Malu Gaspar: Cortes no Orçamento podem render a Bolsonaro nova briga com o Congresso
A tesourada que o Ministério da Economia deu no Orçamento de 2021 não encerra o impasse com o Congresso. Pelo contrário, deve criar novos focos de conflito. Ao cortar da peça orçamentária os R$ 29,8 bilhões necessários para reequilibrar os gastos do governo, Guedes mexeu num vespeiro.
Ao invés de tirar da previsão de gastos do governo apenas as despesas que haviam sido acrescentadas pelo relator, o senador Márcio Bittar (MDB-AC), a equipe do ministro Paulo Guedes mexeu em outras dotações orçamentárias que, até agora, não estavam em discussão.
Do total de cortes, apenas um terço eram de Bittar. O resto foi retirado de outras verbas, dos quais R$ 3,2 bilhões de reais em outros tipos de emendas parlamentares.
Desse total, R$ 1,8 bilhão ia atender às emendas de bancadas estaduais, definidas em conjunto por deputados e senadores. Os estados que mais sofreram reduções foram o Amazonas (R$ 216 milhões), Piauí (R$170 milhões) e Goiás (R$ 159 milhões), segundo levantamento do Instituto Nacional de Orçamento Público (Inop) a pedido da coluna.
Outro R$ 1,4 bilhão era destinado às emendas de comissão, que são escolhidas por 16 parlamentares encarregados de distribuir os gastos de acordo com a área de atuação de cada ministério, como as da educação, da segurança pública e da saúde. Entre o envio do Orçamento para o Congresso e a versão sancionada pelo presidente, os recursos para essas emendas simplesmente desapareceram.
Delas, um terço tinha sido reservado para despesas do Ministério de Desenvolvimento Regional, o mais afetado pela tesoura de Guedes e comandado por seu ri val Rogério Marinho. Outros cortes aconteceram no Ministério da Saúde (R$ 216 milhões), Educação (R$ 325 milhões) e o da Defesa (R$ 153 milhões).
Com esse movimento, o ministério da Economia, que estava em atrito sobre os cortes com os chamados ministros políticos do governo, com o presidente da Câmara, Arthur Lira, e com o relator Márcio Bittar, agora comprou briga com dezenas de parlamentares - todos envolvidos na elaboração dessas emendas.
“Parece que Guedes foi buscar novos adversários”, afirma Renato Melo, diretor do Inop. “O governo jogou no lixo 16 relatórios setoriais do Orçamento, feitos a partir de acordos no Legislativo. E cometeu o absurdo de cortar emendas que não eram objeto de insatisfação do Ministério da Economia. Assim, o ministro arrumou novos inimigos, que não tinham nada a ver com a manobra do relator e foram punidos mesmo assim”.
A justificativa do Ministério da Economia para o corte de emendas que seriam destinadas à Covid-19, por exemplo, é a de que elas serão substituídas por gastos do próprio governo, distribuídos ao longo do ano e sem as travas do teto de gastos porque, na semana passada, o governo conseguiu aprovar outro projeto de lei excepcionalizando as despesas com a pandemia das regras fiscais.
Melo diz, porém, que não são gastos equivalentes. As emendas seguem a lógica política, visam a atender aliados de deputados e senadores nos estados, enquanto os gastos do governo seguirão as regras e as prioridades do Ministério da Saúde.
Por isso, desde sexta-feira, vários parlamentares estão analisando se derrubam ou não parte dos cortes, feitos por meio de vetos do presidente Jair Bolsonaro. Conforme o tamanho e a agressividade da reação, a estratégia de Guedes pode estar arruinada.
Não apenas por causa dos 3,2 bilhões – parte até pequena perto dos 29,8 bilhões cortados do Orçamento –, mas porque o governo também precisa do apoio dos Congressistas para concluir a segunda parte da manobra programada pelo Ministério da Economia para consertar o "orçamento inexequível" que o governo recebeu do Congresso.
Na primeira parte, a dos vetos, o governo diz onde vai cortar despesas. Na segunda, que tem de ser feita por projeto de lei, o governo indica como vai remanejar as emendas. Esse projeto foi enviado ao Congresso na última quinta-feira, junto com os vetos, e tem de ser aprovado por maioria simples para passar a vigorar. Para isso, o governo vai precisar dos líderes partidários que viram suas verbas cortadas sem aviso ou negociação.
Essa etapa do "conserto" do Orçamento é crucial para o presidente da República. Sem o remanejamento de verbas, o presidente continuará sob o risco de vir a responder a um processo por crime de responsabilidade.
Isso porque o impasse começou quando Bittar, o relator, incluiu R$ 29 bilhões em emendas sob sua responsabilidade, que atendiam aos caciques partidários, mas para isso cortou despesas obrigatórias com a Previdência Social. Ao receber o texto, Bolsonaro tinha duas opções: ou vetava tudo, provocando o Congresso, ou mantinha como estava, correndo o risco de sofrer um processo de impeachment por crime de responsabilidade.
O risco de impeachment passou a ser o principal argumento de Paulo Guedes para convencer Bolsonaro a vetar o Orçamento. O movimento provocou uma batalha dentro do governo: de um lado, Guedes querendo cortar tudo. De outro, líderes do Congresso e os chamados "ministros políticos", defendendo a manutenção das emendas.
Esses últimos diziam que as despesas foram incluídas no texto em razão de um acordo feito com o próprio Guedes, no início de março, mas o ministro da Economia argumentava que ele tinha concordado em acomodar emendas de R$ 16 bilhões e não os quase R$ 30 bilhões.
Com a sanção do Orçamento já recortado, ficou evidente que Paulo Guedes preferiu distribuir os danos em outras pastas, como a da Educação, e grupos políticos, como o baixo clero do Congresso. Dessa forma, ele pode até ter conseguido adiar o enfrentamento com os líderes partidários. Mas não conseguirá evitar uma batalha com o Congresso logo mais.
Alex Ribeiro: BC trava batalha para controlar expectativas
Projeções de inflação do mercado superam a meta do ano que vem
As expectativas de inflação para 2022, principal alvo da política monetária, subiram a 3,6% na última semana, sofrendo o seu primeiro descolamento expressivo em relação à meta do ano, de 3,5%. Como o Banco Central deve reagir?
Aparentemente, não foi uma alta isolada das expectativas de inflação. Outros indicadores antecedentes sinalizam que, nos próximos dias e semanas, as projeções do mercado tendem a subir um pouco mais. A média das estimativas dos analistas privados já chegou a 3,64%, um indicador de que a distribuição das expectativas dos analistas pende para valores acima da mediana, de 3,6%.
A dinâmica também parece desfavorável. A mediana das expectativas dos analistas que atualizaram as suas projeções de inflação nos últimos cinco dias já se encontrava em 3,67%. Ou seja, quem renovou as suas estimativas mais recentemente já está prevendo inflação ainda maior para o ano que vem.
A alta das expectativas preocupa, por várias razões. Uma delas é que sinaliza o quanto da alta recente da inflação, causada sobretudo por preços de alimentos, energia e produtos industriais, é temporária ou permanente. Uma ala dos analistas diz que esses são choques de oferta passageiros, aos quais o Banco Central não deve reagir com muito vigor. Outros dizem que há o risco de esses choques se perpetuarem, contaminando outros preços da economia.
O principal motivo de preocupação, porém, é que a alta da expectativa de inflação significa um certo descrédito dos analistas do mercado de que o Banco Central vai se empenhar suficientemente para entregar a meta de inflação no ano que vem.
Na teoria, o BC tem todos os instrumentos à disposição para fazer a inflação ficar dentro do objetivo em 2022. Altas de juros feitas agora atingem o seu efeito máximo nos índices de preços justamente no próximo ano-calendário. Se o mercado realmente acreditasse que o Banco Central vai fazer o que for preciso para cumprir o seu mandato, não iria prever inflação acima da meta.
Então o Banco Central deve ser mais duro com os juros simplesmente porque as expectativas de inflação subiram? Na teoria, não é tão automático. A meta do BC é a inflação, e não as expectativas de inflação. As projeções de inflação do mercado importam para a política monetária apenas na medida em que influenciam as projeções de inflação do BC e o balanço de riscos para a inflação.
Um exame do histórico das expectativas de inflação mostra que não é incomum as expectativas se descolarem um pouco da meta do ano seguinte. Na verdade, essa é mais a regra do que a exceção. Em abril de 2020, por exemplo, o mercado projetava uma inflação de 3,4% para 2021, abaixo da meta, que é de 3,75%. O Banco Central baixou os juros nos meses seguintes, mas foi mais devagar do que muitos queriam e resistiu aos apelos de economistas para levá-los a zero. Acabou adotando o “forward guidance”, que é a promessa de não subir os juros mesmo em situações em que normalmente subiria.
