Luiz Carlos Azedo: O trem andou
A independência do BC agrada ao mercado, porque garante mais previsibilidade na economia, mas não desenrola a política econômica
A independência do Banco Central (BC) foi aprovada, ontem, na Câmara, por 339 votos a 114, depois de 30 anos de discussão. O presidente da Casa, Arthur Lira (PP-AL), fez da votação uma demonstração de força e uma sinalização para o mercado de que vai retornar à agenda das reformas. A aprovação também é um contraponto à gestão do antecessor, deputado Rodrigo Maia(DEM-RJ), que está sendo responsabilizado por Lira e pelo Planalto pelo atraso na votação das medidas econômicas necessárias para enfrentar a crise. Não é bem assim, a matéria já estava pronta para ser aprovada e contava com ampla maioria. Provavelmente, seria a primeira medida a ser votada caso o deputado Baleia Rossi (MDB-SP) fosse o eleito.
Na verdade, o que está atrasando a votação das medidas econômicas é a falta de entendimento político entre a turma do Centrão, os militares do Planalto e a equipe econômica em relação à maioria dos assuntos, sem que Bolsonaro tome uma decisão. Por exemplo, a criação do auxílio emergencial, desejo da ampla maioria dos parlamentares, não vai adiante porque toda a Esplanada dos Ministérios se recusa a cortar na própria carne, e a equipe econômica também não quer criar um imposto.
A independência do BC agrada ao mercado, porque garante mais previsibilidade na economia, mas não desenrola a política econômica. Diretores do banco terão mandato de quatro anos, com direito a uma reeleição. Os mandatos não coincidirão com o do presidente da República, que indicará o presidente e demais diretores do BC. Caberá ao Congresso aprovar a indicação e, se for necessário, destituir os diretores do banco.
Em tese, a independência do BC acaba com interferências do Executivo na política monetária. Num regime de metas de inflação, isso garante que a política de juros seja administrada com foco exclusivo na estabilidade da moeda. Alguns analistas acreditam que os juros do mercado futuro, que servem para a rolagem da dívida pública, tenderão a cair com a decisão. A medida é muito criticada pela esquerda e economistas desenvolvimentistas, mas há muitos países governados por partidos de esquerda que têm bancos centrais independentes.
Outro passo importante foi a instalação da Comissão Mista de Orçamento, que estava sendo adiada por causa de uma disputa pelo seu comando entre o ex-presidente da Câmara Rodrigo Maia (DEM-RJ) e o Centrão. A presidente da CMO é a deputada Flávia Arruda (PL-DF), indicada por Arthur Lira. Com 31 deputados e 11 senadores, a comissão instalada, ontem, vai examinar o Orçamento de 2021; em abril, outra composição será feita, para discutir o Orçamento de 2022. O presidente do Congresso, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), ao instalar a comissão, descartou a criação de um novo imposto para financiar a prorrogação do abono emergencial.
Doria versus Aécio
A lavagem de roupa suja em público no PSDB continuou ontem. O governador João Doria praticamente deu um ultimato à cúpula do partido para afastar o deputado Aécio Neves (MG), em nota duríssima; Aécio rebateu. Do jeito que vão as coisas, será impossível a permanência de ambos na legenda. O problema é que Doria tem mais poder político, por causa do governo de São Paulo, mas quem tem maioria na cúpula da legenda é o político mineiro.
É impressionante como a disputa pela presidência da Câmara desagregou a legenda. Mostrou para Doria que uma parte considerável da bancada pode ter derivado para a base do presidente Jair Bolsonaro, comprometendo seu projeto eleitoral. A forma como o governador paulista pretende resolver o problema não está clara. Há três hipóteses: (1) forçar os pares a lhe entregar o comando da legenda; (2) sair do partido para ser candidato por outra legenda; (3) desistir da candidatura, tendo Aécio como pivô da tragédia.
William Waack: Tudo dando certo
Cenário internacional ajuda o Brasil e tira senso de urgência para questão fiscal
A julgar pelo noticiário da imprensa especializada internacional (Financial Times, por exemplo), começou um novo ciclo de forte valorização de commodities. A subida de preços abrange 27 tipos que vão do café ao níquel, e incluem produtos agrícolas nos quais o Brasil é campeão mundial. Os investidores ainda indagam se é mais do que uma recuperação em “V” das profundezas da crise da pandemia, mas consolida-se a percepção de que estamos indo para um superciclo, comparável ao do início de 2000.
O Brasil é muito mais dependente das grandes conjunturas externas do que nos é confortável admitir. Por exemplo, é impossível entender o que foi o período do PT sem levar em conta o superciclo das commodities de 20 anos atrás. Ele criou uma bonança que alterou os cálculos políticos. E explicava o surgimento da tal “nova classe média”: não era o “projeto petista”, mas, sim, o crescimento da China, a expansão do comércio exterior (globalização) e a demanda por nossas exportações – sendo que o mesmo volume do nosso minério de ferro passara a comprar muito mais TVs de tela plana.
Junte-se a descoberta do pré-sal, na metade daquela década, quando o barril do petróleo foi para as alturas, e temos a mistura de fatores, sobre os quais não tínhamos qualquer controle, criando uma atmosfera política do “tudo é possível”. Lula nunca entendeu o que aconteceu no grande quadro internacional e talvez pense até hoje ter sido o criador do superciclo – o fato é que a bonança acabou desperdiçada por falta de visão política (abandonaram-se as reformas), irresponsabilidade, corrupção (que não foi inventada pelo PT) e intervencionismo estatal desastroso.
A lição que essa (admita-se) ultrasimplificação da nossa recente história oferece é a de que o surgimento de uma “zona de conforto”, criada por fatores sobre os quais pouco influímos, tem um impacto direto na conduta dos agentes políticos e do setor privado. Em outras palavras, nada fica parecendo tão urgente que não possa ser deixado para amanhã. Aplicado às circunstâncias atuais, o vigoroso movimento de alta das commodities – sim, com jeito de superciclo – talvez ajude a entender a calma com que os mercados reagem especialmente ao que o governo brasileiro deixa de fazer.
A situação fiscal está no limite e a probabilidade de que reformas estruturantes sejam aprovadas este ano é muito reduzida. Porém, a combinação de dois fatores amplos proporciona essa agradável situação, tão ao gosto do Centrão, de que as coisas podem ir sendo empurradas com a barriga, especialmente cortes em despesas. Um fator é a extraordinária injeção de liquidez mundial com juros baixos e a recuperação da China e dos Estados Unidos sob um inédito pacote de incentivos. O outro é a noção de que a vacinação em massa (mesmo com os percalços brasileiros) induz a uma retomada da economia mais acelerada do que se calculava ainda há dois meses.
