Raul Jungmann: Biden e a Amazônia
Um dos primeiros atos do Presidente Joe Biden significou uma reviravolta profunda no posicionamento dos Estados Unidos frente à crise climática e, por tabela, na relação com o Brasil e a Amazônia. Me refiro a “Executive Order in Climate Change Policy”, que contém três inovações maiores, dentre outras.
Em primeiro lugar, a alocação do tema “crise climática” à Defesa e Segurança Nacional dos EUA, revelando um senso de urgência e importância estratégica globalmente inequívocas e inéditas. Em segundo, a coordenação de todo o governo – ministérios, fundações, universidades e agências, em articulação com o setor privado, para dar respostas conjuntas ao desafio do clima.
Em terceiro lugar, a citação da Amazônia, a necessidade da sua preservação, com destaque e prioridade sobre as demais regiões. Essa diretiva, partindo de uma nação endereçada a outra nação soberana, tem um claro viés colonialista e é inaceitável.
Não desconhecemos que a Amazônia é um dos 14 hotspots mundiais, com reflexos no clima de todo o planeta. E que, em tempos de globalização e interconexão ambientais, temos que reconhecer a necessidade de alinharmos a soberania e integridade nacional aos requerimentos da crise climática.
Mas, daí a aceitar que intenções e projetos alheios, por melhores que sejam, desconsiderem a tutela indeclinável do Brasil sobre o seu território, vai uma distância insuperável.
Idêntica abordagem encontra-se em outros dois textos recentes, endereçados à administração Biden: o “Amazon Protection Plan”, subscrito por ex-negociadores-chefe dos EUA sobre o clima, e as “Recomendations on Brazil to President Biden and the New Administration”, de lavra de uma centena de acadêmicos, brasileiros e americanos.
Sem dúvida, o “plano”, terá mais peso que as “recomendações”, dado os que os assinam, e também pelo fato que o segundo contém bons insights, mas também erros grosseiros.
Em novembro teremos a COP 26 em Glasgow, Escócia e, antes, o Presidente Biden pretende realizar duas cúpulas para debater a crise climática. Uma com chefes de estado de todos os países e outra com as principais economias. Já a União Europeia/UE, irá exigir, para fechar o acordo com o Mercosul, um compromisso nosso com as cláusulas ambientais do acordo.
Por ora, não estão no radar nem a securitização, nem sanções pela questão ambiental na Amazônia, e a disposição dos EUA e da UE é de colaborar conosco. Mas, não tenhamos dúvidas, o cumprimento dos acordos e resultados concretos serão cobrados.
*Raul Jungmann - ex-deputado federal, foi Ministro do Desenvolvimento Agrário e Ministro Extraordinário de Política Fundiária do governo FHC, Ministro da Defesa e Ministro Extraordinário da Segurança Pública do governo Michel Temer.
Monica de Bolle: A face econômica da necropolítica
Desde 31 de dezembro não temos auxílio emergencial ou orçamento para a Saúde. Mas temos discussão no Congresso sobre a autonomia do Banco Central
Foram mais de 1.000 mortos por dia por causa da Covid-19 no Brasil, segundo a média móvel de sete dias. Apenas no dia 9 de fevereiro foram quase 2 mil mortes em 24 horas. Duas mil mortes em 24 horas são mais de 80 mortes por hora, o que equivale a mais de uma morte por minuto. Como números num papel não dão a experiência do tempo, convido o leitor a parar o que estiver fazendo agora e olhar o ponteiro dos segundos de um relógio, ou acionar o alarme do telefone. Deixe passar 60 segundos e pense: “Aqui, agora, enquanto eu nada faço além de esperar o tempo passar, mais de uma pessoa morreu de Covid no país”.
Agora, considere: hoje (ontem) é dia 12 de fevereiro e seria sexta-feira de Carnaval. Desde 31 de dezembro não temos auxílio emergencial ou orçamento para a Saúde. Mas temos discussão no Congresso sobre a autonomia do Banco Central.Sei que há muitos indignados no Brasil. Sei também que, de modo geral, as pessoas no Brasil não têm o costume de olhar para o que está acontecendo no resto do mundo. Mas se o fizessem constatariam que o Brasil é dos únicos países que, em meio a uma severa crise humanitária, com variantes perigosas do vírus circulando em seu espaço, coloca em pauta tema arcano de política monetária como se prioritário fosse.
Como se isso não bastasse, tem o único governo que, neste momento, tenta enfraquecer sua própria economia “argentinizando-se”. Explico. Paulo Guedes e sua equipe querem que contas bancárias possam ser abertas em dólar no Brasil, instituindo um sistema bimonetário. É uma história com desfecho conhecido. Foi desse modo exato que teve início o processo de dolarização da economia argentina, há mais de 40 anos. De lá para cá, o país sofreu inúmeras crises econômicas, várias delas, se não todas, decorrentes da vulnerabilidade provocada por ter um sistema bimonetário.
Não há qualquer benefício na dolarização parcial que supere seus riscos. Quando a economia de um país passa a ser dependente de uma moeda que ele não é capaz de emitir, escancara as portas para a vulnerabilidade externa e para a volatilidade cambial. Trata-se de medida com alto potencial destrutivo, conforme testemunhei em meus anos de Fundo Monetário Internacional, onde trabalhei na crise da Argentina de 2001 e na crise do Uruguai de 2002. É imensurável a estupidez guediana.