Em abril de 2019, a projeção de inflação para o ano seguinte, 2020, estava exatamente na meta, de 4%. Esse é um evento muito raro, que só havia acontecido dez anos antes, em 2009. De 2010 a 2016, ficou sistematicamente acima da meta, no período da grande desancoragem das expectativas. O mercado considerava o então presidente do BC, Alexandre Tombini, tolerante com a inflação e achava que a presidente Dilma Rousseff interferia nas decisões de política monetária.
Em 2017 e 2018, a situação foi inversa, e as projeções estavam abaixo da meta de inflação - embora com uma distância não tão grande. Setores do mercado entendia que o então presidente do BC, Ilan Goldfajn, tinha um comportamento assimétrico, combatendo com mais vigor a inflação acima da meta do que abaixo dela.
E agora, qual é a explicação para as expectativas de inflação estarem acima da meta? Há vários determinantes para as expectativas de inflação de curto prazo, como a taxa de câmbio, o preço das commodities e o nível de ociosidade da economia. Mas, para um prazo tão longo quanto 2022, o que importa mesmo é a postura da política monetária e, em menor grau, a situação fiscal do país.
Quando há dúvida sobre a capacidade de o governo colocar as contas públicas em ordem, o mercado começa a achar que o Banco Central terá que manter os juros baixos para reduzir os encargos da dívida pública. As expectativas de inflação podem sair fora da meta porque o mercado acha que o Banco Central não vai manipular os juros para controlar a inflação.
Hoje, o Banco Central é independente e quase ninguém acha que seus dirigentes sejam lenientes com a inflação. Mas muitos analistas acham que o Comitê de Política Monetária (Copom) se comprometeu demais, no comunicado e na ata da sua última reunião, com um cenário de normalização parcial de juros, ou seja, que não retiraria completamente os estímulos monetários à economia.
O BC já procurou corrigir esse erro na comunicação - o seu presidente, Roberto Campos Neto, disse que o cenário central contempla uma normalização parcial dos juros, mas ressaltou que não há nada escrito na pedra. “O único compromisso que o BC tem, é bom reforçar, é perseguir o centro da meta de inflação no horizonte relevante”, disse o diretor de Política Monetária do BC, Bruno Serra Fernandes. “Ajuste parcial não é compromisso.”
As declarações mais incisivas dos dirigentes do BC, porém, não foram suficientes para impedir a alta das expectativas de inflação. Economistas de mercado esperam que, na reunião da semana que vem, o Copom reformule a sua comunicação.
Pouquíssimos esperam que o Copom aperte o passo da alta de juros, já que o comitê sinalizou de forma bastante explícita que precisaria uma mudança muito grande de cenário para subir os juros mais do que o 0,75 ponto percentual prometido. Campos Neto se comprometeu a avisar antes se o cenário tiver mudado tanto. Mas é provável que a sinalização de alta parcial de juros seja temperada com o compromisso de fazer o que for necessário para cumprir a meta.
Bruno Carazza: Às cegas
Sem conhecer seus cidadãos, governo se perde na pandemia
A Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) destinada a investigar ações e omissões do governo federal no enfrentamento da pandemia inicia seus trabalhos nesta semana e assim o espetáculo da política se arma, com a plateia, dividida, pronta para acompanhar cada lance com balde de pipoca e refrigerante.
Apurar responsabilidades diante da maior tragédia social da história brasileira recente, com quase 400 mil mortos até o momento, sem dúvida é necessário - e mais do que isso, é algo que se faz urgente há tempos. Mas apenas isto não basta.
Seguindo o roteiro de outras CPIs do passado, preparem o F5 de seus teclados para atualizar, em curtos espaços de tempo, as notícias em tempo real dos depoimentos, denúncias e manobras de ambos os lados da política buscando incriminar ou isentar o presidente da República pelo colapso na saúde.
Independentemente do veredito final da CPI - isso se ela vier a chegar a algum desfecho, visto que a maioria das investigações morre sem qualquer conclusão -, é muito provável que continuaremos sem discutir as causas estruturais de nosso fracasso e as lições que podemos extrair desta crise.
A chegada ao Brasil do novo coronavírus expôs de modo flagrante muitas das nossas fragilidades. Do desequilíbrio fiscal que reduziu a margem de manobra para políticas de resgate social e econômico à distribuição irregular de leitos de UTI ao longo do território nacional, a pandemia demonstrou que as falhas do governo atual apenas agravaram problemas que são crônicos no Estado brasileiro.
Na polêmica conversa com o senador Kajuru, Bolsonaro pedia sua ajuda para “fazer do limão uma limonada”. Na lógica do inquilino atual do Palácio do Alvorada, a frase significava usar a CPI atual para se blindar e, ainda por cima, colocar na mira ministros do STF e governadores e prefeitos que lhe desagradam.
Além da apuração dos responsáveis pela CPI, a verdadeira limonada a ser extraída diante de centenas de milhares de vidas e milhões de empregos perdidos é corrigir as deficiências que nos empurraram ainda mais fundo no precipício atual.
Das múltiplas dimensões que precisam ser estudadas, em “homenagem” à recente decisão governamental de sepultar de vez a realização do Censo em 2021, direcionarei aqui o foco para a questão do uso de dados e da tecnologia para obter resultados melhores nas políticas públicas.
Há poucos dias o Ministério da Saúde informou que em torno de 1,5 milhão de pessoas ainda não apareceu para tomar a segunda dose de vacinação. Dezenas de estudos de economia comportamental realizados mundo afora demonstram que a taxa de comparecimento cresce de maneira significativa caso o cidadão receba uma cutucada (“nudge”) por ligação telefônica ou mensagem de texto lembrando-o de retornar ao posto de saúde na data certa.
Essa alternativa simples, barata e altamente eficaz poderia estar sendo adotada em massa em todo o país caso o SUS dispusesse de um prontuário médico digital abrangente e atualizado de toda a população - mas isso não existe em escala nacional.
No caso do sistema de transportes urbanos (um dos principais vetores de contaminação das pessoas mais pobres), estratégias de ação podem ser traçadas com a utilização de dados do fluxo de passageiros, frequência ao longo do dia e itinerários. Essas informações estão disponíveis para a maioria das prefeituras das grandes cidades brasileiras, pois são utilizadas para a auditagem e cálculo de reajuste de tarifas das empresas de ônibus. Com uma articulação com o empresariado, soluções podem ser construídas para minimizar o sofrimento de milhões de pessoas mesmo após a pandemia.
Outra dimensão que não podemos deixar passar em branco é a falência do sistema público de ensino no país. Passado mais de um ano do início da pandemia - com a omissão injustificável dos ministérios da Educação, das Comunicações, da Cidadania, da Ciência e Tecnologia e de todas as demais pastas que deveriam coordenar uma resposta à situação - a maioria das secretarias estaduais e municipais não foram capazes de utilizar e fornecer respostas tecnológicas para diminuir o abismo entre os alunos mais pobres e seus semelhantes mais ricos que frequentam o sistema privado.
Para não ficar só no que deveria ou poderia ter sido feito, vai aqui um exemplo concreto de como o governo pode explorar o potencial revolucionário da tecnologia em benefício dos brasileiros.
Na terça-feira eu fazia uma caminhada pelas ruas da Savassi, em Belo Horizonte, quando fui parado por um vendedor de balas, que me pedia ajuda para comprar comida. Respondi com o tradicional “me desculpe, mas estou sem carteira” (o que naquele dia era a mais pura verdade, pois eu só tinha o celular e um cartão de crédito no bolso da bermuda). Ele, porém, me respondeu: “Você pode me pagar com Pix”.
Implantado pelo Banco Central em novembro de 2020, o novo sistema de pagamentos instantâneo contava, em março passado (último dado disponível), com 75,6 milhões de pessoas físicas e 5 milhões de empresas cadastradas. Naquele mês circularam pelo Pix R$ 101,8 bilhões de pessoa para pessoa, R$ 85,7 bilhões entre empresas, R$ 28,4 bilhões de empresas para indivíduos e R$ 21,5 bilhões no sentido contrário.
O sucesso do Pix, que em poucos meses se popularizou e chegou até mesmo às camadas mais pobres de nossa população, não vem por acaso. Essa inovação foi desenvolvida cuidadosamente pelos técnicos do Banco Central ao longo dos últimos anos, com todos os seus aspectos tecnológicos e regulatórios discutidos amplamente com o sistema financeiro, não sendo interrompido pelas eleições ou pela troca de comanda na instituição.
Trata-se, infelizmente, de um ponto fora da curva. Basta lembrar que, após o lançamento da primeira etapa do auxílio-emergencial, o ministro da Economia se surpreendeu com os quase 40 milhões de “invisíveis” que teriam sido descobertos pela equipe econômica.
Com a decisão de não realizar o Censo Demográfico neste ano, Paulo Guedes reafirma que o governo brasileiro prefere continuar conduzindo o país às cegas.
*Bruno Carazza é mestre em economia, doutor em direito e autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro”.