Com isso, diminui também não só a “pressa” de resolver nossos intratáveis problemas estruturais. Ressurge com ênfase entre agentes políticos a discussão se o reaquecimento da economia e a consequente recuperação da arrecadação não seriam, por si, suficientes para criar o tal “robusto marco fiscal” que permita prosseguir no pagamento do auxílio emergencial – algo vital para a pretensão de reeleição de Bolsonaro. Basta declarar a tal “excepcionalidade temporária” com que as forças políticas no Congresso que capturaram o Planalto pretendem promover a quadratura do círculo (gastar mais e cortar menos).
É possível que esse sopro favorável internacional ajude a consolidar na cabeça de Jair Bolsonaro, sempre inclinado a acreditar no absurdo e no fácil, a percepção de que tudo está dando certo
Maria Cristina Fernandes: Centrão dá autonomia ao BC e captura Anvisa
Desapego pela regulação sugere que bloco apenas acumula créditos para cobrar de Guedes em breve
O novo presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL) escolheu o projeto que dá autonomia ao Banco Central para marcar sua estreia na condução da mesa diretora da Casa. Convém cautela, porém, com o zelo demonstrado pelo Centrão na regulação dos mercados.
Se a preocupação é blindar o Banco Central das interferências políticas dos governantes de plantão, falta explicar por que o cuidado não é extensivo à Agência de Vigilância Sanitária, a mais importante das reguladoras de mercado no Brasil da pandemia. Quem lidera a pressão para submeter a Anvisa aos caprichos do lobby da vacina russa é o líder do governo, Ricardo Barros (PP-PR), outro integrante do núcleo duro do Centrão.
Difícil imaginar onde bateria o dólar hoje se a Câmara dos Deputados resolvesse, por exemplo, acrescentar um artigo ao projeto aprovado pelo Senado estabelecendo prazo para o Banco Central intervir no câmbio quando a moeda americana disparar. Foi mais ou menos isso que fez a MP 1003/2020. Deu prazo não para a Anvisa analisar mas para aprovar o uso emergencial de vacinas cinco dias depois de protocolado o pedido para a análise da agência.
Ricardo Barros, o deputado que liderou a aprovação da medida provisória no formato que melhor convém à empresa que pretende trazer a Sputnik V ao Brasil, comandou o Ministério da Saúde no governo Michel Temer. Foi um teste de resiliência para o SUS, mas não se ouviu, durante aquele governo, o então ministro dizer que “enquadraria” a Anvisa.
A pressão desmedida sobre a Anvisa aconselha ceticismo em relação à lua de mel de Lira com a equipe econômica do governo e os investidores que nela ainda creem. Lira pinçou, da extensa pauta de prioridades do governo federal, um dos projetos menos polêmicos para sinalizar boa vontade com Guedes & cia. A pergunta que cabe fazer agora, dado o desapego do Centrão pela boa regulação do mercado, é onde o bloco quer chegar.
É simples. Lira acumula créditos para cobrar lá na frente. Se alguém comemora a aprovação do projeto de autonomia do BC na Câmara é porque ainda não se deu conta de que a cobrança desta fatura vai tornar a vida dos autônomos mandatários do banco um inferno.
Não faltam evidências de que esta cobrança imporá um custo fiscal difícil de carregar. Não porque o Brasil não possa se endividar, mas porque o faz sem rumo nem sinal de onde pretende chegar. E apesar disso, tem a anuência dos juízes e bandeirinhas em campo, como foi o caso na manobra que permitiu jogar para 2021 gastos de até R$ 40 bilhões do Orçamento de guerra não executados no ano passado.
Se o fizeram em 2020, voltarão a fazê-lo este ano quando o novo comando do Congresso sinaliza que quer acochambrar tudo, do auxílio emergencial aos novos gastos de Estados com a pandemia e até uma segunda rodada de suporte às empresas. Tudo na modalidade de “crédito extraordinário”.
A Constituição é clara. Trata-se de um recurso a ser usado em caso de imprevisibilidade e urgência. Numa pandemia, prever esses gastos deveria ser a rotina, não a exceção. Por isso, deveriam estar contidos na Lei Geral do Orçamento, cuja comissão mista foi instalada ontem. Para isso, no entanto, os novos gastos teriam que cumprir as regras fiscais e abrir espaço com uma tesourada que ninguém no Centrão ou no Palácio do Planalto quer dar. Vai que alguém lembra dos R$ 9 bilhões reservados para as quatro novas fragatas da Marinha.
A fatura não para por aí. O Centrão não desistiu dos bancos públicos. Falhou na tentativa de arrebanhar a presidência do Banco do Brasil, mas ainda cobiça diretorias e não apenas no BB, mas na Caixa Econômica Federal e até no BNDES. Se alguém acha que assim também é demais, basta ver o que se passa com a Anvisa.
Bolsonaro ainda não decidiu se vai acatar o pedido do presidente da Anvisa para vetar o jabuti do Centrão na MP, mas a permanência de Ricardo Barros na liderança do governo sugere que o presidente da República começou a campanha pela reeleição na oposição.
A julgar pelo desempenho em campo de seus adversários, vai querer fazer olé com o chapéu alheio. Rodrigo Maia levou o cesto de roupa suja do seu time para a beira do Lago Paranoá e o PSDB se consome em disputas internas entre um governador impopular em seu próprio Estado e um deputado com contas a prestar na Justiça.
O PT fulanizou a pré-campanha antes da hora e o bloco dos excluídos do bolsonarismo hoje se dedica mais às fusões partidárias e à sobrevivência das nanolegendas do que a saber por que, num país que gastou R$ 524 bilhões no combate à covid-19 em 2020, faltam oxigênio, medicamentos, UTIs e sobra energia para o lobby das vacinas.
É natural que Bolsonaro queira antecipar a campanha. Tem duas razões para fazê-lo. Primeiro porque é bom nisso. Depois porque, tendo terceirizado o governo para o Centrão, resta-lhe ocupar o vácuo da oposição. Já disse que gostaria de ver a mãe vacinada. O próximo passo é entrar na fila para virar jacaré. Mais um pouco e se vacina contra a derrota em 2022.
A dúvida é saber por que os adversários se deixam pautar. É a covid-19 e a crise econômica que mantêm Bolsonaro na defensiva, não a campanha eleitoral. É claro que os partidos precisam discutir alianças, fusões, nomes, estratégias, mas não com a bola em campo.