O mais inquietante é que estejamos perdendo tempo com isso enquanto morre gente. Lidamos diuturnamente com pautas arcaicas, de um tipo de prática econômica que padeceu no mundo inteiro. Trata-se não mais de uma economia do sacrifício, mas de uma economia sacrificial. O mundo ruma para moldar a economia a desafios de saúde pública e meio ambiente. O mundo se orienta, pouco a pouco, para o que se tem chamado de economia do cuidado. Esse reposicionamento inclui países como China, Rússia e Índia, ou seja, países que hoje têm condições de vacinar boa parte dos emergentes e dos mais pobres. O Brasil poderia ser parte desse rol, se a orientação da política pública de Bolsonaro fosse o cuidado, não a destruição. Mas dá-se o contrário, e é importante que isso esteja claro.
O bolsonarismo se apresenta como uma necropolítica com desdobramentos na área ambiental, na Segurança Pública, na Saúde, na Educação e na Economia.
Ele atua para a construção de um país em que os que já eram tratados como seres humanos “inferiores”, dada nossa estrutura colonialista, passem a ser tratados como não cidadãos e não humanos. Constituição? Que Constituição? A existência da Carta Magna não importa para tipos como Paulo Guedes. Caso importasse, ele não teria tido a audácia de falar em Estado mínimo. Afinal, o tamanho do Estado foi pactuado pela sociedade e inscrito na Constituição, que é como se faz em uma democracia. O Brasil já não parece uma democracia. Pior, o que é triste não é sequer a constatação, mas o fato de que ela tenha se tornado banal. Ela é hoje tão banal que há quem insista em separar Bolsonaro de Guedes, talvez por preguiça, talvez por desconhecimento, talvez por falta de compreensão.
O bolsonarismo e sua necropolítica contam com isso. Contam com a não percepção, com a definição equivocada de que se trata de uma ideologia. O bolsonarismo não é uma ideologia, é um mecanismo de destruição e perseguição por meio da comunicação. Ele opera nas construções que as pessoas fazem de circunstâncias, para separar o que não é separável e relativizar aquilo que não é relativizável.
Imagino Guedes. Imagino os apoiadores de Guedes. Imagino os que vocalizam e os que calam. Imagino-os na Sapucaí. Imagino-os cantando: “Diga, espelho meu, se há na avenida alguém mais cruel que eu?”.
*Monica de Bolle é Pesquisadora Sênior do Peterson Institute for International Economics e professora da Universidade Johns Hopkins
O Estado de S. Paulo: Nas Forças Armadas, dinheiro público pagou de lombo de bacalhau a uísque 12 anos
Em representação à PGR, deputados detalham gastos de militares com alimentação e bebida
André Borges, O Estado de S.Paulo
O cardápio de iguarias consumidas pelas Forças Armadas não se limitou à aquisição de milhares de quilos de picanha e garrafas de cerveja ao longo de 2020. Os dados oficiais mostram que a dieta verde oliva também incluiu, no ano passado, a compra de itens como milhares de quilos de lombo de bacalhau – lombo, não o peixe desfiado, que é bem mais em conta –, além de uísques 12 anos e garrafas de conhaque.
As novas informações reunidas pelos deputados do PSB serão anexadas à representação que o partido fez à Procuradoria-Geral da República (PGR), para pedir esclarecimentos sobre os gastos alimentares das Forças Armadas, os quais incluíram a compra de mais de 700 mil quilos de picanha e 80 mil cervejas.
Os dados oficiais, obtidos a partir de informações que são repassadas pelos próprios militares ao Painel de Preços do Ministério da Economia, mostram que, no ano passado, foram aprovados processos de compra de 140 mil quilos de lombo de bacalhau, além de outros 9,7 mil quilos de filé do peixe salgado.
Em uma das compras registradas pelos militares, consta um pedido homologado pelo Comando da Aeronáutica, para aquisição de 500 quilos de lombo de bacalhau, em que o preço de referência usado pelo órgão público foi de nada menos que R$ 150 o quilo. Esses pedidos, uma vez homologados, ficam à disposição dos órgãos, para que façam suas compras com os fornecedores aprovados.
Muitos copos de uísques e conhaques também foram brindados com o uso do dinheiro público. O 38.º Batalhão de Infantaria, por exemplo, comprou dez garrafas do uísque Ballantine’s, mas desde que fosse com 12 anos de envelhecimento. O preço da garrafa proposto foi de R$ 144,13.
Já o Comando da Marinha preferiu adquirir 15 garrafas de Johnnie Walker, também com 12 anos de envelhecimento, o chamado “Black Label”. O valor que se dispôs a pagar para cada unidade foi de R$ 164,18.
Conhaques mais populares também entraram na lista do Batalhão Naval da Marinha. Em setembro do ano passado, o órgão aprovou o registro para compra de até 660 garrafas de conhaque das marcas “Presidente” e “Palhinha”, com preço unitário proposto de R$ 27,06.
