Fernando Gabeira: O precoce começo de 22

Algumas religiões desaconselham explicar muito sua fé. O zen-budismo, por exemplo, costuma alertar: quem sabe não fala, quem não sabe é quem fala.

O grande viajante inglês Richard Francis Burton converteu-se ao sufismo e adotou, simultaneamente, uma tática chamada taquia, que consiste em esconder sua fé. A política é uma esfera muito diferente, mas também nela é preciso cuidado para não falar muito ou dar a falsa impressão de que sabe mais que os outros.

Lembro-me de que, em Brasília, os que caíam nessa tentação eram discretamente rejeitados e, quase sempre, chamados de professor de Deus. Conheci vários professores de Deus e, confesso, que sabiam realmente muito menos do que imaginavam saber.

Dito isso, é com humildade que meto a colher nesse debate sobre a oposição a Bolsonaro e as alternativas para derrotá-lo em 2022. Talvez, no chamado centro democrático, seja necessário superar o clima de lamentos, acusações mútuas e desencanto.

Não há nada de extraordinário na adesão de quadros do DEM e do PSDB a Bolsonaro. Durante a ditadura, o MDB se dividiu, e os que faziam oposição eram chamados de autênticos.

Sempre sobra um pequeno núcleo com visão nacional, e sua tarefa é levar o trabalho adiante, tratando de unificar a partir das lutas cotidianas, das quais não se pode fugir. Coisas simples e decisivas, como vacinação em massa, ajuda emergencial.

No campo da esquerda, houve também uma certa surpresa, no meu entender exagerada, com o lançamento de um candidato do PT, Fernando Haddad. O partido ocupou o poder durante muito tempo, tem uma grande bancada no Congresso, disputou com Bolsonaro o segundo turno.

Todos sabem que lançará candidato próprio. Mesmo nas eleições municipais de São Paulo, com poucas chances segundo as pesquisas, disputou o primeiro turno.

Já defendi a ideia de que é indispensável uma grande frente. No entanto as próprias eleições municipais mostraram possibilidades diferentes.

O candidato de Bolsonaro perdeu tanta consistência em São Paulo que nem chegou ao segundo turno. No Rio, o aliado do presidente chegou ao segundo turno tão combalido que seria derrotado pelo próprio índice de rejeição.

Alguma dessas hipóteses pode acontecer com Bolsonaro, uma vez que ainda não foi metabolizado pela população seu fracasso ao tratar da pandemia, muito menos sua irresponsabilidade em defender e produzir remédios ineficazes contra o coronavírus. E nem foi revelado amplamente à juventude do país seu trabalho de destruição da natureza.

O caminho pela frente, de um lado, é de crise social; de outro, uma aliança entre Bolsonaro e o Centrão, que pode até esboçar algumas respostas, mas, ao longo da história, tem se mostrado um tipo de aliança que cava um abismo entre política e sociedade.

Os que defendem a frente falam também de um projeto nacional, uma visão de como e para onde conduzir o Brasil, sua inserção internacional. É inegável a importância do argumento. No entanto a experiência tem mostrado também que muitos eleitores se definem por algum tema que lhes interessa e avaliam também a trajetória e a personalidade do candidato.

Por isso, talvez, em vez de estarmos vendo apenas a fragmentação de uma potencial frente única, estejamos assistindo às cotoveladas e artimanhas que antecedem o lançamento das candidaturas.

É importante que se lancem e comecem a trabalhar seriamente. Não existe uma certeza de que a eleição que virá repetirá os protagonistas da eleição de 2018. Muito menos a certeza de que, repetindo os protagonistas, repita o resultado.

Tenho dúvidas se conseguiremos deter satisfatoriamente a pandemia antes de 2022. Isso torna o caminho mais complicado, mas não impede a existência de um caminho aberto, ainda não fatalisticamente desenhado; enfim, um que depende daqueles que vão desbravá-lo.


