Eugênio Bucci: O golpe em gerúndio
A democracia neste cemitério chamado Brasil já está em pleno desmanche
Uns dizem que o presidente da República é tão despreparado, tão destrambelhado, tão desmiolado e tão desqualificado que não consegue organizar nem mesmo uma quartelada. Dizem que, por aqui, não virá golpe de Estado nenhum. Chance zero. Despreocupados, até reconhecem que o Palácio do Planalto nutre seus delírios com rupturas institucionais, mas desprezam categoricamente a hipótese. Asseguram que não há competência instalada para tanto. Quem planejaria um golpe?, perguntam. Quem montaria a estratégia? O Pazuello? Dão risada. Aparentando segurança e calma, estão certos de que as instituições resistirão até 2022 e o presidente, esse tal que segue no posto, será derrotado nas urnas. Falar em impeachment agora é perda de tempo, desperdício de energia.
Esses uns não são poucos. Gente graúda da oposição está com eles. Esses uns, na verdade, são uns e outros. Dão as cartas. Não há muito que se possa fazer. Só nos resta torcer para que uns e outros estejam certos. Tomara que o avião aguente. No mais, ainda é possível bater panelas, além de levantar o dedo e balbuciar “veja bem”. É disso que trata este artigo: veja bem.
Talvez seja verdade que não virá nenhum golpe de arromba por aí. Oxalá seja verdade. Talvez não nos espere, no calendário próximo, um golpe desses que se deixam fotografar, com tanques de guerra fechando a Rua da Consolação e caças dando rasante na capital federal. Por outro lado, veja bem, é ainda mais verdade que vem vindo, já faz um tempo, um golpe menos espetaculoso, um golpe em processo, um golpe por antecipação, um golpe de cada dia que nos dão hoje, assim como nos deram ontem e anteontem. Enquanto o golpe retumbante não chega, outro golpe vai se adensando, vai se alastrando, vai nos consumindo – em surdo gerúndio.
E vai avançando. Existem bandidos que vêm comemorando sem maiores histrionices: “Está tudo sendo dominado”. A bandidagem aderiu ao gerúndio. Para que o improvável leitor visualize o que se vem passando, é mais ou menos como arrancar do chão toda a flora e toda a fauna na Amazônia. Isso não acontece assim, de uma hora para outra, num repente – vem aos poucos, num acontecendo. Uns milhares de quilômetros quadrados, ou redondos, são incinerados hoje, outros, amanhã, até que a gente vai descobrir que não há mais florestas a proteger.
Algo parecido se vai dando com a democracia brasileira. Enquanto uns e outros pensam que vão comer o bolsonarismo pelas bordas, o bolsonarismo está comendo o Estado por dentro. Enquanto uns e outros se divertem postando piadinhas contra o ministro que falou que passaria com a boiada da desregulamentação ambiental, os boiadeiros do apocalipse ateiam fogo nos fundamentos das instituições democráticas.
Não obstante, uns e outros dizem que as instituições funcionam “normalmente”. “Normalmente” como, cara-pálida? A democracia deste cemitério congestionado chamado Brasil não está mais sob ameaça: já está em pleno desmanche, só estão ficando de pé as fachadas. Por enquanto. O cientista político e professor da USP André Singer vem apontando, também no gerúndio, o descomunal desmantelamento, mas uns e outros não ligam. Em recente entrevista ao site Opera Mundi, Singer afirmou que está em curso “um processo incremental, tão gradual que a sociedade não percebe o que está acontecendo”. No gerúndio.
Exemplos? Ora, todos. Intervenções brandas e brutas na Polícia Federal seguem se acumulando. De quantos escândalos mais você precisa para começar a franzir o cenho? Perseguições ideológicas contra setores da cultura, dentro e fora do Estado: isso por acaso faz parte da “normalidade” democrática? Olhemos para a devastação da ciência, para o seletivo torniquete orçamentário que vai desativando o sustento da educação, para a metamorfose macabra que fez do Ministério da Saúde uma usina de estatísticas sobre cadáveres. Olhemos para o extermínio das melhores tradições diplomáticas do Itamaraty. Estamos imersos num gerúndio massacrante, que vai dizimando até carreiras de Estado, como a dos fiscais que se acreditavam investidos do poder de vigiar crimes contra o meio ambiente.
Quantos anos serão necessários para reconstruir o Brasil, para reflorestar a terra ardente, para reavivar os instrumentos institucionais que fazem uma democracia funcionar? Quanto trabalho teremos de empenhar para cada dia de estrago implementado intencionalmente por esse governo? Quantas vidas teremos de pagar?
Enquanto isso, os fundamentos continuam despencando. No início da semana, a organização internacional Repórteres sem Fronteiras divulgou mais uma pesquisa sobre a liberdade de imprensa. Pela primeira vez, o Brasil figura na chamada “zona vermelha”, onde o trabalho de jornalistas é considerado “difícil”. No mesmo grupo estão Nicarágua, Turquia, Rússia e Filipinas. Também isso não aconteceu de um dia para o outro, foi produto de um longo e árduo trabalho dos golpeantes em gerúndio. Enquanto o estrago se vai expandindo, vai ficando mais “difícil” encontrar jornalistas que possam investigar e contar o que está acontecendo. Em gerúndio, em gerúndio, em gerúndio.
*Jornalista, é professor da ECA-USP
FAP, em parceria com Cidadania, lança curso de capacitação Gestão Cidadã
Capacitação é destinada a filiados ao partido; inscrições foram abertas nesta quinta-feira em plataforma on-line
Cleomar Almeida, Coordenador de Publicações da FAP
A Fundação Astrojildo Pereira (FAP) abriu, nesta quinta-feira (15/4), as inscrições para o curso Gestão Cidadã, com aulas telepresenciais exclusivas para filiados ao Cidadania, ao qual a entidade é vinculada. As vagas são limitadas. A aula magna do curso está marcada para o dia 3 de maio.
As inscrições poderão ser feitas, diretamente, na plataforma de educação a distância Somos Cidadania, que também foi lançada nesta quinta-feira, de forma totalmente interativa, moderna, com acesso gratuito para matriculados e design responsivo (veja mais detalhes ao final da reportagem).
O presidente nacional do Cidadania, Roberto Freire, diz que o curso reforça a tradição quase secular do partido, destinada a “políticas de formação de quadros”. “A diferença é que, mais do que anteriormente, a capacitação é bem mais fundamental neste mundo porque as transformações da sociedade e os processos de inovação se refletem também na gestão pública”, afirmou, em entrevista ao portal da FAP.
“Grande instrumento”
“O partido, se quiser ser atual e capaz de governar cidades, estados e o próprio país, precisa formar aqueles que serão responsáveis por essa gestão”, disse Freire. “O Cidadania tem grande instrumento para isso, a Fundação Astrojildo Pereira, que tem se revelado, nesses últimos anos, para a grande formação de quadros do partido”.
Presidente do Conselho Curador da FAP, coordenador do curso e ex-prefeito de Vitória (ES), o médico Luciano Rezende destacou que a atividade de formação é a base da construção do que chamou de “boa política”.
