Hélio Schwartsman: Vacina e popularidade

Às vezes Bolsonaro age racionalmente, como no caso da aliança com o centrão

Bolsonaro é um mistério. Às vezes, ele age racionalmente, como vimos no caso da aliança com o centrão, outras vezes, porém, opta por caminhos que lhe trazem claro prejuízo político. O mais emblemático deles é a relutância com a vacinação contra a Covid-19. Há um vínculo claro entre imunizar muito e ganhar pontos na popularidade.

A formidável campanha de vacinação em Israel, que já inoculou com ao menos uma dose 60% da população e experimentou redução de hospitalizações e óbitos, vai se convertendo no elemento que faltava para assegurar ao premiê Binyamin Netanyahu vitória nas eleições de março. Israel vai para seu quarto pleito em dois anos. Os três anteriores foram pouco conclusivos, produzindo governos pouco estáveis. É a vacina que poderá mudar essa história.

No Reino Unido, que também vem se destacando nesse quesito, o premiê Boris Johnson e seu partido conservador vão ganhando pontos nas pesquisas à medida que a imunização avança.

O interessante aqui é que ambos os países são conduzidos por governantes de direita, como Bolsonaro, e que cometeram erros no enfrentamento da pandemia. Uma campanha de vacinação competente parece ter o dom até de redimir o passado.

Penso que cabe aqui uma reflexão mais geral sobre pandemia e legitimidade. Em fevereiro de 2020, quando a doença ia ganhando as manchetes, especulava-se que ela poderia significar a ruína do governo chinês. Um ano depois, o que vemos é exatamente o contrário. Pequim foi capaz de conter o vírus antes mesmo da chegada das vacinas, e os chineses hoje, após olhar para o desempenho dos países ocidentais, não encontram motivos para lamentar o seu regime, pelo menos não no que diz respeito à questão sanitária.

Tudo isso é até meio óbvio. Saúde sempre rendeu votos, o que só torna a posição de Bolsonaro ainda mais enigmática. Ignorância? Loucura? Incompetência? Acho que um pouco dos três.


Ricardo Noblat: Como não pode demiti-lo, Bolsonaro cancela Mourão

À procura de um vice que diga apenas "sim, senhor"!

Sem poder demiti-lo porque foi eleito junto com ele, sem poder fazer de conta que ele simplesmente inexiste, o presidente Jair Bolsonaro decidiu cancelar o vice-presidente Hamilton Mourão.

Faz tempo que já não conversa com ele, mas, ontem, foi muito além: excluiu-o de uma reunião ministerial no Palácio do Planalto. Compareceram 22 ministros. O único que faltou estava viajando.

 “Não fui convidado, não fui chamado. Então, acredito que o presidente julgou que era desnecessária a minha presença”, disse o  general que faz parte do Conselho de Governo.

Mourão deixou passar algumas horas e deu o troco: embora convidado, não foi à cerimônia de lançamento de um programa destinado a atrair investimentos privados para a Amazônia.

A cerimônia contou com a presença de Bolsonaro e de outros ministros. Perguntando por que não foi, Mourão respondeu: “Estava trabalhando, tinha outras coisas para fazer”.

Mourão foi escolhido por Bolsonaro para ser vice na última hora. E mesmo assim porque outros nomes convidados para a função alegaram variados motivos para não ocupá-la.

Bolsonaro queria um vice que não lhe fizesse sombra. Mourão desejava ser um vice com atribuições executivas. Bolsonaro queria um vice que não falasse. Mourão não se faz de mudo.

O presidente é capaz de dizer os maiores absurdos do mundo, mesmo os que o prejudicam. Mourão tentou ser a voz da sensatez e, em alguns casos, o tradutor de Bolsonaro.

Apesar dos desencontros, fingiram dar-se bem até recentemente. Nada pior do que um vice decorativo. Bolsonaro nomeou Mourão para presidir o Conselho Nacional da Amazônia. Não adiantou.

A gota d’água que entornou o copo foi uma troca de mensagens entre um assessor de Mourão e um assessor de um deputado sobre um eventual processo de impeachment contra Bolsonaro.

Mourão só soube das mensagens pela imprensa. No mesmo dia, demitiu o assessor. Com mania de perseguição, Bolsonaro acha que o vice conspira contra ele, e ninguém o convence do contrário.

Daí o cancelamento de Mourão. Que poderá não ser definitivo porque Bolsonaro não tem compromisso com o que diz e faz. Não desqualificava as vacinas? Agora, não as recomenda?

Bolsonaro se comporta na presidência como se fosse um general dentro do quartel. Ninguém pode pensar diferente dele. Ordem dada é para ser cumprida sem maiores discussões.

Há militares que o servem, como os generais Luiz Eduardo Ramos (Secretaria do Governo) e Eduardo Pazuello (Ministério da Saúde), que batem continência e dizem “sim, senhor”.

Mourão bate continência, mas nem sempre diz “sim, senhor”. É por isso que Bolsonaro procura um novo vice para a eleição do ano que vem. O Centrão topa indicar. O Centrão topa tudo.

Um general que se sente à vontade na companhia do Centrão

“Brasil acima de tudo” (grito de guerra da Infantaria Paraquedista)

Se o presidente Jair Bolsonaro está à procura de um vice que lhe diga amém, que em eventos eleitorais saiba manter-se à distância para não lhe fazer sombra, e que ainda por cima possa ajudá-lo a atrair apoios políticos, por que não o general Luiz Eduardo Ramos, atual ministro da Secretaria de Governo?

Ramos entende do riscado. Uma foto que mostrou Bolsonaro disparado, quase sem fôlego, em uma pista de corrida, mostrou também o general tentando imitá-lo, mas bem atrás, sem o risco de ultrapassá-lo. Ramos tem uma sincera admiração pelo presidente. Os dois foram paraquedistas e ainda são bons amigos.

De resto, ao contrário de muitos, militares ou não, que fazem cara feia para o Centrão, Ramos não faz, e orgulha-se de ter servido de ponte entre o grupo e Bolsonaro. Criticado por um general da reserva por andar com más companhias, Ramos respondeu: “Não me envergonho. Não tenho vergonha nenhuma”.

E justificou-se: “Tomei uma atitude coerente. Meu desprendimento de ter aberto mão da minha carreira no Exército mostra que estou a serviço do Brasil. O governo hoje é do Bolsonaro, mas é do Brasil”. Em 2018, Ramos foi uma voz isolada em defesa de Bolsonaro dentro do Estado Maior do Exército.

Até que todos, finalmente, acabaram lhe dando razão. Era preciso evitar a volta da esquerda ao poder. Brasil acima de tudo!


