Adriana Fernandes: Com trocas em ministério, Guedes quer melhorar diálogo com o Congresso
Mudanças podem melhorar o ambiente de negociação, mas o Centrão segue com a pressão pela diminuição dos domínios de Guedes
A possibilidade de formação de um novo trio na linha de frente da política fiscal – Bruno Funchal, Jefferson Bittencourt e Ariosto Antunes Culau – é a aposta do Ministério da Economia para melhorar o diálogo com o Congresso, a Esplanada dos Ministérios, o mercado e também a sociedade.
Os três têm em comum o fato de serem técnicos com robusto conhecimento na área fiscal, mas também contam com experiência de diálogo – habilidade que faltava ao secretário Especial de Fazenda, Waldery Rodrigues.
Waldery deixará o cargo em mais uma reformulação da equipe econômica, na sequência da saída de vários secretários que integraram o time original, formado na transição de governo no final de 2018.
Entre os técnicos do Ministério da Economia que lidam diariamente com o “chão de fábrica” dos crescentes problemas orçamentários e fiscais, a troca é considerada bem-vinda, e os nomes dos substitutos considerados muito bons. Uma janela para diminuir o desgaste sofrido ao longo do ano no embate orçamentário e das medidas econômicas de combate à pandemia, como o auxílio emergencial.
O momento é particularmente difícil porque os próximos meses serão de arrocho nas contas do governo depois do corte no Orçamento para atender ao acordo político com o Congresso e manter o aumento das emendas parlamentares. Se não segurarem esse rojão, o acordo não vai funcionar.
A pressão é grande porque há risco de paralisação de programas importantes, como o Censo de 2021 e tantos outros, o que tem ampliado o desgaste do ministro da Economia, Paulo Guedes, e da sua equipe.
Há também um clima de revolta entre os demais ministros com o corte das despesas e pressão política para divisão do “Superministério da Economia”, criado no início do governo.
O diagnóstico é que Guedes precisa ganhar tempo até que a situação fique mais favorável para começar a reversão do bloqueio nos gastos que foi feito no Orçamento. Esse aperto fez parte do acordo fechado entre o Planalto e as lideranças do Centrão para a sanção do Orçamento (com vetos parciais).
No meio da briga por recursos e discussões eternas sobre regras fiscais para liberação de gastos fora do teto de gastos, que se prolongam desde o ano passado, lideranças governistas e ministros da ala política do governo pediram a cabeça de Waldery. Os políticos não o enxergavam como interlocutor e reclamavam da falta do antigo Ministério do Planejamento para uma negociação mais “olho no olho”.
No Ministério da Economia, já tem tempo que ninguém mais escondia os problemas dentro da equipe com Waldery, antes mesmo de o presidente Bolsonaro o ter “demitido” por ter antecipado medidas não acordadas internamente sobre o congelamento de benefícios previdenciários para abrir espaço para medidas de corte de gastos.
A relação com Waldery sempre foi conflituosa e o ministro, na realidade, perdeu o timing dessa troca no final do primeiro ano do governo. Como não o fez, a história ficará pelo último ato. As mudanças podem melhorar o ambiente de negociação, mas as lideranças do Centrão seguem com a pressão pela diminuição dos domínios de Guedes.
*REPÓRTER ESPECIAL DE ECONOMIA EM BRASÍLIA
Fernando Exman: O receituário do diversionismo
Agenda positiva visa proteger imagem de um governo acossado
Acossado por uma comissão parlamentar de inquérito, em tensão permanente com os outros Poderes e em meio a dificuldades para combater tanto a pandemia quanto seus efeitos econômicos, o governo fará de tudo para lançar, dia após dia, notícias que busquem desviar a atenção dos problemas que acometem o país.
O programa de governo deu lugar a um plano de sobrevivência política. Este, por sua vez, permanece a reboque das turbulências que a própria administração Jair Bolsonaro cria.
Começaram a usar a receita do bolo mais servido na capital federal em tempos de crise: quando há algo errado, coloca-se a culpa na comunicação. Em seguida, é retirada do bolso do paletó uma lista com medidas concretas ou propostas genéricas, muitas das quais com poucas chances de prosperar sem o uso de fermento. Pouco importa. A finalidade é agradar o paladar do investidor ou melhorar a imagem do Brasil na vitrine.
Arremata-se culpando inimigos imaginários ou terceirizando responsabilidades. E isso é feito sem pudor, mesmo que riscos tenham sido identificados previamente e soluções, sugeridas.
Já foi recuperada da geladeira a reforma tributária. É tarefa inglória encontrar algum governador que vislumbre um debate sereno da proposta ou até mesmo a sua aprovação no curto prazo.
Outras ideias começam a ser colocadas em prática. Bolsonaro assinou, enfim, a medida provisória que reinstitui o Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda (BEm). Não eram poucas as críticas, entre empresários, à demora na reedição do pacote. Ao promover uma reunião extraordinária do Conselho do Programa de Parcerias de Investimentos (PPI), colegiado responsável pela implementação de medidas de desestatização, o Executivo tenta também iluminar novamente a agenda liberal, que vem perdendo sua luz própria.
O mesmo esforço se vê na área ambiental, onde o governo Jair Bolsonaro esboça uma inflexão. Mas precisa correr contra o tempo, se de fato estiver decidido a calibrar as políticas públicas voltadas ao setor.
A cúpula organizada pelos Estados Unidos acabou por mostrar ao governo o que já era evidente para a iniciativa privada. Sem ter acesso direto ao colega americano, o presidente Jair Bolsonaro precisou registrar por escrito a nova abordagem que pretende dar ao tema. Acabou tendo uma passagem apenas protocolar pelo encontro, onde fez uma série de promessas que passarão a ser objeto de monitoramento.