“O Brasil precisa da boa política. A nova política é uma expressão que embute dois preconceitos de que tudo que é novo é bom e tudo que é velho é ruim. O termo correto é boa política”, explicou Rezende. Ele foi prefeito da capital do Espírito Santo por dois mandatos, de 2013 a 2020, e deixou o governo com alta aprovação.
Valores da boa política
A boa política, de acordo com o coordenador do curso, se faz preservando virtudes. “São valores como ética, integridade, lealdade, comprometimento, mas também capacidade de gestão e de compreender o processo de gestão pública, como funciona o arcabouço legal de municípios, estados e país”, destacou.
É exatamente por isso que o curso ganha ainda mais relevância nesse momento, logo nos primeiros meses de mandatos de prefeitos, vices e vereadores eleitos, no final do ano passado, em todo o país. “Esse curso da FAP vai tratar de temas que preparam as lideranças para a boa política através da capitação”, disse.
Ouça o podcast da Rádio FAP
Ele citou que os participantes vão aprender como lidar com orçamento, gerenciar crise e usar adequadamente rede sociais, por exemplo, além de entenderem e executarem outras habilidades essenciais para a gestão pública de excelência.
“A agenda diária do cotidiano envolve a movimentação política, e a formação técnica é esquecida. Esse curso lembra que a formação técnica é fundamental”, destacou o ex-prefeito de Vitória.
Gestão pública com eficácia
Diretor-geral da FAP e consultor do Senado, o sociólogo Caetano Araújo ressaltou que o curso vai fornecer o conjunto de informações necessárias para a gestão pública ser eficiente, a fim de os serviços públicos serem realizados com a maior eficácia possível.
“A fundação, desde que foi criada, em 2000, tem uma atuação bastante forte na parte de formação política, primeiro com cursos exclusivamente presenciais. Depois no segmento de cursos a distância, no qual temos experiência de sucesso”, disse, referindo-se aos cursos Jornada da Cidadania e Jornada da Vitória realizados no ano passado.
De acordo com o diretor-geral da FAP, o curso será realizado por profissionais altamente competentes em suas respectivas áreas. “São pessoas que têm competência acadêmico-gerencial, conhecidas pelos seus pares e com larga experiência nesses temas”, asseverou.
Araújo disse, ainda, que o curso, certamente, oferecerá um grande arcabouço de conhecimento ao público ao qual se destina. “É certo que os profissionais vão poder passar bastante conhecimento para os nossos alunos. O curso tem tudo para ser um sucesso e vai ter impacto muito positivo na gestão pública dos municípios, sobretudo”, acentuou.
Plataforma Somos Cidadania
Com design responsivo, que se adapta a diferentes dispositivos de acesso (celular, computador e tablet), a plataforma Somos Cidadania é um projeto ousado e robusto de integração partidária e de divulgação de ações do partido e da FAP.
Ao acessar a plataforma, o internauta vai visualizar uma mensagem com o seguinte aviso: “Este é um espaço democrático e amplo que conecta filiados e simpatizantes para promover o debate em torno dos principais temas de relevância nacional”.
Em seguida, para ter melhor experiência de utilização da plataforma, o internauta terá de responder se é filiado ao Cidadania ou simpatizante do partido. Se for filiado, terá de informar número do título de eleitor e do CPF, para confirmação da resposta.
Além de ser o canal de realização do curso, a plataforma servirá também um canal de comunicação e funcionará, ainda, como ponte entre os seus integrantes e todas as lideranças políticas do Cidadania em todo o país.
Nela, os internautas terão a opção de participar de diversos grupos temáticos. Abaixo, veja lista de alguns exemplos, por ordem alfabética:
Além dos grupos temáticos, há uma parte destinada ao perfil de cada uma das pessoas cadastradas na plataforma, assim como espaço para fóruns de discussão e informação sobre eventos do partido e da fundação.
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Saúde, Trabalho, Universidade Em quase todos os lugares do mundo, as escolas públicas foram as últimas a fechar e as primeiras a reabrir durante a pandemia; aqui no Brasil, é o contrário
Depois de sete horas de disputa em plenário, na terça-feira, a Câmara dos Deputados aprovou o projeto que regulamenta a reabertura de escolas e faculdades durante a pandemia (PL 5.595/20), mas a polêmica continua. O texto torna a educação básica e superior serviços essenciais, ou seja, não podem ser interrompidos durante a crise sanitária. O texto seguirá para o Senado, onde a discussão deve pegar fogo. A proposta inverte a equação: proíbe a suspensão de aulas presenciais durante pandemias e calamidades públicas, exceto se houver critérios técnicos e científicos justificados pelo Poder Executivo quanto às condições sanitárias do estado ou município.
O fato de a relatora do projeto ser a polêmica deputada Joice Hasselmann (PSL-SP), facilitou a vida dos setores de esquerda que se opõem à abertura das escolas, apesar de ter incorporado emendas que estabelecem protocolos para o retorno escolar. Autora da proposta, a deputada Paula Belmonte (Cidadania-DF) destaca que “o texto foi alterado para garantir segurança de professores e alunos”. Outros deputados de perfil conservador e liberal patrocinaram a aprovação. “Esse projeto é de suma importância para (…) aquela mãe ou para aquele pai que não tem onde deixar o seu filho, (…) que é analfabeto e que não pode colaborar com a educação domiciliar, (…) que não tem conexão, computador e, como muitos disseram aqui, não tem água nem luz, às vezes”, argumentou a deputada Aline Sleutjes (PSL-PR).
Tiago Mitraud (Novo-MG) criticou a mobilização sindical contra a proposta: “É ter as crianças fora da sala de aula, mais uma vez, ter que se submeter aos interesses das corporações dos sindicatos”. Ex-relatora do Fundeb, respeitada educadora, Professora Dorinha (DEM-TO), porém, critica o projeto. “A nossa preocupação é que a educação seja prioridade de investimento, de política, de formação”, disse. A líder do PSol, a deputada Talíria Petrone (RJ) endossa a crítica: o texto “prioriza interesses privados, e não, investimentos na adaptação da infraestrutura educacional para a pandemia ou para expansão de acesso à internet pelos alunos”.
Califórnia
Um dos argumentos contra o projeto é o de que o Brasil é muito desigual, e as escolas das periferias e pequenos municípios não têm condições de seguir os protocolos. Entretanto, há inúmeros exemplos de escolas em locais remotos com alto desempenho escolar. Por isso, lembrei-me do best seller A quarta revolução, a corrida global para reinventar o Estado, de John Micklethwait e Adrian Wooldridge. Lós Angeles tem 687 mil alunos, ao lado de 23 outros distritos escolares californianos com 20 alunos ou menos.
O glamour hollywoodiano da Califórnia, por causa de Beverly Hills e do Vale do Silício, esconde milhares de condados, cidades e distritos, nos quais se reproduz o abismo existente entre Palo Alto, com suas empresas de alta tecnologia, e a burocrática Sacramento, a capital do estado com a terceira Constituição mais longa do mundo. Milhares de leis estaduais e locais de iniciativa popular engessam três quartos do orçamento público.