Fernando Exman: Maia diante da sina dos antecessores

Desafio será agrupar polo de oposição ao governo Bolsonaro

Rodrigo Maia agora serve o seu próprio café, comprova a fotografia que ilustrou a entrevista do agora ex-presidente da Câmara dos Deputados ao Valor. Não que ele possa ter deixado de fazê-lo quando sozinho, em sua intimidade, na companhia da família ou de amigos mais próximos. Mas, é possível apostar sem chances de errar que poucas vezes precisou servir-se em público desde 2016, quando assumiu um dos cargos mais importantes do país. O poder traz mordomias e estas se vão das vidas daqueles que as usufruem assim que seus mandatos expiram.

Outro fator que entra nessa conta é a perspectiva de poder ou a falta dela. Quando o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva passou a faixa para a sucessora, a brincadeira que se fazia em Brasília era que o petista teria que reaprender a abrir e fechar portas. Até por isso foi de certa maneira impactante ver Maia abaixo do batente, após a porta entreabrir-se e a maçaneta girar, para receber os repórteres que foram ouvi-lo falar sobre a derrota que sofrera dias antes na disputa pela mesa diretora do Legislativo, reclamar da conduta de aliados históricos e tratar do seu futuro político.

O deputado fluminense não pode contar mais com o apoio do estafe da residência oficial, a ampla casa às margens do Lago Paranoá que hospeda o presidente da Câmara. O imóvel já tem um novo inquilino. Maia também estará de volta ao chão do plenário. Desta vez, com o intuito de se posicionar em relação aos grandes temas nacionais e desempenhar um papel central no processo de construção de um polo de oposição.

Será difícil imaginar que lhe seja confiada a relatoria de algum projeto importante, fundamental para o combate à pandemia de covid-19 ou garantir os alicerces necessários à retomada da atividade econômica. Isso porque a designação de relatores depende do presidente da Câmara, seu sucessor, com quem indica querer manter uma relação cordial. Não significa que poderá dele esperar algum regalo.

Voltando ao café: a luta de qualquer ex-mandatário é tentar mantê-lo quente, e Maia enfrentava essa batalha diária desde o segundo semestre do ano passado. Uma obstrução impediu por diversas semanas o avanço dos trabalhos da Câmara, por exemplo.

Na reta final do processo sucessório, seus adversários faziam troça do seu ocaso e buscavam de todas as formas evidenciar a redução do seu poder de influência entre os colegas de mesa diretora. Discordavam do sistema de votação, do horário da eleição, discordavam por discordar ou em função de alguma estratégia. A regra era divergir e vencê-lo, numa prévia do que seria o resultado da eleição. E venceram.

Depois do triunfo, lançaram dúvidas sobre a manutenção dos relatores por ele indicados. Observa-se, aqui, uma diferença em relação ao que se passa com Davi Alcolumbre (DEM-AP). O ex-presidente do Senado trabalhou para manter-se em alta, primeiro eventualmente como ministro, mas agora na presidência da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ). Se de fato eleito, além de participar da discussão de todos os projetos importantes que tramitam no Senado, ele pode desempenhar papel fundamental para evitar novas investidas contra ministros do Supremo Tribunal Federal (STF). Continuaria, assim, sendo um interlocutor dos outros Poderes dentro do Congresso.

No Planalto, aguardavam com ansiedade a conclusão da gestão de Maia. As resistências ao sobrenome no entorno do presidente são anteriores às discussões entre Rodrigo e o presidente Jair Bolsonaro, um antagonismo que perdurou durante parte considerável dos dois últimos ano. Remontam ao pai do ex-presidente da Câmara, o vereador Cesar Maia, que foi membro do Partido Comunista Brasileiro e precisou exilar-se no Chile durante a ditadura militar.

Tudo indica que, pelo menos num primeiro momento, irá lhe restar a tribuna. Seu principal desafio será evitar o que parece ser a sina dos ex-presidentes da Casa: a maioria dos antecessores de Maia caiu no ostracismo ou teve problemas com a Justiça. Alguns conseguiram as duas coisas, uma façanha.

Vale lembrar quem são: Waldir Maranhão, Eduardo Cunha, Henrique Eduardo Alves, Marco Maia, Michel Temer, Arlindo Chinaglia, Aldo Rebelo, Severino Cavalcanti, João Paulo Cunha, Efraim Morais, Aécio Neves, Luís Eduardo Magalhães, Inocêncio de Oliveira, Ibsen Pinheiro, Paes de Andrade e Ulysses Guimarães, para ficar com aqueles do período da redemocratização.

Poucos se lembram de Waldir Maranhão, por exemplo. Foi aquele que assumiu interinamente no lugar de Eduardo Cunha e pegou a todos de surpresa ao, numa canetada, tentar anular a sessão que aprovou a admissibilidade do processo de impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff.

Caberá ao próprio Maia, portanto, construir um caminho que o reconduza ao poder. Sua missão primordial será aglutinar um grupo de políticos disposto a ocupar o centro do espectro ideológico, para diferenciar-se da agenda econômica da esquerda e, ao mesmo tempo, fazer oposição a Bolsonaro.

Não será uma tarefa fácil. O deputado está de saída do DEM, ainda não tem destino certo e, por enquanto, não recebeu o apoio público de seus aliados e futuros parceiros de jornada. Alguns deles têm, neste momento, mais a perder com uma eventual exposição. Outros ainda estão buscando assimilar a derrota, ocorrida no primeiro turno e de uma forma que, para muitos, teria abalado o prestígio de Maia e sua imagem de articulador.

No entanto, deve-se levar em consideração a bem sucedida amarração conduzida pelo vencedor. O presidente Arthur Lira (PP-AL) teve o apoio do Palácio do Planalto, mas durante dezenas de meses trabalhou incansavelmente. Ainda é cedo para fazer algum julgamento a respeito do tamanho que Maia sai desse embate.

Por um lado, ele não conseguiu fazer seu sucessor, talvez diminuindo de porte perante os colegas de Parlamento. Por outro, pode ter crescido para fora dos limites do Distrito Federal e do Rio de Janeiro, tendo agora a chance de ocupar um espaço de maior referência na oposição. Ao engajar-se num projeto vitorioso em 2022, inevitavelmente estará credenciado para ocupar pelo menos um ministério de destaque no próximo governo.


Rosângela Bittar: Gênio ou...

Ao submeter o Congresso aos seus desígnios, Bolsonaro logrou vantagens inesperadas

Contra fatos não há argumentos, diria o debatedor preguiçoso. Por isto, resumidamente: não foi pequena a conquista política de Jair Bolsonaro neste início do terceiro ano de sua inoperante gestão presidencial.

Ao submeter o Congresso aos seus desígnios, ungindo, a preços da União, os que viriam a ser os presidentes da Câmara e do Senado, o presidente logrou outras vantagens inesperadas. Implodiu um partido forte, o DEM, que transitou, em apenas 60 dias, do sucesso absoluto (eleições municipais) ao fracasso retumbante (rendição ao governo).

Ao fazê-lo, destruiu duas articulações já avançadas de seus adversários na disputa eleitoral de 2022.