O maior flanco de Bolsonaro é a pandemia e é dela que ele vai tentar primeiro se livrar. Vai entregar o ministro da Saúde aos leões. Depois se insurgirá, como o fez no início da pandemia, contra prefeitos e governadores a quem delegará a responsabilidade pelo genocídio. A sanção com ou sem vetos da MP das vacinas indicará o papel que assumirá frente ao Centrão.
O segundo maior flanco do presidente é a economia. O déficit público, que caminha para R$ 800 bilhões, é uma bomba de efeito retardado. No filme que o Brasil já viu antes, explode assim que passa a reeleição.
É este o esquema tático de uma pelada de várzea que frustrará a plateia. O presidente jogou a isca da sucessão presidencial antecipada, a oposição engoliu e o Centrão, por enquanto, governa. Arthur Lira e seu bloco, porém, jogam em todas as posições, menos na de carregadores de caixão.
Ranier Bragon: Avesso a jornalistas, Lira quer concretizar antigo projeto de encastelar presidentes da Câmara
Obra blinda políticos de passar pelo palco de marcantes acontecimentos históricos da política nacional
A decisão de Arthur Lira (PP-AL) de mudar de lugar o seu gabinete tem efeitos que vão além dos obstáculos ao trabalho diário de jornalistas. A obra-relâmpago materializa um antigo projeto de encastelar presidentes da Câmara em uma arquitetura distante dos olhos da imprensa e do escrutínio público.
Ao levar o gabinete para um local que fica ao lado e com acesso direto ao plenário —onde funciona hoje a sala usada por repórteres de vários veículos que fazem a cobertura jornalística da Câmara—, Lira e seus sucessores ficarão a salvo, em prejuízo da transparência, de uma rotina que está no centro de alguns dos acontecimentos mais marcantes da história do país.
Em suma, nem ele nem os vários políticos e outros integrantes da sociedade que orbitam ao redor dos presidentes da Câmara precisarão mais passar diante das câmeras, microfones, gravadores e perguntas de jornalistas ao transitar entre o gabinete e o plenário, durante as votações.
E a depender da obra —cujos custos e detalhes ainda permanecem sob sigilo—, nem mesmo quando entrar ou sair da Câmara.
Cheguei à Sucursal de Brasília da Folha em fevereiro de 2003, sendo deslocado diretamente para ser setorista da Câmara —no jargão jornalístico, o repórter responsável pela cobertura diária de determinada instituição.[ x ]
Com isso, em vez da Redação, o meu posto fixo de trabalho por vários anos seguintes foram os salões, corredores, gabinetes e plenários da Câmara, tendo no comitê de imprensa —o local que Lira quer transformar em seu gabinete— o ponto de apoio para escrever as reportagens.
Um local sem mesa ou cadeira, amplo e todo acarpetado em tom verde, porém, sempre foi mais especial e marcante, para o trabalho de jornalistas e para a história.
Situado no coração da Câmara, com de cerca de 2.000 metros quadrados, o Salão Verde é exatamente o local a ser evitado por quem quer se esconder do escrutínio público.
É um dos espaços de maior circulação da Casa, por onde passam deputados, assessores, funcionários, visitantes, lobistas, jornalistas, entre vários outros, e que se transforma em um formigueiro humano no dia de votações importantes.
O vaivém se explica porque no salão estão as entradas do plenário onde ocorrem as votações, além de ser ponto de passagem para quem entra e sai da Câmara.
Em uma das extremidades opostas à das entradas do plenário está o corredor que leva às salas da presidência da Câmara. Ou seja, o principal caminho para chegar ao gabinete pela manhã, para sair à noite, e para ir ao plenário e voltar durante as votações passa, necessariamente, pelo Salão Verde. E por jornalistas que lá fazem plantão em busca de informações.
Foi exatamente no Salão Verde que momentos cruciais da história do país se desenrolaram. Foi lá, por exemplo, que o então presidente da Casa Eduardo Cunha (MDB-RJ) anunciou à imprensa, em dezembro de 2015, a deflagração do processo de impeachment de Dilma Rousseff (PT).
Foi lá também que, meses antes, Cunha foi alvo de protesto com uma chuva de notas falsas de dólar jogadas em sua direção quando ele dava entrevista à imprensa. E foi lá que, por diversas e diversas vezes, foi questionado por jornalistas, ao chegar ou sair da Câmara, ao transitar entre seu gabinete e o plenário, sobre as contas que tinha na Suíça —com a insistência e a firmeza que exigem o jornalismo independente e o interesse público.
Foi no Salão Verde, também, que Severino Cavalcanti (PP-PE), presidente em 2005, teve que explicar por várias vezes as acusações de que recebeu um mensalinho de um fornecedor da Casa, escândalo que lhe custou o cargo.
Para além dos casos de corrupção, os presidentes da Câmara são abordados principalmente sobre assuntos que estão na ordem do dia no país, já que ocupam um dos cargos dos mais importantes —o que define a pauta de votações da Casa, sendo o segundo na linha sucessória da Presidência da República.
Rodrigo Maia (DEM-RJ), por exemplo, teve que ali dar explicações e ouvir pressões em uma infinidade de ocasiões nos seus quatro anos e seis meses como presidente da Casa, em votações importantes que conduziu, como a da reforma da Previdência.
O desejo de se esconder dos holofotes e de só responder a perguntas em ambiente controlado, no momento em que julgar conveniente, é um desejo antigo na Câmara, que remonta, pelo menos, à gestão de João Paulo Cunha (PT), que comandou a Casa a partir do momento em que me tornei setorista da Folha no local, em 2003.
Sob o argumento da comodidade, de ter um espaço mais amplo para trabalhar e alocar assessores, de ter a rapidez de entrar e sair do gabinete durante as votações, e por alegadas questões de segurança, vários presidentes desde João Paulo acalentaram a proposta que, agora, Lira desengaveta.
Na hora H, porém, nenhum deles tocou o projeto pra frente, até pelas restrições históricas e legais, já que a área atualmente usada por profissionais da imprensa foi projetada por Oscar Niemeyer (1907-2012).
Falei com alguns deles. "Eu aconselharia o presidente Arthur Lira a não fazer a mudança, a não alterar uma tradição da Casa. Poderia parecer retaliação contra a imprensa, o que não seria bom para o início de sua presidência em um momento tão difícil do país", afirmou Aldo Rebelo (SP), que comandou a Câmara pelo PC do B em 2005 e 2006.
Embora diga considerar essa uma decisão exclusiva do presidente da Casa e que veja como natural a reorganização de espaços, Marco Maia (PT-RS), que presidiu a Câmara em 2011 e 2012, afirmou ser contra qualquer encastelamento.