Ruy Castro: Nosso destino é a estupidez
Em 1964, o Brasil ficou impossível para Celso Furtado - que os outros países, agradecidos, acolheram
Um mês e meio depois do golpe militar de 1º de abril de 1964, o economista Celso Furtado teve de deixar o Brasil. Seu nome estava na primeira leva de brasileiros com os direitos políticos e civis cassados. De uma lista aberta pelo presidente deposto João Goulart e pelo deputado Leonel Brizola, Celso era já o 26º. Entre os motivos para isto estavam sua passagem pela Cepal (Comissão Econômica para a América Latina), a criação e presidência da Sudene (Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste) e ter sido o primeiro ministro do Planejamento do país. No Brasil dos generais, o ex-pracinha Celso Furtado não podia ser deixado à solta. Estava com 43 anos.
Seu primeiro destino foi Santiago do Chile. Mas não passou muito tempo por lá. Tinha convites de três universidades americanas para lecionar economia: Harvard, Columbia e Yale. Escolheu Yale, onde ficou de setembro daquele ano a junho de 1965, e só saiu porque o governo brasileiro pressionou a congregação para não renovar seu contrato. Foi para Paris, contratado pela pós-graduação da Sorbonne, em ato assinado pelo presidente De Gaulle, para ensinar economia do desenvolvimento.
Somente em 1968 teve 15 convites para ser paraninfo de turma.Em 20 anos de Sorbonne, Celso formou futuros presidentes da República e ministros de Estado, publicou livros e trabalhos, falou para governos e privou com potestades como Bertrand Russell, Jean-Paul Sartre, James Baldwin, Theodor Adorno, Herbert Marcuse, Octavio Paz, Jürgen Habermas —alguns, seus amigos.As cartas que mostram essa extraordinária trajetória estão no livro recém-lançado “Celso Furtado - Correspondência Intelectual 1949-2004”, organizado por Rosa Freire d’Aguiar.
Os militares o condenaram a levar seu conhecimento a plateias alheias ao seu coração. O que o Brasil dispensou, o mundo, agradecido, acolheu. Nosso destino é a estupidez —vide hoje.
Celso Rocha de Barros: Quantos dos aliados de Bolsonaro nas polícias são gente como Adriano da Nóbrega?
Investigação sobre 'o homem da casa de vidro' deve prosseguir com o máximo de cuidado
O site de notícias The Intercept Brasil teve acesso a um relatório da Subsecretaria de Inteligência da Polícia Civil do Rio de Janeiro em que são apresentados os resultados da quebra de sigilo telefônico do miliciano Adriano da Nóbrega, chefe da milícia Escritório do Crime, acusada pelo assassinato da vereadora Marielle Franco.
No relatório, pessoas próximas a Adriano fazem referências a contatos com pessoas identificadas pelos investigadores como “Jair”, “O Cara da Casa de Vidro” e “HNI (PRESIDENTE)”, ocorridos logo após a morte do miliciano. Membros do Ministério Público ouvidos em off pelo Intercept suspeitam que se trata do presidente da República, Jair Bolsonaro.
A proximidade do presidente da República com o Adriano da Nóbrega é bem documentada. O miliciano foi homenageado por Jair Bolsonaro e por seu filho, o senador Flávio Bolsonaro, em várias ocasiões. A irmã e a mãe de Nóbrega eram funcionárias do gabinete do filho do presidente da República e são suspeitas de terem participado do esquema criminoso de repartição de verbas conhecido como “rachadinha”.
A hipótese de que Bolsonaro seria “o homem da casa de vidro” (que, se confirmada a suspeita, seria o Palácio da Alvorada) é plausível por outro motivo: logo depois das interceptações, o Ministério Público ordenou a suspensão do grampo. Os MPs estaduais não podem investigar o presidente da República. Se o nome de Jair Bolsonaro aparecer em uma investigação, ela deve ser interrompida e remetida à Procuradoria-Geral da República.
É obviamente possível que “Jair” seja outro Jair que não o Bolsonaro, que o “homem” more em uma casa de vidro que não seja o Palácio da Alvorada, ou que, forçando um pouco a barra, “HNI (Presidente)” seja outro “homem não identificado” (HNI), amigo de Adriano da Nóbrega que fosse presidente de alguma outra coisa que não a República.
É preciso prosseguir na investigação com o máximo de cuidado, responsabilidade e transparência, preservando todo o benefício da dúvida em favor de Bolsonaro.
Por outro lado, se logo no começo da investigação da Odebrecht tivesse aparecido uma transferência bancária para um sujeito identificado como “Presidente”, Lula teria sido preso como suspeito em cinco minutos.
A proximidade de Bolsonaro com milicianos não é só um problema gravíssimo do passado do presidente. Há gente razoável que teme que, à medida em que perde apoio nas Forças Armadas, Bolsonaro passe a incentivar a radicalização das polícias.
Eu gostaria de saber se há, entre os aliados atuais de Bolsonaro na polícia, mais gente como o ex-PM Adriano da Nóbrega.
Aqui você pode dizer: não seria o caso de centrar nossa atenção nos crimes cometidos por Bolsonaro durante a pandemia, crimes muito maiores, muito mais documentados, flagrantes?
São duas investigações paralelas. Nada impede que as duas sejam conduzidas simultaneamente, por autoridades diferentes. No momento, a prioridade é a CPI dos 400 mil mortos, que, se trabalhar direito, colocará o presidente da República na cadeia.
Mas a Vaza Jato, última grande denúncia do pessoal do Intercept Brasil, também demorou algum tempo até gerar desdobramentos jurídicos importantes. Dependendo de como a política se mova, desta vez pode acontecer a mesma coisa.
Luiz Carlos Trabuco Cappi: Mais dificuldades, mais diálogo
Uma surpresa a cada esquina barra investimentos e trava negócios
A economia brasileira é caracterizada por contrastes. Nas últimas semanas, esse paradoxo histórico ficou mais uma vez evidenciado. Por meio de 16 ofertas iniciais de ações, os IPOs, e títulos emitidos, empresas brasileiras captaram R$ 102 bilhões no primeiro trimestre, melhor resultado em mais de dez anos.
Atenta aos efeitos positivos do pacote trilionário de estímulos dos EUA e da retomada chinesa, a Bolsa recuperou perdas e alcançou o patamar de 120 mil pontos.
Em reforço a essa tendência, um novo ‘boom’ global das commodities beneficia o Brasil. O Banco Central projeta, em razão da alta na demanda e nos preços, superávit de US$ 2 bilhões nas contas externas em 2021, o que vai deixar o balanço de pagamentos do Brasil no azul.
Os agentes econômicos têm dados concretos para se sentirem otimistas.
Do lado do governo, o primeiro leilão do ano para concessões de aeroportos, estradas e ferrovias, a Infra Week, teve todos os seus 28 lotes arrematados. Na política monetária, inicia-se um ciclo de normalização, o que aponta para menos volatilidade dos ativos e redução da curva longa dos juros.
Esse é o caminho virtuoso. São tendências com valor estratégico, que apontam para o horizonte muito além da pandemia e das eleições de 2022.
No outro prato da balança, os dados negativos mostram o peso do desequilíbrio. O País é um dos líderes mundiais de óbitos pela covid-19. Deixamos a nona posição dos maiores PIBs do planeta para ocuparmos agora o 12.º lugar. No período de um ano, o real foi uma das quatro moedas que se desvalorizaram frente ao dólar, entre 31 pesquisadas pela FGV Ibre. O desemprego sobe, e a renda per capita caiu 4,8% em 2020.
Esse contraste é um fenômeno antigo da economia brasileira, muitas dificuldades imediatas e vantagens estratégicas que ancoram o otimismo de longo prazo e mitigam o pessimismo do presente.
Convivem um lado exuberante e desenvolvido com outro cercado pelas dificuldades. Sabemos crescer rápido. O que falta é equilibrar as desigualdades.
A forma de fazer convergir essas duas faces é o diálogo entre as instituições, insistir no convencimento. Antes de a pandemia da covid-19 atingir em cheio os indicadores econômicos e sociais, conseguimos avanços consistentes por meio do entendimento. Praticamente por consenso, o Congresso aprovou a reforma previdenciária.
O resultado, ao contrário do que professavam os céticos, não destruiu nosso sistema de proteção social, mas o modernizou e dinamizou. Quando mais reformas estruturantes eram ensaiadas, o vírus se espalhou pelo mundo e não parou mais. Agora, diante da dramaticidade do quadro atual, as urgências são outras, mas as soluções prosseguem assentadas nos pilares do diálogo, do respeito e da colaboração. Ouvir mais. Refletir mais.
É por meio da negociação política que, desde 1988, a partir da atual Constituição, o Brasil tem conseguido melhorar a qualidade de vida da sua população, o ambiente de negócios e a confiança nas instituições.