“É um poço sem fundo. Quanto mais investigamos, mais absurdos e irregularidades encontramos. Se não bastasse o governo comprar picanha e cerveja, ainda tem o corte mais caro do bacalhau, uísque e conhaque e com indícios de superfaturamento”, diz o deputado Elias Vaz de Andrade (PSB-GO), que está entre aqueles que assinam a representação enviada ao procurador-geral da República, Augusto Aras, para que investigue os gastos militares. “Além da PGR, eu e mais nove deputados do PSB vamos levar essas informações ao Tribunal de Contas da União. Também estamos discutindo propor a instalação da CPI das compras do governo na Câmara Federal.”
Defesa
A reportagem questionou o Ministério da Defesa sobre cada uma das novas informações. A pasta, no entanto, não se manifestou sobre esses dados até a conclusão desta reportagem. Na quinta-feira, por meio de nota, o ministério afirmou que “reitera seu compromisso com a transparência e a seriedade com o interesse e a administração dos bens públicos” e que “eventuais irregularidades são apuradas com rigor”.
Segundo o Ministério da Defesa, “existe sempre uma significativa diferença entre processos de licitação e a compra efetivamente realizada, cuja efetiva aquisição é concretizada conforme a real necessidade da administração”.
Assim, “é imprescindível que se faça essa segmentação adequada, quando se faz a totalização dos valores, interpretação e principalmente a divulgação pública destes dados, de modo a evitar a desinformação”, afirma o ministério.
De acordo com a pasta, “apresentar valores totais de processos licitatórios homologados como sendo valores efetivamente gastos constitui grave equívoco”, afirma a nota, referindo-se aos dados incluídos na representação. No documento apresentado à PGR, entretanto, os deputados exibem dados detalhados com a identificação da compra realizada e seu referido fornecedor.
Elias Vaz afirmou que se trata de processos já concluídos e com fornecedores escolhidos pelos militares. “Estamos denunciando esses processos licitatórios. Essas empresas tiveram suas propostas aprovadas, por esses valores. Há processos de compra concluídos e, inclusive, já efetivamente pagos. Todos eles foram homologados pelas Forças Armadas”, disse o deputado.
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Marco Aurélio Nogueira: Implosão do DEM pode ajudar a que se saia do marasmo
Dissonâncias no partido permitem que se veja melhor quais são os planos e as ambições das distintas correntes
Embora algum estrago tenha provocado de imediato, não é propriamente ruim, para a democracia e a dinâmica política que nos levará a 2022, que tenha havido uma “implosão” no DEM e muito barulho no PSDB em função das dissonâncias e deslealdades ocorridas na eleição dos presidentes do Congresso Nacional.
Seria possível incluir o MDB nesse grupo, especialmente porque suas bancadas traíram Baleia Rossi na Câmara e Simone Tebet no Senado. Mas o MDB foi o que tem sido desde que cedeu ao fisiologismo e perdeu densidade programática, entregando-se às flutuações do jogo político miúdo. O MDB tornou-se um partido de alta elasticidade, que vai para o lado que oferece mais vantagens.
O DEM e o PSDB, porém, não queriam ser assim. Insistiam em afirmar um perfil de centro-direita com leves inflexões à esquerda. E se vangloriavam de ser o esteio de uma articulação liberal-democrática ampla o suficiente para derrotar o petismo e o bolsonarismo em 2022. Tiveram bom desempenho nas eleições municipais do ano passado, mas não conseguiram imprimir velocidade ao jogo, nem manter unidas suas tropas. Ao contrário, vieram à tona todos os personalismos e os mais variados interesses que se abrigavam nas duas legendas. A dispersão foi aguda.
A implosão do DEM, agora, com as rusgas públicas entre Rodrigo Maia e ACM Neto, paralisa operações que estavam em curso, mas, ao mesmo tempo, põe as cartas na mesa e aumenta a transparência: permite que se veja melhor quais são os planos e as ambições de cada corrente.
Parte dos demistas está no terreno de um fisiologismo dissimulado, encapuçado, o que não é propriamente uma novidade ou uma mudança de posição. O presidente nacional da legenda, ACM Neto, é um defensor destemido da “independência” do partido, que não deveria se conduzir pelo posicionamento oposição ou governo. Depois das eleições no Congresso, bateu bastante em Rodrigo Maia (um “passional” que se “apegou ao poder”) e esclareceu que “jamais estaria com o governo Bolsonaro”, cujo foco é mais eleitoral que de governo.
Outros, como Rodrigo Maia, partiram para proclamar sua oposição ao governo atual e para defender a formação de uma ampla frente oposicionista. Estão sendo abraçados por João Dória, o que complica um pouco o discurso, dados o caráter camaleônico e a falta de imagem do governador paulista. Para piorar, Dória resolveu usar o convite a Maia como recurso para travar a luta interna no partido, propondo o afastamento do deputado Aécio Neves, o que gerou pronta resposta do parlamentar mineiro: o “destempero do governador paulista” nada mais seria do que uma “fracassada tentativa de se apropriar do partido”, uma legenda que não tem dono.
Se Maia e seu grupo se soltarem de fato do DEM, poderão ajudar não só a fortalecer o partido de destino como contribuir para que se saia do discurso genérico da frente democrática. Que uma articulação é necessária o sabem todos os pássaros brasileiros. O problema é que não se sabe como alcançá-la com inteligência, senso de oportunidade e respeito às circunstâncias. Faltam ideias, iniciativas, lideranças públicas reconhecidas, disposição de luta. Sobram interesses, cálculos, justificativas e temores. Há ressentimentos e desejos de vingança, espalhados entre os mais radicais e os mais moderados. As esquerdas, que poderiam ser um poderoso combustível para a operação, enroscam-se em seus próprios dilemas.