"O presidente da Câmara precisa falar, dizer o que ele está pensando e ouvir o que a sociedade está pensando sobre os mais variados temas, afinal de contas o Parlamento é uma representação da sociedade. Quanto mais contato, mais próximo, mais ouvir a sociedade, menos ele vai errar na condução do processo legislativo."
A Câmara afirma que a obra não irá afetar o tombamento histórico, a arquitetura e os conceitos elaborados por Niemayer porque, em suma, não serão feitas alterações estruturais de monta —serão movidas apenas divisórias, além de mudanças elétricas e hidráulicas e no sistema de ar-condicionado.
Apesar de possivelmente haver aquisição de mobiliário novo, pretende-se usar como mão de obra contratos atuais de manutenção predial. A expectativa é que o novo gabinete da presidência da Câmara esteja pronto em meados de 2021, afirmam assessores.
Lira sempre foi um político de bastidores, avesso não só a discursos em plenário como ao contato com jornalistas —até esta quarta-feira (10), por exemplo, o novo presidente da Câmara não deu nenhuma entrevista coletiva, fez apenas pronunciamentos em que perguntas não foram permitidas.
Um dos maiores símbolos históricos da necessidade de extrema transparência por parte dos detentores de cargo público se materializou nas palavras do juiz da Suprema Corte dos Estados Unidos Louis Brandeis (1856-1941), segundo quem a luz do sol é o melhor desinfetante.
Brasília tem um pôr do sol que inunda diariamente as redes sociais. Como esse abaixo, visto a partir do comitê de imprensa da Câmara. O exato lugar que Lira quer ocupar com objetivos que destoam da célebre frase do juiz norte-americano, dita há mais de cem anos.
O Globo: Novo estudo comprova a 'boiada' de Salles na área ambiental
Pesquisadores compilaram 57 mudanças promovidas pelo governo Bolsonaro em dispositivos legais que enfraqueceram regras de preservação
Rafael Garcia, O Globo
SÃO PAULO - Um grupo de pesquisadores que compilou despachos federais de regramento ambiental no Brasil encontrou durante o governo Bolsonaro 57 dispositivos legais que se encaixam nas categorias de “desregulação” e “flexibilização”, enfraquecendo regras de preservação. Mais da metade das medidas foi expedida após o ministro Ricardo Salles ter dito em reunião que pretendia “passar a boiada” das propostas do Executivo para o setor, enquanto a pandemia de Covid-19 concentrava a atenção da mídia.
A pesquisa, que retrata um quadro de degradação do arcabouço de proteção ambiental no país, foi liderado pelas ecólogas Mariana Vale e Rita Portela, da UFRJ. As cientistas usaram para o estudo informações do projeto de transparência de dados Política por Inteiro, que lê o Diário Oficial da União usando robôs.
O grupo se concentrou nos chamados atos “infralegais”, decisões do Executivo que não dependem de aval do Legistativo, de vários ministérios, mas que tivessem impacto ambiental. Também incluíram no estudo dados de desmatamento e aplicação de multas ambientais. O resultado do trabalho foi descrito em um artigo no periódico acadêmico Conservation Biology.
“Encontramos uma redução de 72% nas multas ambientais durante a pandemia, apesar de um aumento no desmatamento da Amazônia durante o período”, escrevem os pesquisadores. “Concluímos que a atual administração está se aproveitando da pandemia para intensificar um padrão de enfraquecimento da proteção ambiental no Brasil.”
Flexibilização controversa
Entre as medidas destacadas pelos pesquisadores durante o período da pandemia está a que libera atividade de mineração em áreas que ainda aguardam autorização final, publicada em junho de 2020. Outra norma, no mês seguinte, reclassificou 47 diferentes pesticidas como de categoria menos danosa, sem respaldo em literatura científica.
De setembro passado, os cientistas destacam a medida que facilita autorização para pesca industrial. “A autorização sai sem qualquer tipo de triagem ou avaliação dos pescadores e de suas práticas”, afirmam os cientistas.
O estudo também comparou a taxa relativa de multas por desmatamento na Amazônia, e a comparou com o ano anterior.
Quando a área de floresta derrubada atingiu quase 120 mil km² por mês em agosto de 2019, nos dois meses seguintes a quantidade de multas por esse tipo de crime na região oscilou entre 40 e 60 por mês. No auge da primeira onda da Covid-19, o desmatamento também foi alto, com quase 100 mil km² derrubados num mês, mas as multas ficaram abaixo de 10 por mês.
O estudo também analisou mudanças de pessoal no Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio).
— Houve substituição de staff técnico em posições de chefia por staff não técnico, que foi marcada pela retirada de servidores com anos de experiência dentro das autarquias ambientais para serem substituídos, por exemplo, por policiais militares de carreira — afirma Erika Berenguer, ecóloga da Universidade de Oxford e coautora do estudo.
A reportagem encaminhou ao Ministério do Meio Ambiente uma cópia do estudo, mas não recebeu resposta até a conclusão desta edição.
Conrado Hübner Mendes: Centrão magistocrático se vende por menos
Para a violência bolsonarista, tempo é tudo; tempo a magistocracia sabe entregar
Para um Estado de Direito funcionar, não basta recrutar bacharéis que recitam leis e jargões, chamá-los de juízes e promotores, conferir-lhes garantias de independência e apertar o play. É recomendável saber quem são, de onde vêm, como pensam e por quanto se vendem. E deixar claro o que deles se espera ética e intelectualmente. E controlá-los.
Entre os obstáculos que emperram o Estado de Direito no Brasil, a hegemonia da magistocracia no sistema de justiça é dos mais ignorados. A magistocracia corresponde à fração de juízes e promotores que parasitam o interesse público e alimentam a corrupção institucional. Sua faceta rentista é só a mais visível.
A magistocracia rifa a legalidade e perde a dignidade, mas não perde a pecúnia. Vive e pratica o lema "crises econômicas são oportunidades, férias para vender, recessos para descansar e leis moralizadoras para retorcer". Se o teto salarial limita a remuneração, que a corporação enriqueça por meio de "verbas indenizatórias", mesmo que a distinção seja espúria.
Sabe-se que em torno de 35% da renda da magistocracia é composta por "extras", em geral isentos de impostos, e que algo próximo de 70% recebe acima do teto. Na pandemia, buscou ser vacinada primeiro. Como o trabalho remoto trouxe economia, aproveitou para quitar passivos acumulados com o dinheiro poupado. Procure saber que "passivos".
Em 2020, só com férias vendidas, o Judiciário gastou pelo menos R$ 423 milhões (revista Piauí). O "pelo menos" se deve à falta de transparência de alguns tribunais, como o TJ-RJ. O TJ-SP gastou R$ 116 milhões para "comprar" férias. O TJ-MG gastou R$ 326 milhões em auxílios.