Numa delas, atingiu os arranjos para o lançamento de uma candidatura viável de centro, dos quais o DEM era interlocutor privilegiado. Por esta fenda foram arrastadas as candidaturas de João DoriaLuiz Henrique Mandetta e Luciano Huck.

Noutra, conseguiu desafinar as cordas de uma orquestração para união das esquerdas na sucessão. Com a adesão do PT ao arrastão no Senado soou o alarme na praia onde devia estar o ex-presidente Lula.

Ordenou a Fernando Haddad se declarar candidato do PT à sucessão de Bolsonaro, de forma a guardar novamente sua vaga enquanto espera decisões judiciais.

O recado à militância e às bancadas foi, assim, entendido: nada de união, o PT terá candidato próprio. Com apenas um telefonema Lula ajudou Bolsonaro a firmar precocemente a polarização que ele vinha tentando, sem sucesso, reconstruir, para ser novamente o beneficiário do voto antipetista.

Dois candidatos desta frente reagiram. Ciro Gomes acusou a presunção petista de achar que um aceno seu à esquerda seguirá na direção apontada. Guilherme Boulos foi mais direto. Lembrou ao ex-presidente que ele transgrediu a filosofia da incipiente união: primeiro, o projeto conjunto, depois o nome do candidato.

Com este espetacular resultado, Jair Bolsonaro ainda não pode anunciar a conclusão de sua trama de espertezas. Falta eleger a deputada extremista Bia Kicis presidente da Comissão de Constituição e Justiça da Câmara. A indicação foi imposta na mesa de negociação presidida pelo general Luiz Eduardo Ramos.

Implícitas nela, as fixações bolsonaristas para atender a freguesia de sua agenda de costumes, ou de maus costumes, para ser mais precisa. Caberá à deputada extremista submeter a maioria da sociedade às ansiedades do seu grupo íntimo.

Kicis encarna um repertório de radicalismo, reacionarismo, golpismo, que sintetiza o ideário dos grupos que o presidente quer favorecer nas decisões do Parlamento. No que dependia de sua capacidade de impor, Bolsonaro agiu sem limites. Estão aí as ruínas dos ministérios da Educação, da Saúde e do Meio Ambiente.

O controle da CCJ pela extremista mergulhará o País em debates que, obrigatoriamente, liberarão ódios, frustrações, confrontos, meandros onde ela, pregadora do fechamento do Congresso e da extinção do Supremo, prefere se ambientar. Numa ordem arbitrária se discutirá da ruptura com a volta do AI-5, como defende Eduardo Bolsonaro, à liberação do mercado já descontrolado de armas e munições, como quer Carlos Bolsonaro.

A excitação de temas marginais, que atraem proselitismo religioso por privilégios e concessões, por exemplo, ficará na conta dos 68% dos votos evangélicos que foram para Bolsonaro, já no primeiro turno, e precisam com ele ficar.

Dominado neste momento por sinais de volúpia do poder, Bolsonaro, ao escolher a deputada extremista, está ainda reforçando sua proteção. Desconfiado da natureza dos políticos do Centrão a quem entregou o poder, Bolsonaro quer ter na CCJ uma executiva fanática para barrar as CPIs da Pandemia e das Fake News, além do impeachment, caso o presidente da Câmara caia em tentação.

Seria Bolsonaro um gênio? Ou...


Elio Gaspari: A teimosia ignorante de Bolsonaro

Imaginar que seu governo seja capaz de organizar um plano coerente, como o Bolsa Família, é querer demais

Jair Bolsonaro administra a própria ignorância com o pior dos temperos, a teimosia. Em março passado ele disse que a Covid-19 era uma “gripezinha”, vá lá que fosse, os mortos em Pindorama eram apenas cinco. Em dezembro, ele disse que a pandemia estava no “finalzinho” (os mortos passavam de 150 mil) e um mês antes classificara a segunda onda de contágios de “conversinha”. Veio a tragédia do Amazonas, os mortos já são mais de 233 mil, e a média móvel ficou acima de mil por dia por mais de duas semanas. Conversinha?

O ministro da Saúde, um general da ativa, gosta de brigas. Seu secretário-executivo, um coronel, disse que o governador João Doria estava “sonhando acordado” quando anunciou que a vacinação começaria em janeiro no seu estado. Começou.

Bolsonaro acredita em muitas coisas. A cloroquina ajuda contra a Covid-19, a Amazônia não pode ter queimadas porque é úmida, e a eleição americana foi fraudada. Todas essas crenças têm devotos e, salvo os agrotrogloditas que tocam fogo na mata, nenhum deles causa grandes prejuízos aos outros. No caso da pandemia, a superstição presidencial causa danos. O coronel do Ministério da Saúde talvez não tivesse pulado na jugular de Doria se o Planalto falasse outra língua. Talvez o general Pazuello também não saísse por aí com sua maleta de cloroquina.

O estrago feito, feito está. A eleição para as presidências do Senado e da Câmara mostrou que Bolsonaro não está condenado a perder todas. Ele pode ganhar mais uma: basta esperar o dia em que começará a vacinação dos sexagenários e, em vez de ir a uma padaria numa de suas sortidas cenográficas, para entrar no fim de uma fila de vacinação.

Será um gesto de humildade, exemplo para sua infantaria e desestímulo a seus guerreiros sem causa.

O capitão encantou-se com a popularidade que lhe trouxe o auxílio emergencial e agora está correndo atrás de uma forma de alívio social para as vítimas da crise econômica agravada pela “gripezinha”. Melhor assim, até porque viu sinais de fumaça que poderiam lhe custar um retorno antecipado ao condomínio Vivendas da Barra.

Imaginar que seu governo seja capaz de organizar um plano coerente, como o Bolsa Família, é querer demais. Escravizado pela marquetagem, seu projeto tem um slogan incompreensível — Benefício de Inclusão Produtiva — e vem sendo concebido como uma árvore de Natal de jabutis para serem digeridos pelo Congresso.

A ideia de um benefício acompanhado de contrapartidas voluntárias perdeu-se na confusão da marquetagem. Afinal, um governo que se apresenta como se fosse capaz de fazer um “Plano Marshall” brasileiro é capaz de tudo. Se o general Braga Netto, chefe da Casa Civil e pai da marca de fantasia, levasse uma ideia dessas ao general George Marshall, chefe do Estado-Maior do Exército americano durante a Segunda Guerra, seria atingido por um dos acessos de fúria daquele grande chefe militar. E as broncas de Marshall eram mais pesadas que a de Paulo Guedes: “Não chamem de Plano Marshall, porque revela um despreparo enorme”.

Por falar no general Marshall, vale repetir a orientação que ele deu ao diplomata George Kennan quando o chamou para dirigir o planejamento político do Departamento de Estado: “Evite trivialidades”.

Se Bolsonaro e suas falanges evitassem trivialidades, o governo seria outro.