Uma boa sacudida na institucionalidade partidária existente poderá ajudar a que se saia do marasmo. E, mesmo que por vias tortas, contribua para manter em circulação a ideia de uma articulação democrática que seja competitiva no País, seja para desenhar um programa de atuação que reverbere efetivamente, seja para sustentar uma candidatura para 2022.
*Professo titular de Teoria Política da Unesp
Simon Schwartzman: A eleição de Biden e o futuro da extrema direita
Há uma boa chance de que o radicalismo volte para os rincões de onde nunca deveria ter saído
Com a vitória de Joe Biden nas eleições presidenciais americanas, a grande pergunta para os Estados Unidos, que interessa também ao Brasil e a muitos outros países, é se o radicalismo de extrema direita de Donald Trump, Jair Bolsonaro e semelhantes é um fenômeno passageiro, que começa a se esvair, ou se, ao contrário, é o novo governo democrata que é passageiro. Foi esse o tema de recente seminário organizado pela Fundação Fernando Henrique Cardoso com a jornalista e escritora Anne Applebaum, autora de O Crepúsculo da Democracia, que deve ser publicado no Brasil proximamente.
O que caracteriza o radicalismo de extrema direita, assim como o de extrema esquerda, não são os valores e preferências de seus proponentes – mais ou menos a favor do mercado, de políticas sociais, dos direitos, e os costumes que defendem –, mas o ataque que fazem às normas e às instituições do Estado de Direito, que regulam os processos de disputa eleitoral, colocam limites no poder dos governantes e garantem as liberdades individuais. É o respeito a essas normas e instituições, e não o eventual apoio popular, que distingue os regimes democráticos dos autoritários em suas diferentes versões. Hitler e Mussolini, passando por Perón, Hugo Chávez, Tayyip Erdogan e Viktor Orbán são exemplos de governantes que chegaram ao governo com apoio popular e abusaram do poder para destruir as instituições que os elegeram.
Foi esse o caminho buscado por Trump ao negar a validade das eleições que perdeu e jogar seus militantes contra o Congresso. E tem sido esse também o caminho buscado por Bolsonaro ao tentar jogar as Forças Armadas contra o Supremo Tribunal Federal e o Congresso Nacional, quando eles anda pareciam independentes, e ameaçar desde já não reconhecer os resultados de uma futura eleição da qual eventualmente saia derrotado.
Impressiona, ao ver essa lista de governantes autoritários, a facilidade com que conseguem, uma vez eleitos, destruir as instituições democráticas e permanecer no poder, graças não só ao apoio popular, mas também ao beneplácito de muitos intelectuais e líderes políticos, empresariais e institucionais que não têm problema em jogar seus escrúpulos às favas em nome de seus interesses práticos mais imediatos. É um cinismo generalizado que percorre de cima a baixo a sociedade e afeta não só os valores mais abstratos do Estado de Direito e da democracia, mas coisas muito mais concretas, como a tolerância à corrupção, à discriminação social e à violência. Isso talvez se explique pela noção, dada como óbvia pelos economistas, de que o ser humano vive e atua em função não de princípios, mas de seus interesses egoístas, ou, como diria Thomas Hobbes, um dos fundadores da ciência política, de que, deixado à solta, o homem é o lobo do homem.
Se isso é assim, o fenômeno anormal que precisa ser explicado não é o surgimento e a permanência dos regimes autoritários, mas a existência e a persistência de regimes democráticos. Não basta dizer que os regimes democráticos são moralmente superiores aos autoritários, quando, para muitos, essa superioridade é demasiado abstrata e distante de seus interesses do dia a dia. É preciso também ver se, e em que medida, o Estado de Direito e os regimes democráticos também podem trazer benefícios práticos para a população que os tornem mais interessantes do que os autoritários. Com raras exceções, basta comparar as sociedades democráticas com as autoritárias para ver como são muito mais vantajosas. Nelas as pessoas vivem sem medo de dizer o que pensam e de ser oprimidas e achacadas pelos governantes; com a liberdade de se organizar e empreender e a confiança nas regras de funcionamento dos mercados, a economia floresce e é distribuída de forma mais igualitária; as instituições são preservadas, as políticas públicas de saúde, educação e meio ambiente são conduzidas pelas pessoas mais competentes e os conflitos de interesses, em vez de serem disputas sangrentas e sem limites, se resolvem de forma civilizada, segundo “regras do jogo” que todo mundo respeita.
Mas as democracias são imperfeitas, nem sempre conseguem cumprir o que prometem e padecem da “tragédia dos comuns”, que acontece sempre que os interesses individuais de curto prazo prevalecem sobre os interesses gerais de longo prazo. Por isso elas não ocorrem de forma natural, mas precisam ser construídas por elites capazes de pensar no longo prazo, obter apoio para suas ideias e mostrar resultados práticos de curto prazo, que possam fazer a ponte entre os interesses individuais e o interesse coletivo.