Sobreviver no centrão magistocrático é mais fácil que no centrão partidário, pois não dependem de voto nem de eleitor. Precisam ter amigos na política, fazer permutas de legalidade e negociações de constitucionalidade. Centrão partidário e centrão magistocrático se ajudam.
Vejam Arthur Lira. Nessa semana, visitou o TJ de Alagoas. O mesmo tribunal que julga sérias acusações contra ele, de corrupção a violência doméstica. Seu presidente, Kléver Loureiro, investigado pelo CNJ, é defendido pela dupla de advogados de Lira. Kléver Júnior, que disputou a Prefeitura de Japaratinga, recebeu apoio público de Lira. "Demandas do Judiciário serão bem recebidas na Câmara", disse Lira, como noticiou site do próprio TJ.
Mas a magistocracia não é só rentista —é também autoritária e colaboracionista. Isso soa como hino militar nos ouvidos de Jair Bolsonaro. A acusação de crime tem pairado sobre si e sua família, e o risco de proteção judicial de liberdades constitucionais afronta seu governo. O processo de cooptação desse outro centrão está inconcluso, mas em disputa.
Augusto Aras tem feito sua parte. Para disfarçar seu passivo colaboracionista, depois de jogar o desastre de Manaus nas costas de prefeito e governador, abriu inquérito contra Pazuello e procedimento preliminar, que nem inquérito é, contra Bolsonaro. Iniciativas bem recortadas juridicamente para desconversar sobre os fatos e crimes mais graves e arquivar o mais rápido possível. Se a gratidão fosse a virtude de Jair, a vaga no STF já teria dono.
O cordão obstrucionista que a magistocracia armou para postergar ao infinito os casos criminais de Flávio Bolsonaro perpassa a gaveta de Gilmar Mendes no STF, algumas gavetas do STJ e do TJ-RJ.
No STF, três inquéritos afetam interesses imediatos de Bolsonaro: investigam bolsonaristas por fake news, atos pelo golpe militar encorajados por Bolsonaro, e intervenção do presidente na Polícia Federal.
São administrados como bombas de contenção, com resultados ainda incertos.
Também vêm do STF demoras úteis ao projeto bolsonarista, como proteção de indígenas e presidiários na pandemia, ou mesmo casos antigos que pisam na veia bolsonarista, como do tráfico de drogas, que dormita em gaveta esplêndida há seis anos, ou dos direitos de mulheres.
Para a violência bolsonarista, tempo é tudo. Tempo a magistocracia sabe entregar.Conrado Hübner Mendes
Professor de direito constitucional da USP, é doutor em direito e ciência política e embaixador científico da Fundação Alexander von Humboldt.
José Serra: Banco Central - Quando autonomia significa mais desigualdade
O Parlamento e o governo sabem que um dos legados da pandemia é o aumento da desigualdade social. Famílias sem acesso a recursos financeiros perdem renda e emprego, com seus filhos fora da escola, lutando pela sobrevivência. Além disso, não temos orçamento público aprovado nem planejamento financeiro para ajudar essa parcela significativa da população brasileira. É neste cenário que o presidente da Câmara resolveu pautar projeto que institui a independência política do Banco Central, o que tende a aumentar, mais ainda, essa desigualdade.
A proposta é moralmente perversa e deve ser rejeitada, pois a independência política de um Banco Central aumenta a já enorme barreira que separa ricos e pobres. Essa é a conclusão de pesquisadores do Banco Mundial em estudo publicado este ano a respeito do impacto da independência dos bancos centrais sobre a desigualdade:“Does Central Bank Independence Increase Inequality?”. Com sólida base teórica, os estudiosos do banco demonstraram a existência de correlação entre a independência do Banco Central e a desigualdade social. Chegaram a três conclusões de fácil compreensão.
Primeiro, a independência dos Bancos Centrais limita o alcance da política fiscal, o que limita a capacidade de um Governo para distribuir recursos. Segundo, incentiva a desregulamentação irresponsável dos mercados financeiros, beneficiando os investidores em bolsa, na medida em que infla os valores dos ativos negociados no mercado. Terceiro, promove indiretamente políticas que enfraquecem o poder de negociação dos trabalhadores, com o objetivo de conter pressões inflacionárias.
A autonomia política do Banco Central é uma pauta que inundou os países industrializados na década de 1970, ajudando a fomentar, na academia, a tese da superioridade da independência dos bancos centrais. Naquele período, muitas democracias aprovaram normas para conferir autonomia a suas autoridades monetárias, com o objetivo de tornar mais efetivo o controle das taxas de juros.
Depois da crise financeira de 2008, o cenário mudou bastante. Hoje os bancos centrais têm mandato que extrapola, de longe, aquele papel clássico de cinquenta anos atrás, em que as autoridades desses tinham, como única missão, executar a política monetária via definição da taxa básica de juros da economia.
Os bancos centrais modernos estão atuando na política monetária em coordenação com a política fiscal, injetando dinheiro para aquecer a economia. O projeto em discussão na Câmara dos Deputados chega a criar um mandato a mais para o nosso BC: promover crescimento e emprego. Esse novo arranjo institucional da política monetária é incompatível com o argumento da soberania política para o esse banco.
No cenário atual, a discussão sobre projetos para garantir independência política para o BC está completamente fora de hora. O Brasil vive uma pandemia das mais graves da história, com hospitais do SUS abarrotados de pessoas infectadas pelo coronavírus. Em algumas localidades, faltam balões de oxigênio para manter pessoas respirando. E o novo presidente da Câmara resolve mostrar serviço, tentando aprovar uma das reformas menos relevantes para o enfrentamento da crise.
Claramente estamos perdendo o foco ao discutir independência do Banco Central, justamente agora. A energia e o tempo do Congresso deveriam estar voltados para a aprovação, antes de mais nada, do orçamento, e discutir como viabilizar um socorro emergencial para as famílias que estão lutando pela sobrevivência. Nada é mais importante no momento.
Neste cenário, o Congresso deveria rejeitar qualquer proposta que possa promover maior desigualdade social. A pandemia já está atuando nessa direção, e o que temos que fazer no Parlamento é combater a desigualdade, como cabe a um poder autônomo da República.
*Jose Serra (PSDB-SP) é senador da República. Foi ministro da Saúde durante o governo de Fernando Henrique Cardoso (1998-2002), ministro das Relações Exteriores durante o governo de Michel Temer (2016-2017), governador de São Paulo e prefeito de São Paulo.