No entanto, além de lidar com suas próprias idiossincrasias, o governo brasileiro vai precisar se apressar para implementar novas ações e torná-las perceptíveis ao público. Isso porque não demorará a chegar o período do ano em que ocorrem as queimadas na Amazônia e em biomas como o Cerrado ou o Pantanal. Existe ainda a preocupação com a possibilidade de haver alguma descontinuidade das ações das Forças Armadas na Amazônia.
A Operação Verde Brasil 2, voltada a combater ilícitos ambientais e focos de incêndio, expira na sexta-feira. Setores do governo defendem a edição de um decreto instituindo uma nova operação de garantia da lei e da ordem, com o intuito de assegurar que o Estado permaneça presente na região. Até ontem, esse ato insistia em ficar de fora das páginas do “Diário Oficial da União”.
O que já se sabe é que pelo menos será feita uma transição baseada no “Plano Amazônia 2021/2022”, documento aprovado depois de discussão no Conselho Nacional da Amazônia Legal.
Quem comanda o colegiado é o vice-presidente Hamilton Mourão, que deu maior peso institucional às discussões e reforçou, por exemplo, a percepção sobre a necessidade de se proporcionar maior protagonismo à Organização do Tratado de Cooperação Amazônica (OTCA). Essa é uma ideia defendida há tempos tanto por diplomatas como por militares, a despeito das diferenças políticas existentes entre os governantes dos oito países que integram a instituição - Bolívia, Brasil, Colômbia, Equador, Guiana, Peru, Suriname e Venezuela.
Na visão deles, depois da implosão da União das Nações Sul-Americanas (Unasul) e do Conselho de Defesa Sul-Americano, a OTCA poderia servir de plataforma institucional para coordenar as políticas regionais, inclusive quanto a iniciativas de segurança, controle fronteiriço e combate a ilícitos transnacionais.
Curiosamente, a organização é sediada em Brasília, mas o país vinha desdenhando de sua potencialidade. Se aproveitada na plenitude, a OTCA pode recolocar o Brasil no debate ambiental, fortalecendo sua posição na região e dando eco ao discurso nacional nos organismos multilaterais.
A instituição vem mantendo contato direto com a União Europeia, instituições financeiras e agências das Nações Unidas. Pretende ainda atuar como entidade observadora na Assembleia-Geral da ONU. Ou seja, a ideia é promover o posicionamento conjunto dos países amazônicos nos ambientes multilaterais, inclusive defendendo bandeiras caras ao Brasil, como o aumento das contribuições financeiras de países desenvolvidos.
Enquanto isso, ela já tem agido, no limite de suas capacidades, na promoção do desenvolvimento sustentável. Desenvolve projetos voltados à água, ao saneamento básico, à proteção das florestas e ao combate a incêndios, mas precisa de um impulso político ainda maior para ampliar seus horizonte de atuação.
Isso consta do mapa estratégico produzido sob a coordenação de Mourão, que acabou sem os instrumentos executivos necessários para assegurar a implementação dessas e de outras diretrizes definidas no âmbito do Conselho Nacional da Amazônia Legal. Seu papel nunca agradou alguns ministros, mas agora isso pode até ser útil para Bolsonaro. Não será surpresa se o vice for injustamente responsabilizado pelos problemas que possam surgir, até porque o destino eleitoral de Mourão já está excluído dos planos do presidente.
Ricardo Noblat: CPI da Covid-19 decola e ameaça abater o governo que voa baixo
Um bando de amadores
Sem querer ofender os pets, 27 de abril de 2021 ficará marcado como mais um dia de cão para o presidente Jair Bolsonaro e seus filhotes. Tudo aconteceu no período da manhã, a saber:
1) O Senado instala a CPI da Covid-19 com Renan Calheiros (MDB-AL) como relator e o governo em minoria;
2) O general Luiz Eduardo Ramos, chefe da Casa Civil, confessa que se vacinou às escondidas para que não pegasse mal para ele;
3) O ministro Paulo Guedes, da Economia, diz que o vírus é chinês e que a vacina americana é melhor do que a vacina chinesa.
Enquanto isso, distraído, Bolsonaro confraternizava bem humorado com devotos nos jardins do Palácio da Alvorada e plantava mais uma notícia falsa, desta vez contra o PT.
Segundo ele, há um vídeo que mostra Lula, Dilma, Haddad, e atrás deles, dois homens se beijando. “Beijo de língua”, garantiu, “coisa que nem homem e mulher fazem em público”.
Pensando melhor, talvez não tenha sido mais um dia de cão para Bolsonaro e seus descendentes, mas um dia normal na vida de um governo radicalmente diferente dos que o antecederam.
O senador Flávio Bolsonaro (Patriotas-RJ) chamou de “ingrato” Rodrigo Pacheco (DEM-MG) porque ele pouco fez de fato para barrar a criação da CPI.
Lembrou que Pacheco teve a ajuda do seu pai para se eleger presidente do Senado, e que por isso “deveria ter nos procurado” para avaliar a conveniência ou não da CPI.
Ingrato foi Flávio. Pacheco só concordou com a instalação da CPI por ordem do Supremo Tribunal Federal. O Tribunal Regional Federal derrubou a liminar de um juiz que tentou abortar a CPI.
Bolsonaro, pai, e seus filhos zero estão convencidos de que Pacheco cobiça a presidência da República nas eleições do ano que vem, e que por isso se distancia deles.
“Vão usar os caixões dos quase 400 mil mortos para fazer política contra o governo federal”, acusou Flávio. Como se seu pai não usasse a pandemia para fazer política também.
O senador da rachadinha teve que engolir uma invertida que levou de Calheiros: “É a primeira vez que [Flávio] se preocupa com aglomeração… Deve estar saindo do negacionismo”.
Nada superou, porém, as intervenções do general Ramos e de Guedes durante a reunião do Conselho de Saúde Suplementar, transmitida ao vivo no site do Ministério da Saúde.
Os dois não sabiam da transmissão. Quando souberam, já era tarde. O vídeo foi retirado do site, mas se espalhou nas redes sociais, o que dá a medida do amadorismo dessa gente.