Dialogar passou a ser a forma de arte política mais elevada. Toda conduta no conceito do “quanto pior, melhor” nos fará fracassar como Nação. Quanto maiores as dificuldades, mais necessário intensificar a busca de convergências. Não podemos nos furtar a conversar com quem pensa diferente de nós.
Para que o debate avance, nada é mais importante, hoje, do que atender às necessidades básicas da população. Ou seja, alimentação, insumos hospitalares, vacina e emprego. Fora dessa agenda, até mesmo as reformas podem ter seu timing redefinido.
Sem baixar a temperatura institucional e política, dançamos à beira do abismo. A agenda básica começa pela busca da serenidade entre os protagonistas dos Três Poderes. Uma surpresa a cada esquina barra investimentos e afeta os negócios, assusta. É preciso tranquilidade e previsibilidade para atrair capital. Um pouco de paciência evita impasses desnecessários.
É hora de insistir na tempestividade e na resiliência.
*PRESIDENTE DO CONSELHO DE ADMINISTRAÇÃO DO BRADESCO. ESCREVE A CADA DUAS SEMANAS
Marcus André Melo: Por que o STF está na berlinda?
O momento em que mais precisamos da Corte, é quando ela enfrenta os maiores ataques
“Por que eu vou ser o único presidente da Argentina a não ter a sua própria Corte?”
Foi assim que Carlos Menem (1930-2021) justificou sua iniciativa de criar uma maioria na Suprema Corte argentina. O caso ilustra um paradoxo já identificado na literatura: um Judiciário independente é difícil de emergir nos contextos em que se faz mais necessário; e fácil de se consolidar onde ele não importa.
Nas democracias maduras, como a Inglaterra, a Suprema Corte não importa muito. Tanto que uma só foi criada no país em 2009. Há um equilíbrio institucional robusto que dispensa não só sua existência mas também a adoção de uma constituição escrita.
Em regimes autoritários, as cortes importam pouco porque neles elas são facilmente manipuláveis. O efeito é não linear: elas importam muito nos casos intermediários. É nos casos de mudança de regime ou alternância de poder entre forças políticas díspares que o Judiciário adquire centralidade política. Nas democracias estabelecidas isso só ocorre em situações muito raras (EUA sob Trump). Estou tratando aqui de centralidade política; não protagonismo em questões morais e comportamentais.
No caso do STF, sua centralidade política alcançou contornos sem paralelo em democracias. Seu hiperprotagonismo é magnificado por três fatores: seu papel como corte criminal em contexto em que ocorreu um dos maiores casos de corrupção já registrados e que atinge uma massa inédita de agentes políticos, inclusive três presidentes da República; a contenção que exerce em relação a um Executivo autoritário e populista, cujo discurso é abertamente antidemocrático; e pela elevada heterogeneidade política —que é produto da alternância— e modus operandi individualizado.
Este último se expressa no ativismo processual e produz intensa cacofonia. O individualismo é insidioso: os casos controversos em que a corte atuou de ofício, sem ser provocado (caso da Revista Crusoé), o leitmotif que deflagrou o processo foi o envolvimento de um membro do próprio Supremo nas denúncias.
E o que é muito mais grave: motivações individuais ligadas à Receita Federal e a Lava Jato parecem explicar a alteração de voto e a reviravolta ocorrida no julgamento de Lula.
Inicialmente restrito à esquerda, a ofensiva à Corte concentra-se recentemente no bolsonarismo. Como mostrou Gretchen Helmke, em análise de 472 casos na América Latina, há expressiva correlação negativa entre ataques às Supremas Cortes (impedimento de juízes, CPIs, intervenções etc) e a avaliação que desfrutam junto à opinião pública.
O momento em que mais precisamos da Corte, é quando ela enfrenta os maiores ataques. E seu maior desafio.
*Professor da Universidade Federal de Pernambuco e ex-professor visitante do MIT e da Universidade Yale (EUA)
Bruno Paes Manso: 'Os Bolsonaro sempre foram os representantes ideológicos dos grupos milicianos'
Autor do livro ‘A República das milícias’, Bruno Paes Manso traça as origens dos esquadrões da morte até a reverberação no Palácio do Planalto. Obra traça importância de Fabrício Queiroz para consolidar votações de clã presidencial em bairros cariocas
Gil Alessi, El País
Um terremoto silencioso começou no bairro de Rio das Pedras, localizado nas franjas da floresta da Tijuca, no Rio de Janeiro, na virada para os anos 2000. Aos poucos, suas ondas sísmicas se espalharam por comunidades da baixada fluminense, da zona oeste, chegando até mesmo à Assembleia Legislativa e ao Tribunal de Contas do Estado. Os tremores tiveram reflexos também em Brasília. Foi naquela comunidade pobre de ruas estreitas e trânsito caótico —onde posteriormente Fabrício Queiroz, pivô do escândalos dos Bolsonaro, iria se refugiar das autoridades— que nasceu uma das primeiras milícias do Rio. “Policiais que moravam na região criaram a milícia de Rio das Pedras, e estabeleceram as regras da economia informal dessas áreas”, escreve o jornalista e pesquisador Bruno Paes Manso em seu livro mais recente, A República das milícias: dos esquadrões da morte à era Bolsonaro (Editora Todavia).
O que se seguiu foi uma expansão vertiginosa deste modelo de governança local, cujas marcas registradas são a cobrança de taxas dos moradores, venda de botijões com sobrepreço, controle sobre o transporte clandestino, loteamento irregular de terrenos e uma forte dose de violência contra quem viola as regras. Manso mostra como o medo da entrada do tráfico de drogas nas comunidades, aliado a uma polícia historicamente violenta, herança do tempo dos esquadrões da morte surgidos nos anos de 1960 e 1970, cimentou o terreno para a expansão das milícias em territórios onde o poder público era inexistente. Afinal, vale o bordão: “O poder não deixa vácuo”. Em momentos de crise política, como agora, as milícias se fortalecem: “Quanto mais desacreditadas as instituições, mais força ganham estes grupos, pois passam a ser fiadores da ordem nos territórios. Se você não tem para onde correr, estes grupos oferecem alguma proteção. E claro, impõe um domínio tirânico.”PUBLICIDADE
O autor também aborda a relação da família Bolsonaro com os grupos milicianos, encabeçada por Fabrício Queiroz, que abriu portas para os jovens candidatos da família nos batalhões de polícia e bairros controlados por milícias. Em comum, a crença na “violência redentora” como salvação para o Rio (e agora para o Brasil). “Os Bolsonaro sempre foram os representantes ideológicos dos grupos milicianos. Eles podem não ter uma ligação direta com os grupos que fazem negócios nestas comunidades, mas sempre fizeram discursos favoráveis a eles”, afirma Manso em entrevista ao EL PAÍS. “Seja o Flávio, que já falou em legalizar as milícias, ou o Jair, dizendo que elas trazem ordem. Então existem afinidades ideológicas, principalmente quanto ao uso da violência como ferramenta para estabelecer ordem nesses lugares”, diz o autor.
No livro fica claro o papel central que Fabrício Queiroz, ex-assessor parlamentar de Flávio, teve para fortalecer o clã Bolsonaro junto a policiais e milicianos. “A articulação do Queiroz facilitou muito a vida dos Bolsonaro que se elegem pelo Rio [Eduardo disputa por São Paulo], principalmente nos primórdios”, explica Manso. Durante um bom tempo, “ele era a pessoa que fazia a ponte da família com a base eleitoral da Polícia Militar, da Polícia Civil, com policiais da zona oeste, e com os familiares dessas pessoas”. O batalhão onde Queiroz atuou, em Jacarepaguá, sempre foi muito ligado aos grupos milicianos, e o assessor circulava com desenvoltura nesse meio, entre paramilitares e militares.
A partir de 2014 Queiroz passa a desempenhar outro papel para a família Bolsonaro. “Quando começa a crise política pós-junho de 2013, com a Operação Lava Jato e tudo o mais, o discurso do Bolsonaro de guerra à corrupção e uso de violência começa a fazer sentido para um grupo maior de pessoas, não mais apenas para o nicho representado por Queiroz”, diz o autor. Neste momento o assessor passa a ser uma “peça burocrática no gabinete, responsável por organizar a rachadinha [o confisco de parte do salário dos funcionários. Flávio e Queiroz foram denunciados pelo crime, que negam ter cometido, e ambos conseguiram importantes vitórias no processo]”. “Mas o grande apelo eleitoral dos Bolsonaro deixa de depender dele”, afirma.