Cristiano Romero: País convive com herança estatal do II PND
Apesar das polêmicas, todo governo reduz Estado na economia
Embora não tenham desmontado inteiramente, até os dias atuais, o modelo nacional desenvolvimentista que faliu durante a crise da dívida, em 1982, todos os presidentes, desde então, diminuíram a participação do Estado brasileiro na economia. Praticamente todos privatizaram ou concederam ao setor privado a gestão de serviços públicos como rodovias, telefonia e aeroportos, algo, ainda hoje, impensável para os defensores de um Estado utópico, provedor de bens e serviços de qualidade.
O fato de todos os governos terem vendido estatais significa que o modelo de desenvolvimento exauriu-se, isto é, tornou-se insustentável do ponto de vista de seu financiamento tanto fiscal (recursos públicos) quanto externo (dívida bancária). O negacionismo dessa realidade - o pior defeito de um governante - por setores da burocracia estatal, do empresariado, da classe média e do meio político à esquerda e à direita produziu nas décadas seguintes a ruína econômica, traduzida pelo advento da hiperinflação, pela queda brutal da taxa média de crescimento do Produto Interno Bruto (PIB), pela deterioração da infraestrutura, pela forte contração das taxa de investimento dos setores público e privado etc.
O II Plano Nacional de Desenvolvimento (II PND) foi lançado em 1974, no governo Geisel (1974-1979), como resposta à crise internacional provocada pela primeira crise do petróleo. O objetivo, conforme anunciou o então presidente na ocasião, era evitar que a Ilha de Vera Cruz caísse numa recessão.
Bem, o II PND não foram medidas tópicas, conjunturais, como redução de impostos, corte de juros ou oferta de crédito oficial subsidiado, mas, sim, um amplo conjunto de iniciativas, envolvendo o governo, o setor privado e o capital externo. Foi a maior intervenção do Estado na economia na história deste território. O objetivo do II PND era dotar o país de infraestrutura comparável à de nações ricas, de um poderoso setor de bens de produção (nos setores siderúrgico, de química pesada, metais não ferrosos e minerais não metálicos) e de energia (petróleo e derivados, energia hidroelétrica e fontes alternativas como etanol e energia nuclear).
Foram durante aqueles anos que o número de estatais atingiu o ápice (382, segundo estudo da OCDE de 2017, realizado a partir de dados fornecidos pelo governo brasileiro). Toda a estratégia só seria viável se a taxa de juros, o custo dos quase US$ 100 bilhões que o país tomou emprestado na década de 1970, jamais subisse aqui e no mercado, “eppur si muove” (mas, ela se move).
Com a segunda crise do petróleo, deflagrada em 1979, a inflação americana escalou degraus até chegar a 20% e, para abaixá-la, o Federal Reserve (Fed, o banco central dos Estados Unidos) moveu as taxas de juros com a mesma intensidade.
Uma continha rápida, grosso modo, evidentemente: no início daquela década, o país chamado Brasil devia pouco mais de US$ 6 bilhões ao exterior e o juro no mercado internacional era negativo; no início da década de 1980, a dívida estava em US$ 100 bilhões, e a taxa de referência do Fed, acima de 20%. Que tal?
A crise da dívida, “a mãe de todas as crises”, se deu em 1982, quando o presidente era o general João Baptista Figueiredo, o último da longa ditadura militar (1964-1985) instaurada por aqui. Já movido pela necessidade de desidratar o Estado criado pelo II PND, Figueiredo instituiu o Programa Nacional de Desburocratização (Decreto n 83.740/79), liderado por Hélio Beltrão e o que mais fez pela “causa”, e criou a Secretaria Especial de Controle das Empresas Estatais (SEST).
“Foi a primeira manifestação concreta de uma preocupação com o gigantismo estatal, com o claro objetivo de introduzir uma primeira agenda de reforma do Estado”, diz Luiz Chrysostomo de Oliveira Filho, especialista no tema das privatizações, tendo trabalhado na modelagem de algumas operações quando trabalhou no BNDES. “A primeira Comissão de Especial de Desestatização foi criada em 1981 [Decreto Presidencial 86215/1981] e fixou normas para transferência e desinvestimentos das empresas controladas, identificando na ocasião 140 prontas para serem vendidas.”
No governo Sarney (1985-1990), o tema privatização começou a ser discutido e, pela primeira vez, associou-se a venda de estatais à redução do endividamento público interno e externo (via conversão de dívida). Até hoje, alguns críticos fazem muxoxo em relação a isso, esquecendo-se de um fato importante: aquela miríade de estatais foi criada às custas do endividamento interno e externo do país. Nada mais justo e razoável que o dinheiro arrecadado com a venda seja destinado à amortização da dívida.
O governo Sarney tentou, com a edição de vários decretos, ampliar o alcance do programa de venda das empresas, observa Chrysostomo, mas foi muito pressionado por grupos de interesses privados a não privatizar nada.
“O Brasil vem realizando diversas desestatizações há mais de 30 anos, incluindo-se modelos de venda de controle, vendas de participação minoritária, concessões públicas e parcerias público-privadas (administrativas ou patrocinadas), presentes em todos os entes da federação”, conta Chrysostomo, que trata do assunto no livro “Reforma do Estado no Brasil” (Atlas, 2020), organizado pelo economista Fabio Giambiagi.
Paulo Delgado: O assador Lira
Quando se formam maiorias predatórias, algo de atentatório à democracia emerge
Se o Executivo quiser humilhar a Câmara por considerar ridículo ter de respeitá-la, a maioria se esfarela. As conveniências venceram, mas como prego mal pregado na parede. Se o presidente não souber lidar com o poder, o humor do Legislativo não vai espelhar o do Executivo. E teremos o parlamentarismo do Centrão.
A concha acústica que seria colocada no ponto mais alto do terreno para projetar o grito de manifestantes para dentro do Congresso jamais foi construída. Mas o espelho d’água para desencorajar a multidão a invadir o prédio, esse, sim, foi aberto.
Senado e Câmara elegeram seus novos presidentes sob a indiferença dos brasileiros. No Senado não foi tanto vitória do governo. Foi o Senado, velho e sem se fazer de caduco, que escolheu um homem jovem, gentil, associativo para enfrentar uma política totalmente sem imaginação. O belo discurso de Simone sobre o mar, barcos e remos se perdeu nas ondas de procuradores imaturos e de um juiz que, se foi duro para perseguir grandes, se viu menor diante de um pequeno. Talvez por isso, a poesia logo foi suplantada pelo discurso de formatura do melhor aluno da turma de 2018.
Um senador sem freios apurou: Simone para lá, Rodrigo para cá, depois morreu. Que gente! Ninguém poderia imaginar que assim contassem votos no Senado da República.