Os lobbies mais poderosos da Califórnia são: o dos agentes penitenciários (republicano), que aumentaram os empregos nos presídios e a população carcerária, com a duplicação das penas para criminosos reincidentes, e o dos professores da rede pública (democrata), cujo sindicato gastou US$ 210 milhões em campanhas políticas, entre 2000 e 2010, para conquistar uma taxa de demissão de 0,3%, ou seja, não importa o desempenho, professores são “imexíveis”. Há 50 anos, a Califórnia tinha o melhor sistema de ensino dos Estados Unidos; hoje, disputa com o Mississipi os maiores índices de analfabetismo e gastos per capita. Quem manda na rede de ensino público não são seus gestores, são os sindicatos de professores.
Em quase todos os lugares do mundo, as escolas públicas foram as últimas a fechar e as primeiras a reabrir durante a pandemia; aqui no Brasil, é o contrário. Tem alguma coisa errada. Os prejuízos para as crianças fora da escola não são tangíveis, vão muito além dos boletins escolares. E são justamente as mais pobres que mais precisam voltar às salas de aula.
'Quatro parcelas de R$ 250 serão insuficientes', diz economista Sérgio Buarque
Especialista cobra do governo medidas mais assertivas no enfrentamento à pandemia, em artigo publicado na Política Democrática Online de abril
Cleomar Almeida, Coordenador de Publicações da FAP
O economista Sérgio Cavalcanti Buarque avalia que o desempenho econômico do segundo semestre depende das decisões atuais sobre a intensidade do confinamento, a velocidade do processo de vacinação e “ação compensatória do Estado”. “O primeiro semestre já está perdido”, diz, em artigo publicado na revista Política Democrática Online de abril, produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.
“As quatro parcelas de R$ 250 em média para 45,6 milhões de famílias e os R$ 10 bilhões para o BEM-Programa de manutenção do emprego e renda serão claramente insuficientes, para o enfrentamento dos efeitos econômicos e sociais negativos de algum nível de lockdown”, enfatiza o especialista.
Veja versão flip da 30ª edição da Política Democrática Online: abril de 2021
O ministro da Economia, Paulo Guedes, disse em março que o valor médio do novo auxílio emergencial deve ser de R$250 por pessoa. A declaração foi dada em entrevista à imprensa no Palácio do Planalto, após reunião com o presidente Jair Bolsonaro para tratar da compra de vacinas contra Covid-19. Até dezembro, o governo pagava ajuda de R$600, por determinação do Congresso.
“Desastre humano”
Na avaliação de Buarque, “a calamidade sanitária leva diretamente ao desastre humano e econômico”, como afirma em seu artigo. Buarque, que também é consultor em planejamento estratégico com base em cenários e desenvolvimento regional e local, mestre em sociologia e professor aposentado da Universidade de Pernambuco (UPE), alerta que o país deve acelerar, com urgência, a vacinação contra a Covid-19.
“Se não conseguir acelerar o ritmo de vacinação até o final do semestre, o Brasil terá vacinado cerca de 84,4 milhões de brasileiros, apenas 40% da população, muito abaixo dos 70% considerados necessários pelos infectologistas para a imunização de massa”, observa o economista.
Acelerar vacinação
No artigo da revista Política Democrática Online de abril, ele considera que, embora muito mais grave do que o ciclo do ano passado, a nova onda do Covid-19 pode ser mais curta se forem adotadas medidas rígidas que quebram a cadeia de transmissão do vírus e acelerem o processo de vacinação.
“O custo muito alto no presente, inclusive político, teria resultados mais rápidos e consistentes na recuperação da economia brasileira no restante do ano”, pondera o professor aposentado da UPE.
Para frear a cadeia de transmissão do vírus nos próximos meses, moderando a dimensão da trágica calamidade sanitária, o articulista da revista da FAP ressalta ser imperiosa a implantação de medidas drásticas de isolamento social. “Como resultado, forte retração da economia: aumento do desemprego, da falência de empresas e da vulnerabilidade social”.
Adoção de lockdown
Entretanto, segundo ele, diante da gravidade da pandemia, se não forem adotadas medidas duras e impopulares, mantido o ritmo atual de mortos pelo Covid-19, até o final do semestre, o Brasil vai registrar a dolorosa marca de mais de meio milhão de vítimas do vírus.
“A implantação de um confinamento mais profundo demanda medidas compensatórias do Estado mais amplas do que foi aprovado na PEC emergencial”, diz o economista.
Além da análise de Buarque, a edição de abril da Revista Política Democrática Online também tem entrevista exclusiva com o ex-ministro da Saúde José Gomes Temporão, artigo de política nacional, política externa, cultura, entre outras, e reportagem especial sobre avanço de crimes cibernéticos.
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Marco Aurélio Nogueira: Descoordenação geral
A crise é uma combinação de grandes, médias e pequenas crises, que se enrolam umas nas outras e se potencializam reciprocamente.
Enquanto o presidente da República exibe seu peculiar estilo de criar caso e agredir, afundando seu governo no desgoverno, a crise segue corroendo as esperanças brasileiras, sem sinal de superação.
A crise é uma combinação de grandes, médias e pequenas crises, que se enrolam umas nas outras e se potencializam reciprocamente. A crise sanitária e a crise econômica são grandes, terríveis, têm pinta de que se estenderão. A crise da educação mistura-se com elas, e vai ceifando a inteligência nacional a partir de baixo, dos mais jovens, o que sugere a criação de um legado arrasador, que se espalhará pelo tempo. Pode-se dizer o mesmo da crise do saneamento, cujos déficits são escandalosos.
Somente elas são suficientes para explicar por que o País não está dando certo. São crises que se enraízam no chão profundo da história nacional, como se tivessem a ser criadas intencionalmente por mãos humanas. Servindo de base para todas elas, a desigualdade social obscena, chaga exposta a céu aberto, da qual muito se fala mas que segue se reproduzindo.
Nesse tronco principal enroscam-se outras crises, que eventualmente são mais fáceis de serem contornadas. Por comodidade vou chamá-las de “média intensidade”: a crise da federação e a crise dos poderes de Estado. As tensões que estão a ser reprisadas dia após dia têm a ver com isso. Há defeitos de formatação sistêmica no presidencialismo federativo, mas o que mais chama atenção é a ausência de um centro gestor eficiente, com um governante central interessado em defender o País mediante a harmonização de poderes e entes federativos. Nos últimos dias, o Judiciário entrou em rota de colisão com o Senado. O Senado reagiu à altura e assimilou o problema, mas não mostrou saber como processá-lo. Confusão à vista. O Executivo fez questão de deixar suas digitais. Com aquele jeito Bolsonaro de ser, resolveu conspirar com um senador (o inacreditável Kajuru) para pressionar os senadores e o STF simultaneamente. Para além da demonstração de desrespeito à Constituição, à ética pública, à decência e às boas maneiras, a iniciativa presidencial se dedicou, na verdade, a soprar as brasas de uma fogueira que libera gases tóxicos sem cessar. Uma fogueira que lhe queima as penas e o isola, mas que também cria um alvoroço que a todos confunde. Serviu, ao meno
Chamo essas crises de “média intensidade” porque podem ser enfrentadas com os recursos da política prática: a inteligência, a responsabilidade, a seriedade, a disposição ao diálogo, o jogo democrático. Se continuam a latejar é porque tais recursos não estão sendo empregados. Ressentimo-nos da falta deles, da falta de elites políticas dotadas de capacidade de iniciativa e proposição. Talvez não haja uma cultura política (um ethos, um conjunto de valores e convicções) que dê sustentação a boas elites, talvez os partidos não estejam sendo a “escola de formação” de que se necessita, talvez a classe política seja covarde de mais e lúcida de menos. Pode ser tudo isso. O fato é que as instituições democráticas, que se supõe fortes e estáveis, não estão produzindo respostas que amenizem crises e dificuldades, que avancem pactos e soluções positivas. Donde a sensação crescente de descontrole, descoordenação, desgoverno.