Primeiro, Ramos afirmou:
“Tomei escondido, porque a orientação era para não criar caso, mas vazou. Eu não tenho vergonha, não. Tomei e vou ser sincero. Como qualquer ser humano, eu quero viver, pô. E se a ciência está dizendo que é a vacina, como eu posso me contrapor?”.
Não satisfeito, acrescentou:
“Eu estou envolvido pessoalmente tentando convencer o nosso presidente [a tomar a vacina], independente de todos os posicionamentos. Nós não podemos perder o presidente por um vírus desse. A vida dele, no momento, corre risco”.
Entre os 3.500 servidores da presidência da República, 460 já se infectaram com o vírus, o que representa uma taxa de contaminação de 13% – maior do que a média brasileira, de 6%.
A China é o maior parceiro comercial do Brasil no mundo. Mexeu com ela, mexeu com o agronegócio. A Coronavac representa 84% das vacinas aplicadas no Brasil até agora. Guedes tomou.
Mas isso não o impediu de acicatar os chineses:
“O chinês que inventou o vírus. E a vacina dele é menos efetiva do que a americana. O americano tem 100 anos de investimento em pesquisa. Então, os caras falam: ‘Qual é o vírus? É esse? Está bem, decodifica’. Está aqui a vacina da Pfizer. É melhor”.
A vacina da Pfizer não foi desenvolvida por americanos, mas por alemães de origem turca – o casal de cientistas que é dono da empresa BioNTech. Guedes não sabe o que diz.
Quanto à suposição de que o vírus foi inventado por chineses, a Organização Mundial da Saúde considera a hipótese improvável. Como Bolsonaro, Guedes admira tudo que seja “Made in USA”.
O Brasil registrou 3.120 mortes pela Covid-19 nas últimas 24 horas, totalizando 395.324 óbitos desde o início da pandemia. Faltam vacinas e o Ministério da Saúde está perdidinho da Silva.
Anunciou que em breve estaria vacinando 1 milhão de pessoas por mês. Depois recomendou que se aplicasse a 2ª dose em quem não tomou a 1ª. Recuou mais tarde, e agora voltou a recomendar.
Rosângela Bittar: Sinfonia em meio à barbárie
Livro de Aldo Rebelo transforma releitura da história política em instantâneo da atualidade.
No capítulo 12 do seu livro O Quinto Movimento – propostas para uma construção inacabada, a ser lançado nos próximos dias, o ex-ministro da Defesa Aldo Rebelo transforma o que seria uma releitura da história política brasileira em um instantâneo da atualidade. Sua visão sobre os desafios impostos à democracia revela que não tem sido fácil mantê-la sob Jair Bolsonaro.
Sem citá-lo nominalmente, traça um retrato da ameaça à República exercida pelo comandante supremo das Forças Armadas, o presidente. As instituições democráticas, na sua avaliação, perdem prestí- gio, identidade e substância.
Bem escorado na disciplina de sua formação marxista, a que agrega experiência e trânsito entre políticos de todas as tendências, Rebelo defende, entre suas principais teses, a construção de um governo forte. Tão forte quanto democrático, com equilíbrio entre os poderes.
O problema não está só no Executivo. A situação crítica em que se transformou a atuação do Supremo Tribunal Federal (STF), alvejado por todos os lados tanto pelo Executivo quanto pelo Legislativo, está arrolada como um dos maiores desafios. “Após a constituinte de 88, quando os militares se afastaram, procedeu-se à judicialização da política e, por consequência, a politização do Judiciário.”
Este desequilíbrio permanece e se amplia a cada dia, em meio à turbulência de um país de política convulsionada, em que recrudesce e se aprofunda o confronto entre parlamentares, magistrados e presidente da República. Problemas claramente expostos nos episódios mais recentes, que culminaram, ontem, com a instalação da CPI da Covid, no Senado, e a abertura, na Câmara, do debate sobre o episódio da apreensão de madeira ilegal na Amazônia. Uma reação do Congresso ao massacre de ignorância que o governo Bolsonaro impõe à sociedade.
Enquanto se desenvolve esta luta de campo aberto, surge, da quarentena da pandemia que nos esmaga, o inesperado livro de testemunhos e reflexões de Aldo Rebelo, um roteiro completo para debater o Brasil.
Político que viveu, em extensão e profundidade, como protagonista, diferentes facetas da política brasileira, Rebelo reúne uma experiência singular. Líder estudantil da época da ditadura, exerceu a presidência da UNE, seis mandatos de deputado federal e a presidência da Câmara. Foi ministro da Defesa, do Esporte, da Ciência e Tecnologia, da Coordenação Política, funções em que entrou e de que saiu sem acusações ou processos.
Aldo Rebelo sistematiza os episódios, em seu livro, com a criatividade de quem escreve uma sinfonia. Mais do que um nacionalista, como definido por todos, desde sempre, é um patriota apaixonado. E amplia, a cada dia, a confiança no seu estilo de fazer política: rigor na atenção aos diagnósticos e tolerância nas soluções.
Os sentimentos que criou com relação ao Brasil e aos brasileiros se forjaram na cena de abertura do livro. “A primeira vez que me dei conta do mundo, estava sobre um cavalo. Meu pai trabalhava em uma fazenda. Lembro que ele chegou a cavalo e me pôs montado. Eu devia ter uns três anos e vi outra dimensão do mundo. O mundo visto de cima: o rio, o horizonte, os campos. Data dessa época minha admiração, respeito e paixão pelos cavalos.”
Escrito durante a quarentena da pandemia, que Aldo Rebelo passou no Sítio Amazonas, em Viçosa, Alagoas, em companhia de sua mãe e sua mulher, o livro, de 249 páginas, tem bela ilustração de Elifas Andreato e Agélio Novaes e edição da JÁ, de Porto Alegre. Os 21 capítulos de O Quinto Movimento permitem uma visão otimista da história do Brasil, com intervenções de fatos do presente que lhe dão dinamismo.
