, Bolsonaro agiu contra medidas de contenção e insistiu no papo de que a contaminação generalizada era o caminho.

Ao estimular aglomerações, o presidente dizia que o coronavírus era "uma coisa que vai pegar em todo mundo". Depois, ao sabotar a compra de imunizantes, ele afirmou que a contaminação era a forma ideal de se proteger. "Eu tive a melhor vacina, foi o vírus. Sem efeito colateral", declarou, em dezembro. Para Bolsonaro, bastava tomar cloroquina.

Essa linha de investigação ajuda a desmontar a versão fantasiosa de que a tragédia brasileira foi provocada exclusivamente por um vírus desconhecido, que surpreendeu governantes em todo o mundo. O presidente escolheu um caminho e se manteve nele, contra todas as evidências científicas. Bolsonaro sabia muito bem o que estava fazendo.


Cacá Diegues: Cantar o que somos

Uma das frases mais sábias da cultura brasileira contemporânea: “Se chorei ou se sorri, o importante é que emoções eu vivi”

O problema é que não sabemos direito quem somos. Dito de outro modo, o brasileiro não tem ideia de quem é ou de onde veio. Somos enganados por sucessivas explicações em que nossos avós eram ora bravos navegadores lusitanos amigos íntimos de sábios indígenas incorruptíveis, ora bandeirantes porretas que enfrentaram a floresta hostil e o gentil castelhano para criar a nação. Na confusão de versões, nunca tivemos um Mayflower que nos desse a garantia de nossa origem, que diabo de povo somos nós, de que ovo viemos, em que galinheiro nos chocaram, educaram e inventaram nossa bárbara cultura.

Só muito de vez em quando temos a oportunidade de responder, pelo menos em parte, a essa questão. Em geral, por causa de um criador de produtos culturais que nos surpreende e assusta.

A primeira vez que vi Roberto Carlos na vida foi no bar do Hotel Plaza, em Copacabana, onde cantava timidamente para uns boêmios desinteressados. Ele procurava ser uma nova versão de João Gilberto, cantando baixinho e pelo nariz. Pouco depois, planejei um documentário em som direto, a novidade da época, em torno de um encontro doméstico de sua turma. Planejado por mim e por David Neves, o filme se chamaria “Alô, alô, Jovem Guarda!” e seria conduzido por Roberto Carlos. Com gentileza e diplomacia, ele ia adiando sua decisão, até que anunciou sua participação na série de filmes de Roberto Farias, tão bem-sucedidos desde logo.

Mas fui o primeiro cineasta a usar uma canção de Roberto Carlos num filme, um passeio romântico pelo recém-construído Aterro do Flamengo, em “A grande cidade”. E foi fácil e rápido obter a autorização do autor. Como foi fácil e rápido, anos depois, obter de Roberto a autorização para que usássemos “Emoções” na trilha de “Dias melhores virão”. Em resposta pessoal a meu pedido formal, não me encontrando em casa, ele deu a autorização pelo telefone à minha mulher, Renata. Só exigiu dela e a fez garantir que não tinha sexo pornográfico na cena em que a canção seria tocada. Não tinha, nem teve.

Na já longa formação da Humanidade sobre a Terra, três relações foram fundamentais para determinar a existência e a cultura de todo ser humano. Em primeiro lugar, a relação com o Outro, a parceria na solidariedade que permite a existência das pessoas entre si. Em seguida, a relação com o Estado, o monte de regras e costumes que organiza e torna possível a existência em sociedade. E finalmente a relação com a Natureza, à qual tratamos até agora como se estivesse a serviço de nossa existência, como se fôssemos os senhores do mundo, quando somos apenas um de seus hóspedes.

Com uma mistura de sabedoria e sentimentos, Roberto Carlos nos ensina que, se esgotamos apenas alguma dessas relações ou, o que é pior, apenas um pedaço delas, estaremos nos condenando ao desastre. Corremos o risco de esbarrarmos com o fim da Humanidade ou até com o fim do próprio planeta que nos suporta há dez milhões de anos com certo e crescente sacrifício.