Bernardo Mello Franco: Bolsonaro ganhou fôlego

Jair Bolsonaro ganhou fôlego. Apesar do desastre na gestão da pandemia, o presidente recuperou força no Congresso e afastou, ao menos por ora, o fantasma do impeachment. Seus adversários, que precisavam se organizar para incomodá-lo, queimam energia com intrigas e guerras fratricidas.

Em poucos dias, a ideia de uma frente ampla virou miragem. No campo da centro-direita, o fracasso de Baleia Rossi foi o menor dos males. Partidos como DEM, PSDB e MDB, que ensaiavam se distanciar do bolsonarismo, parecem mergulharar numa espiral de autodestruição.

A briga no DEM é a mais ruidosa, devido à troca de insultos entre Rodrigo Maia e ACM Neto. No entanto, as outras legendas não estão menos divididas. No PSDB, o governador João Doria passou a enfrentar oposição aberta. O grupo de Aécio Neves, que ressurgiu das cinzas como aliado do Centrão, agora ameaça melar suas ambições presidenciais.

No MDB, articula-se um movimento para tirar a burocracia partidária das mãos de Baleia. Viciado em cargos, o partido poderia acabar no colo do governador do Distrito Federal, Ibaneis Rocha. Ele construiria a ponte para um futuro governista, alinhado aos interesses eleitorais do capitão.

O arrastão no Congresso também fez estragos na esquerda. Pela primeira vez, o PT se dividiu na eleição da Mesa Diretora da Câmara. A deputada Marília Arraes se aliou a Arthur Lira para disputar a segunda-secretaria, que distribui medalhas e passaportes diplomáticos. Levou o cargo e desmoralizou a burocracia petista.

Depois da derrota, o ex-presidente Lula indicou Fernando Haddad para concorrer ao Planalto em 2022. Sem ouvir ninguém, irritou correligionários e aliados tradicionais do partido. Guilherme Boulos, do PSOL, pôs o dedo na ferida: antes de apresentar nomes, a oposição precisa discutir projetos.

Sem isso, Bolsonaro terá um caminho mais fácil para a reeleição.


Vinicius Torres Freire: Se barrar auxílio, Bolsonaro cria crise com plano de governo do centrão

Novo comando do Congresso quer criar novo benefício mesmo sem corte de outra despesa

Se quiser evitar uma crise precoce com o novo comando do Congresso, o governo de Jair Bolsonaro vai ter de engolir a criação de um novo auxílio emergencial sem contrapartida de corte de outras despesas, ao menos de imediato.

Seria, no entanto, uma solução do gosto de Bolsonaro, embora não de Paulo Guedes.

A oferta de contrapartida do centrão, por ora, é aprovar “reformas” sem custo político, tal como a autonomia do Banco Central, que já foi para o forno, e outras medidas regulatórias setoriais (por exemplo, a lei do gás, do petróleo, talvez do setor elétrico).

Se o comando novo do Congresso azeitar a relação com suas bases, se o governo não confrontar o centrão e a popularidade Bolsonaro não for para o vinagre, é possível aprovar também uma reforma administrativa para as calendas e algum remendo mais duradouro, mas procrastinado, de aperto fiscal.

É esse o programa para 2021. Líderes partidários próximos de Artur Lira (PP-AL), presidente da Câmara, e de Rodrigo Pacheco (DEM-MG), presidente do Senado, dizem que o projeto do novo auxílio será pautado, ponto, e apenas vai cair se houver grande resistência no chão do Congresso, o que é bem improvável.

As dúvidas maiores entre os parlamentares:

1) saber qual instrumento utilizar para aumentar a despesa sem estourar o teto de gastos na letra da lei (se por crédito extraordinário, emenda constitucional de “calamidade” ou variante de “orçamento de guerra” etc.);

2) definir o critério de acesso ao benefício;

3) em quanto aumentar a meta de déficit no Orçamento de 2021.Quanto maior seria o déficit por causa do novo auxílio? O governo imaginava não gastar mais de R$ 20 bilhões (três parcelas de R$ 200 para algo em torno de 30 milhões de pessoas).

Há parlamentar com voz na nova ordem para quem deve ser mais, talvez R$ 25 bilhões.A aprovação do projeto de auxílio não estaria vinculada à redução imediata de qualquer outra despesa, o que não quer dizer que alguma compensação (não necessariamente financeira) possa ser acertada para “depois”.

No fim do ano passado, a prorrogação do auxílio foi para o vinagre porque o Ministério da Economia e o então presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), queriam compensação em redução de despesa ou método de aperto fiscal mais duradouro.

Entre as opções estavam redução de salários e jornada de servidores, fim do abono salarial e fim do reajuste obrigatório dos benefícios da Previdência e dos gastos mínimos em saúde e educação. Foi quando Bolsonaro matou a conversa com aquele “não posso tirar de pobres para dar para paupérrimos”.

Os novos líderes também acham inviável “colocar os penduricalhos do Guedes” no novo auxílio, nas palavras de um deputado do centrão, tal como exigir cursos profissionais dos novos auxiliados. Não negam que se possa aprovar algo parecido com a “carteira verde amarela” (emprego quase sem direitos trabalhistas de Guedes), mas também não associam tal projeto à renovação do auxílio.

Nova CPMF, a fim de evitar déficit maior? Até pode ser. Mas Bolsonaro não quer aumento de imposto.Os novos líderes do Congresso parecem muito firmes no que dizem, mas haverá conflito, que dependerá da resistência de Guedes e do tamanho do salseiro que possa ocorrer na praça financeira.

​Talvez não seja grande coisa, se não exagerarem no tamanho do auxílio. Muito bancão já dava de barato desde o ano passado que viria um “fura-teto” de algo entre R$ 20 bilhões e R$ 30 bilhões em 2021, por causa da persistência da epidemia.Vinicius Torres Freire

*Jornalista, foi secretário de Redação da Folha. É mestre em administração pública pela Universidade Harvard (EUA).


Cristovam Buarque: É preciso saltar

O Brasil assiste, nestes dias, às tragédias da epidemia e da educação, e das duas entrelaçadas asfixiando o futuro do país. Mas o presidente da República apresentou ao Congresso Nacional ações que deseja aprovadas como seu legado ao futuro sem a presença desses assuntos. O presidente quer que o Brasil tenha milícias com indivíduos cada vez mais armados, substituindo polícias e Forças Armadas. Ele propõe também reduzir a proteção aos nossos povos indígenas e inocentar previamente policiais que matam civis durante operações.

Ele não põe a educação como prioridade, salvo desobrigar os governos de oferecerem escola e transferir essa responsabilidade para que as famílias possam dar instrução em casa. Ignora 50 milhões de crianças em idade escolar cujas famílias não têm condições de educar os filhos em casa, como era no período medieval, com tutores, e ainda despreza o futuro da nação a ser construído por elas.