Paulo Fábio Dantas Neto: As unhas da política e as viúvas da Lava Jato

Começo explicando porque o presente texto tornou-se, excepcionalmente, dominical. A live de Maria Bethânia, a princípio, foi só um belíssimo pretexto, convertido em aviso aos leitores dessa coluna, para adiar de ontem para hoje a publicação do artigo semanal. As nuvens políticas do sábado estiveram tão densas que a noite chegou e eu não conseguia encontrar o que dizer com mínima convicção, a não ser constatar a virtual dissolução de uma política moderada no interior do autodenominado centro político.

Depois do cavalo de pau de Rodrigo Maia em adesão (para mim, surpreendente) ao modo João Dória de fazer política - o qual pode até ser chamado de “extremismo de centro” - outros políticos do centro democrático começaram a seguir, ou ameaçar seguir, essa tocha de insensatez que pode conduzi-los a um haraquiri político. Estava a centímetros de arriar o rei diante desse xadrez político de baixa qualidade quando escutei duas frases de Bethânia achadas agora na rede, como memória da live, podendo citá-las sem risco de ser infiel. Uma expressa um desejo de abelha-rainha: "A força dos meus sonhos é tão forte que de tudo renasce exaltação e nunca minhas mãos ficam vazias.". Outra, uma vontade prudente, mediada pela necessidade, com a qual a realeza revela empatia para com quem trabalha e vê entes queridos morrerem como formigas: "Quero vacina, respeito, verdade e misericórdia". 

Acordei neste domingo com a sensação de que a falta de atores políticos capazes de construir uma vontade agregada e prudente está deixando a maioria dos brasileiros sem sonhos fortes e de mãos vazias, em vias de exasperar, por não verem o que exaltar. Ouvi, no entanto, numa entrevista à CNN, concedida dias atrás, pelo jovem governador gaúcho, entre outras ideias que me pareceram lúcidas, a seguinte frase: “eu acredito numa política que efetivamente seja mais sobre cicatrizar do que sobre abrir novas feridas”. Percebi um zum-zum na testa que abriu uma fresta no desalento. Achei não só essa frase, como toda a entrevista, merecedora de um comentário dizendo sim. Mas o dever da análise impunha também considerar as inúmeras razões para dizer não ao que se tem falado e feito no campo onde o governador se move. Só que a algaravia é tão intensa que entontece e não indica por onde começar. Uma segunda leitura, da coluna de hoje da jornalista Eliane Cantanhede, no Estadão, deu-me mote a uma crítica menos apegada às jogadas de varejo do xadrez político e mais voltada a interpretações que se faz sobre elas. Achei, numa interpelação à visão da respeitada colunista, o tema que faltava ontem.  

Cantanhede aventa a hipótese de a empresária Luiza Trajano vir a ser uma alternativa eleitoral, diante da virtual falência de uma frente política do centro liberal-democrático, que estaria se derretendo por adesismo ao governo de Bolsonaro.  A hipótese teria um indisfarçável sentido de retomar o tema da alternativa à “velha política”, que teve forte apelo nas eleições gerais de 2018 e foi arquivado pelos eleitores nas municipais de 2020. Na falta da Lava Jato e diante de Sergio Moro passar de aspirante à política a candidato a réu, seria como buscar outro herói (no caso, heroína) para enfrentar Bolsonaro, alijando a “política dos políticos” do segundo turno. Para sermos justos com Trajano, é preciso dizer que se ela seria tão outsider na política quanto Moro tem as vantagens, em relação ao ex-juiz, de já ter história, como empresária e ativista do grupo Mulheres do Brasil, de contraponto ao extremismo vigente, fazendo oposição afirmativa ao sexismo e ao racismo e de liderar um arrojado e muito bem vindo projeto de intervenção civil em favor da causa da vacinação em massa, que é o principal desafio social do momento. Pauta irrepreensível, cujo apelo agregador provém do fato de ela não ter, até aqui, pretensão político-partidária. Se passar a tê-la, como teve Moro, arrisca-se a perder sentido. A quem se ocupa de política com responsabilidade pública cabe apurar se a hipótese aventureira de substituir o juiz como salvação do país, contra a política, tem anuência da própria Trajano, ou não. No caso de não ter, como parece mais provável, muito bem fará quem a ela se associar. Havendo fogo sob essa fumaça, é preciso que políticos e partidos responsáveis providenciem o antídoto para que esse recurso ao amadorismo político não vingue, como ideal de solução de crises tão complexas como as do Brasil atual. Obtém-se o antidoto por palavras e gestos de moderação e agregação, no campo do centro liberal democrático e na esquerda. Mas no dito centro, abundancia retórica de palavras unitárias já divide espaço com outras que as negam.  E preocupa a escassez de gestos concretos. As razões disso precisam ficar claras.