Uma das frases mais sábias da cultura brasileira contemporânea está numa canção de Roberto: “Se chorei ou se sorri, o importante é que emoções eu vivi”. É preciso aprender a chorar o fracasso no amor ou no que for. Assim como é preciso sorrir para saber se tomamos o rumo certo para o que deve ser. A grandeza da fragilidade que Roberto Carlos nos propõe está em reconhecer que é dessa ambiguidade que nasce algum valor. A certeza, nossa maior fraqueza, será sempre a causa do fracasso derradeiro. Não é à toa que ele é o Rei.


George Gurgel de Oliveira: José Carlos Capinan - Vida e poesia

A recente entrevista realizada online pela Fundação Astrojildo Pereira, em homenagem a José Carlos Capinan, deu uma boa dimensão do ser humano, médico, jornalista, escritor e poeta que completou 80 anos em 19 de fevereiro deste ano.

Capinan conversou com antigos e novos companheiros sobre a sua vida, o Brasil dos anos 60 até à atualidade. A emoção foi grande em rever antigos companheiros que abrilhantaram a entrevista como o cineasta Vladimir de Carvalho (contemporâneo de Universidade e do CPC na Bahia), o jornalista Francisco Almeida, o ator Stepan Nercessian, o historiador Ivan Alves Filho,  a ativista social e gestora pública Rachel Dias, o professor Martin Cezar Feijó, o escritor e ensaísta Luis Sérgio Henriques, o advogado Roberto Freire (presidente do Cidadania), o jornalista Renato Ferraz e  o diretor geral da FAP Caetano Araújo. Ainda destacamos a participação dos parceiros Tomzé, Roberto Mendes, Carlinhos Cor das Aguas, Lula Gazineu e dos amigos Angela Fraga, Armandinho, Targino, Marcelo Gentil e Antônio Rizério  homenageando os 80 do poeta Capinan .

Toda a entrevista está sendo editada e vai ser disponibilizada nas mídias sociais da Fundação Astrojildo Pereira.  Desde o seu nascimento no Arraial de Três Rios e o seu registro no município de Esplanada, na Bahia, e até hoje vivendo em Salvador, Capinan é e foi um viramundo. Construiu um repertório literário, poético e musical como poucos da sua geração; enfrentou e continua enfrentando as dificuldades de um criador da área de cultura, querendo e lutando por um Brasil brasileiro e universal que seja contemporâneo, democrático, comprometido com as transformações políticas, econômicas e sociais necessárias, ainda a serem realizadas pela sociedade brasileira.

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Capinan é um abolicionista do século XX, avançando pelo século XXI na melhor tradição libertária e humanista do século XIX. De Esplanada veio para Salvador estudar Direito na Universidade Federal da Bahia (UFBa), em 1960, aos 19 anos. Desde então começou a sua produção intelectual e um ativismo cultural que o levou a participar de importantes movimentos políticos, sociais, ambientalistas e culturais acontecidos no Brasil desde a década de 60.

O Brasil da época estudantil de Capinan em Salvador apontava para um futuro que prometia ser melhor: a industrialização avançava, tínhamos o samba e a bossa nova, éramos bicampeões mundiais com Pelé e Garrincha e o mundo nos olhava com curiosidade e admiração.  Brasília estava sendo construída de uma maneira vertiginosa tendo à frente a liderança do presidente Juscelino Kubitschek e as genialidades de Oscar Niemeyer e Lúcio Costa.  A Universidade de Brasília tinha Anísio Teixeira e Darci Ribeiro, entre outros, destacando a importância da educação, apontando novos horizontes e possibilidades de integração e modernização do Brasil, a partir do planalto central.

Anísio Teixeira tem que ser sempre lembrado como um dos pioneiros da educação moderna brasileira: fez muito pela educação com a Escola Pública em tempo integral; a Escola Parque, sistema implantado quando foi secretario de educação e saúde da Bahia, no final dos anos 40. Essa experiência educacional pioneira de Anísio foi - nunca é demais lembrar -, um fundamento importante para as transformações que iriam ali ocorrer nos anos 50, na própria Universidade, na reitoria do professor Edgar Santos.  Assim, quando Capinan chegou para estudar Direito na UFBa, a Bahia vivia um caldeirão cultural.  A Universidade colaborou para a construção de uma cultura baiana cosmopolita, recebendo intelectuais, professores, escritores e artistas de todo o mundo. Ainda, a contribuição primordial de Dorival Caymmi, Jorge Amado e João Gilberto que colocavam a cultura baiana no cenário do país e do mundo.