O País está sem diretrizes, sem políticas. O meio ambiente é uma tragédia, o Itamaraty marchou para trás, não há política externa, a Cultura foi jogada na sarjeta, o desarranjo atinge todos os segmentos da gestão pública. Carecemos de muitas coisas.
Até onde um País assim conseguirá chegar é uma incógnita. Não há futuros predeterminados. Há muitos caminhos abertos na encruzilhada da História. O fato é que os motores estão engasgando e não se vislumbra no horizonte próximo quem poderá voltar a fazê-los funcionar.
El País: Heróis negros esquecidos pela História do Brasil
Enciclopédia reúne biografias de 550 intelectuais, ativistas, líderes religiosos, músicos, esportistas, políticos, cientistas, amas de leite... que foram escravos ou descendentes
Naiara Galarrafa Gortázar, El País
A cor da pele é provavelmente a única coisa que a vereadora de esquerda Marielle Franco, assassinada há três anos no Rio de Janeiro, e Chico Rei, um membro da família real do Congo que foi sequestrado com a família e alguns súditos para serem escravizados nas minas de ouro brasileiras no século XVIII, têm em comum. Graças à sua perícia no ofício, conseguiu comprar sua liberdade, a de outros e voltar a ser reconhecido como alguém importante. Ambos estão entre os 550 protagonistas da Enciclopédia Negra (Companhia das Letras), recentemente publicada no Brasil, que resgata histórias de mulheres e homens negros e mestiços esquecidos no relato sobre a construção nacional.
Mais da metade dos 210 milhões de brasileiros é composta atualmente por negros ou mestiços. Graças às cotas, no ano passado superaram os brancos nas universidades. Sempre viveram pior do que seus compatriotas brancos, apesar de a igualdade estar consagrada na lei e ao fato de que não houve segregação legal em tempos recentes como nos Estados Unidos. E agora o coronavírus vitima especialmente os afro-brasileiros. Sem o trabalho forçado de seus antepassados, as imensas riquezas geradas pelo açúcar, o ouro e o café nunca teriam existido.PUBLICIDADE
A historiadora Lilia Schwarcz, uma das coautoras, explica por telefone: “Queremos dar alma e rosto a esses heróis cotidianos que foram silenciados e apagados pela história”. A obra “é parte do ativismo negro para recontar de maneira mais plural a chamada história universal, que é muito colonial, muito branca e muito masculina”, acrescenta Schwarcz, considerada uma referência no Brasil.
A enciclopédia começa com Abdias do Nascimento (1914-2011) e termina com Zumbi (1655-1695) em um percurso que vai do século XVI ao XXI. Ou seja, de um intelectual, artista e deputado que criou o Teatro Experimental do Negro e deu aulas nas Universidades de Yale e Ifé (Nigéria) até um ex-escravizado do Brasil colonial que liderou uma república de libertos que foi convertido séculos depois no grande símbolo da resistência negra aos portugueses e holandeses. Todo dia 20 de novembro, data da execução de Zumbi, o Brasil comemora o Dia da Consciência Negra.
Junto com personalidades conhecidas que entraram nos livros escolares nos últimos anos, os autores incluíram um rico mosaico de pessoas desconhecidas representando os milhões de pessoas escravizadas e seus descendentes. A ideia dos autores é contar “a potência de tudo o que fizeram, que foi muito mais do que sobreviver”. Alertam que em alguns casos os fatos se confundem com a lenda.
Os protagonistas, apresentados em ordem alfabética, são intelectuais, ativistas, líderes religiosos, músicos, esportistas, políticos, cientistas, amas de leite... As conquistas, façanhas e vitórias descritas compõem uma avassaladora diversidade de trajetórias e origens, coisa pouco frequente neste país continental muitas vezes ensimesmando no eixo São Paulo-Rio de Janeiro.
Afra Joaquina Vieira Muniz, que está na capa do grosso volume, ilustra como era complexa a rede da escravidão no último dos países das Américas a aboli-la, em 1888. Nascida em Salvador, era uma pessoa escravizada cuja liberdade lhe foi dada por um antigo senhor ao casar-se com ela. Quando este morreu, por volta de 1870, legou-lhe todos os bens e duas mulheres que ficavam livres com a condição de cuidar da viúva até sua morte. As duas denunciaram Afra Joaquina à Justiça por maus-tratos, mas perderam a ação e tiveram de ficar com ela.
Pretextato dos Passos abriu em 1885 a primeira escola para crianças negras, que não eram aceitas nas escolas de brancos; Benjamim de Oliveira foi o primeiro palhaço negro; a professora Antonieta Barros, deputada pioneira em 1935 na muito branca Santa Catarina. Luiz Gama, que o próprio pai vendeu como pessoa escravizada, foi revendido, conseguiu fugir para se tornar funcionário público e depois advogado. Obteve nos tribunais a liberdade de outras pessoas antes de morrer em 1882 aos 52 anos.
Claudia Silva Ferreira, uma faxineira que tinha quatro filhos, se tornou uma das milhares de vítimas de balas perdidas em tiroteios durante operações policiais em 2014. Ferida, foi colocada por alguns policiais no porta-malas do carro patrulha dizendo que a levariam ao hospital. Mas a tampa se abriu e ela caiu. Foi arrastada por 400 metros até que os policiais perceberam. Morreu antes de chegar ao hospital e estava prestes a se tornar mais um número de uma volumosa estatística. Mas, como aconteceu agora com George Floyd, alguém filmou a cena macabra e essa morte adquiriu importância social.
Alguns dos resenhados são personalidades destacadas que durante décadas foram brancas aos olhos de seus compatriotas. O caso mais marcante é o de Joaquim Machado de Assis (1839-1908), o grande romancista, fundador e presidente da Academia Brasileira de Letras, que em sua imagem mais conhecida foi imortalizado como um branco. Enorme foi a surpresa de muitos quando descobriram a verdade graças à campanha de uma universidade.