No repertório que apresenta, com argumentos de plataforma, figuram economia e futebol, mulheres e índios, militares e diplomacia, educação e desigualdade, agricultura e Amazônia, campos nos quais se especializou nos últimos mandatos.
Carlos Melo: Fragilidade política e ruas definirão jogo
CPI é território em disputa: a oposição quer enfraquecer e, se puder, derrubar o governo; governistas agem na contenção de desgastes do Executivo. As condições iniciais tampouco independem de circunstâncias mais gerais, localizadas no governo e no país. Ao final, serão as condições de contorno – a insatisfação popular e a fragilidade política – que definirão o jogo.
Sempre houve abuso na utilização de CPIS. Oposições sem projeto e oportunismo fisiológico as usaram descoladas do contexto mais amplo. Normalmente, “deu em nada”. Mas, o oposto também se deu: a “CPI do PC Farias” derrubou Collor; a “CPI dos Correios” resultou no mensalão e destroçou promissoras lideranças do PT. Nos dois casos, a insatisfação geral se dava para além do objeto da CPI.
Hoje, a população está recolhida ao isolamento social da pandemia. E, por enquanto, não há mobilização de rua, elemento que potencializa as CPIS. Mas, à parte disso, as condições de contorno são notoriamente insatisfatórias.
Em 60 dias, o País chegará a 500 mil mortes, infelizmente. A situação econômica é deplorável: desemprego e fome tomam o cotidiano das famílias. A base governista é arenosa, como se viu no conflito do Orçamento. O governo está internamente fracionado, ministros sob fogo cerrado. Velhos aliados estão ressentidos e a imagem internacional é péssima.
O presidente e seu séquito são máquinas de disparates. Campeões de tiros nos pés, se desviam a atenção, também agravam a situação. A inabilidade política e a incapacidade de articulação atingem patamares inéditos. Não faltam condições de contorno desfavoráveis para que a CPI prospere.
Faltam as ruas. Mas, quanto mais rápido avançar a vacinação, maior a possibilidade de grandes mobilizações. Arrastar a CPI e estender seus ritos será mais um erro. Com quatro senadores e tudo o que ocorre no País, será difícil dominar o território em disputa.
*Cientista Político, professor do Insper
Miguel Caballero: Os recados de Renan para Bolsonaro e os militares na abertura da CPI da Covid
Não faltaram recados e indiretas a Jair Bolsonaro, embora Renan Calheiros tenha evitado citar nominalmente o presidente da República. Em seu discurso na primeira sessão da CPI da Covid, o relator, porém, foi mais direto ao falar das Forças Armadas, botando o dedo diretamente na relação que é uma das principais bases de apoio do governo Bolsonaro.
Em dois anos e meio, os militares apoiaram o presidenciável Jair Bolsonaro, ocuparam muitos postos na administração federal e, em que pesem alguns estremecimentos e rompimento com os que foram demitidos do governo, os principais atritos entre o presidente e os militares se restringiram à preocupação manifestada fora dos microfones de que um mau desempenho do governo contamine a imagem das Forças Armadas. Esse ponto jamais esteve tão em risco como agora, e a CPI será um novo teste da solidez dessa aliança.
Não se trata de esperar que os militares, categoria longe de ser homogênea, abandone ou não o presidente. Mas o Exército, especialmente, dificilmente escapará do escrutínio da CPI, e precisará limitar até que ponto poderá dividir responsabilização sobre erros da crise com o governo.
A fala de Renan tocou em pontos sensíveis na caserna. Citou as “454 mortes em combate na Segunda Guerra Mundial”, episódio quase sagrados para as Forças, lembrando em seguida que diariamente morre um número maior de brasileiros. “O que teria acontecido se tivéssemos enviado um infectologista para comandar nossas tropas?”, perguntou Renan. “Porque guerras se enfrentam com especialistas, sejam elas bélicas ou sanitárias. A diretriz é clara: militar nos quartéis e médicos na Saúde. Quando se inverte, a morte é certa. E foi isso que aconteceu”.
É muito possível, porém, que a CPI tenha de ir além da participação de militares na gestão de Eduardo Pazuello. Embora Renan tenha dito em seu primeiro discurso que “não é o Exército que estará sob análise”, as investigações que a comissão fará sobre propaganda e distribuição de remédios sem eficácia cientificamente comprovada pode alcançar a compra de insumos e produção da hidroxicloroquina pela Força. O Exército, inclusive, já foi instado pelo Tribunal de Contas da União a, juntamente com o Ministério da Saúde, prestar esclarecimento sobre os gastos com a produção e distribuição do remédio.
Uma eventual convocação de um militar da ativa, fardado, a dar depoimento na mesa da CPI, é uma cena com grande potencial de danos à imagem das Forças Armadas.
O último comandante do Exército, general Edson Pujol, perdeu o posto após divergência públicas com o presidente no discurso de combate à pandemia.
No seu retorno ao protagonismo do noticiário político, Renan Calheiros reservou também outros recados. Um dos principais articuladores da resistência da classe política à Lava-Jato, repetiu no discurso ataques ao ex-juiz Sergio Moro — “não vou condenar ninguém por convicção” — e aos procuradores da antiga força-tarefa de Curitiba — “aqui nessa CPI não vai ter PowerPoint”.
Opositor ao governo Bolsonaro, o senador não perdeu a oportunidade de lançar uma alfinetada ao procurador-geral da República, Augusto Aras. Numa referência indireta à inércia da PGR para investigar possíveis crimes do presidente na pandemia, Renan afirmou que “CPIs vicejam quando os canais tradicionais de investigação se mostram obstruídos e isso é um ensinamento histórico”.
Por fim, fez também uma provocação a Bolsonaro, mesmo sem citá-lo. Ao elogiar o Supremo Tribunal Federal (STF) por ter garantido à minoria do Senado o direito de instalação da CPI após atingir as assinaturas necessárias, afirmou que o tribunal foi “terrivelmente democrático”, fazendo questão de usar o advérbio preferido do presidente sempre que afirma, há dois anos, que indicará um evangélico para o Supremo.