Portanto, a UFBa, a partir dos anos 50, começou a ser protagonista de movimentos culturais no cinema, no teatro, na pintura, na dança e na música, formando novas gerações e lideranças de vanguarda da cultura baiana e nacional. O cinema de Glauber Rocha e o tropicalismo de Gilberto Gil, Caetano Veloso, Tomzé e o próprio Capinan, entre outros, se destacam pelo impacto causado à cultura brasileira e os seus desdobramentos posteriores, até à atualidade.

Vivia-se na Bahia, no início dos anos 60, quando Capinam chegou a Salvador, todas essas possibilidades de mudanças nos movimentos políticos, culturais e sociais. Ele é parte integrante e ator privilegiado desse processo. Além de estudar Direito, ele também foi aluno da Escola de Teatro da UFBA, participou do Centro Popular de Cultura (CPC), movimento cultural nacional liderado pela UNE e com forte influência política do Partido Comunista Brasileiro (PCB). Na Universidade, conheceu Gilberto Gil e Caetano Veloso, e juntos compuseram a trilha sonora do filme de Geraldo Sarno, Viramundo, o qual mostrava o fluxo migratório nordestino para São Paulo.

À época, fez com Tomzé a encenação de um Bumba meu Boi, em Salvador, e em algumas capitais nordestinas, espetáculo que era, na verdade, uma denúncia contra a presença do imperialismo americano no Brasil, o que rendeu a Capinan um inquérito policial militar. Em 1964, depois do golpe de 1º de abril, ele teve que sair de Salvador, retornou à casa dos pais, por um breve período, e, em seguida, foi para o Rio de Janeiro e posteriormente para São Paulo, onde passou a viver. Na viagem de trem rumo ao Rio, no caminho, ainda em território baiano, teve o primeiro encontro com o futuro parceiro Moraes Moreira. Ao chegar à capital paulista, começou a trabalhar como publicitário e incorporou-se na vida cultural paulistana. Em seguida, foi para o Rio de Janeiro, onde participou de festivais de música popular brasileira, os quais acabaram se tornando um espaço de resistência à ditadura.

Além do Brasil, os militares chegaram ao poder, via ditadura militar, na maioria dos países da América Latina: em plena Guerra Fria, apoiados pelos Estados Unidos, em resposta à revolução que avançava em Cuba sob a liderança de Fidel e Che Guevara, idolatrados por uma boa parte da juventude mundial.

A morte do Che, em La Higuera, escondido em plena selva da Bolívia pelo exército boliviano, com apoio da CIA, sensibilizou mentes e corações em todo o mundo. No dia da morte de Che Guevara (9 de outubro de 1967), Capinan fez Soy Louco por ti América, em parceria com Gilberto Gil. A música tornou-se um hino brasileiro-latino americano a favor da integração americana, em homenagem ao líder guerrilheiro. Embora, como todos sabem e, dito pelo próprio poeta, ele era contra a luta armada. Eram tempos sombrios, de resistência, prisões, mortes e exílios no Brasil e em toda a América Latina.

Depois de um breve período em São Paulo, ele foi para o Rio de Janeiro onde ficou até o final dos anos 70. Então, Capinan se tornou um dos compositores mais vitoriosos da sua geração nos festivais de música popular brasileira em parcerias com Edu Lobo, Gilberto Gil, Caetano Veloso, Paulinho da Viola e Jards Macalé. Inicialmente fez uma poesia crítica e social, com os valores da cultura nordestina, dos violeiros e cantadores, como fonte de inspiração. Foi, com o passar do tempo, transformando seus versos, incorporando um lirismo humanista brasileiro e universal. A partir das parcerias com Paulinho da Viola, ainda nos anos 60, incorporou as mudanças que são refletidas na sua produção poética e literária.

No Rio de Janeiro, já conhecido como poeta e compositor, fez a opção de estudar Medicina: iniciou o curso no Rio de Janeiro e terminou-o na Bahia, na Universidade Federal. A Medicina, podemos pensar, muito serviu ao poeta para um melhor conhecimento do ser humano nas possibilidades de cura corporal, psíquica e emocional. Porém, a poesia falou mais alto, para a felicidade da cultura brasileira.   