A historiadora destaca que queriam publicar a Enciclopédia Negra exatamente agora porque 2022 é um ano importante. O Congresso tem previsto avaliar as cotas universitárias, que nos últimos anos engendraram uma geração de graduados negros e pobres, o que representa uma profunda mudança nesta sociedade racista e classista. Também se comemora o bicentenário da independência do Brasil. E o centenário da Semana de Arte Moderna, que deu personalidade própria à arte moderna brasileira, mas excluiu o escritor Afonso Lima Barreto pela cor da pele.
As biografias são resultado da pesquisa de Schwarcz e de seus coautores —o historiador Flávio dos Santos Gomes e o artista plástico Jaime Lauriano— e, sobretudo, de centenas de teses de doutorado inéditas. O livro foi publicado por uma das principais editoras do Brasil, a Companhia das Letras, cofundada pela historiadora.
As mulheres são maioria e todas as 550 têm nome, mas em alguns casos foi impossível saber seus sobrenomes. E como não havia imagem alguma de muitos, encarregaram a 36 “artistas, negras, negros e negres”, nas palavras dos autores, que lhes dessem um rosto. Esses retratos de protagonistas que abrangem profissões, origens, gêneros e orientações sexuais diversas serão apresentados em uma exposição na Pinacoteca de São Paulo assim que a pandemia permitir.
Folha de S. Paulo: 'Somos parte do legado de Floyd', diz Kamala Harris após veredicto de ex-policial
Para Joe Biden, condenação de Derek Chauvin pode ser 'grande passo adiante' nos EUA
Patricia Pamplona, Folha de S. Paulo
Legado foi a palavra que permeou o discurso da vice-presidente dos EUA, Kamala Harris, e do mandatário americano, Joe Biden, sobre a condenação de Derek Chauvin pelo assassinato de George Floyd, nesta terça (20).
O ex-policial foi considerado culpado pelo assassinato e condenado em três categorias de homicídio. A duração da pena será anunciada em até oito semanas, e ele pode pegar até 40 anos de prisão.
Primeira mulher negra na Vice-Presidência americana, Kamala falou primeiro e afirmou que o veredito é um passo, mas ainda há trabalho a fazer e insistiu que o Senado aprove a Lei George Floyd de Justiça no Policiamento, apresentada em agosto do ano passado.
“Precisamos reformar o sistema. Essa lei é parte do legado de George Floyd”, disse a vice, descendente indiana e jamaicana. “Somos todos parte do legado de George Floyd, é nosso dever honrá-lo.”
Kamala sublinhou ainda as difíceis condições de pessoas negras no país. “Americanos negros e homens negros em especial têm sido tratados como se fossem menos que humanos”, afirmou a vice. “Suas vidas precisam ser valorizadas em nossos sistemas educacional, de habitação, judiciário e na nossa nação.
Na sequência, o presidente também insistiu na necessidade de reformas. “[O caso] Abriu os olhos para o racismo sistêmico que é uma mancha na alma da nossa nação”, disse Biden. “Esse pode ser um grande passo adiante.”
O democrata reconheceu a importância do veredito, apesar de criticar que não deveria levar um ano para que o caso fosse concluído, e ressaltou que o resultado é uma raridade nesses tipos de casos.
“Esse veredito não traz George de volta, mas por meio da dor, sua família encontrou propósito. Precisamos fazê-lo por sua memória”, disse Biden. “Vamos fazer com que esse seja seu legado, um legado de paz, não de violência."
O presidente condenou ainda protestos violentos que tentam atrapalhar o caminho para a justiça racial. “Não podemos deixar que tenham sucesso. Não pode haver um porto seguro para o ódio nos EUA.”
No ano passado, durante as manifestações antirracismo que se espalharam pelo país, indivíduos que eram contra os atos investiram contra ativistas com atropelamentos, armas de fogo, motosserra e até arco e flecha.
Em um dos casos, em junho do ano passado, um homem branco usou o carro para entrar no meio de uma manifestação em Seattle, no estado de Washington. Um dos ativistas, um homem negro, tentou impedi-lo e acabou baleado no braço.
Empunhando a arma, o motorista deixou o carro e correu entre a multidão até se entregar à polícia. Segundo autoridades locais, o manifestante baleado foi levado ao hospital em condições estáveis, e ninguém mais ficou ferido.
Na conclusão de sua fala, Biden lembrou as últimas palavras ditas por Floyd: “Eu não consigo respirar”. “Não podemos deixar que elas morram com ele”, disse o presidente. “Temos a chance de começar uma mudança na trajetória desse país. Espero fazer jus ao seu legado. Esse pode ser um momento de mudança significativa.”
Folha de S. Paulo: Ex-policial Derek Chauvin é condenado pela morte de George Floyd
Agente sufocou Floyd com o joelho por quase 9 minutos; caso gerou onda de protestos contra o racismo
Rafael Balago e Lucas Alonso, Folha de S. Paulo
A morte de George Floyd, que gerou forte comoção nos Estados Unidos e deu impulso a uma onda global de combate ao racismo, teve a sua primeira sentença judicial nesta terça (20). O ex-policial Derek Chauvin foi considerado culpado pelo assassinato e condenado em três categorias de homicídio.
A duração da pena será anunciada em até oito semanas. Chauvin, 45, pode pegar até 40 anos de prisão. Como ele é réu primário, uma condenação do tipo geralmente levaria a 12 anos e meio de detenção, mas os promotores podem pedir a ampliação da condenação, com base em agravantes.
O ex-policial foi preso no ano passado, porém deixou a cadeia após pagar fiança de US$ 1 milhão. A decisão desta terça determinou que ele fosse detido novamente, e Chauvin deixou o tribunal algemado. Ele ainda pode recorrer da decisão.
Pela morte de Floyd, Chauvin foi condenado em três diferentes categorias: homicídio em segundo grau (quando o homicídio não é intencional, mas o réu mata alguém enquanto comete intencionalmente outro crime), homicídio em terceiro grau (quando o réu mata alguém ao tomar uma atitude perigosa sem levar em consideração o risco à vida humana) e homicídio culposo em segundo grau (quando o réu assume o risco de matar alguém ao tomar uma atitude imprudente).
A sentença foi dada por um grupo de 12 jurados, depois de um julgamento que levou três semanas. O grupo estava reunido para elaborar o veredicto desde segunda-feira (19) e permaneceu isolado, debatendo a portas fechadas, sob um rígido esquema de segurança.
Os jurados não foram identificados publicamente, e a Justiça deve proteger suas identidades por tempo indeterminado. O que se sabe a partir dos autos é que o grupo é composto por quatro mulheres brancas, dois homens brancos, três homens negros, uma mulher negra e duas mulheres que se identificam como multirraciais.
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As audiências começaram em 29 de março, e foram ouvidas 45 testemunhas, entre policiais, especialistas médicos e transeuntes que presenciaram a abordagem de George Floyd.https://s.dynad.net/stack/928W5r5IndTfocT3VdUV-AB8UVlc0JbnGWyFZsei5gU.html[ x ]
Ao apresentar seu caso ao longo de mais de duas semanas, os promotores reuniram testemunhas emocionadas, policiais que afirmaram que as ações de Chauvin violaram as políticas do departamento e especialistas médicos que disseram ao tribunal que Floyd, 46, morreu de asfixia.