Bernardo Mello Franco: O primeiro milagre da CPI
A CPI da Covid já produziu seu primeiro milagre: transformou Flávio Bolsonaro num defensor do isolamento social. Ontem o senador tentou convencer os colegas a deixar a investigação para depois. “Por que não esperar todo mundo se vacinar?”, sugeriu.
A preocupação tardia com a doença não foi a única surpresa do discurso. Com a pele bronzeada pelas férias no Ceará, o primeiro-filho atacou o presidente do Senado, o relator da CPI e até a bancada feminina. O falatório não virou votos para o governo, mas escancarou o desespero do clã presidencial.
Pelo que se viu ontem, a família tem motivos para temer a comissão. Na sessão inaugural, a tropa bolsonarista levou um baile. Flávio ainda foi obrigado a engolir uma descompostura da senadora Eliziane Gama. Ela avisou que ali não era lugar para chute na porta e ironia machista. Só faltou dizer que o Zero Um não estava em Rio das Pedras.
Quando a reunião começou, os governistas se agarraram à liminar que impedia Renan Calheiros de assumir a relatoria. Foi uma tática desastrada. Como se previa, a decisão foi derrubada rapidamente. O senador se sentou na cadeira e desceu a lenha no Planalto.
“Vamos dar um basta aos suplícios, à inépcia e aos infames”, discursou. Ele atacou o negacionismo e prometeu “apontar culpados”. Num recado a Jair Bolsonaro, citou os genocidas Augusto Pinochet e Slobodan Molosevic. “O país tem o direito de saber quem contribuiu para as milhares de mortes, e eles devem ser punidos”, arrematou.
Renan também criticou a entrega do Ministério da Saúde ao general Eduardo Pazuello, que no domingo passeava sem máscara num shopping de Manaus. “A diretriz é clara: militar nos quartéis e médicos na saúde. Quando se inverte, a morte é certa”, disse.
O emedebista não se limitou à retórica: de cara, apresentou 11 requerimentos. A lista inclui a convocação de quatro ministros da Saúde, a requisição de documentos e o compartilhamento do inquérito das fake news.
No dia em que a comissão entrou em campo, Bolsonaro usou cinco palavras para defender seu desempenho na pandemia. “Eu não errei em nada”, garantiu. O capitão vai precisar de outro milagre para convencer a CPI.
Vera Magalhães: Caem todas as máscaras
Os ministros Paulo Guedes e Luiz Eduardo Ramos merecem ser convocados para depor na finalmente instalada CPI da Covid só com base nas declarações estarrecedoras que, sem saber que eram gravados, emitiram na reunião desta terça-feira do Conselho Nacional de Saúde Suplementar.
Num dos ataques verborrágicos que sempre tem e, depois de flagrado, diz ter sido mal interpretado, o ministro da Economia do Brasil diz, numa só tacada, que os chineses inventaram o coronavírus (teoria conspiratória sem comprovação), mas produziram vacinas ruins, piores que as dos americanos, para combatê-lo.
A vacina chinesa CoronaVac é uma das poucas de que os brasileiros dispõem para se proteger do vírus. Só está disponível por ação do governo de São Paulo e do Instituto Butantan, porque o governo a que Guedes serve boicotou sua aprovação e disse por muito tempo que não a compraria.
Teve de comprar porque o presidente Jair Bolsonaro, chefe de Guedes, optou por não comprar as vacinas “melhores”, da Pfizer, quando lhe foram oferecidas com antecedência e em larga escala. Tudo isso será objeto de escrutínio da CPI.
O ministro da Economia do Brasil também lamentou o aumento na expectativa de vida, atribuindo a ele, e não ao show de incompetência do governo de que faz parte, a falta de insumos, leitos e vacinas. É um escárnio inconcebível diante de quase 400 mil mortos pela covid-19.
O colega de Guedes na Casa Civil, general do Exército brasileiro Luiz Ramos, também no quentinho de uma reunião que imaginava não estar sendo registrada em áudio, confessou uma molecagem: ter tomado vacina escondido (!) porque seria a orientação do governo.
Aqui escancara outra razão por que a CPI tem de existir, e por que ele tem de se sentar no banco dos depoentes: além de boicotar a compra de vacinas, o governo de que Ramos e Guedes fazem parte difundiu desinformação que alarmou a população, reduziu a confiança na imunização como forma de debelar a pandemia e não promoveu a campanha de informação e conscientização que era seu dever produzir. Esses itens constam da tabela que a Casa Civil que Ramos produziu, um dos poucos documentos que atestam afirmações reais sobre o governo já produzidos na era Bolsonaro.
Longe do confessionário dos homens públicos de Brasília, um ex-companheiro de primeiro escalão de Guedes e Ramos, o general Eduardo Pazuello, escolheu a dedo a cidade que vivenciou o maior caos do morticínio de Covid-19, Manaus, para ser um fanfarrão e desfilar sem máscara num shopping center.
O homem que assinou o protocolo indefensável do tratamento precoce com cloroquina, que, segundo o ex-secretário de Comunicação Fabio Wajngarten, foi o grande responsável pela não aquisição de vacinas, que negligenciou os avisos sobre a falta iminente de oxigênio na mesma Manaus em que tira sarro na cara dos brasileiros enlutados, tem de se sentar logo no banco da CPI para prestar contas sobre sua atuação criminosa à frente de um ministério para o qual nunca poderia ter sido nomeado num país decente, por um presidente que levasse uma emergência sanitária a sério.
Não foi só Pazuello que tirou a máscara diante do país. Guedes e Ramos, com suas falas indignas, também foram desmascarados, ainda que a contragosto, diante da sociedade. O que mais se pode esperar deste governo, que, mesmo com uma investigação contra si instalada no Senado Federal, age com tamanha desídia?