Se Biden for capaz de, ao mesmo tempo, restabelecer as normas básicas da democracia americana e lidar com os problemas de curto prazo da epidemia e da recessão econômica, há uma boa chance de que o radicalismo de direita americano volte para os rincões de onde nunca deveria ter saído. Da mesma forma, no Brasil o futuro depende da capacidade da parte sã que ainda resta de nosso sistema político, econômico e institucional de apontar para uma alternativa ética, também construtiva, ao bolsonarismo.
SOCIÓLOGO, É MEMBRO DA ACADEMIA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS
Bernardo Mello Franco: A conversa do general
Um dia depois da posse, Jair Bolsonaro virou-se para o então comandante do Exército, Eduardo Villas Bôas, e fez um agradecimento público. “O que já conversamos morrerá entre nós. O senhor é um dos responsáveis por eu estar aqui”, disse. Em entrevista ao professor Celso Castro, o general se negou a revelar o teor do diálogo com o capitão. Apesar da recusa, seu depoimento ajuda a entender a gratidão presidencial.
Dizendo-se contrário à participação dos militares na política, Villas Bôas usou a farda para impulsionar o candidato dos quartéis. Às vésperas da eleição de 2018, ele pressionou o Supremo a negar um habeas corpus a Lula. O ex-presidente foi preso, e Bolsonaro passou a liderar a corrida ao Planalto.
No livro da FGV, o general conta que seus tuítes foram “discutidos minuciosamente” com o Alto Comando. O relato envolve toda a cúpula do Exército no que o ministro Celso de Mello definiu como uma intervenção “pretoriana”, “inaceitável” e “infringente do princípio da separação de Poderes”.
Villas Bôas admite que agiu “no limite da responsabilidade”, mas indica que não se considera um golpista. “Tratava-se de um alerta, muito antes que uma ameaça”, informa. Em outra passagem, ele define o marechal Castello Branco, pivô do golpe militar de 1964, como um “legalista”.
A defesa da ditadura está na origem do ressentimento do general com o PT. Ele reconhece que Lula reaparelhou as Forças Armadas, mas afirma que os militares se sentiram traídos pela instalação da Comissão Nacional da Verdade.
Nomeado comandante por Dilma Rousseff, Villas Bôas revela que jantou com Michel Temer quando o então vice articulava o impeachment da então presidente. Depois do repasto, ele indicou um amigo de infância, o general Sérgio Etchegoyen, para chefiar o Gabinete de Segurança Institucional.
Em sintonia com Bolsonaro, o oficial esbraveja contra o “politicamente correto”, critica a luta antirracista e acusa o PT de promover a “destruição moral do país”. Mas é só elogios a Temer, que foi alvo de três denúncias de corrupção no exercício do cargo.
Sem corar, Villas Bôas descreve a conversa gravada por Joesley Batista como um mero episódio de “ingenuidade do presidente”. Em tantas décadas de estrada, Temer já foi chamado de muitas coisas. De ingênuo, deve ter sido a primeira vez.
Eliane Cantanhêde: Militares podem até lucrar com Bolsonaro, mas o ônus para as Forças Armadas é imenso
Militares podem até lucrar com Bolsonaro, mas o ônus para as Forças Armadas é imenso
A conta do mergulho na política e da adesão ao candidato e agora presidente Jair Bolsonaro começa a chegar para as Forças Armadas, obrigadas a explicar milhões de reais em chiclete e leite condensado e agora a defender seus churrascos em 2020, com 700 mil quilos de picanha e, como ninguém é de ferro, 80 mil cervejas puro malte. O preço foi bem salgado, R$84,14 o quilo da carne, R$ 9,80 cada cervejinha.
Também é desanimador os hospitais do Exército e da Aeronáutica bloquearem só para militares e deixarem vazios 72% (84 de 116) dos seus leitos, segundo o UOL, enquanto 276 pacientes de Covid aguardavam vagas ontem e 529 tiveram de ser “exportados” para outros Estados e o DF desde 15 de janeiro. Leito vazio? Pago com dinheiro público, mas só para militares? Coisa feia!
O vice Hamilton Mourão anunciou que a Operação Verde Brasil 2, prevista para até 2022, vai acabar em 30 de abril, com a retirada de militares das ações contra queimadas e desmatamentos na Amazônia. Com a volta desses contingentes às suas bases, serão mantidas as montanhas de chiclete e leite condensado? E as carnes nobres e o puro malte são para quem?
A sensação é de que a retirada foi uma puxada de tapete em Mourão. Indagado se foi um pedido (ou retaliação?) de Bolsonaro, Defesa e ou Comando do Exército, ele respondeu à coluna: “Fim da missão, apenas isso”. E, assim, após pisoteados pela “boiada” do ministro Ricardo Salles, o Ibama e o ICMBio, atualmente cheios de militares, vão retomar a dianteira na proteção da Amazônia, com Inpe, Polícia Federal e Polícia Rodoviária.
Não é exclusivo do Meio Ambiente, porque o capitão Bolsonaro levou generais para a Vice e todos os cargos relevantes do Planalto, expôs um general da ativa a vexame público na Saúde numa pandemia e encheu diferentes pastas – até a pobre Secretaria de Cultura – com militares. Toma lá, dá cá de cargos com político não podia, mas com militar e agora com Centrão é uma festa.