Na Câmara foi diferente. Houve boxe, com socos combinados e frases dirigidas para acalmar a boa consciência de traidores engajados. SUS, rede de proteção social, pauta emergencial, cadeira giratória, todos conheço por nome. Clichês endereçados a aplastados partidos. Uff!
A matemática é inexorável. Dos 211 do bloco de Baleia, 145 votos ele teve. Assolador. Com 247 em seu bloco, Lira obteve 302 votos, revelando que os convencidos eram minoria diante dos dispostos a ser convencidos. Partidos de gente partida.
Não é o apocalipse. Mas há um parentesco natural entre Executivo e Legislativo quando um mesmo apetite adquire peso e a balança do destino coloca a vida perto da necessidade e do medo. Se o Congresso deu outra chance ao presidente, não deve imitar sua deformidade.
A relação com ele é incompatível com a emoção, como bem fez o Senado. Há emoções que ajudam a corrigir e reorganizar o caráter; há outras que o exacerbam. Há inversão de papéis se o Parlamento imagina manipular cordéis do Executivo. Certo que há parlamentares colegas acostumados com a longa prática da hipocrisia que é usufruir o mandato mais do que exercê-lo. Estranho é um número tão grande achar isso natural.
O governo pode ter posto o inimigo em casa. Já o Congresso pode ter armado uma rede em que ele próprio cairá. Se continuar comovido e aceitar suflê, será servido na mesma vasilha do forno sem imaginação do presidente. Em política a distração é cômica.
Todo esse vaudeville é sinal da luta do politeísmo pagão praticado pelos partidos. Alguma coisa lembra George Foreman e sua máquina de grelhar. A iniquidade que a chapa inflige à carne é que permite o triunfo glorioso do churrasco. Mal passado, bem passado ou cru, o assador Lira deve cuidar para produzir pouca fumaça num plenário em que uns nada querem entender, outros nada querem ver e a maioria só vê o que quer. O fácil se torna impossível. E quando se formam maiorias predatórias algo de atentatório à vida democrática emerge.
A tensão é de cabo de guerra. O governo não olha sequer os mortos. Mas a política é um padre mole que une os casais que parentes desaprovam. A hora do divórcio é que interessa em país onde os governos caem de dentro para fora.
Antes do primeiro churrasco Lira homenageia Niemeyer descrevendo a grandeza sutil da arquitetura do plenário. Minutos depois, assentado no trono, queima a carne passada. Anula a votação da Mesa e ataca Maia, inexoravelmente abandonado, sem condições de conter a velocidade da adesão. Fidelidade é guarda-chuva frágil; na tormenta, melhor táxi.
Inacreditável: as 35 propostas prioritárias são um gasto psíquico acreditar. Revelam como a política se desequilibra em desfavor da racionalidade quando os ideais se esgotam. Um amontoado que desvirtua conceitos, privilegia tontices para contornar o custo de enfrentar privilégios. Uma lembra o esquadrão da morte ao defender imunidade para policiais arbitrários. A miscelânea tem gás, água, luz, pedágio, pedofilia, Fräulein, startups, arma, índio e o emergencial é de 2019. Nada sobre os mandarins do Estado, vacina, pobreza, jovem, privilégio militar, desemprego. A incompreensibilidade e o desprezo pela economia fazem o Brasil refratário à evolução humana e a aspirações coletivas.
É uma cegueira fingir não ver que o artificial da economia vai estourar. Manter a estagnação econômica e apostar na pobreza dos não influentes para proteger os influentes da depressão é intelectual e moralmente pouco exigente. A razão da força paradoxal do presidente talvez seja o esforço que faz para manter o estado de crise e evitar que a paz seja um dia longa. Seu jogo parlamentar não se sustenta se metade do dia ele se dedicar à prosperidade de sua reeleição. E na outra metade a impedir a prosperidade da Nação.
*Sociólogo
Arminio Fraga, Miguel Lago e Rudi Rocha: O papel estratégico das prefeituras no futuro do SUS
Os espaços para avançar são enormes e atendem à mais importante prioridade da população
A pandemia de covid-19 revelou a urgente necessidade de uma revisão do papel do Estado e das políticas públicas, sobretudo na área da saúde. Dispor de cobertura universal e de sistemas de saúde robustos provou-se, mais do que um imperativo ético, um desafio prioritário e incontornável à luz dos riscos sanitários que o mundo enfrenta – os de agora e os que ainda estão por vir.
O Brasil construiu ao longo das últimas três décadas o Sistema Único de Saúde (SUS). O SUS produziu resultados extremamente importantes, mas muitos desafios persistem. No longo prazo parece-nos claro que o orçamento para a saúde pública terá de crescer significativamente.
No entanto, enquanto não se repensam as prioridades orçamentárias do País, é necessário concentrar esforços na busca de ganhos de equidade e qualidade que possam ser alcançados sem grandes custos adicionais. A atuação dos 5.570 municípios poderá ser decisiva para a melhora do sistema.
Listamos abaixo cinco linhas de ação fundamentais a implementar localmente, que resultam da Agenda Saúde desenvolvida pelo Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (Ieps) e pelos Institutos Arapyaú e Impulso.
A primeira tarefa dos novos prefeitos deveria estar focada em reduzir fatores de risco para a saúde da população por meio de uma política integral de promoção de saúde. Os municípios devem assumir a responsabilidade de zelar pela qualidade do ar, da água, da habitação e da alimentação de seus cidadãos. Podem, por exemplo, incentivar a criação de espaços saudáveis, fomentar a prática de exercícios físicos e limitar o consumo de alimentos ultraprocessados e de açúcares nas escolas. Uma população mais saudável significa mais bem-estar e menor sobrecarga do sistema de saúde.
A segunda é melhorar a capacidade de monitoramento e vigilância sanitária e epidemiológica dos municípios. Tal providência deveria ocorrer de forma integrada com os serviços de atenção primária e com metas claras de redução da mortalidade e da morbidade por causas infecciosas. Prevenção, vigilância e assistência coordenadas deveriam ser capazes de evitar e resolver uma parte substancial dos problemas de saúde da população.
A terceira tarefa é expandir a cobertura da atenção básica e torná-la mais resolutiva. Nesse quesito, cabe dar às equipes do Estratégia Saúde da Família (ESF) mais autonomia e primazia na regulação do acesso aos serviços de média complexidade, de diagnóstico e de especialistas. Em especial, é necessário integrar melhor o atendimento na atenção primária a tais serviços. Expandir o acesso ao ESF a todos os cidadãos é possível e teria um retorno inestimável para o sistema. Deveria ser meta explícita de governo.