Nada parece chamar esses homens à responsabilidade. Diante desse quadro de cinismo de Estado, é sinal da nossa desgraça que seja alguém com o currículo de Renan Calheiros a comandar as investigações. Não terá sido a primeira vez. Os que hoje condenam Renan há muito pouco tempo chamavam Eduardo Cunha de herói pela condução do impeachment de Dilma Rousseff. As máscaras estão todas no chão. Que se punam os culpados.
Pedro Fernando Nery: Lula x Bolsonaro - Um guia para não se perder em comparações enganosas
Inevitavelmente, Bolsonaro sairá melhor nas comparações em que mais é mais, e Lula nas comparações em que menos é mais
Já começam as comparações descabidas de indicadores dos governos Lula e Bolsonaro. As comparações enganosas entre candidatos que governaram em períodos diferentes são populares em anos eleitorais, com cada grupo de apoiadores usando da falácia que melhor lhe cabe. Nesta coluna proponho um guia para o leitor não se perder por aí.
Vários indicadores relevantes do Brasil são afetados por tendências de longo prazo. Assim, diferenças entre o governo A e o governo B podem ter menos a ver com qualidades ou defeitos dos governantes e mais com a mera passagem do tempo. Um tipo particularmente popular – e irritante – é a comparação nominal de preços. Ela não faz sentido porque há a tendência de preços crescerem no tempo, e a inflação impede que simplesmente se compare reais em um período com reais muitos anos depois.
Comecemos essa análise sem ajustar valores pela inflação, o que economistas chamariam de valores nominais. Esses valores serão maiores no governo Bolsonaro do que no governo Lula – como era no governo Lula em relação ao governo FHC (objeto preferido de comparação de petistas em eleições passadas). Inevitavelmente, Bolsonaro sairá melhor nas comparações em que mais é mais, e Lula nas comparações em que menos é mais.
Por exemplo, apoiadores de Lula vão gostar de difundir os dados sobre preços de gasolina ou gás, cesta básica ou carne. O tiro sai pela culatra para as variáveis em que valores maiores são positivos. Defensores de Bolsonaro poderão comparar os valores do salário mínimo e do Bolsa Família – nominalmente maiores, até porque foram reajustados para contemplar a inflação.
Mesmo quando se desconta o efeito da inflação, o que chamamos de valores reais, ainda há razão para desconfiança nas comparações. Há um progresso natural em várias políticas públicas, além de uma tendência de aumento do gasto público ao longo dos anos. Dessa forma, a campanha de Bolsonaro poderá apresentar um valor real maior para o salário mínimo (R$ 1.100 x R$ 900) ou para o Bolsa Família/auxílio.
O gasto público como um todo também é maior no governo Bolsonaro – seja em termos absolutos ou seja em relação ao PIB. Isso vale mesmo para antes da pandemia: em Lula em geral esteve abaixo de 17% do PIB, em Bolsonaro sempre acima de 19%. O gasto social (Seguridade) aumentou: R$ 960 bilhões em 2019 x R$ 670 bilhões em 2010. Ao contrário dos estereótipos, o governo Lula apresentava gasto total menor, a dívida era mais baixa e se produziam superávits primários (economia de impostos para abater a dívida). Mesmo antes da pandemia, a projeção era de déficits para todo o “austero” governo Bolsonaro.
Chegamos a um outro tipo de tendência: as demográficas. O envelhecimento da população, que aumenta o gasto com Previdência, explica parte da alta do gasto entre os governos Bolsonaro e Lula (ou entre Lula e FHC, ou até entre Temer e Dilma). A mudança do número de jovens tem impacto ainda no número de homicídios, com tendência de queda (44 mil em 2020, 50 mil em 2010).
Na demografia ainda se observou nesse ínterim o crescimento da população em idade ativa. Por conta dessa tendência, por enquanto ainda é normal haver cada vez mais pessoas trabalhando (população ocupada), o que permite a um governante dizer que criou X milhões de empregos em relação a um antecessor. É possível que, mesmo com a pandemia, ao fim do governo Bolsonaro haja mais empregos em relação ao governo Lula, inclusive com carteira assinada. O mesmo para o PIB, espécie de agregado de trabalhadores.
Há outros avanços na sociedade relacionados ao progresso da ciência e tecnologia, da queda da mortalidade infantil ao aumento de acesso à celular.
Como comparar então governos diferentes? A leitura pode ser melhor usando taxas (para a variação de uma variável, como o salário mínimo, ou para uma proporção, como o desemprego). Para parte do eleitorado taxas são menos interessantes, e é então improvável que campanhas abram mão dos paralelos menos sofisticados.
Nesse tipo de análise, economistas se preocupariam também com a influência de fatores externos (como os preços das commodities que exportamos ou os juros internacionais), que podem ajudar ou atrapalhar um governo e responder por muito do seu êxito ou fracasso (como uma correnteza para um remador).
Há assim, na academia, os estudos que tentam isolar dos resultados econômicos de um país diversas influências, na busca pelo “contrafactual” de um conjunto de políticas (para o responder o que teria acontecido se um governo agisse diferente). Um tipo de análise em voga é o chamado “controle sintético”, em que um país é comparado em um período com um grupo de países semelhantes, para conjecturar o que teria acontecido de qualquer jeito ou o que decorre das ações, por exemplo, da política econômica ou do negacionismo em uma pandemia.
Preços aumentam, nosso país envelheceu, a tecnologia progride. Boa sorte ao leitor: a temporada das comparações impertinentes está começando.
*DOUTOR EM ECONOMIA
Ricardo José de Azevedo Marinho: O sutil desprezo de Biden a Bolsonaro
Como se sabe, não há protocolos estabelecidos para reuniões ou conferências de Zoom, ou para cúpulas virtuais de chefes de Estado. Há meses atrás, elas praticamente não existiam. Nem é preciso dizer que houve encontros entre dois ou mais líderes em videoconferências, mas as cúpulas são outra coisa. São encontros onde os governantes de seus países podem se encontrar, ouvir uns aos outros, trocar declarações formais e manter diálogos informais.