A análise das propostas do presidente assusta pela ausência de preocupação com a educação nos dois anos iniciais do governo. A ponto de isentar importações de armas e taxar importação de livros, porque seus ministros dizem que livros são comprados por ricos e armas por pobres. Se tivesse interesse em fazer com que o Brasil desse o salto na educação, ele teria apresentado as propostas já conhecidas, mas é forçoso dizer que seus antecessores também não quiseram pôr em prática. Apresentar uma estratégia para que em alguns anos, ou décadas, o Brasil atinja duas metas: ter um sistema educacional com máxima qualidade e que a educação tenha a mesma qualidade, independentemente da renda e do endereço da criança. Para tanto, seriam necessários alguns passos.

É preciso concentrar o trabalho do MEC na educação de base. Instalar uma agência para a proteção da criança e do adolescente capaz de cuidar desse público em todos os setores como saúde, cultura e bem-estar. Educação é mais que um direito de cada brasileiro, é também o vetor fundamental do progresso, sobretudo nestes tempos da economia e segurança nacional baseadas no conhecimento e a justiça social dependente da distribuição de conhecimento a todos, com a mesma qualidade.

É necessário retomar a implantação de um sistema nacional de educação de base, com proposta de adotar as escolas das cidades sem condições de oferecer a educação que suas crianças necessitam e merecem. Assumir para o governo federal a responsabilidade pela educação de base nas cidades que assim desejassem e na velocidade que os recursos federais permitirem, enviando professores de uma carreira federal, muito bem remunerados, selecionados com rigor depois de cuidadosa formação,

todos com dedicação exclusiva à escola onde estiverem lotados, aceitando substituir a estabilidade plena por estabilidade com responsabilidade, sujeita à avaliação periódica.

 Nessas cidades, as novas escolas seriam construídas com as instalações necessárias no padrão das escolas federais, especialmente as militares federais. Essas escolas iniciariam a evolução das atuais “aulas teatrais”, do professor com quadro e giz, para “aulas cinematográficas”, onde o professor utilizaria bancos de dados e de imagens. Todas as escolas das cidades adotadas teriam horário integral.

É possível fazer isso em dois anos em algumas cidades pequenas e, em 20 ou 30 anos, em todas as escolas do Brasil para todas as crianças brasileiras. É possível e é preciso. Os governos anteriores deram passos proativos, mas tímidos ainda na educação de base.

Ao longo dos últimos 30 anos, o Brasil foi melhorando sua educação, mas aumentando quatro brechas que nos fazem melhorar ficando para trás: brecha entre a educação dos ricos e pobres, entre cidades ricas e cidades pobres, entre os outros países e o Brasil e entre o que é preciso conhecer e o que é ensinado.

O atual governo parece decidido a piorar nossa educação. Os governos anteriores optaram por apenas melhorar, não saltar. O Brasil precisa interromper a marcha insana do atual governo sacrificando o progresso, a segurança e a sustentabilidade do país, mas também substituir a melhoria lenta, que nos deixa para trás, e adotar uma estratégia que permita saltar aos padrões de qualidade das melhores do mundo, com equidade para todas as crianças.

Para dar o salto necessário precisamos saltar este governo. Mas a simples substituição dele não basta se os próximos vierem com a mesma perspectiva de apenas melhorar nos deixando para trás e com brechas ampliadas.

*Cristovam Buarque, Professor Emérito da Universidade de Brasília


Luiz Carlos Azedo: Doria põe fogo no ninho

“O eixo de gravidade da maioria dos tucanos no Congresso não é o Palácio dos Bandeirantes, é o Palácio do Planalto”

O governador de São Paulo, João Doria, pode ter dado um grande passo em falso para a consolidação de sua candidatura. Nem tanto por exigir do PSDB um claro posicionamento de oposição ao presidente Jair Bolsonaro, uma vez que já se coloca nesse campo, mas porque fez duas exigências para as quais, no momento, ainda não reúne forças suficientes para obtê-las dentro de seu próprio partido: a renúncia do deputado Bruno Araújo (PE), que preside a legenda, e a expulsão do deputado Aécio Neves MG), uma eminência parda nas bancadas da Câmara e até do Senado, onde ainda tem muitos aliados.

Doria fez as exigências num jantar com lideranças tucanas na segunda-feira. Bruno Araújo foi surpreendido pela proposta e não gostou nem um pouco da ideia de passar o comando da legenda para o governador paulista, de quem, inclusive, era aliado. A reação do presidente do PSDB foi defender a realização de prévias, pois o governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, tem revelado a aliados que não deseja se reeleger ao cargo e gostaria de disputar a Presidência da República. O líder da bancada na Câmara, Rodrigo Castro (MG), muito menos. É muito ligado a Aécio, que reagiu confrontando Doria diretamente: “O partido não tem dono”.

O ninho foi incendiado por Doria, mas a divisão interna já estava patente na disputa pelos comandos da Câmara e do Senado. No primeiro caso, por muito pouco a bancada não se retirou do bloco encabeçado pelo líder do MDB, Baleia Rosssi (SP), que foi derrotado por Arthur Lira (PP-AL). Foi preciso que Doria e até o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso interviessem nas articulações, porque a maioria da bancada estava com o candidato do Centrão. No segundo, cinco dos oito senadores tucanos apoiaram Rodrigo Pacheco (DEM-MG) contra Simone Tebet (MDB-MS). Ou seja, o eixo de gravidade da maioria dos tucanos no Congresso não é o Palácio dos Bandeirantes, é o Palácio do Planalto.

Repete-se no PSDB uma situação muito parecida com a do DEM, que se alinhou com o presidente Jair Bolsonaro na eleição das Mesas do Senado e da Câmara, com a diferença de que os tucanos já têm uma candidatura própria. Desde a eleição de Fernando Henrique Cardoso, os candidatos paulistas à Presidência do PSDB enfrentam dificuldades internas fora do estado, principalmente em Minas Gerais e no Rio de Janeiro. No caso de Doria, essa dificuldade é ainda maior porque o governador paulista não tem nenhuma experiência parlamentar, ou seja, não conhece o Congresso. Além disso, há contenciosos entre os estados nos quais São Paulo fica num certo isolamento, principalmente em matérias financeiras e tributárias.

Doria disputava uma aliança com o DEM com o presidente Jair Bolsonaro e o apresentador Luciano Huck, que também tentava atrair a legenda para sua candidatura, inclusive com a possibilidade de a ela se filiar. Os recentes episódios na Câmara fizeram com que ambos despertassem desse sonho. Doria, agora, tenta atrair para o PSDB o vice-governador Rodrigo Garcia, que deve assumir o governo e se candidatar à reeleição. Isso resolveria o problema do descolamento do DEM em São Paulo, facilitando, também, a acomodação dos tucanos paulistas. O governador paulista também tenta atrair o deputado Rodrigo Maia (RJ), que anunciou sua saída do DEM com duras críticas ao ex-prefeito de Salvador (BA) ACM Neto, presidente da legenda. O prefeito do Rio de Janeiro, Eduardo Paes (DEM), é outro assediado por Doria.