Chauvin se declarou inocente de todas as acusações e renunciou ao seu direito de testemunhar perante os jurados. O principal advogado de defesa, Eric Nelson, reiterou na segunda que ele havia se comportado como qualquer "policial razoável", argumentando que ele seguiu seu treinamento de 19 anos na força.
Um dos principais pontos levantados pela defesa foi de que Floyd teria usado drogas antes da ação e que isso teria levado à sua morte. Foram encontrados traços de metanfetamina e de fentanil (um tipo de opióide) no corpo de Floyd, e a namorada dele confirmou que o casal era usuário de drogas. Médicos convocados pela acusação, porém, disseram que não há indícios de que Floyd tenha tido uma overdose. Segundo um deles, o homem não seria capaz de falar com os policiais e provavelmente estaria inconsciente se estivesse nessa situação.
Durante os dias de deliberação, os jurados foram mantidos em uma espécie de "fortaleza", uma torre cercada por barricadas e por arame farpado e vigiada o tempo todo por homens da Guarda Nacional.
Nesta terça, ativistas se reuniram perto do tribunal e também no local onde Floyd foi morto. Eles comemoraram a decisão com gritos de "Justiça" e "Vidas Negras Importam".
"Hoje foi um grande dia para o mundo. Para mim, [a decisão] significa que meus amigos e outras pessoas que também perderam entes queridos agora têm uma chance de terem seus casos reabertos", disse Courteney Ross, que era namorada de Floyd, na porta do tribunal, para a CNN.
Em nota divulgada por seu advogado, a família de Floyd disse que a decisão terá efeitos em todo o país e em outras partes do mundo. "Justiça para a América negra é justiça para a América inteira. Esse caso é um ponto de virada na história americana de responsabilização das forças de segurança e envia uma mensagem clara, que esperamos que seja ouvida em todas as cidades."
O presidente Joe Biden telefonou para a família de Floyd e disse estar "muito aliviado" com o resultado, segundo a AFP. Biden acompanhou o anúncio da decisão na Casa Branca e deve se pronunciar sobre o tema ainda nesta noite.https://player.mais.uol.com.br/?mediaId=16917695&onDemand=true
Em março, a família de Floyd fez um acordo com a cidade de Minneapolis para receber US$ 27 milhões como indenização pela morte do ex-segurança.
Entidades que lutam pelos direitos dos negros celebraram a decisão, mas apontam que ainda há muito a se fazer para evitar que mortes como a de Floyd se repitam. "O capítulo sobre Derek Chauvin pode ser fechado, mas a luta por responsabilização da polícia e respeito pelas vidas negras está longe de acabar", disse a Naacp (Associação Nacional pelo Avanço das Pessoas de Cor), em nota.
O governador de Minessota, o democrata Tim Walz, disse que a busca por Justiça para Floyd não termina hoje, e que ela só virá com mudanças reais que previnam casos como o dele.
"Esperamos que o veredicto comece a mostrar que a supremacia branca não vencerá. Mas isso não trará nossos entes amados de volta. Não teremos George Floyd de volta. Sua filha terá de crescer sem ele", disse a Black Lives Matter Global Network Foundation, em comunicado.
A decisão da Justiça foi anunciada menos de 11 meses após a morte de Floyd. Em 25 de maio de 2020, a polícia foi acionada depois que ele usou uma nota falsa de 20 dólares em uma loja de conveniência em Minneapolis —no julgamento, o atendente da loja diria que Floyd parecia não saber que a cédula não era verdadeira.
O vendedor pediu o produto de volta, "mas ele não queria e estava sentado sobre o carro porque estava terrivelmente bêbado e não se controlava", disse o lojista, segundo transcrição do telefonema à polícia.
Os documentos de acusação dizem que os policiais encontraram Floyd em um carro azul estacionado, com dois passageiros. Logo chegaram unidades da polícia, e os policiais tentaram colocar Floyd em uma viatura, mas ele resistiu.
Durante a abordagem policial, ele teve o pescoço prensado no chão por Chauvin, por 8 minutos e 46 segundos, e o vídeo que registrou o momento viralizou nas redes sociais. Chauvin ignorou não só os avisos de Floyd de que não estava conseguindo respirar, como os apelos das testemunhas, que apontavam uso excessivo de força.https://player.mais.uol.com.br/?mediaId=16797063&onDemand=true
Floyd foi socorrido e morreu uma hora depois da abordagem, segundo os dados oficiais.
Os quatro policiais foram demitidos assim que o caso veio à tona. Os outros três policiais envolvidos na abordagem, Thomas Lane, J. Alexander Kueng e Tou Thao, foram indiciados como cúmplices de homicídio e aguardam julgamento.
Segundo a agência de notícias Associated Press, ao longo de 19 anos de carreira, Chauvin foi alvo de quase 20 queixas formais e duas cartas de reprimenda. A maioria foi arquivada.
A morte do ex-segurança gerou uma onda de protestos que se espalhou por dezenas de cidades dos EUA e outras partes do mundo. Floyd foi lembrado em atos na África, na Ásia, na Europa e também no Brasil. O caso virou um símbolo do movimento Black Lives Matter (Vidas Negras Importam).
Durante a primeira semana de manifestações, foram registrados incêndios em carros e prédios, saques e conflitos com policiais de costa a costa nos EUA. O mesmo ocorreu em cidade europeias.
Nos últimos dias, com medo de novos confrontos nas ruas após a divulgação do resultado do julgamento, muitas empresas de Minneapolis suspenderam atividades e usaram tábuas para fechar as janelas, enquanto as escolas optaram por aulas remotas.
Apesar de o julgamento de Chauvin avaliar a culpa de apenas um homem, ele é simbólico para os EUA que têm um histórico de assassinatos de jovens negros por policiais. A condenação pode trazer um certo alívio e uma sensação de acerto de contas após a onda de protestos liderados pelo movimento Black Lives Matter que circularam o mundo todo, nos quais a imagem de Floyd tornou-se símbolo da luta antirracista e contra a violência policial no EUA.
Só neste mês de abril, houve mais duas vítimas. Adam Toledo, 13, foi morto em Chicago, baleado por um policial mesmo após levantar as mãos, e Daunte Wright, 20, foi morto a tiros em Minnesota (a menos de 20 km da cena da morte de Floyd), em uma abordagem de trânsito.
Em março, a Câmara dos Representantes dos EUA aprovou um projeto de lei que proíbe táticas policiais controversas e facilita o caminho para ações judiciais contra agentes que violarem direitos de suspeitos. A medida foi apelidada de "Lei George Floyd de Justiça no Policiamento". Em junho do ano passado, os deputados aprovaram medida semelhante com votação mais expressiva —236 a 181—, mas o texto foi barrado pelo Senado, que tinha maioria republicana.