O resultado nem sempre é engrandecedor para as FA, particularmente para o Exército, como no caso do ministro Eduardo Pazuello, todo atrapalhado e respondendo à PF, ao MP e ao Congresso por falta de oxigênio e vacinas, excesso de cloroquina inútil, descaso com seringas, agulhas e testes de Covid. O risco é um general da ativa no foco de uma CPI da Pandemia (que pode chegar até aos 73 mil militares que receberam ilegalmente o auxílio emergencial).
Pazuello gosta de cantar de galo e o secretário-geral da Saúde, coronel Elcio Franco, entrou de mau jeito na guerra política de Bolsonaro com João Doria. Quando o governador anunciou a vacinação em janeiro, o militar chamou de “devaneio” e o acusou de “estar sonhando acordado”. E ainda ensinou: “Não será com discursos de ódio ou tendenciosos que serão encontradas soluções”. Pois é...
Em meio à confusão, vem aí um livro-entrevista em que o ex-comandante do Exército Eduardo Villas Boas confirma que o Alto Comando participou diretamente da advertência (ou ameaça) que ele fez ao Supremo, em 2018, na véspera do julgamento de um habeas corpus contra a prisão do ex-presidente Lula.
Por essas e outras, as Forças Armadas são suspeitas de atuar politicamente para tirar Lula do páreo e dar a vitória a um capitão que dá poder a generais e empregos e reformas (previdenciária e administrativa) diferenciadas para militares, enquanto discursa num ato golpista com o QG do Exército ao fundo e sobrevoa outro em helicóptero militar e com o ministro da Defesa, general de quatro estrelas.
Bolsonaro lucra muito com essa parceria, mas o ônus de médio e longo prazos para as Forças Armadas, inclusive para sua imagem, tende a ser muito maior do que o bônus fugaz para dez, cem ou milhares de seus integrantes. A História dirá.
Reinaldo Azevedo: Versão de Villas Bôas é lixo golpista
Justificativa para tuítes que ameaçaram o Supremo está assentada numa mentira factual
O general Mark Milley, chefe do Estado-Maior Conjunto dos EUA, militar mais poderoso da Terra, enfrentou as delinquências de Donald Trump recorrendo à Constituição americana. Por aqui, um general da reserva resolve narrar, em tom que aspira ao pudoroso, a ameaça golpista que fez para intimidar o Supremo.
No dia 3 de abril de 2018, véspera do julgamento de um habeas corpus impetrado pela defesa de Lula, o então comandante do Exército, Eduardo Villas Bôas, escreveu no Twitter: "Asseguro à Nação que o Exército Brasileiro julga compartilhar o anseio de todos os cidadãos de bem d e repúdio à impunidade e de respeito à Constituição, à paz social e à Democracia, bem como se mantém atento às suas missões institucionais".Os que dele discordavam não eram "homens de bem". Comandar tanques corresponderia a ter razão. O general ainda distinguiu os que pensavam "no bem do País" dos que estariam preocupados "com interesses pessoais". Adivinhem em que lado ele se via. A propósito: quantas divisões tinha o adversário?Lembro: cinco dos seis ministros que votaram contra a concessão do habeas corpus foram indicados por Lula ou por Dilma. Três dos cinco favoráveis, por outros presidentes.
Villas Bôas concedeu um depoimento a Celso Castro, diretor do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC), da FGV. A fala está condensada no livro "General Villas Bôas: Conversa com o Comandante".
Não é exatamente novidade. O próprio militar já havia tratado do assunto em entrevista, mas fica ainda mais claro desta feita que seus tuítes ameaçadores reproduziam o pensamento do Alto Comando do Exército —ao menos é isso o que diz. Não havendo contestação, assim é. Querem passar um paninho na biografia do general e nas tentações golpistas?
Então fiquem com a versão de que, ao mandar um ultimato ao Supremo, Villas Bôas evitou coisa pior —quem sabe uma tentativa de quartelada, à revelia do Alto Comando, estimulada por pijamas inflamados. Conhecemos, desde Castello Branco, a cascata do militar honrado, que resiste à quebra da hierarquia, mas acaba cedendo a contragosto... A versão vale uma dose de cloroquina contra o coronavírus, ministrada por Eduardo Pazuello, general da ativa.
Uma mentira essencial constitui o pano de fundo do relato de Villas Bôas: a de que Lula poderia concorrer à Presidência se deixasse, então, a cadeia. Falso. Tivesse acontecido, tratar-se-ia apenas de cumprir o que dispõe o inciso LVII do artigo 5º da Constituição.
O petista continuaria inelegível segundo a Lei da Ficha Limpa. Ainda que elegível fosse, a suposta legitimidade da intervenção, à qual o militar pretende emprestar dimensão constitucional, emana de que título legal?
Estou enganado, ou ele pretende legitimar com as baionetas a leitura do artigo 142 da Constituição no esforço de impedir o cumprimento de disposição do artigo 5º, que é cláusula pétrea?
Os militares teriam seus motivos para tanto rancor: estavam revoltados com as conclusões da Comissão da Verdade —jamais um golpista sofreu qualquer prejuízo pessoal--; viam a Amazônia submetida à cobiça de organizações estrangeiras, consideravam a demarcação de terras indígenas um risco à soberania...Pouco me importam os fantasmas que povoam a imaginação criativa do golpismo. Fato: Lula foi o presidente que mais investiu no reaparelhamento das Forças Armadas desde a redemocratização. E desafio que se evidencie o contrário. A ideia de que se forjou um espírito antipetista num ambiente de penúria e de política entreguista (ao onguismo internacional) vale uma dose do vermífugo do astronauta.Não tenho apreço por quem me ameaça. Os tuítes de Villas Bôas marcaram o engajamento explícito das Forças Armadas na candidatura de Bolsonaro. Um dos generais do poder organizou uma lista de compra de votos para eleger o presidente da Câmara. Outro, da ativa, poderá, no fim de fevereiro, discursar sobre 250 mil cadáveres.