Portanto, por si só, a forma como Bolsonaro participou da Cúpula do Clima convocada por Joe Biden, apesar de não ser grave, é no mínimo complicada. Se o presidente brasileiro decidiu que não estava interessado em ouvir as intervenções de seus colegas — com exceção talvez de Biden e quiçá Kamala Harris —, não há regra escrita ou não escrita que ele tenha violado. Claro: ele não foi muito cortês ou respeitoso com os outros vinte chefes de Estado ou de governo — além dos participantes não governamentais — que intervieram no debate. Mas talvez o presidente brasileiro não tenha entendido que deveria ouvir os outros se esperava que eles o ouvissem. Não se tratava de turnos de falas, mas sim de uma mesa redonda. É como se a cúpula tivesse sido presencial, Bolsonaro só esteve presente na sala para sua própria participação.
É verdade que, em outros debates que poderiam ser assemelhados a este — com dificuldades —, os primeiros líderes não se ouvem pessoalmente. É o que ocorre, em particular, no debate geral da Assembleia Geral da ONU no final de setembro de cada ano em Nova York. É bem sabido que, com exceção dos primeiros dez ou quinze oradores, na sequência não há sequer um chefe de Estado, nem mesmo chanceleres, no grande salão da Assembleia.
Tampouco é grave que Bolsonaro tenha feito um discurso totalmente oposto às balizas da nossa política externa, em uma palavra, pró-mercado. Ninguém mais espera muito dele; todos os seus colegas já sabem que o presidente brasileiro está focado nos assuntos internos, que só se interessava pela esfera internacional por ocasião de Trump. Dito de forma clara: não importa muito o que diz ou deixa de dizer.
Mas existe uma tradição nessas questões. O Brasil e os Estados Unidos frequentemente participam de várias cúpulas juntos, como a OEA e vários outras. Não me lembro de nenhuma em que o presidente dos Estados Unidos, principalmente se fosse o anfitrião, não tenha estado na sala quando o brasileiro falava. Minha memória pode falhar, mas pelos mais de quarenta anos em que tenho seguido esses tópicos — eu duvido.
Por isso é grave — agora é — que Biden não estivesse presente durante a intervenção de Bolsonaro. Todos os sábios que previram que não haveria consequências dos vários desprezos de Bolsonaro a Biden por ocasião da eleição norte-americana, por ser um profissional rodeado de profissionais, devem reconhecer que alguém assim não está ausente da “sala virtual” sem saber a quem não vai ouvir. Biden não estava, com pleno conhecimento de causa.
Segundo consta, quando Bolsonaro se conectou à transmissão Biden já não estava mais presente na reunião. O presidente democrata deixou seu lugar após ouvir o representante da ONU e os chefes de estado de China, Índia, Reino Unido, Japão, Canadá, Bangladesh, Alemanha, França, Rússia, Coreia do Sul, Indonésia, África do Sul, Itália e Ilhas Marshall. Biden saiu pouco antes de ouvir Alberto Fernández, da Argentina, o primeiro presidente ibero-americano a falar na cúpula.
Existem níveis entre os países. Pelo menos para os Estados Unidos, o Brasil pertencia ao nível do grupo descrito. Agora ele está na companhia do Argentina, do México e das outras “repúblicas irmãs”. Como Barack Obama sempre disse, as eleições têm consequências; decisões de política externa também.
*Professor da Unyleya Educacional e do Instituto Devecchi
Nexo: Desigualdade de gênero e raça - O perfil da pobreza na crise
Estudo do Centro de Pesquisa em Macroeconomia das Desigualdades da FEA-USP calcula os efeitos da pandemia sobre os diferentes recortes da população brasileira
Marcelo Roubicek, Nexo
A pandemia do novo coronavírus derrubou a economia brasileira, assim como de outros países. Para dezenas de milhões de brasileiros, a recessão trazida pela crise sanitária significou a perda de boa parte das fontes de renda.
Em março de 2020, o Congresso Nacional articulou o auxílio emergencial, principal política pública adotada durante a pandemia. O auxílio alcançou diretamente quase 68 milhões de beneficiários, e foi pago em nove parcelas: cinco de R$ 600 entre abril e agosto, e quatro de R$ 300 entre setembro e dezembro. O programa foi encerrado na virada do ano.
O auxílio em seu valor mais alto (R$ 600) teve como efeito a diminuição temporária da pobreza a níveis historicamente baixos no Brasil. No entanto, a diminuição e subsequente encerramento do benefício reverteram esse processo – o Brasil voltou a registrar aumentos no nível de pobreza.
61,1 milhões - é o número estimado de pessoas em situação de pobreza no Brasil em 2021, já considerando o novo auxílio emergencial
Em 2021, em meio ao pior momento da pandemia, Congresso e governo negociaram a reedição do auxílio. O novo benefício tem alcance e valores reduzidos. A estimativa é de que serão 45,8 milhões de beneficiários diretos, que receberão pagamentos diretos entre R$ 150 e R$ 375. As parcelas começaram a ser transferidas no início de abril.
Mesmo com o novo auxílio, os dados apontam para um aumento da pobreza e da extrema pobreza no Brasil em relação ao cenário pré-pandêmico. É o que mostra o gráfico abaixo.
TRAJETÓRIA DA POBREZA
Um estudo publicado pelo Made-USP (Centro de Pesquisa em Macroeconomia das Desigualdades da FEA-USP) na quinta-feira (22) calculou como essa pobreza se manifesta nos diferentes grupos de gênero e raça no país.
Metodologia do estudo
O estudo usa como base microdados dados da Pnad Contínua – Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios feita pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) – e da Pnad Covid – edição da mesma pesquisa feita em 2020 especialmente para medir impactos da pandemia.