Thiago Amparo: Pós-veredicto, espera-se que a polícia tire o joelho de nossos pescoços
Condenação de Derek Chauvin ensina que apenas justiça nos salvará da morte
Pare e escute o sopro de esperança que está no ar; chama-se justiça. “Nunca esqueça que justiça é como o amor se apresenta em público”, nos ensina um dos grandes oradores negros vivos nos EUA, Cornel West. Justiça não é revanche, é a qualidade de despir a barbaridade de seu manto de autoridade e mostrar que o policial, no caso Derek Chauvin, está nu. Nu de razão, nu de poder legal, nu de respeito pelo próximo, nu da humanidade que partilhamos.
Nesta terça-feira (20), Chauvin, quem num ato de frieza macabra espremeu seu joelho no pescoço de George Floyd por longos nove minutos em maio de 2020, foi condenado por três crimes num veredicto unânime, como a lei determina. Chauvin foi condenado por "second-degree unintentional murder"(homicídio não premeditado, mas praticado com malícia criminosa de matar durante uma lesão corporal grave), por "third-degree murder"(ato perigoso sem consideração pela vida humana) e por "second-degree manslaughter" (homicídio culposo por negligência).
As penas máximas são respectivamente 40, 25 e 10 anos. Por lei, devemos aguardar o sentenciamento por parte do juiz para determinar as penas exatas que Chauvin deverá cumprir, o que acontecerá nas próximas semanas. Com razão, a acusação alega que pesam contra o ex-policial algumas circunstâncias que podem agravar a pena: ato ter sido realizado na presença de crianças, com “crueldade peculiar” e com abuso de sua “posição de autoridade”. A favor de Chauvin recai o fato de ele não ter formalmente histórico criminal.
O aspecto graficamente brutal das imagens do assassinato de Floyd pesou para a sua condenação. Durante o julgamento de Derek Chauvin, que durou três semanas, emergiram novas cenas das câmeras corporais dos policiais que mostram Floyd implorando por sua vida. "Por favor, não atirem em mim. Acabei de perder minha mãe", implorou no dia 25 de maio de 2020. Ele diz que "fará tudo o que [os policiais] disserem".
A defesa alegou que policiamento pode parecer violento, mas é necessário, que Floyd faleceu por complicações de saúde e uso de drogas, e que os transeuntes ameaçaram os policiais. Estas três teses da defesa caíram por terra, em especial pelas dezenas de testemunhas ouvidas, inclusive o chefe da polícia local que desacreditou Chauvin. Sua conduta não corresponde com o treinamento recebido, afirmou. O veredicto de Derek Chauvin, assim, nos ensina a separar policiamento de vandalismo policial e assassinato.
Quando os jurados entraram para confirmar o veredicto, os jurados não estavam sós. Ao seu lado estavam as multidões de negros e brancos que marcharam nas ruas dos EUA e de várias partes do mundo por justiça. Ao seu lado estava a família de Rodney King, que foi vítima de brutalidade policial em Los Angeles em 1992. Ao seu lado estavam todos que lutam por justiça num país que conta para si a história de ser a maior democracia do mundo, uma democracia que já pendurou negros em árvores. Ao lado dos jurados, estávamos todos nós, vivos ou mortos, brancos e negros, que lutamos por justiça.
Não tratemos o caso de George Floyd como episódico. O racismo é perverso posto que, ao menos, se revela horrendo e cotidiano. Durante as três semanas de julgamento de Chauvin, outros dois casos de violência policial ocorreram. Adam Toledo foi morto em Chicago mesmo tendo levantado as mãos para o policial, e Daunte Wright, 20, foi baleado a menos de 20 km de onde Floyd foi assassinado.
Casos de violência policial nos EUA nos ensinam que policiamento brutal ocorre ou na guerra às drogas ineficaz ou no policiamento de banalidades. Floyd foi acusado de usar nota falsa numa loja de conveniência. Breonna Taylor estava dentro de sua casa em Louisville, em março de 2020, quando foi morta pela polícia. Eric Garner vendia cigarro na rua quando foi sufocado pela polícia em Nova York. Michael Brown estaria indo para a casa de sua vó, quando foi alvejado por policiais em Ferguson.
Desde a morte de Floyd, mudanças ocorreram. Um grande número de departamentos policiais proibiu medidas de estrangulamento como tática policial. Uma lei, nomeada Lei George Floyd, passou na Câmara e, com o veredicto, deve andar no Senado. A lei diminui a imunidade legal dos policiais, expande o banco de dados sobre má conduta policial, aumenta a supervisão federal no tema, proíbe técnicas violentas como a que causou a morte de Floyd e torna ilegal perfilhamento racial.
E o Brasil? Polícias brasileiras mataram seis vezes mais do que a dos EUA, só o RJ matou mais do que a polícia americana inteira. Enquanto celebramos que Derek Chauvin foi condenado, lembremos que a investigação do caso de João Pedro, 14, morto antes de Floyd está parada, e que contra Evaldo dos Santos foram disparados 257 tiros por militares —e nenhum deles foi julgado ainda.
Lembremos as palavras da abolicionista americana do século 19, Sarah Moore Grimké. No Brasil e nos EUA, pós-veredicto, o que se pede é que a polícia tire o joelho de nossos pescoços.
*Thiago Amparo é advogado, é professor de direito internacional e direitos humanos e coordenador do núcleo de justiça racial e direito na FGV Direito SP. Doutor pela Central European University (Budapeste), escreve sobre direitos e discriminação.
Alon Feuerwerker: Cone Sul
O recrudescimento da Covid-19 no Cone Sul do continente (leia) produz problemas não apenas sanitários, mas também políticos. No Brasil, o governo de Jair Bolsonaro está às voltas com uma CPI. Na Argentina, o prefeito da capital rebelou-se contra as novas medidas restritivas de Alberto Fernández (leia). E no Uruguai acabou a lua de mel com o recém-eleito Luis Alberto Lacalle Pou (leia).
Os três países são governados por distintas correntes políticas. Grosso modo, e com todas as relativizações possíveis, direita no Brasil e esquerda na Argentina. No Uruguai, o que hoje em dia seria aqui chamado de centro. Também foram três modelos diferentes de combate ao vírus. Respectivamente, isolamentos sociais descentralizados (Brasil), tentativa de lockdown nacional (Argentina) e "modelo sueco" (Uruguai).
Uma hipótese para o repique regional é o espalhamento da variante de Manaus, mais contagiosa, disseminada com a ajuda das porosidades fronteiriças do continente. A isso certamente se juntam uma certa desorganização estatal e a ausência da desejável (pelo menos em pandemias) disciplina social encontrada nos países que vêm melhor conseguindo enfrentar o desafio.
*Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação
Zeina Latif: O presidente não sabe surfar
Não há mais contraponto no governo para defender a disciplina fiscal, e cada grupo corre para garantir sua parte no latifúndio
Empolgados com a expressiva alta dos preços de commodities, analistas apostam em um ciclo robusto adiante, em boa medida por conta das perspectivas de vacinação em massa no mundo. Os países emergentes se beneficiariam com o influxo de capitais estrangeiros, para além da melhora do saldo exportador.
Haveria mais investimento nesses setores e em ativos de risco, pela própria percepção de redução do risco nos países - como sugerem as elevadas correlações entre preços de commodities e o custo (spread) da dívida soberana ou o preço do seguro contra calote (credit default swap) de emergentes.