Os trabalhos conjuntos com Geraldo Azevedo, Moraes Moreira, Robertinho do Recife, Fagner, Batatinha, Edil Pacheco, Ederaldo Gentil, Carlinhos Cor das Aguas, Lula Gazineo, Roberto Mendes, entre outros artistas brasileiros e da Bahia, totalizam mais de 200 parcerias do poeta Capinan. Assim, o poeta tornou-se um dos maiores letristas da música popular brasileira com sucessos reconhecidos como o já destacado “Soy louco por ti América”, com Gilberto Gil; “Clarice”, com Caetano Veloso; “Ponteio”, com Edu Lobo; “Gotham City”, com Jards Macalé; “Coração Imprudente”, com Paulinho da Viola; “Moça Bonita”, com Geraldo Azevedo,  “Papel Marchê”, com João Bosco;  “Cidadão”, com Moraes Moreira; “Yáyá Massemba”, com Roberto Mendes, entre outras dezenas de composições conhecidas de Capinan.

 No entanto, como o próprio Capinan sempre lembra, ele não consegue viver de seus direitos autorais. É um problema de todos os compositores, particularmente os que não cantam as suas próprias canções. O Capinan e a sua geração foram pioneiros nessa luta por direitos autorais no Brasil. Ainda hoje há muito por fazer para o devido reconhecimento da produção cultural e dos compositores brasileiros em relação aos seus direitos autorais.

A poética de Capinan está registrada nos seus livros publicados e em antologias de poetas brasileiros, como Inquisitorial (1995); Poemas: Antologia e Inéditos (1996); Vinte Canções de Amor e Um Poema (2014); Balança mas Hai-Kai (2011) e o recente 26 Poetas Hoje, organizado por Heloisa Buarque de Holanda, são as principais publicações a serem destacadas.

Ainda nos anos 80, Capinan foi Secretário de Cultura do Estado da Bahia no Governo Waldir Pires, quando a Cultura tornou-se Secretaria de Governo. Na área ambiental, teve protagonismo na criação do ECODRAMAS, movimento que, já nos anos 80, destacava a importância da questão ambiental no dia a dia da sociedade: chamando a atenção da importância das manifestações culturais e religiosas nesse contexto. Eram encontros sócio-ambientais e culturais anuais que premiavam as melhores práticas e as lideranças culturais e ambientalistas da Bahia.

A cultura afro-brasileira continua marcando a produção e a vida do poeta Capinan. A travessia do sertão para Salvador e o recôncavo coloca-o como um dos importantes intérpretes da cultura afrobrasileira no Brasil. Ele tem ensaios, artigos, poesias e composições que falam de questões históricas e atuais, fez viagens à África, é um permanente interlocutor na cooperação cultural entre o continente africano e o Brasil.  Desde a fundação em 2004, ele está à frente do Museu AfroBrasil, que teve como diretor curador Emanuel Araújo e o apoio permanente da Associação de Amigos da Cultura Afrobrasileira (AMAFRO), que tem como objetivo o ensino, a pesquisa, a cooperação e o intercambio voltados à recuperação e à preservação do patrimônio, da memória e da cultura afro-brasileira, dos quais Capinan hoje é um dos seus mais destacados guardiões na Bahia.

Somos testemunhas, há anos, do empenho, do compromisso e das dificuldades passadas pela AMAFRO e do trabalho de Capinan e de toda uma equipe, na maioria de voluntários, para manter o museu funcionando, cujo desafio maior continua sendo a federalização ou a estadualização deste importante espaço cultural.

Em 2006, o teatrólogo, publicitário, poeta, médico, jornalista e escritor José Carlos Capinan entrou para a Academia Baiana de Letras, sendo o primeiro compositor de música popular brasileira a fazer parte dela.

 Assim o poeta chega aos 80 anos, com uma impressionante capacidade de escrever e de continuar a liderar a construção do Museu Afro Brasil na Bahia. As parcerias continuam.  Quem não quer ser parceiro musical de Capinan? A lista continua extensa.  Artesão da palavra faz com naturalidade a escrita poética. Para ele, escrever é como se alimentar, como dormir, acordar, ler, ouvir música, conversar e todas as outras rotinas diárias na sua casa do Rio Vermelho, refletindo a vida e o mundo em que vivemos. Continua trabalhando, traduzindo na sua poesia as alegrias, as belezas, as angústias, as incertezas e os desafios existenciais do ser humano, da realidade brasileira e mundial do que somos e que poderemos ser como humanidade durante e pós pandemia.