Seriam esses os "anseios dos cidadãos de bem?" O depoimento de Villas Bôas tem óbvio interesse histórico. Merece um lugar na prateleira do lixo golpista.
Ruy Castro: Receita de golpe
Edson Fachin analisou com preocupação a cena nacional
Na Folha de quarta última (10), o ministro do STF Edson Fachin analisou com preocupação a cena nacional e listou fatos cuja soma me faz farejar uma receita de golpe de Estado, em preparo por um já declarado candidato em 2022 caso as eleições não o favoreçam. Os ingredientes dessa receita, com meus comentários, são:
1. Remilitarização do goveno civil. Milhares de militares de patentes inferiores, da ativa e da reserva, foram infiltrados na administração. Ensaio de compra das Forças Armadas.
2. Instigação ao fechamento dos demais Poderes. O Executivo tenta intimidar o Judiciário e o Legislativo com mobilizações populares e ameaça de tropa na rua.
3. Declarações acintosas de depreciação do valor do voto. Permanente pregação com fundo antidemocrático, sedimentando o terreno para uma possível alternativa totalitária.
4. Palavras e ações que atentam contra a liberdade de imprensa. Campanha incessante de desmoralização da imprensa livre, aliada à compra descarada do apoio de certos canais de TV —a velha e boa "mamata".
5. Incentivo às armas e à violência. A ideia é armar seus seguidores no caso de as forças da legalidade resolverem intervir no sentido de um impeachment ou interdição.
6. Recusa antecipada de resultado eleitoral adverso. Insinuações de fraude eleitoral, ao estilo Donald Trump, e tentativa de impor o voto por escrito, fácil de viciar, para levar o eleitorado a insurgir-se contra o resultado.
7. Corrupção de agentes administrativos. Inúmeros funcionários e aliados do governo, sem falar nos filhos, são investigados, denunciados ou réus por corrupção. O empenho em corromper atinge também juízes, procuradores, promotores, a Abin, o Coaf, a Polícia Federal, a Receita Federal etc., para controlá-los.
Os golpes desprendem seu mau cheiro muito antes de serem postos em marcha. Não é sensato tapar o nariz. Ainda mais quando já há um em marcha.
Hélio Schwartsman: O sarrafo e a Justiça
Faz sentido anular certos atos de Moro no processo que conduziu contra Lula
Qual a diferença entre um "julgamento" do PCC e um julgamento da Justiça? É a altura do sarrafo. Na tentativa de emular as instituições, gângsters até permitem que os "réus" em seus "tribunais" se manifestem e tentem explicar-se, mas não dá para confundir isso com o direito à ampla defesa e outras garantias fundamentais que estão no DNA das sociedades que se organizam como Estados de Direito.
E é porque o sarrafo é alto que faz sentido anular certos atos de Sergio Moro no processo que conduziu contra Lula. As mensagens trocadas entre o ex-juiz e procuradores da Lava Jato deixam claro que o ex-presidente não teve direito a um julgador minimamente imparcial.
Daí não decorre, é óbvio, que devamos passar um atestado de inocência a Lula. Não é porque Moro e alguns procuradores da Lava Jato não tiveram um comportamento à altura de seus cargos que não havia um bom caso contra Lula.
E nem precisamos nos enfronhar em intermináveis polêmicas jurídicas sobre a culpabilidade do ex-presidente. Mesmo que não existissem provas suficientes para condenar Lula nos termos da lei, não vejo como absolvê-lo no plano da ética. Ele, afinal, estabeleceu uma relação promíscua com empreiteiros que comandaram esquemas de corrupção que atravessaram vários governos e deles recebeu vários mimos.
Pela régua ética que o próprio PT utilizava nos anos 80 e início dos 90 (e que me parece essencialmente correta), isso teria bastado para expulsá-lo do partido.
Outro ponto que merece atenção é a extensão das nulidades que a Justiça deverá decretar. Não dá para fingir que o julgamento de Lula por Moro foi conforme o figurino, mas é preciso cuidado para não pôr a perder anos e anos de investigações da Lava Jato que afetaram centenas de réus e resultaram na recuperação de bilhões de reais desviados dos cofres públicos.
O sarrafo precisa ser alto, mas não infinito.
Bruno Boghossian: Lava-jatismo deve ser página virada na arena eleitoral de 2022
Operação entra em declínio depois de influenciar corridas presidenciais e impeachment
Uma semana após deixar o Ministério da Justiça, Sergio Moro disparou nas pesquisas para 2022. O rompimento com Jair Bolsonaro rachou o eleitorado governista e impulsionou o ex-juiz. Numa simulação de segundo turno feita no levantamento XP/Ipespe do fim de abril, ele aparecia com 58% das intenções de voto, contra 24% do antigo chefe.