Rodrigo Maia e Eduardo Paes são atores importantes no quadro político nacional, mas precisam de um partido para ter protagonismo. O primeiro tem pressa em se reposicionar, para não sair do jogo; o segundo, não tem a mesma urgência, pois não pretende se candidatar em 2022. Além do PSDB, as principais opções para Maia são o PSL, com a saída dos parlamentares ligados a Bolsonaro, e o MDB, que precisa se reestruturar no Rio de Janeiro. Corre por fora o Cidadania, caso se confirme a filiação de Luciano Huck.

Comitê de imprensa
Oscar Niemeyer, Carlos Castelo Branco, Ari Cunha, Tarcísio Holanda e Jorge Bastos Moreno, para não estender a lista, certamente estariam engrosssando o coro de protestos contra o despejo do comitê de imprensa da Câmara do local que historicamente lhe foi destinado, ao lado do plenário, para facilitar o acesso recíproco de jornalistas e deputados a ambos os espaços. O “ato administrativo” do novo presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), obviamente, é uma retaliação política à cobertura da imprensa durante a sua campanha eleitoral, na qual se consolidou uma imagem negativa.

A exposição que todo presidente da Casa tinha ao atravessar o Salão Verde da Câmara era sempre um rito democrático: ao transitar do gabinete para o plenário, mesmo cercado de seguranças, era abordado por jornalistas, parlamentares, lobistas e cidadãos. Provavelmente, o espaço do comitê de imprensa será reconfigurado, com novos banheiros, amplo gabinete, salas reservadas e novas cortinas, para impedir os olhares indiscretos de quem chega pela chapelaria e avista o espaço inteiramente livre no qual os jornalistas trabalham em suas bancadas. Muitas vezes, eram os últimos a deixar a Câmara, depois de sessões que entravam pela madrugada.

https://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-doria-poe-fogo-no-ninho/

Juan Arias: O angustiante dilema de Lula ao final de sua vida política

Os grandes estadistas se consagram ou se destroem quando são incapazes de compartilhar a liderança e de decidir, nos momentos mais dramáticos, de mãos dadas com todos os que desejam o bem nacional

Lula sempre foi e continua sendo um animal político, com seus acertos e desacertos. Poucos como ele carregam a política no próprio sangue. E agora, ao final de seu caminho, vive a maior encruzilhada de sua vida.

É possível que o Supremo lhe ofereça a possibilidade de disputar no ano que vem as eleições contra o nazifascista e genocida Bolsonaro. Não cabe dúvida que seu sonho seria derrotá-lo. É seu último sonho político. Mas sabe também que, no caso de uma derrota, jogaria tristemente por terra seu passado político, que é o oxigênio de sua vida.

Lula, que é um estrategista político indiscutível, talvez já esteja pensando que não lhe convém brincar de roleta-russa, mesmo que o Supremo dê luz verde à sua candidatura.

E talvez por isso já antecipou que, caso não possa ou não queira se arriscar a perder, o candidato dele e do seu partido será Fernando Haddad, e lhe pediu que prepare sua campanha e movimente as ruas.

É uma solução acertada ou se trata de um erro político?

Não que Haddad não seja um bom candidato ―que é―, mas porque já perdeu de Bolsonaro, e porque desta vez Bolsonaro voltará à arena com apoios políticos maiores que da vez anterior, se não for apeado do poder antes disso.

Há anos o presidente que disputa o segundo turno vence as eleições. Foi assim com Fernando Henrique Cardoso, com Lula e com Dilma. Pois nesse caso eles dispõem de toda a máquina do Estado ao seu dispor para a campanha.

Mas tem mais. Essa antecipação em escolher pessoalmente Haddad sem uma ampla consulta ao seu partido só faz enfraquecê-lo. O primeiro alarme foi dado pelo PSOL, onde Guilherme Boulos, que desponta como o líder de uma nova esquerda, já criticou delicadamente que o Brasil vive o perigo de chegar novamente à próxima eleição presidencial com as forças progressistas divididas e ameaçadas de serem derrotadas por Bolsonaro e por aqueles que serão seus novos aliados.

Há muitos anos a esquerda e a social-democracia parecem mais frágeis no tabuleiro político nacional e internacional. E concretamente o PT de Lula não está em seus melhores tempos. Foi derrotado nas últimas eleições municipais e não passou de coadjuvante na disputa pelas presidências da Câmara e do Senado.

Para as forças democráticas, a única chance de derrotar a extrema direita fascista, à qual parece se somar o DEM, é esquecer as brigas domésticas e se apresentarem unidas com um pacto no qual, embora possa haver mais de um candidato para enfrentar Bolsonaro, já cheguem às eleições com um acordo de que na segunda volta se comprometam a apoiar um único candidato, seja ou não do PT.

Por isso acredito que foi um erro que Lula, com sua impulsividade, tenha querido se antecipar em consagrar o seu candidato sem um diálogo prévio não só com seu partido, que já está perdendo força e se encontra dividido, e sim com todos os partidos da chamada frente ampla, esquecendo-se dos cálculos meramente pessoais.

Entende-se que, ao final de seu caminho político, Lula, sempre acostumado a ser obedecido e a decidir imperialmente em seu partido, não queira acabar com a maior derrota da sua história.

Mas Lula sabe muito bem que, diante de problemas graves como os que está vivendo o Brasil, se quiser ganhar as próximas eleições presidenciais terá de estar junto com os outros, e não pensando só em seu partido e em si mesmo.

Os grandes estadistas se consagram ou se destroem quando são incapazes de compartilhar a liderança e de decidir, nos momentos mais dramáticos de um país, de mãos dadas com todos os que desejam o bem nacional, acima de seus interesses pessoais.

O resto é política provinciana e mesquinha, e não a Política com maiúscula, que é aquela à qual pertence Lula, e que poderia acabar perdendo-a melancolicamente.

Juan Arias é jornalista e escritor, com obras traduzidas em mais de 15 idiomas. É autor de livros como Madalena, Jesus esse Grande Desconhecido, José Saramago: o Amor Possível, entre muitos outros. Trabalha no EL PAÍS desde 1976. Foi correspondente deste jornal no Vaticano e na Itália por quase duas décadas e, desde 1999, vive e escreve no Brasil. É colunista do EL PAÍS no Brasil desde 2013, quando a edição brasileira foi lançada, onde escreve semanalmente.


El País: STF ratifica acesso de Lula a diálogos vazados da Lava Jato, mas adia debate sobre validade como prova

Ministros garantiram o pedido da defesa do ex-presidente. Gilmar Mendes usa voto para atacar frontalmente operação e chamar revelações de “maior escândalo da história”

Regiane Oliveira, El País

Por 4 votos a 1, a Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) seguiu o relator, Ricardo Lewandowski, e garantiu à defesa do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva o acesso às mensagens do Telegram entre procuradores da força-tarefa da Lava Jato e o ex-juiz Sergio Moro apreendidas pela Operação Spoofing―que investiga as invasões por hackers de contas de autoridades brasileiras. Apenas o ministro Edson Fachin, relator da Lava Jato, votou conforme pedido dos procuradores para impedir que os advogados do petista pudessem utilizar o material.