O poeta José Carlos Capinan merece todas as homenagens e o reconhecimento da sua produção social e cultural. Continua a jornada defendendo os valores de toda a vida, valores universais de igualdade, liberdade e fraternidade.

Nestes tempos sombrios que atormentam a todos nós, a cultura é fundamental para a nossa sanidade emocional. A poesia de Capinan nos acolhe e nos vitaliza ajudando a enfrentar estas tormentas, na busca de novos caminhos e horizontes que possam nos levar às novas relações com a nossa humanidade e a própria natureza.

Que assim seja!

Juntos com a poesia de Capinan, somos e seremos melhores.

Viva a Cultura!

Viva Capinan!  

*George Gurgel de Oliveira, professor da UFBa, dirigente da Fundação Astrojildo Pereira e da AMAFRO


Cristovam Buarque: Não basta a China

A construção do Brasil é tarefa dos brasileiros

No excelente livro “Brasil, construtor de ruínas: Um olhar sobre o país, de Lula a Bolsonaro” a jornalista escritora Eliane Blum escreveu que: “Como o mundo regido pelo capital não ficaria encantado por um presidente que tornava os ricos mais ricos e os pobres menos pobres sem precisar redistribuir a riqueza nem ameaçar privilégios de classe?” […] “A mágica de Lula só era possível devido ao aumento da exportação de matérias primas e movida especialmente pelo crescimento acelerado da China”.

Outra vez é a China que está nos salvando com sua vacina, além de continuar como o grande parceiro comercial. Se não fosse a China, nossa situação sanitária estaria muito mais desesperadora. Mas quando a epidemia passar, o Brasil não estará bem, mesmo que tenha UTIs livres. Não vamos contar com a China para resolver os problemas do Brasil.

A injeção de dólares vindos da China no período Lula permitiram aumentar a renda e o consumo inclusive das camadas mais pobres, mas não se fez o que era preciso para enfrentar o quadro real da pobreza: saneamento, educação de base com qualidade universal, transporte público eficiente e confortável, garantia de emprego, paz nas ruas. Os governos não iniciaram qualquer reforma estrutural sobretudo na área social, a recessão, desemprego, inflação, e agora a epidemia, desfizeram os ganhos puramente monetários e conjunturais. Sem as reformas na educação, na saúde, na economia, a China não basta.

Estes problemas são nossos e nos cabe enfrentar escolhendo governos que demonstrem compromissos para resolver os problemas nacionais. Mas isto exigirá estratégias de anos, por governos que entendam os problemas, tenham estratégias resolvê-los e saibam coordenar e conduzir o país neste rumo.

Deste caótico, negacionista, obtuso, antipatriota governo atual não se pode esperar um rumo para o país. Para 2022, a tarefa é conseguir um novo governo que traga de volta aceitação da ciência e respeito à verdade, recupere as bases da democracia, enfrente as sequelas da epidemia, retome o prestígio do país no exterior, proteja nossos recursos nacionais, especialmente nossas reservas florestais. Para isto, é preciso uma unidade de todos que se opõem ao atual governo, como foi proposto por um recente artigo assinado por Milton Seligman, Benjamin Sicsú, Mauro Dutra. Eles propõem a unidade de todos os democratas na escolha de um candidato único, e que este assuma o compromisso de ficar apenas um mandato, e deixar para 2026 as disputas entre os diferentes programas e ideias para construir o Brasil.

A China foi decisiva para as realizações na primeira década dos anos 2.000, graças ao Lula, está sendo decisiva com sua vacina, apesar do Bolsonaro, mas a China não basta. A construção do Brasil é tarefa dos brasileiros, e o primeiro passo será dos eleitores em 2022, impedindo a reeleição do atual desgoverno, um passo anterior aos eleitores deverá ser dos líderes partidários escolhendo candidatos que unifiquem e tenham baixa rejeição.

*Cristovam Buarque foi governador, ministro e senador


Elio Gaspari: O que falta a Bolsonaro é seriedade

O capitão, seu ex-chanceler e o ministro Ricardo Salles viajaram numa maionese de excentricidades e pirraças

A diplomacia americana está fritando Bolsonaro. O capitão, seu ex-chanceler e o ministro Ricardo Salles viajaram numa maionese de excentricidades e pirraças. Do outro lado, o Departamento de Estado levantou um muro. Quando um porta-voz disse que espera “seriedade” do governo brasileiro na cúpula do clima que começa quinta-feira, cravou uma estaca na agenda.