O ex-ministro já perdeu o bônus daquele divórcio. Fora dos holofotes de um cargo público, desprovido de habilidade política, moído pelas tropas bolsonaristas e desgastado pela corrosão da Lava Jato, Moro murchou. A última sondagem do mesmo instituto mostra o ex-juiz numericamente à frente, mas em empate técnico com Bolsonaro: 36% a 32%.
O lava-jatismo perdeu fôlego na arena política. Em 2014, os primeiros escândalos desvendados pela operação balançaram a corrida presidencial. Depois, a ação de seus integrantes deu combustível ao impeachment e moldou o tabuleiro eleitoral de 2018. No ano que vem, essa influência tende a ser limitada.
Na pesquisa de abril do ano passado, três personagens estavam empatados na simulação de primeiro turno: Bolsonaro aparecia com 20%, Lula tinha 19% e Moro contava 18%. A trajetória recente do trio teve a marca da Lava Jato, mas a história deve ser diferente na próxima disputa.
Depois de se eleger sob o disfarce da luta contra a corrupção, Bolsonaro rasgou o figurino da campanha. Ancorado na máquina do governo e numa base radical desvinculada do lava-jatismo, ele aparece agora com 28% das intenções de voto.
Já Sergio Moro foi abandonado por uma fatia da direita e continua bloqueado na esquerda. Hoje, ele tem 12% no primeiro turno. Se quiser voltar a campo pela centro-direita, o ex-juiz encontrará um espaço congestionado, à espera de figuras como Luciano Huck e João Doria.
Do outro lado, Lula depende de seu antagonismo com a Lava Jato. A principal jogada do petista é explorar o declínio da operação para reduzir seu desgaste político –como candidato ou como cabo eleitoral.
Vinicius Torres Freire: Tirar de pobre ou rico para dar auxílio a paupérrimo cria crise política
Guedes quer convencer Congresso a tirar de pobre ou rico para dar paupérrimo
O “Orçamento de Guerra” de 2020 levou um mês e cinco dias para tramitar no Congresso. A proposta de emenda constitucional (PEC) foi apresentada no dia 1º de abril e promulgada em 7 de maio. Em resumo grosso, era a PEC que regulamentava os excessos e exceções de aumentos de gastos na epidemia.
Paulo Guedes diz que o novo auxílio emergencial depende juridicamente de uma nova PEC de Guerra. Além disso, quer “contrapartidas fiscais” para compensar o novo gasto extraordinário.
Não interessa, aqui e agora, discutir se o ministro da Economia tem razão, mas de observar que não se trata apenas de dois problemas complicados para a solução de uma crise social urgente.
Condicionar a tramitação da emenda constitucional de gastos emergenciais a um corte de despesas dramático seria mesmo uma guerra, conflito que poderia se arrastar por um tempo politicamente crítico, com batalhas em várias frentes.
“Contrapartida” é o eufemismo para algum corte de despesas, neste ano ou nos próximos, uma desconversa vaporosa que tem aparecido em jornais e TVs.
É bem sabido de onde podem vir os talhos relevantes de despesa. É tedioso voltar à mesma conversa, mas essa discussão pode render uma crise política considerável. No ano passado, quando se discutia o Renda Brasil, o próprio Jair Bolsonaro vetou os cortes.
O primeiro candidato ao talho é o salário dos servidores, que poderia ser congelado ou reduzido por mais de um par de anos, como previsto na PEC Emergencial de 2019. Seria inédito que uma decisão como essas descesse redondo pela goela do centrão.
Uma outra sugestão de corte que irritou Bolsonaro foi a de dar cabo do abono salarial, assim como a proposta de mexer em Benefícios de Prestação Continuada (auxílio de um salário mínimo para idosos e pessoas com deficientes muito pobres). Menos ainda passou a ideia de congelar o valor de outros benefícios do INSS ou do gasto mínimo com saúde e educação.
Pode sair algum dinheiro, “contrapartida parcial”, dos empréstimos subsidiados de bancos estatais (mexe com os produtores rurais, pequenos e grandes). Mas é possível arrumar um dinheirão reduzindo isenções e reduções de impostos. O que isso significa? Aumento de carga tributária.
Seria até uma boa ideia, mas também um tumulto político.
Trata-se, por exemplo, de cobrar mais imposto das empresas no Simples, de reduzir isenções e deduções do Imposto de Renda da Pessoa Física (rendimentos isentos e não tributáveis e deduções de gastos com saúde e educação privadas), inclusive rendimentos de aposentados maiores de 65 anos e rescisões trabalhistas. Há também isenções para produtores rurais, filantrópicas, Zona Franca de Manaus, remédios e equipamentos médicos. Etc.
Nesta discussão não se leva em conta se o gasto com o novo auxílio emergencial será “fura teto” ou dentro do teto, se a “contrapartida fiscal” será devida neste ou nos anos seguintes. Vai aqui apenas uma lista de despesas ou renúncias de receitas que podem ser recuperadas com o objetivo de conter o aumento da dívida pública.
“Contrapartida”, portanto, significa conflito na certa. Se a aprovação de uma PEC de Guerra depender da solução dessa disputa, o caldo pode engrossar. Pode não sair auxílio, com o que haverá crise com o novo comando do Congresso.
Deputados e senadores podem também atropelar o governo e aprovar a nova despesa “na marra” –assim haverá algum sururu na praça financeira, no mínimo.