A aliança das milícias com grupos de traficantes evangélicos do Terceiro Comando Puro, que comandam o Complexo de Israel (onde religiões de matriz africana são proibidas), também é abordada no livro, traçando um panorama sombrio para o futuro do Rio de Janeiro, com uma espécie de milícia 2.0. “As milícias estão tentando fazer estas alianças, e a ligação com o tráfico me parece inevitável. É uma fonte de receitas das quais eles não parecem querer abrir mão”, diz Manso. O objetivo final seria alcançar uma hegemonia semelhante à que o Primeiro Comando da Capital tem em São Paulo, onde o grupo criminoso “conseguiu se tornar o governo do mundo do crime, com regras, protocolos e prazos de pagamento determinados pela organização. Eles profissionalizaram essa cena criminosa e se tornaram o Governo onde o Governo não chega”. É cedo para dizer, no entanto, que esta parceria irá se tornar a maior força do crime organizado do Rio: “O Comando Vermelho continua uma força enorme do Rio, com centenas de fuzis e um potencial de violência imenso. Então há um equilíbrio de forças por enquanto”.
No outro front da batalha das milícias pelo poder está a sempre presente necessidade de se infiltrar no Estado —e se tornar parte dele. Após uma primeira geração de líderes que se lançaram na política, como os irmãos Jerominho e Natalino Guimarães, acusados de fundar a milícia Liga da Justiça e que foram presos e destituídos de seus mandatos, agora os chefes paramilitares lançam mão de laranjas para disputar cargos públicos. “A influência destes grupos nas instituições do Estado é fundamental para que eles prosperem. O modelo de negócio das milícias depende disso: para que a milícia amplie seus negócios é preciso que existam pessoas nas estruturas do Estado que assumam esse cinismo, que façam vista grossa”. Ou seja, para que a milícia prospere, basta que o poder público não faça nada.
Para os grupos milicianos, existem oportunidades de ganho em quase todas as atividades comerciais, legais ou ilegais. “Eles se beneficiam de legislações que flexibilizam o monitoramento ambiental, para que possam lotear áreas de proteção, ou de fiscais corruptos, para erguer prédios sem os alvarás, como ocorreu em Muzema [em abril de 2019 dois prédios desabaram em Muzema, na zona oeste do Rio, deixando 24 mortos. As edificações foram erguidas por milicianos]. Sem falar do peso que a influência política exerce em um batalhão de polícia para que faça vista grossa diante de uma série de crimes cometidos”, aponta Manso.
O Globo: Covid-19 - Prioridade da vacinação de quilombolas, de ribeirinhos e de outros grupos é ignorada em nove estados
Estudo mostra ainda que menos de 60% dos indígenas aldeados já receberam a primeira dose e que menos de 4% dos quilombolas foram imunizados
Cíntia Cruz e Julia Noia, O Globo
RIO — Levantamento do GLOBO com base na pesquisa "Planos de vacinação nos estados e capitais do Brasil", do Observatório Direitos Humanos Crise e Covid-19, nove estados não colocaram pelo menos um grupo entre quilombolas, população ribeirinha, em situação de rua e privada de liberdade como prioritários na imunização contra o Sars-CoV-2. Juntos, eles correspondem a mais de 1,7 milhão da população do país e integram pelo menos 6.023 comunidades.
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Os quatro grupos constam como prioritários na última versão do Programa Nacional de Imunizações (PNI), de 15 de março. Entretanto, há falta de transparência quanto ao período em que essas populações devem ir aos postos se vacinar. Com a recente alteração no plano, que adianta a vacinação de forças de segurança e profissionais da educação, a população privada de liberdade e a que está em situação de rua, involuntariamente expostas ao vírus, ficam ainda mais atrás na fila de vacinação.
Os quilombolas não são grupo prioritário em Roraima, Acre e Alagoas. Já ribeirinhos estão fora dos planos do Pará, Rio Grande do Norte, Pernambuco, Santa Catarina, Rio Grande do Sul, Sergipe e Alagoas. A população privada de liberdade não consta como preferencial em Alagoas. Já Pará e Alagoas não colocaram as pessoas em situação de rua como prioridade. Na maioria dos estados do país, esses grupos são prioridade no papel, mas não os planos não informam quando elas serão imunizadas.
O estudo do Observatório Direitos Humanos Crise e Covid-19 mostra ainda que menos de 60% dos indígenas aldeados receberam a primeira dose do imunizante, embora estejam na primeira fase das campanhas em todos os estados. No caso dos povos de comunidades quilombolas, que figuram entre os primeiros a serem vacinados na maior parte dos estados, a estatística é ainda mais alarmante: menos de 4% foram imunizados.
Desigualdade e violência
Responsável pela pesquisa do Observatório Direitos Humanos Crise e Covid-19, Felipe Freitas explica que a carência de vacinação desses grupos reflete a desigualdade e a violência que as populações sofrem, inerentes à história brasileira.
— O Brasil é um país violento, e ainda mais em relação a esses públicos: negros, quilombolas, indígenas, pessoas em situação de rua, ribeirinhos. A gestão da pandemia tem revelado a radicalização desse processo de autorização da morte desses grupos — diz.
Paulo de Paiva, de 61 anos, vive num quintal com nove casas que abrigam 19 adultos e 19 crianças. O terreno fica no quilombo Maria Conga, em Magé, Baixada Fluminense. A imunização dos quilombolas, que seria do dia 12 ao 16 de abril, foi interrompida no dia 15 por falta de doses.
— Estava marcado para o dia 16, mas as doses acabaram. Tenho muito medo de pegar essa doença por causa da minha idade. A comunidade aqui é grande, muitas crianças. As pessoas saem para trabalhar e podem acabar trazendo o vírus — conta Paulo, morador do quilombo há 30 anos.
Aos 74 anos, o bombeiro hidráulico Lourival Ribeiro já poderia ter sido vacinado em seu município, mas preferiu esperar pelas doses destinadas aos quilombolas. Hipertenso, Lourival lamenta a falta do imunizante na comunidade e criticou a organização do poder público:
— Faltou informação de fora para saber o número da população do quilombo. Foi tudo muito rápido. Em três dias, não dá para vacinar um lugar com tantas pessoas.
A presidente da Associação das Comunidades Quilombolas do Estado do Rio de Janeiro (Acquilerj), Ivone Bernardo, diz que os três quilombos no município de Magé têm, ao todo, 1.987 pessoas acima de 18 anos — idade mínima para a população quilombola receber a dose do imunizante. Mas o Ministério da Saúde mandou uma quantidade muito menor:
— As vacinas que estão chegando não estão na quantidade correta e a prefeitura de cada município precisa avisar ao ministério. Mandaram 155 doses de vacinas para Magé, que tem três quilombos certificados. Metade da população do Maria Conga ainda não foi vacinada.
Em nota, a Prefeitura de Magé afirmou o cadastro foi apresentado diretamente pelos quilombos ao estado e que recebeu apenas 155 doses, 7,8% do necessário para imunizar os quilombolas do município.
Biko Rodrigues, coordenador executivo da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq), afirma que o governo federal utilizou dados defasados para calcular a quantidade de doses:
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— O número com o qual o estado brasileiro está trabalhando está muito abaixo do número de famílias quilombolas que existem no país hoje. Ele trabalha com 2 milhões de doses para quilombolas e, pela estimativa da Conaq, esse número é quatro vezes maior, com dados que temos das secretarias estaduais — diz.
Rodrigues explica que o governo se baseou em dados de famílias inscritas no CadÚnico e beneficiárias do Bolsa Família., mas argumenta que há quilombolas que sequer têm registro civil.
— Existem comunidades ainda sem registro, pessoas em território quilombola que ainda não têm certidão de nascimento, que não têm a primeira identidade. Isso são muitos. Trabalhamos com número de sete a dez milhões de pessoas. Por causa da omissão do estado brasileiro, muitas pessoas quilombolas vão ficar sem vacina — avalia.
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Já o presidente do Instituto de Defesa do Direito de Defesa, Hugo Leonardo, afirma que a vulnerabilidade dos grupos privados de liberdade é um dos principais fatores que justifica a prioridade na fila da vacina. Ele lembra que eles não têm condição de realizar o isolamento social e, na maioria das unidades, não tem acesso a equipamentos de proteção, como máscaras e sabonetes.
— Estamos falando de cuidados mínimos para evitar o contágio — afirma.
Na Região Norte, a diretora-executiva da Oficina Escola Lutheria da Amazônia (OELA), Jéssica Gomes, aponta que houve falta de logística na compreensão do movimento das marés na região e a quantidade de doses ofertadas para a população ribeirinha, que vivem ao longo do curso dos rios.
— Desde março, temos novos óbitos de pessoas ribeirinhas que já deveriam ter sido imunizadas — afirma Gomes.