Enquanto o Departamento de Estado pedia “seriedade”, o primeiro-ministro francês, Jean Castex, justificava o bloqueio a viajantes brasileiros e arrancava risadas na Assembleia francesa ao lembrar que “o presidente da República, em 2020, aconselhou a prescrição de hidroxicloroquina, e gostaria de lembrar que o Brasil é o país que mais a prescreveu”.

Bolsonaro passou de piromaníaco a pedinte. Admitiu acabar com o desmatamento até 2030 e estragou sua nova posição numa única frase: “Alcançar esta meta, entretanto, exigirá recursos vultosos e políticas públicas abrangentes, cuja magnitude obriga-nos a querer contar com todo apoio possível.” Coisas assim se fazem, mas não se dizem, sobretudo se esse mesmo governo desdenhou a ajuda estrangeira e esvaziou o Fundo Amazônia. Colocar o Brasil, ou qualquer outro país, na posição do cachorro que olha para os espetos de frangos, como fez o doutor Ricardo Salles, é apenas burrice.

O Império e a República cuidaram da Amazônia de todas as formas, mas nunca falaram em dinheiro. Essa é a pior maneira para se começar uma negociação diplomática. Com ela, chega-se apenas a uma velha piada, atribuída ao ex-secretário de Estado Americano Henry Kissinger.

Numa versão politicamente correta, ela fica assim:

“Todos têm um preço”.

“Há coisas que eu não faço, nem por um milhão de dólares”.

“Você já está discutindo seu preço”.

Veneno

A carta de Bolsonaro a Joe Biden ocupa sete páginas.

Fosse qual fosse seu efeito, ele foi anulado pela curta notícia do afastamento do delegado Alexandre Saraiva, que chefiava a Superintendência da Polícia Federal no Amazonas e acusou o ministro do Meio Ambiente de advogar no interesse de desmatadores.

Lula e Bolsonaro

Uma Lava-Jato e três anos depois, Lula ficou maior, e Bolsonaro está menor.

Suprema criatividade

Quem entende de Supremo Tribunal Federal arrisca: com a anulação das sentenças que Curitiba impôs a Lula, algo como dez réus de Sergio Moro, em condições similares, pedirão o mesmo benefício. Para negá-lo, será necessária inédita criatividade.

Sumiço

Um experimentado empresário do agronegócio registra que a militância dos agrotrogloditas entrou num período de entressafra. Deram-se conta de que colheram (ou queimaram) o que podiam.

Profissional e amador

O embaixador americano no Brasil, Todd Chapman, é um diplomata de carreira. Como o ex-chanceler Ernesto Araújo também é, entende-se que profissionais acabem se comportando como amadores. Em 2019, quando estava sendo sabatinado pelos senadores americanos, Chapman classificou as queimadas da Amazônia como “ocorrências anuais”. Perdeu uma oportunidade de ficar calado, mas pode-se entender que não quisesse melindrar Bolsonaro, o bom amigo de Donald Trump.

Passou o tempo, Trump foi para a Flórida, e na Casa Branca está Joe Biden. O embaixador Chapman reuniu-se com integrantes da “Articulação dos Povos Indígenas do Brasil”. A Apib queria um “canal direto” de comunicação com o governo americano, e o encontro foi diluído com a presença de indígenas indicados pelo governo. Uma salada.

Não é boa ideia que um embaixador de povo estrangeiro se reúna com representantes dos “povos indígenas”, mas seria descortesia não conversar. Podia ter destacado um diplomata de escalão inferior para o encontro.

Chapman poderia consultar os arquivos do Departamento de Estado para estudar um valioso precedente. Em 1876, quando viajava pelos Estados Unidos, D. Pedro II teve seu trem parado por um grupo de índios Sioux, chefiados pelo famoso “Touro Sentado”. O cacique pedia que o Imperador intercedesse pelos índios americanos junto ao presidente Ulysses Grant. É improvável que D. Pedro tenha tratado do assunto.

Apocalipse

No mesmo dia em que se noticiava a morte, na cadeia, do vigarista Bernard Madoff, que em 2008 foi apanhado num golpe de US$ 15 bilhões, Jair Bolsonaro disse que o Brasil se tornou “um barril de pólvora”: “Estamos na iminência de ter um problema sério”.