Com essa vitória, a defesa de Lula avança um passo em sua meta de tentar anular os processos do ex-presidente, e não só aqueles julgados por Sergio Moro, na Operação Lava Jato. Mas segue à espera de que o STF julgue se as mensagens podem ou não ser usadas como provas. “Isso é matéria para outra ação”, afirmou Ricardo Lewandowski, que já havia autorizado, em decisão solitária, o acesso da defesa do ex-presidente às mensagens. A questão da autenticidade das mensagens deve ser resolvida no âmbito dos processos em que elas forem juntadas aos autos, quer em petições da defesa de Lula ou de outros réus da Lava Jato. E não há prazo definido para que isso aconteça.

Seriam os hackers de Araraquara ficcionistas?

O julgamento também serviu para medir a humor de ministros do Supremo com os protagonistas da Lava Jato. Os sempre críticos como ministros Lewandowski e Gilmar Mendes, mas também o novato Kássio Nunes Marques, indicado por Jair Bolsonaro, e até Carmen Lúcia, que costuma defender as teses da operação, não aceitaram a petição feita por sete procuradores da força-tarefa, como parte interessada no caso, de que o compartilhamento das mensagens pode afrontar o direito à intimidade das pessoas que tiveram seus celulares invadidos e dados compartilhados.

Os ministros da Segunda Turma estavam alinhados em não discutir a validação dos diálogos como provas, inclusive o presidente, Gilmar Mendes. Ainda assim, ao menos dois ministros deixaram transparecer suas avaliações. “A pequena amostra do material já se figura apta a evidenciar, ao menos em tese, uma parceria indevida entre o órgão julgador e a acusação”, disse Lewandowski. Último a votar, o ministro aproveitou para fazer uma longa explanação e criticar frontalmente a Lava Jato. Fez questão de frisar a gravidade do revelado ―em primeiro lugar, pela investigação Vaza Jato, liderada pelo site The Intercept Brasil e com participação de vários veículos de imprensa, entre eles o EL PAÍS. Recheada por trechos de diálogos entre os procuradores e Sergio Moro, alguns deles apontados por juristas como claramente violadores do princípio de neutralidade dos juízes nos processos prevista na Constituição, também deixaram claro sua posição sobre a questão.

Gilmar citou por exemplo, uma conversa entre o então chefe da força-tarefa Deltan Dallagnol e Moro, em que o procurador explica que estariam apurando sobre as palestras do ex-presidente: “Estamos trabalhando com a colaboração de Pedro Correa, que dirá que Lula sabia da arrecadação via PRC”, referindo-se ao ex-diretor de Abastecimento da Petrobras Paulo Roberto Costa. “Isto tem a ver com o processo penal? Ou esses fatos não existiram ou, se existiram, eles são de uma gravidade que comprometem a existência da Procuradoria-Geral da República”, afirmou. “Se esses diálogos não existiram, os hackers de Araraquara são notáveis ficcionistas”, disse. Caso seja realmente ficção, afirma o ministro, “é preciso que se prove”.

Em outro trecho, Mendes destacou uma conversa em que a procuradora Jerusa Viecili criticava Moro. “Russo tá de sacanagem”, afirmou utilizando o codinome do ex-juiz nos chats dos procuradores. Ela reclamava para o procurador Januário Paludo que o ex-juiz havia dado vistas à defesa e solicitado um pedido do MPF antes do prazo, pois iria viajar. “Essa eu não tinha visto ainda... mas no cpp russo, tudo pode....”, afirmou, referindo-se ao que seria o Código de Processo Penal de Moro.

“É isto que produziu, ministro Fachin, a famosa República de Curitiba. É este o legado jurídico. Isto envergonha. Os sistemas totalitários não tiveram tanta criatividade”, afirmou Mendes, citando a União Soviética e a Alemanha oriental. “Vamos ser julgados pela história se formos cúmplices com este tipo de situação. Nós montamos um modelo totalitário ou alguém é capaz de dizer que há algo de democrático neste CPP Russo”, destacou o ministro do STF, que nem sempre foi um crítico tão ácido da Lava Jato ou de Moro como agora. Em março de 2016, por exemplo, Gilmar Mendes decidiu em julgamento monocrático (solitário) suspender a nomeação de Lula como então ministro do Governo Dilma Rousseff, acusando o petista de tentar fugir de uma ordem de prisão de Moro. Nenhuma palavra de crítica foi feita à divulgação dos áudios entre Lula e Dilma feita pelo juiz. A decisão final do plenário sobre a nomeação de Lula só aconteceria anos depois, já pós-impeachment do Governo petista.

Em seu voto nesta terça-feira, Mendes também criticou o papel do ex-auditor da Receita Federal Roberto Leonel, conhecido colaborador da Lava Jato, que fez inclusive serviços de investigação e coleta de dados fora das petições formais. “Vocês sabem que vivi na Alemanha, e acompanhei a história da Stasi. Muito provavelmente replicamos essa história com a Receita Federal fazendo investigação à sorrelfa”, afirmou, apontando Leonel como “um verdadeiro homem da Stasi na Receita Federal”. O auditor foi indicado pelo então ministro da Justiça Sergio Moro para a presidência do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) em janeiro de 2019. Leonel deixou o cargo e se aposentou após o órgão ser transferido para o Ministério da Economia, em setembro de 2019.

A origem do julgamento

Os advogados de Lula ainda não protocolaram uma petição ao STF para que essas mesmas mensagens sejam incluídas nos autos do habeas corpus que pede a suspeição de Moro, um julgamento que o ministro Gilmar Mendes promete colocar de volta em pauta ainda neste semestre.

O julgamento no Supremo teve como origem uma petição ligada a ação penal do caso do Instituto Lula, em tramitação na 13ª Vara Federal de Curitiba.No processo, o ex-presidente é acusado de ter recebido vantagens indevidas do Grupo Odebrecht, como um imóvel em São Paulo para nova sede do Instituto e um apartamento em São Bernardo do Campo, na região metropolitana da capital paulista. Inicialmente, a defesa pediu acesso ao acordo de leniência da Odebrecht, bem como aos documentos correlatos, como perícia nos sistemas da companhia, e documentos trocados entre a força-tarefa e organizações internacionais, como o FBI e o Departamento de Justiça dos EUA (DOJ). As sucessivas negativas tanto dos procuradores como dos magistrados da primeira instância em liberar o acesso fizeram com que a defesa de Lula recorresse ao Supremo. Em agosto de 2020, a Segunda Turma concedeu o acesso aos autos do acordo de leniência da Odebrecht que digam respeito ao petista, que foi atendida de forma restrita. A alegação dos procuradores era de que não havia novos materiais para serem compartilhados. Mas as mensagens divulgadas pela Vaza Jato mostravam que isso não era verdade. Por isso, a defesa voltou ao Supremo pedindo acesso às conversas apreendidas pela Spoofing, e conseguiram.