Com a vacinação, a rotina de Alexandre Pankararu, de 46 anos, indígena morador da cidade de Jatobá, no sertão de Pernambuco, é marcada por frustração, isolamento e medo de pegar a doença. É que, por não morar em aldeia, não foi contemplado dentro do grupo prioritário do Programa Nacional de Imunizações. Apesar de morar na zona urbana há dez anos, ele e sua esposa, da aldeia Caiuá, estão construindo uma casa para retornar à vida aldeada em um mês, mas, por não estarem imunizados, sentem-se afastados dos rituais, do cotidiano e da família, já vacinados contra a Covid-19:
— É um puro descaso. Eu acho que faz parte de um plano de genocídio do estado. Se a gente fosse tão afastado, morasse a dois mil quilômetros, mas eu moro a um quilômetro. A gente vive aqui dentro da aldeia, só não dormimos aqui. Por que não podemos solicitar a vacina? Nós (desaldeados) nos sentimos marginalizados. Também não há a sensação de pertencimento porque não podemos participar dos nossos rituais — lamenta Xandão, como é conhecido na aldeia.
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Diante disso, a Associação de Indígenas Não Aldeados Karaxuwanassu, de Pernambuco, enviou, desde o começo da vacinação no estado, ofícios a prefeituras locais, deputados estaduais, organizações voltadas para a causa indígena, para o Ministério da Saúde (MS) e entraram com ação no Ministério Público Federal (MPF) para questionar o motivo de não terem sido incluídos no calendário prioritário de vacinação. Segundo uma liderança da associação, o MS foi questionado no dia 3 de março, mas não responderam à demanda. Eles anda protocolaram duas ações no MPF, nos dias 3 de março e 14 de abril, que foram encaminhadas para investigação na Procuradoria da República de Pernambuco.
No dia 20 de abril, a associação, por meio da Defensoria Pública de Pernambuco, retornou com a demanda feita junto ao Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI) para que o grupo fosse incluído como prioritário. Em resposta, o DSEI encaminhou o pedido ao Ministério da Saúde que, no dia 7 de abril, enviou ofício ao Governo de Pernambuco para especificar a quantidade de indígenas em zonas urbanas por município da federação e, dentro dessa população, quais não teriam acesso ao Sistema Único de Saúde (SUS).
Respostas
A Prefeitura de Magé disse que recebeu uma nota técnica normativa do estado do Rio de Janeiro para realizar a vacinação da comunidade quilombola, que apresentava um público de 140 pessoas no Quilombo do Feital, 597 no Quilombo Kilombá e 1.250 no Quilombo Maria Conga, totalizando 1.987 quilombolas. O cadastro, segundo o município, foi apresentado diretamente dos quilombos ao estado, e a prefeitura recebeu, via nota técnica do governo federal, as informações sobre o público a ser vacinado nos quilombos. Magé recebeu 155 doses, 7,8% das doses necessárias para imunizar os quilombolas do município, informou a prefeitura.
O governo municipal disse ainda que criou um calendário, fez ampla divulgação e criou uma agenda para vacinação em cada espaço dos quilombos, mas que interrompeu a imunização porque as doses destinadas aos idosos, que foram usadas nos quilombolas, não têm previsão de serem repostas, pois houve um conflito de informações em que o Ministério da Saúde aponta uma meta de vacinação do público quilombola de 155 pessoas, com envio de doses somente para essa quantidade. A prefeitura disse que aguarda retorno da Secretaria Estadual de Saúde do Rio de Janeiro afirmando que serão enviadas as doses para os quilombolas.
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O Ministério da Saúde informou que a estimativa inicial para definição do grupo prioritário “Povos e Comunidades tradicionais Quilombolas”, que foi inserido no Plano Nacional de Operacionalização da Vacinação Contra a Covid-19 (PNO), foi realizada de acordo os dados disponíveis pelo IBGE 2010, população de 1.133.106. A pasta ressaltou que o plano é dinâmico e está em constante atualização, e que está revisando o levantamento dos dados relativos a esta população, junto aos estados e municípios.
A Secretaria de Estado de Saúde do Rio de Janeiro informa que não há população ribeirinha no estado e que a população em situação de rua faz parte da 4ª fase de imunizações e serão vacinados assim que as doses destinadas aos grupos desta fase forem distribuídas pelo Ministério da Saúde. Com relação aos povos quilombolas, disse que o PNI prevê 15 mil pessoas desta população a serem vacinadas no estado do Rio. A secretaria ressaltou que parte dos quilombolas foi imunizada nos grupos por faixa etária, de acordo com a base populacional usada pelo PNI. Disse ainda que, se houver subdimensionamento desta população, as doses serão garantidas pelo Ministério da Saúde, a partir de uma comunicação ao PNI.
A Secretaria de Estado da Saúde de Alagoas informa que segue o Plano Nacional de Vacinação contra a Covid-19 e que, em Alagoas, estão contemplados os quilombolas, indígenas, população privada de liberdade (já vacinados e/ou em processo de vacinação), além das populações em situação de rua e ribeirinha, que deverão ter o processo de imunização concluído ou iniciado em outras fases, a partir do envio de novas remessas de imunizantes por parte do Ministério da Saúde.
Sergipe informou que a comunidade ribeirinha está sendo vacinada de acordo com o cronograma de vacinação da população em geral e que, segundo nota técnica do Ministério da Saúde, Sergipe não é contemplado com vacinas direcionadas às comunidades ribeirinhas.
Santa Catarina, Rio Grande do Norte e Pernambuco afirmam que não têm população ribeirinha. A Secretaria de Saúde do Estado de Roraima e o Governo do Acre disseram que não têm comunidades quilombolas.
Os estados de Pará e Rio Grande do Sul não responderam.
*Estagiária sob supervisão de Emiliano Urbim
Irapuã Santana: Uma boneca negra; um sorriso negro
Representatividade e inclusão importam. Esse precisa ser nosso ponto de partida em comum para iniciar um debate que, à primeira vista, parece desimportante, mas é, ao contrário, um planejamento de futuro da maior parcela da população brasileira: a mulher negra. Ela representa algo em torno de 27% de todos os brasileiros, segundo a PNAD do IBGE.
Entretanto o mercado não oferece o mínimo razoável de opções para um nicho das bonecas, que tem gerado bons dividendos para quem nele investe. Em 2018, a linha correspondia a 19,2% do total de faturamento, que chegou em 2019 a mais de R$ 7 bilhões, conforme o último relatório da Abrinq.
Com um cenário tão favorável, a lógica seria haver uma seção específica para bonecas negras, atendendo a esse mercado consumidor. Todavia elas correspondem a somente 6% da totalidade das fabricadas e 9% das comercializadas em lojas on-line, de acordo com a ONG Avante, que elaborou um relatório sobre essa triste realidade das meninas negras brasileiras.
Ao entrar numa loja de brinquedos, a criança, que precisa de um referencial para construir sua autoimagem, não tem acesso ao mínimo. Dentro de uma perspectiva psicológica, a mudança ocorrida a partir do contato com um brinquedo parecido consigo mostra a oportunidade de sonhar mais concretamente, gera uma sensação de pertencimento, que traz efeitos de maior segurança para desenvolver suas potencialidades no futuro.
Infelizmente, o Brasil revela a cruel exclusão do negro, desde o início da vida, com a ausência de opções. Se não somos vistos nos lugares, evidencia-se que esses espaços não são para nós.
Mas, se tem mercado consumidor e demanda, qual a justificativa racional para tamanho desperdício de oportunidade?
Por isso, é importante buscar diversidade na oferta, tendo em vista que nossas crianças querem ser vistas, ouvidas e incluídas na sociedade como um todo. Mas é necessário ir além: não basta colocar qualquer boneca, com qualquer história por trás. O imprescindível é levar boas referências para as meninas negras, com princesas e heroínas, médicas e engenheiras, advogadas e juízas...
Mas, para que isso ocorra, é relevante também estar atento para não impedir o acesso dos mais pobres a esse tipo de bem. Uma rápida pesquisa em sites de lojas de brinquedo apresenta um fenômeno perverso relativamente ao preço das bonecas negras, que acaba sendo elevado significativamente, em comparação com as brancas, pelo fato de serem raridade nas prateleiras.
Felizmente, a própria comunidade negra, ciente de suas necessidades, vem trabalhando no sentido de valorizar a produção e a comercialização do brinquedo voltado para um público tão grande quanto especial. Isso já foi sentido pelas grandes marcas, que também abriram espaço a novas personagens e a novas linhas de atuação.
Portanto, devemos fortalecer tais iniciativas e fazer com que elas possam crescer e florescer, levando o encanto dos sonhos, fazendo nascer sorrisos genuínos nos rostos de nossas lindas meninas negras.
Patricia Hill Collins: 'Se eu olhasse só o debate nas redes sociais, sairia correndo'
Em 'Interseccionalidade', intelectual americana aponta o diálogo como ferramenta imprescindível para a justiça social
Denise Mota, Folha de S. Paulo
Sair da lógica da destruição do oponente, aprender a ouvir e buscar pontos de encontro possíveis —a reabilitação crítica e atenta do “conversando a gente se entende” (um processo sem dúvida mais lento e menos apetitoso para as redes sociais)— são algumas das ações propostas por Patricia Hill Collins e Sirma Bilge em “Interseccionalidade”, livro que chega ao Brasil, em português.