Para o período pré-pandemia, foram considerados os dados de 2019. Em 2020, há dois recortes: de julho, quando o auxílio emergencial era pago em R$ 600, e outubro, quando o benefício já havia sido reduzido pela metade. Os números de 2021 foram calculados com base em simulações construídas sobre os números do novo auxílio.
Os critérios adotados para identificar pobreza e extrema pobreza foram os mesmos usados pelo Banco Mundial. Nesses parâmetros, US$ 5,50 e US$ 1,90 diários representam as linhas da pobreza da extrema pobreza, respectivamente. Ajustando para o câmbio e para o nível de preços no Brasil, o estudo calcula que as linhas de pobreza e extrema pobreza ficaram respectivamente em R$436 e R$151 mensais em 2020, e em R$469 e R$162 mensais em 2021.
A pobreza por gênero e raça no Brasil
O estudo mostra que, após as duas reduções do auxílio emergencial, o aumento da pobreza e da extrema pobreza no Brasil reproduziu as desigualdades raciais e de gênero que já existiam antes da pandemia.
POBREZA NA PANDEMIA
Antes da pandemia, 33% das mulheres negras estavam abaixo da linha da pobreza. Em 2021, mesmo com auxílio, essa taxa está mais alta, em 38%. A proporção de homens negros abaixo da linha de pobreza fica ligeiramente abaixo desse patamar.
Já entre a população branca, a taxa de pobreza subiu de 15% antes da pandemia para 19% em 2021. Os níveis de pobreza são semelhantes entre homens e mulheres brancas.
Já a extrema pobreza, que atingia 9,2% das mulheres negras em 2019, subiu a 12,3% dessa população, segundo os cálculos do estudo do Made-USP. Para homens brancos, essa taxa foi de 3,4% para 5,5% nesse mesmo intervalo.
EXTREMA POBREZA NA PANDEMIA
Os questionamentos ao novo auxílio
O estudo traz também recomendações de política pública. A principal delas é a extensão do auxílio emergencial até o final da pandemia – os pagamentos estão previstos somente até julho de 2021.
A pesquisa calcula que, sem auxílio emergencial, a taxa de pobreza no Brasil em 2021 iria de 28,9% (já com auxílio) para 31,4%. Já a taxa de extrema pobreza iria de 9,1% a 10,7%. Ou seja, a manutenção do auxílio até o fim da crise sanitária evitaria que a pobreza e extrema pobreza, que já estão em patamares altos, escalassem ainda mais.
Outros estudos publicados sobre o auxílio emergencial em 2021 argumentam que o valor das novas parcelas é insuficiente para dar conta das necessidades da população de baixa renda no pior momento da crise. Mesmo com ajustes ao nível de preços de cada estado brasileiro, o valor médio do benefício – R$ 250 por mês – não é suficiente para cobrir as necessidades básicas da população mais vulnerável.
As desigualdades no mercado de trabalho
O estudo do Made-USP retrata como o aumento da pobreza no Brasil reflete as desigualdades de gênero e raça no país. Um olhar para os dados do IBGE para o mercado de trabalho revela algo similar.
O desemprego está em patamares historicamente altos no Brasil, mas atinge mais a população preta e parda que a população branca – o que reproduz desigualdades anteriores à pandemia. No final de 2019, a taxa de desemprego entre pessoas brancas era de 8,7%; um ano depois, de 11,5%. Já entre a população preta, o desemprego era de 13,5% nos últimos meses de 2019; no final de 2020, era de 17,2%.
DESIGUALDADE RACIAL
Pelo critério de gênero, a distância histórica do desemprego entre homens e mulheres também se manteve forte na pandemia. Entre o fim de 2019 e o fim de 2020, o desemprego entre mulheres foi de 13,1% a 16,4%. Para os homens, o movimento nesse mesmo período foi de 9,2% a 11,9%.
DESIGUALDADE DE GÊNERO
Os dados do IBGE e os cálculos do estudo do Made-USP revelam como os efeitos da pandemia reforçaram desigualdades de gênero e raça no Brasil.
Ancelmo Gois: 'Os racismos brasileiros são perversos', diz o historiador Alberto da Costa e Silva
Dia 12 de maio, agora, o historiador Alberto da Costa e Silva completará 90 anos. Vai comemorar lançando, mais uma vez, um livro sobre sua paixão: a África. A “A África e os africanos na história e nos mitos”, pela Nova Fronteira, inclui Mansa Musa, rei do Mali, que em pleno século XIV acreditava que o Atlântico tinha outra margem, o Brasil.
Aqui, na semana em que foi condenado o policial branco que matou George Floyd, o grande historiador aborda o racismo nos EUA e no Brasil:
“Os racismos brasileiros não possuem as mesmas formas que os dos norte-americanos. Pode-se escrever um livro grosso, para mostrar as diferenças. Mas os racismos brasileiros são perversos, ainda quando dissimulados ou indesejados. Ouçamos o que dizem os negros, e até mesmo os poucos que consentimos serem bem sucedidos na vida. Uma das diferenças é definir quem é negro. No Brasil, é predominante uma questão de aparência; nos EUA, de ascendência.
Faz algum tempo, um importante político brasileiro, um daqueles de quem temos saudade, me dizia, a propósito, o seguinte: ‘Eu sempre fui considerado branco, e tratado como tal; meu irmão, que é escuro, sempre foi tido por negro. Somos ambos mulatos, com o mesmo pai e a mesma mãe’. Outro exemplo: um artista norte-americano que viveu alguns anos no Brasil, enviava os seus trabalhos semanalmente para os Estados Unidos e de lá recebia o pagamento em dólares.
Perguntei-lhe certo dia, numa roda de amigos, por que estava vivendo no Brasil. E ele respondeu prontamente: ‘Porque nos EUA sou negro, e no Brasil, sou branco, e é enorme a diferença. Aprendemos a ser racistas quando crianças. A escola fortalece (ou até bem pouco fortalecia), ao fazer um retrato negativo do africano, de sua arte e de sua história e do papel fundamental dos africanos na formação do Brasil’’’.