Mas não basta ampliar, é necessário melhorar a qualidade. Por exemplo, experimentar novas configurações das equipes. O atendimento à saúde ainda tende a ser muito centrado no médico, dando pouca autonomia aos outros profissionais de saúde. Aumentar a participação da enfermagem na produção ambulatorial seria um primeiro passo importante nessa direção.
Outro espaço promissor seria remodelar os sistemas de pagamento e a relação com os prestadores privados de serviços. Sistemas que remuneram com base nos resultados de saúde – e não por procedimento – conseguem diminuir custos e aumentar a qualidade e a eficiência. Evidências científicas indicam que a porta de entrada do sistema, quando bem administrada e com recursos suficientes, pode resolver 80% dos problemas de saúde da população. Dessa forma se aliviariam as demandas por serviços hospitalares, principalmente o atendimento de urgência e emergência, que em muitas cidades do País já estavam à beira do colapso antes mesmo da pandemia.
A quarta tarefa: pautar as decisões da prefeitura de acordo com dados e indicadores de saúde da população e fazer um monitoramento sistemático dessas métricas. Assim seria possível alavancar o que estiver certo e corrigir rumos quando necessário.
Por fim, porém não menos importante, os municípios devem trabalhar e alocar os seus recursos de maneira coordenada com os seus vizinhos e com o governo estadual. Para isso existem as regiões de saúde – agrupamentos de municípios que constituem uma entidade intermediária do sistema, entre os municípios e o governo do Estado –, hoje pouco exploradas. É inadmissível existir em cada um dos milhares de municípios brasileiros um hospital de referência ou serviços de mais alta complexidade e que demandam escala. A alocação de recursos deve ser planejada e mais bem coordenada. A existência do SUS deveria permitir avanços mais rápidos nessa direção, como já demonstram alguns Estados.
Com essas propostas pretendemos auxiliar os novos governos a melhorarem as políticas de saúde. Os espaços para avançar são enormes e atenderiam ao que é hoje a mais importante prioridade da população.
RESPECTIVAMENTE, PRESIDENTE DO CONSELHO DO INSTITUTO DE ESTUDOS PARA POLÍTICAS DE SAÚDE (IEPS); DIRETOR EXECUTIVO DO IEPS; DIRETOR DE PESQUISA DO IEPS E PROFESSOR DA FGV-EAESP
Ruy Castro: Nós aos olhos dos outros
A crueldade, o crime, a mentira, o hábito doentio de corromper. É o que temos para o momento
O Brasil ignorado lá fora? Nem pensar. Com Deus acima de todos e Bolsonaro acima de tudo, o mundo não tira o olho de nós. Se duvida, eis algumas manchetes recentes:
"Brasil fez a pior gestão do mundo na pandemia, diz OMS". "Com Bolsonaro, Brasil mantém recorde em índice de corrupção na Transparência Internacional". "Biden convoca cúpula do clima em abril e coloca em xeque posição do Brasil". "Corte Interamericana de Direitos Humanos vai julgar o Brasil por omissão na proteção de mulheres e embriões". "Com um assassinato a cada oito dias, Brasil ocupa segundo lugar em ranking da ONU sobre morte de ativistas".
"EUA [leia-se ainda sob Trump] barram tentativa do Brasil de avanço na OMC". "Bolsonaro expõe o Brasil ao ridículo ao ameaçar EUA com pólvora". "Biden ri ao ser perguntado sobre conversar com Bolsonaro". "China felicita Biden e reduz grupo de países fiéis a Trump; Brasil é um deles". "OCDE freia entrada do Brasil em grupo ambiental por política de Bolsonaro para a área".
"Brasil está no topo do ranking de fraudes com dados de cartões". "Brasil quer doar 1 milhão de testes de Covid quase vencidos ao Haiti. Hospitais brasileiros se recusam a receber testes prestes a vencer". "Brasil deve R$ 10,1 bi a organismos mundiais. Itamaraty alerta para risco de sanções por atrasos".
Uma vergonha? Nem tanto. Afinal, as manchetes sobre nossos assuntos domésticos são: "'Finalzinho' de pandemia tem alta de casos em 21 estados. Declaração de Bolsonaro ignora UTIs lotadas em sete capitais". "Governo foi avisado com duas semanas de antecedência sobre possível tragédia em Manaus". "Bolsonaro usou cinco ministérios, militares e estatal para difundir cloroquina". "Presidente manda imprensa enfiar latas de leite condensado no rabo". Etc. Você escolhe: a estupidez, a mentira, o hábito doentio de corromper, a crueldade, o crime. É o que temos para o momento.
Bruno Boghossian: Bolsonaro age como comentarista de problemas do próprio governo
Presidente fala de temas espinhosos como se tivesse perdido a eleição de 2018 e voltado para a Barra da Tijuca
Outro dia, um sujeito parou na portaria do Palácio da Alvorada e reclamou do preço dos combustíveis. Disse que os impostos eram muito altos e que a margem de lucro das distribuidoras era grande demais. "Está todo mundo errado, no meu entendimento. Pode ser que eu esteja equivocado", ponderou.
A queixa poderia ter sido feita por qualquer um dos apoiadores que passam por ali todos os dias, mas o autor daquele lamento foi o presidente da República. Como se não tivesse poder nas mãos ou obrigações no cargo que ocupa, Jair Bolsonaro prefere agir como comentarista de assuntos espinhosos que cercam seu próprio governo.
O presidente fala dos problemas do país como se tivesse perdido a eleição de 2018 e voltado para a Barra da Tijuca. Na segunda-feira (8), ele citou o aumento de preços da cesta básica, mas não apresentou uma ideia razoável para amortecer os impactos dessa alta. "O povo está empobrecendo", refletiu. "Devemos buscar uma solução, e não passa apenas pelo presidente da República."
Não é raro ver Bolsonaro como um palpiteiro instalado no Palácio do Planalto por acidente. No mesmo dia em que examinou a inflação dos alimentos, ele também citou a possibilidade de extensão do auxílio emergencial como algo que só tinha ouvido por aí. "Já se fala em novas parcelas", afirmou. "Eu acho que vai ter, vai ter uma prorrogação."
No caso da vacina contra o coronavírus, Bolsonaro foi mais eficiente em sua sabotagem às ações oficiais do que agora, depois que resolveu mudar de direção para evitar prejuízos políticos. O presidente assumiu o papel de testemunha ao falar sobre o atraso na chegada de insumos: "Tudo é difícil no mundo".
Na função de espectador, Bolsonaro persegue dois objetivos. Primeiro, busca demonstrar camaradagem com apoiadores que criticam o governo pelo diesel caro ou pela falta do auxílio emergencial. De quebra, ele tenta abrir mão de suas responsabilidades como governante –uma especialidade presidencial.