O otimismo tem contribuído para sustentar preços de ativos. Convém, no entanto, conter o entusiasmo, especialmente para o caso brasileiro.
O principal combustível para a alta das commodities é o comércio mundial, que exibiu recuperação em formato de “V” e embalou a alta de 68% nos preços de commodities entre o colapso de abril passado e março último, pelo índice do FMI. Certamente a elevada liquidez mundial tem sua contribuição, por se tratar de um preço de ativo.
A tendência, porém, é de desaceleração do comércio mundial, pois fatores transitórios explicam em boa medida sua recuperação: a recomposição de estoques de commodities pela China, os estímulos monetários no mundo e própria normalização de cadeias de valor.
Avanços adicionais dependerão de mais elementos, sendo que a superação da pandemia significará muito mais a reativação do setor de serviços do que de setores intensivos no uso de commodities, mais preservados na crise.
Vale lembrar que o comércio mundial estava estagnado antes da crise, em função do protecionismo no mundo e da desaceleração na China.
A China acelerou seus planos de rebalanceamento do modelo de crescimento voltado a setores intensivos em tecnologia, em detrimento da indústria tradicional -, aliás, a disputa tecnológica está no cerne da guerra comercial entre China e Estados Unidos. Esses segmentos, no entanto, não são intensivos na utilização de commodities e tampouco o retorno do maciço investimento estatal está garantido, ainda menos de forma tempestiva.
A complexidade da implementação e da maturação de projetos de tecnologia não se compara à de investimentos tradicionais em capital fixo. É natural, portanto, que ocorra uma desaceleração na China, inclusive pela acomodação na oferta de crédito após os estímulos recentes.
Em relação a agendas globais, ainda não chegou o momento do multilateralismo no comércio. O foco tem sido muito mais na questão ambiental, que ganhou ímpeto com Joe Biden. Mantém-se o quadro de protecionismo comercial, inclusive com risco de recrudescimento, por conta das exigências da agenda ambiental.
Mesmo que o ciclo de commodities perdure, é improvável que o Brasil consiga “surfar a onda” como no passado.
No primeiro governo Lula, isso foi possível. A política macroeconômica herdada de FHC foi fortalecida e houve avanço em políticas públicas que contribuíram para aumentar o potencial de crescimento de longo prazo do País e a emergência da nova classe média.
Apesar da crise política que interrompeu precocemente as reformas, o Brasil conseguiu se beneficiar do vento de popa do exterior, decorrente da entrada da China na OMC no final de 2001, e caminhou para conquistar o grau de investimento em 2008.
O quadro atual é outro. Já assistíamos à redução da participação do Brasil no investimento direto estrangeiro mundial e à saída de empresas do País. A má gestão da crise da pandemia agravou bastante a situação, sendo que a deterioração do regime fiscal em curso traz mais incertezas para o comportamento do dólar, das taxas de juros e da própria carga tributária no futuro.
Tudo somado, o cenário eleitoral ganha maior relevância no radar de empresários e investidores.
O governo está em um círculo vicioso de decisões equivocadas. O imbróglio do orçamento reflete erros passados na gestão da crise e sua suposta solução - que amplia os gastos públicos praticamente sem constrangimento, pendurando tudo na conta da covid-19 - produz outros tantos.
Não há mais contraponto no governo para defender a disciplina fiscal e cada grupo corre para garantir sua parte no latifúndio.
Esse quadro reduz as opções para correções de rumo. Mesmo se houvesse interesse, o esforço teria de ser enorme diante da perda de credibilidade. As saídas se estreitam e o Brasil perde a onda.
Elio Gaspari: De Zappa@edu para Bolsonaro@gov
O senhor abraçou uma causa perdida na discussão do meio ambiente
Presidente,
O senhor implica com os diplomatas profissionais e chega a ironizar suas boas maneiras. Como disse um colega, alguns arrumam melhor os talheres numa mesa que os pronomes numa frase. Escrevo-lhe com a autoridade de quem, no século passado, serviu como embaixador em postos para os quais o creme de barbear chegava por mala diplomática (Pequim, Hanói, Maputo e Havana). Eu evitava usar smoking, porque seria confundido com garçom.
Amanhã o senhor começará a participar da Cúpula do Clima e terá momentos difíceis. Acho que posso ajudar com uma ideia simples: deixe a diplomacia com os diplomatas profissionais. Teste-os, enunciando uma tolice. Quem concordar, profissional não é.
Na diplomacia, não há lugar para ganhadores nem para perdedores. Isso é coisa de militares. Às vezes o vencedor finge que perdeu e dá ao perdedor a chance de dizer que ganhou. Conversa de diplomata? Talvez o senhor esteja entre aqueles que consideram o americano Henry Kissinger um grande diplomata. Ele ganhou o Prêmio Nobel da Paz, mas abandonou o Vietnã à própria sorte depois de massacrar parte de sua população numa guerra perdida. Eu vivi lá e sei o que houve. Grande marqueteiro, isso sim.
O senhor abraçou uma causa perdida na discussão do meio ambiente. Depois de delirar na virtude de ser um pária, seu governo não deve apresentar contas. Sua carta ao presidente Joe Biden foi longa demais porque muita gente meteu a colher.
Nós já compramos causas perdidas. Apoiamos o colonialismo português na África, ficamos com os chineses de Taiwan, mesmo depois que os americanos se acertaram com a China. Votávamos nas Nações Unidas com Portugal por causa da pressão de meia dúzia de comendadores do Rio de Janeiro. Saímos dessa encrenca. Mais difícil foi aguentar as implicâncias com o restabelecimento de relações diplomáticas com a China. O senhor implicou com a vacina chinesa. Para quê?
Diplomatas consertam vasos quebrados desde os tempos coloniais. Eles sabem lidar com o ritmo e o tom nas crises. Na questão da Amazônia, o Brasil precisa apenas voltar a ser ouvido. Deixamos de sê-lo porque deliramos. A irracionalidade não é invenção nossa. Veja o caso dos Estados Unidos na Amazônia. No século XIX, eles queriam mandar para lá seus negros. No início do XX, Henry Ford delirou querendo transformar um pedaço da floresta em seringal particular. Décadas depois, o bilionário Daniel Ludwig teve uma ideia parecida. Deliraram, deram-se mal e foram-se embora.
Existe um espaço enorme para negociarmos projetos relacionados com a Amazônia. Para um exportador de grãos que compete conosco no mercado internacional, vossa política ambiental é um presente.
Pelo que sei, há malandraços oferecendo pontes com a Casa Branca. Não caia nessa. O presidente Biden tem um jeitão de vovô, mas conhece Washington. Para seu caderno de notas: em abril de 1975, as tropas do Vietnã do Norte estavam entrando em Saigon, e discutiam-se recursos para resgatar os vietnamitas que haviam ajudado os americanos. O então senador Biden avisou:
— Voto qualquer quantia para tirar os americanos, mas não quero me meter com operações para retirar vietnamitas.
Eu servi lá e nos Estados Unidos. Sei quanto isso custou aos dois povos.
Atenciosamente,
Ítalo Zappa.