A partir de suas experiências de vida, ensino e pesquisa —convergentes, mas diferentes— Hill Collins, professora emérita do departamento de sociologia da Universidade de Maryland, nos Estados Unidos, e Bilge, professora catedrática no departamento de sociologia da Universidade de Montreal, apresentam os frutos intelectuais do exercício-desafio que se impuseram.
“A execução deste livro implicava trabalhar em meio às diferenças. Logo descobrimos que dialogar é um trabalho árduo”, escreve Hill Collins já no prefácio.
As autoras defendem o diálogo como ferramenta imprescindível para a luta por justiça social e fazem dessa escrita conjunta, portanto, um metalivro. Não só trata da necessidade de contemplar a confluência de realidades para a compreensão do mundo contemporâneo, mas também põe em prática o que apresenta na teoria, em um “convite para adentrar as complexidades da interseccionalidade”, como afirmam.
Das redes sociais à gestão Biden, do pensamento feminista negro brasileiro ao surgimento de novas denominações usadas pelas chamadas minorias nos Estados Unidos, Hill Collins —primeira negra a presidir a Associação Americana de Sociologia e uma das mais influentes pesquisadoras do feminismo negro em seu país— deu a seguinte entrevista.
'Interseccionalidade' hoje é dos conceitos mais usados para tentar explicar as várias dimensões da experiência humana. Foi banalizado ou sua popularidade é o que lhe dá maior riqueza? Vejo os dois. O crescente uso da interseccionalidade por pessoas envolvidas em projetos de justiça social é positivo. O termo começou a ser usado nos anos 1990, mas suas ideias têm uma história mais longa. É algo poderoso que une múltiplos projetos de justiça social, especialmente –mas não exclusivamente– os de justiça racial, de gênero, econômica, sexual e ambiental.
Cada um desses projetos usa a interseccionalidade para abastecer suas análises e ações. Nosso atual momento de descolonização global e dessegregação ofereceu oportunidades sem precedentes para que esses projetos considerem como estão inter-relacionados. O poder da ideia de interseccionalidade reside no seu potencial de gerar novas questões, conhecimentos e práticas que impulsionam muitas pessoas para a justiça social.
Ironicamente, a crescente visibilidade e a aparente popularidade desse termo fazem com que surjam novas preocupações. Muitos o usam como substituto para outras palavras como diversidade, equidade e justiça social. A tendência a mencionar interseccionalidade na imprensa de massa ou nas redes sociais sem que se saiba muito sobre o tema em si tanto pode banalizar a riqueza das ideias como reduzir o potencial político desse termo.
Às vezes, com uma compreensão escassa, seja da história da interseccionalidade ou de suas ideias e práticas centrais, essa estratégia permite às pessoas usar a palavra como atalho para propagar argumentos pré-concebidos, e a política pode se encher de usos desse tipo. Entre a direita, a interseccionalidade termina varrida no meio de debates acalorados que condenam movimentos sociais. Entre a esquerda, essa concepção-atalho apresenta uma frente unida idealizada, mais imaginária do que real. A interseccionalidade é bem mais complexa do que esses usos que fazem dela.
No livro, a sra. e Sirma Bilge reforçam a ideia de que, mais do que apontar verdades ou certezas, é um convite a ouvir e dialogar. Se pensarmos no debate atual –especialmente o das redes sociais–, recomendar a escuta é quase revolucionário, contracultural. Se eu só olhasse para o que acontece no debate público nas redes sociais, nos meios de comunicação de massa e na cultura popular nos Estados Unidos, sairia correndo.
O espírito de competição que estimula debates de confrontação cria um clima de vencedores e perdedores em que, em sua pior vertente, os vencedores triunfam ao destruir seus rivais. Debates baseados no confronto divertem, e essa é uma das razões para que sejam tão populares, em transmissões esportivas, programas de culinária, torneios de cachorros.
Quando combinadas com o anonimato das redes, as regras de participação nesses debates agravaram a tendência de vencer custe o que custar. Para algumas pessoas, o anonimato é um convite para dizer tudo o que desejam sem que tenham que prestar contas dos efeitos das suas palavras. Debates em que o outro é visto como oponente, baseados no confronto, e conversas não são a mesma coisa.
Muitas pessoas estão tendo conversas importantes nas redes sociais que não podem ter frente a frente, usando esse mesmo anonimato para proteger ideias e identidades sensíveis e ações políticas. Conversas substantivas, o tipo de diálogo que defendemos em “Interseccionalidade”, podem acontecer nos meios de comunicação, mas só se houver responsabilidade pelas ideias e ações das pessoas, e o compromisso de trabalhar sobre as diferenças a partir da escuta e do aprendizado mútuos.
A interseccionalidade é uma metáfora para um lugar de encontro em que projetos diversos podem se ouvir e, por meio do engajamento intelectual e político, fortalecer iniciativas de justiça social. Projetos interseccionais requerem um processo de engajamento dialógico que vai além dos debates de confrontação. O desejo de resolver um problema social muitas vezes une as pessoas, e o engajamento dialógico pode aprofundar a interseccionalidade.
A cobertura da imprensa sobre os ataques a oito pessoas, em março, por parte de um homem em Atlanta, por exemplo, ilustra o engajamento dialógico em ação. No começo, o episódio foi coberto como um crime de ódio racial praticado por um homem branco, um atirador solitário. Nos dias seguintes, a cobertura passou a pôr o foco no aumento dos crimes de ódio contra asiáticos durante a Covid, e depois nas mulheres asiáticas.
Os ataques aconteceram em spas e impulsionaram análises sobre as oportunidades de trabalho limitadas dadas às imigrantes asiáticas nos Estados Unidos e como imagens de controle sexualizadas aplicadas a elas moldaram o trabalho que faziam. Aplicar lentes de raça, gênero, classe e sexualidade a esse ato de violência produziu um retrato mais completo. Mas, assim como ninguém tinha todas as respostas aqui, ninguém tem todas as respostas dentro da própria interseccionalidade.
Nos Estados Unidos, a expressão 'pessoas de cor' vem ganhando um uso mais amplo do que o que tinha nos anos 1980 –está sendo usada não só por negros mas também por pessoas pertencentes às chamadas minorias em geral (latinos, indígenas, asiáticos). Qual a sua opinião sobre isso? Termos criados de baixo para cima, e que muitas pessoas usam para descrever a si mesmas e suas visões de mundo, podem ser úteis na luta política. Muitos desses grupos que optam por se identificar com o termo “pessoas de cor” fazem isso para deixar claro desde o início quais são suas histórias no grupo e a necessidade de um termo assim.
Negros, latinos, indígenas e asiáticos nos Estados Unidos são frequentemente retratados como minorias que competem entre si. Há uma tendência a ignorar as alianças entre os grupos, e o que dizer das realidades dos indivíduos que pertencem a ambos os grupos. A construção dessa solidariedade através do engajamento dialógico leva tempo. No contexto dos Estados Unidos, do “divide e reinarás”, ter um termo como “pessoas de cor” para descrever um novo grupo, por parte de pessoas que estão nele, pode ser útil. Talvez seja o caso também do surgimento, no ano passado, do termo “bipoc” [sigla para negro, indígena e pessoas de cor, em inglês].
Por outro lado, impor o termo “pessoas de cor” de cima para baixo pode implicar significados totalmente diferentes. Para muitos campi nos Estados Unidos, com um número crescente de afro-americanos, latinos, indígenas, asiático-americanos, muçulmanos e grupos minoritários raciais e étnicos similares entre seus alunos, funcionários e corpo docente, o termo “pessoas de cor” oferece uma maneira útil de categorizar essa população heterogênea.
Esforços similares, para consolidar estudos negros, latinos, asiáticos, indígenas e similares sob o título de estudos étnicos, esse empacotamento tem origem na eficiência institucional mais do que nos próprios grupos. Há afinidades entre eles, mas isso não pode ser atribuído por decreto, senão que deve ser cultivado através do esforço conjunto de aprender com as histórias uns dos outros.
Seu conceito de 'imagens de controle' é rico para pensar sobre a hiperssexualização da mulher negra também no contexto brasileiro. Há muitos paralelos entre o Brasil e os Estados Unidos em relação às imagens de controle hiperssexuais das mulheres negras, de como essas imagens sustentam o racismo e os projetos nacionais de cada país. Em “Pensamento Feminista Negro”, examinei como as imagens de controle constituem um elemento central de relações de poder que se cruzam nos Estados Unidos e que têm efeitos a longo prazo nas vidas das mulheres afro.
Mas quero enfatizar as limitações de qualquer análise sobre isso feitas fundamentalmente nos Estados Unidos e aplicadas de forma acrítica ao Brasil. Busquei engajamento dialógico com os trabalhos de Lélia Gonzalez, Sueli Carneiro, Conceição Evaristo, Nubia Regina Moreira, Lúcia Xavier, Djamila Ribeiro e intelectuais negras ativistas semelhantes numerosas demais para citar. O rico trabalho dessas mulheres estabelece alicerces para conversas includentes entre as fronteiras brasileiras e norte-americanas sobre o significado das conexões entre as imagens de controle da sexualidade das mulheres negras, e raça e racismo.