O que ele quis dizer com isso, não se sabe. Desde o ano passado, Bolsonaro acena com um Apocalipse. Ora falava em saques, ora advertia para o caos. Morreram mais de 360 mil pessoas, faltaram testes, vacinas, oxigênio e remédios. A desordem esteve no governo, e os saques, quando ocorreram, atacaram a Bolsa da Viúva.

Madoff também apostou no Apocalipse. Muita antes de ser apanhado, ele sabia que sua pirâmide explodiria e, preso, contou:

“Eu queria que o mundo acabasse. Quando aconteceu o atentado de 11 de setembro de 2001, eu achei que ali estava a saída. O mundo acabaria.”

Doutores cloroquina

É possível que o repórter Fabiano Maisonnave tenha entregue de bandeja um presente à CPI da Pandemia. Seria o depoimento dos médicos Michelle Chechter e Gustavo Maximiliano Dutra, que foram a Manaus em fevereiro para aplicar a “técnica experimental ‘nebuhcq líquido’, desenvolvida pelo dr. Zelenko”. Eram nebulizações de cloroquina.

Quatro pacientes grávidas receberam o tratamento. Todas morreram.

Uma delas teve um vídeo gravado, postado no dia 20 de março pelo ministro da Secretaria-Geral da Presidência, Onyx Lorenzoni. Ele informava que “de 0 a 10, melhorou 8”.

Talvez Lorenzoni não soubesse, mas ela morrera no dia 2.

Milton Ribeiro zangou-se

O ministro Milton Ribeiro, da Educação, zangou-se com uma reportagem de Paulo Saldaña mostrando a existência de um esquema para fraudar pagamentos do Financiamento Estudantil, boca rica administrada pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação, o FNDE.

Como os repórteres são uma raça maldita, o doutor Ribeiro bem que poderia estender sua zanga ao edital do FNDE de 2019 que pretendia torrar algo como R$ 3 bilhões na compra de equipamentos para a rede pública de ensino. A Advocacia-Geral da União sentiu o cheiro de queimado, porque numa só escola 255 alunos receberiam 30 mil laptops (118 para cada um). Outros 335 colégios receberiam mais de um laptop para cada aluno.

O edital foi suspenso e cancelado. Passaram-se dois anos, três ministros da Educação e pelo menos três presidentes do FNDE, mas ninguém sabe quem botou esse jabuti no edital.


Fernando Luiz Abrucio: Para o País sair do pesadelo, é preciso oposição mais forte

É preciso ter mais debates públicos, não só pela internet, como o da Brazil Conference neste sábado, mas também pela imprensa escrita e televisiva

Quem assistiu ao debate organizado pela Brazil Conference com cinco potenciais candidatos à Presidência da República –  Ciro Gomes, João Doria, Fernando Haddad, Luciano Huck e Eduardo Leite – teve contato com diagnósticos precisos e bem elaborados sobre a realidade brasileira. A despeito das diferenças políticas, e numa discussão que evitou a polarização tóxica, prioridades comuns foram destacadas: melhorar a educação, combater a desigualdade, criar um modelo de desenvolvimento sustentável, modernizar a gestão pública, fortalecer a saúde pública, em suma, sintonizar o País com os desafios do século 21.

O problema é que o Brasil está sendo governado por uma postura oposta. Vigora o negacionismo científico frente à pandemia, o descaso educacional, o desastre ambiental, a postura presidencial autoritária e a incompetência governamental. As luzes do debate de ontem se contrapõem ao pesadelo vivido pelo País hoje.

Mas 2022 pode repetir 2018, não se pode esquecer disso. Duas coisas podem evitar isso. Primeiro, todos devem estar contra Bolsonaro e aumentar sua pressão contra o presidente. O sofrimento diário dos brasileiros na pandemia precisa de uma oposição mais forte do que a atual. E a grande lição deste sábado: é preciso ter mais debates públicos, não só pela internet, mas também pela imprensa escrita e televisiva. Isso não pode ocorrer somente no período eleitoral de dois meses. Em boa medida, a falta de discussão política da última eleição favoreceu a escolha que gerou o pesadelo. Melhores ideias precisam vencer o populismo autoritário. 

*Doutor em Ciência Política pela USP e professor de Gestão Pública da FGB-EAESP