“A polícia tem acesso aos autos, a Justiça tem acesso aos autos, mas a defesa não tem acesso aos autos? Não é direito fundamental da defesa ter acesso aos autos?”, afirmou a ministra Carmén Lúcia no julgamento. “Não houve nenhum movimento intempestivo deste relator (...) foi uma sequência de decisões para fazer cumprir aquilo que foi determinado e pela [Segunda] Turma desde agosto, de algo que vem sendo sonegado à defesa há quase três anos e que agora, parece, vem a lume”, afirmou Lewandowski ao justificar seu voto.


O Globo: Redes sociais entram na mira de parlamentares bolsonaristas

Projetos de lei tentam impedir a remoção de conteúdos de redes sociais e até pedidos de explicação e investigação sobre bloqueios de contas

Marlen Couto, O Globo

RIO — As grandes plataformas de tecnologia entraram na mira de parlamentares e autoridades alinhados ao presidente Jair Bolsonaro da chamada “ala ideológica”. A ofensiva ocorre por meio de projetos de lei para impedir a remoção de conteúdos de redes sociais e até de pedidos de explicação e investigação sobre bloqueios de contas.

Sonar:Após suspensão de conta de bolsonarista, Mário Frias quer explicação do YouTube

O movimento ocorre após plataformas como Facebook, Twitter e YouTube adotarem medidas para restringir publicações desinformativas ou que incitem a violência. Em um mês, foram excluídos perfis do ex-presidente americano Donald Trump após publicações incentivando o ataque ao Congresso dos EUA, postagens de Bolsonaro e do Ministério da Saúde receberem selos do Twitter com aviso de conteúdo desinformativo e o canal bolsonarista Terça Livre foi excluído do YouTube.

Como mostrou O GLOBO na última segunda-feira, a atuação das redes também motivou uma reação do governo Bolsonaro para pressionar as empresas de tecnologia em fóruns internacionais. Em território nacional, a estratégia ficou a cargo principalmente de parlamentares da ala governista do PSL.  

Desde que canais do blogueiro bolsonarista Allan dos Santos, entre eles o Terça Livre, foram removidos por violar regras da plataforma, aos menos três projetos de lei já foram protocolados na Câmara para limitar o poder das redes na moderação de conteúdo. O primeiro foi apresentado no mesmo que dia que os canais foram excluídos pelos deputados Luiz Philippe de Orleans e Bragança (PSL/SP), Filipe Barros (PSL/PR) e Helio Lopes (PSL/RJ). 

O texto propõe ao alterar o Marco Civil da internet para condicionar a decisões judiciais a remoção de postagens ou redução de seu alcance. Na prática, as plataformas não teriam mais autonomia para seguir suas próprias políticas de uso.

Os deputados Caroline de Toni (PSL/SC) e Daniel Silveira (PSL-RJ) também apresentaram projetos. O da deputada permite a responsabilização civil de provedores que “rotularem conteúdos que expressem a opinião do usuário”. Já o de Silveira veda a retirada de mensagens “em desacordo com as garantias constitucionais de liberdade de expressão, comunicação e manifestação de pensamento”. Ao GLOBO, o deputado argumenta que propôs o projeto porque houve uma “rápida escalada de perseguição seletiva nas redes”. 

— Não foi proposto que elas não possam remover. Elas podem, desde que, exista um caso concreto que afete o ordenamento jurídico e moral. O que vem ocorrendo é que estas empresas apenas agem em detrimento de perfis com ideologias políticas antagônicas as de seus CEOs — defendeu.

Leia: Droga Raia é alvo de bolsonaristas nas redes após cancelar anúncios no Terça Livre

Em outra frente, a deputada federal Carla Zambelli (PSL-SP) acionou na última quinta-feira a Procuradoria Geral da República (PGR) para que abra um inquérito civil e ingresse com ações judiciais, com pedido de liminar, para o imediato restabelecimento dos canais de Allan dos Santos. No dia seguinte, sem citar o blogueiro, o secretário de Cultura, Mário Frias, determinou que a Secretaria de Direitos Autorais e Propriedade Intelectual (SDAPI), vinculada ao órgão que comanda, notifique o YouTube para que explique os atos de suspensão de usuários da plataforma.  

Allan dos Santos é investigado nos inquéritos que apuram a disseminação de fake news e a organização e financiamento de atos antidemocráticos. O YouTube afirma que os conteúdos do canal Terça Livre não seguiram suas diretrizes. A conta já havia sido notificada duas vezes sobre o descumprimento, uma delas por postar um discurso de Trump sobre o Capitólio, e tentou utilizar uma conta reserva para burlar as políticas da plataforma. Apesar das remoções, Allan dos Santos já voltou a postar vídeos no YouTube utilizando uma conta pessoal que soma mais de 70 mil inscritos.

Pesquisador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Democracia Digital (INCT-DD), João Guilherme Bastos destaca que a reação bolsonarista ganhou força principalmente com a remoção dos canais de Allan dos Santos pelo impacto financeiro que a medida pode provocar na rede de apoio ao presidente nas redes, enquanto as plataformas adotam políticas pouco transparentes para remover conteúdos. 

— Essa reação aparentemente desproporcional tem uma raiz material muito nítida, que é o financiamento de toda uma rede de extrema direita que vai perder fonte de renda. Por outro lado, embora no caso do Terça Livre você tenha um ator que de forma recorrente violou políticas e termos de uso, essas políticas não são claras. É simples falar que vai remover postagens de quem divulgar fake news, mas a questão é decidir quem vai determinar ou não o que é uma fake news — alerta Bastos.

Pedro Doria: O Terça Livre é só o começo

Marco Aurelio Ruediger, da Diretoria de Análise de Políticas Públicas da Fundação Getulio Vargas (DAPP/FGV), vê a reação de parlamentares bolsonaristas como uma estratégia voltada para as próximas eleições presidenciais e também critica a falta de transparência das empresas do setor: 

—  As políticas não são claras e alimentam a possibilidade desse tipo de manobra. Ao mesmo tempo, há um temor de ação mais duras das plataformas. Esse é um movimento preventivo da base do presidente já pensando em 2022 para garantir que seu espaço de atuação fique desobstruído nas redes. O que querem no fundo é que não haja nenhum tipo de moderação.  

Procurados para comentar as reações de autoridades alinhadas a Bolsonaro, Facebook, Twitter e YouTube não quiseram se manifestar. Sobre a remoção de canais do Allan dos Santos, o YouTube reiterou que se reserva o direito de restringir a criação de conteúdo de acordo com os próprios critérios.