Essa é uma conversa importante e permanente. As mulheres negras nos dois países compartilham histórias de violência de gênero que fabricaram suas imagens de controle hiperssexualizadas. Há uma ligação entre sexualidade e violência que persiste no presente, continua a moldar comportamentos que afetam as mulheres negras, tais como estupro e ataques sexuais, gestações não desejadas, relegação ao trabalho sexual. Assim como as histórias de escravidão, emancipação e movimentos rumo à participação democrática são diferentes nos dois países, também há contornos e usos distintos das imagens sexualizadas das mulheres negras.
Em segundo lugar, ao passo que Brasil e Estados Unidos têm experiências diferentes em relação às ideologias de que “não existe preconceito racial” e de um racismo explícito baseado na cor, essas duas formas de discriminação usaram imagens de controle semelhantes. O racismo de “não ver a cor, apenas as pessoas” é parte da história nacional brasileira da democracia racial. Nos Estados Unidos, pelo contrário, as políticas que levaram a cor em consideração tornaram a negritude hipervisível e isso serviu de desculpa para as mesmas imagens hiperssexualizadas das mulheres negras que persistiram até meados do século 20.
Como a sra. vê a evolução do feminismo e seus desafios na última década? Em "Black Sexual Politics", examino por que é importante ir além de uma agenda política centrada no homem negro e avançar em uma agenda de justiça social para as mulheres negras. Projetos antirracistas que não contemplem mulheres negras estão fadados ao fracasso. Da mesma forma, um feminismo que atenda um pequeno segmento da população também está fadado ao fracasso. O feminismo contemporâneo é multicultural, multiétnico e multinacional.
A palavra “feminismo” é menos o problema do que concepções equivocadas desse termo, usadas para impedir o acesso das mulheres negras a projetos de justiça social. Feminismo é uma palavra de poder –ela não encontraria resistência de forma tão veemente se não fosse percebida assim. O que importa são as ideias que a palavra "feminismo" evoca para quem a reivindica. Qualquer pessoa que acredite em justiça social para mulheres, especialmente igualdade em relação a renda, saúde, família, educação, trabalho, imagens e participação política, deve e pode apoiar o feminismo.
Tenho muitos colegas homens, maravilhosos, amigos e familiares que defendem a igualdade para as mulheres. Por outro lado, muitas mulheres brancas não apoiam o feminismo e usam seu privilégio de classe, racial ou nacional para se opor à igualdade das mulheres. As mulheres negras presas à ideia de que o feminismo é para mulheres brancas devem se perguntar “quem se beneficia se eu acreditar nisso?”.
Cada vez mais, vejo jovens negras colocando alguma versão da agenda feminista negra no centro de suas análises. Para as próximas gerações, a intersecção entre negritude e feminismo não é uma contradição. Mais do que isso, o feminismo negro indica o caminho para novas possibilidades.
Quais são suas esperanças ou precauções em relação à administração Biden-Harris? Estou cautelosamente otimista sobre o futuro próximo e esperançosa sobre as perspectivas de longo prazo para a democracia participativa nos Estados Unidos. Crescer em uma família de classe trabalhadora modelou minha crença de que pessoas comuns são as que impulsionam e geram mudanças sociais profundas.
Estudar as batalhas intergeracionais com que se confrontavam as mulheres negras me ajudou a suportar 2020, um ano sem precedentes. Poderíamos pensar que sobreviver a uma pandemia, navegar as incertezas de uma crise econômica permanente, trabalhar para derrotar candidatos de extrema direita em eleições históricas nos Estados Unidos e apoiar, se não participar, de protestos globais contra a violência aprovada pelo Estado derrubaria as mulheres negras. Mas não, porque elas enfrentaram adversidades antes e muito provavelmente vão continuar a fazer isso no futuro.
É difícil atravessar a tristeza de agora e ver alguma promessa. Mas fico animada de ver os jovens que estão imaginando novos futuros. Eles se expressam contra uso de armas, pobreza, desigualdade social e degradação ambiental, em ações baseadas em ideias de interseccionalidade. Há muito mais dessas pessoas do que o número cada vez menor de guardiões do passado que se aferram a um status quo injusto. Não nos enganemos –este momento é a continuação de uma luta de longa data entre a promessa do “sonho americano” e a desigualdade social consolidada que negou esse sonho a muita gente. Mas tudo o que podemos fazer é continuar a tentar.
INTERSECCIONALIDADE
- Preço R$ 67 (288 págs.)
- Autor Patricia Hill Collins e Sirma Bilge
- Editora Boitempo
- Tradução Rane Souza
RAIO-X
Patricia Hill Collins, 72
Nascida na Filadélfia (EUA) em 1948, filha de uma secretária e de um veterano da 2ª Guerra Mundial, é professora emérita do departamento de sociologia da Universidade de Maryland. Foi a primeira negra a presidir a Associação Americana de Sociologia
Ricardo Noblat: Governo lista crimes pelos quais será acusado na CPI da Covid
Faltou algum?
O governo Bolsonaro sabe muito bem o que fez (pouco) e o que não fez (muito) para combater a Covid-19 que em menos de quatro meses deste ano já matou mais pessoas no Brasil do que nos 12 meses do ano passado. Nas últimas 24 horas, foram mais 1.316 óbitos de um total de 390.797, e mais 32 mil casos de infectados de um total próximo dos 14 milhões e meio.
Justamente porque conhece seu macabro desempenho no enfrentamento da pandemia, foi fácil para o governo listar 23 crimes pelos quais será cobrado a partir da instalação, amanhã no Senado, da CPI da Covid. A lista foi repassada a 13 ministérios para que providenciem respostas convincentes às acusações que lhes serão feitas, ajudando-o assim a defender-se melhor.
“O objetivo do governo é fazer com que a CPI não avance, mas os fatos são evidentes, gritantes”, diz o senador Humberto Costa (PT-PE). Seu colega Randolfe Rodrigues (Rede-AP), que teve a ideia de propor a criação da CPI, observa: “O único confronto que nos preocupa é com a pandemia e o vírus. Se o presidente tem consciência que fez a coisa certa não precisa temer”.
Face a face com Bolsonaro, nenhum dos seus auxiliares ousa apontar omissões e erros cometidos desde a morte do primeiro brasileiro em março de 2020. Mas a lista elaborada pela chefia da Casa Civil deixa tudo muito claro e poderá servir, inclusive, de roteiro para o início dos trabalhos da CPI. Confira o que se dirá do governo com base na lista do próprio governo:
1 – O governo foi negligente com o processo de aquisição e desacreditou a eficácia da CoronaVac (que atualmente se encontra no Plano Nacional de Imunização);
2 – O governo minimizou a gravidade da pandemia (negacionismo);
3 – O governo não incentivou a adoção de medidas restritivas;
4 – O governo promoveu tratamento precoce sem evidências científicas comprovadas;
5 – O governo retardou e negligenciou o enfretamento à crise no Amazonas;
6 – O governo não promoveu campanhas de prevenção à Covid;
7 – O governo não coordenou o enfrentamento à pandemia em âmbito nacional;
8 – O governo entregou a gestão do Ministério da Saúde, durante a crise, a gestores não especializados (militarização do Ministério);
9 – O governo demorou a pagar o auxílio-emergencial;
10 – Ineficácia do Pronampe;
11 – O governo politizou a pandemia;
12 – O governo falhou na implementação da testagem (deixou vencer os testes);
13 – Faltaram insumos diversos (kit intubação);
14 – Atraso no repasse de recursos para os Estados destinados à habilitação de leitos de UTI;
15 – Genocídio de indígenas;
16 – O governo atrasou a instalação do Comitê de Combate à Covid;
17 – O governo não foi transparente e nem elaborou um Plano de Comunicação de enfrentamento à Covid;
18 – O governo não cumpriu as auditorias do TCU durante a pandemia;
19 – Brasil se tornou o epicentro da pandemia e “covidário” de novas cepas pela inação do Governo
20 – Os generais Eduardo Pazuello e Braga Netto, e diversos militares não apresentaram diretrizes estratégicas para o combate à Covid;
21 – O presidente Bolsonaro pressionou os ex-ministros da Saúde Luiz Henrique Mandetta e Nelson Teich para obrigá-los a defender o uso da hidroxicloroquina;
22 – O governo recusou 70 milhões de doses da vacina da Pfizer;
23 – O governo fabricou e disseminou fake news sobre a pandemia por intermédio de seu gabinete do ódio
Algo mais a acrescentar? Na verdade, a lista é um poderoso libelo da acusação ao governo que será julgado, primeiro, na CPI e, no ano que vem nas urnas.