ACM Neto pode perder a batalha interna que trava no DEM para resistir ao governo pela razão oposta à que Cantanhede aponta. Em vez de adesismo, já se pode perceber - em suas mais recentes declarações sobre a indicação, por um outro partido, de um liderado seu para o ministério da Cidadania - imprudência quase análoga às de Maia e Dória. Mesmo estando o ato do governo cercado de evidências de que se trata de estratégia intencional para colar no presidente do DEM a etiqueta de governista e, com isso, consumar uma implosão do partido, o alvejado cedeu à retórica voluntarista, diante de uma imprensa ávida por confrontos na pequena política. O modo como se expressou, cobrando lealdade política e pessoal a um quadro de outro partido, torna irresistível, para seus adversários, acionar a memória do lado mandonista e informal da complexa e contraditória atitude política do seu avô. Esse lado nega a imagem pública construída pelo neto há mais de uma década. É o que indica até aqui a exoneração, da Prefeitura de Salvador, de um quadro ligado ao ministro indicado, João Roma. Envolve na briga uma prefeitura que já não mais dirige e num contexto social crítico, em que ela precisa manter interlocução com o governo federal. Traz instabilidade, simultaneamente, à institucionalidade federativa e ao combate à pandemia. Tenho me colocado sempre contra visões elitistas, travestidas de progressismo, que desprezam ou demonizam a pequena política. Ela tem papel importante no mundo real, mas Antônio Gramsci é aqui referência incontornável: é grande política reduzir tudo à pequena política. Esse tipo de grande política desertifica a política positiva. ACM Neto ainda tem crédito para se supor que tenha sido um escorregão hepático.

Cantanhede está vendo "implosão" no PSDB também. Será que é isso o que ocorre mesmo, ou ali está se procurando evitar a implosão, um risco provocado por quem a articulista considera ser a vítima, no caso o governador de São Paulo?  Até onde posso enxergar, essa discussão está ligada à situação que abordei em artigo nessa coluna, em 12.12.2020 (“Em busca de um centro: uma eleição e dois scripts”). Da experiência promissora das eleições de 2020 surgiram duas possibilidades de construção de alianças no chamado centro político.

A primeira seguiria uma rota a partir de São Paulo e levaria a atrair a centro-direita para uma aliança ao centro, sob hegemonia do PSDB, para um confronto desde já com Bolsonaro, sendo a possibilidade de incluir a esquerda transferida para o segundo turno, a depender de quem lá chegasse. A segunda possibilidade, que teve êxito em várias capitais, a de uma frente mais ampla se formar já para o primeiro turno, aproximando setores da centro-direita e da centro-esquerda, tendo como âncora uma agenda positiva capaz de envolver o PSDB, outras partes da oposição e setores que se declaravam independentes do governo, como DEM e MDB, sem reconhecimento prévio de hegemonia de qualquer partido. O então presidente da Câmara, Rodrigo Maia, parecia talhado a ser o principal articulador dessa segunda rota, enquanto o governador de São Paulo seria o da primeira.

O modo como se constituiu a frente em prol da candidatura de Baleia Rossi à presidência da Câmara atou, àquela disputa, o destino de uma eventual aliança eleitoral e o modo como Maia reagiu à derrota fê-la transbordar os muros da Câmara e comprometer a segunda possibilidade de rota na arena interpartidária. Recepcionando, no PSDB, o articulador derrotado da segunda rota, João Dória imaginou consolidar, definitivamente, a rota São Paulo - Brasil. Esqueceu de avisar a cozinha, onde a outra rota estava sendo considerada, como demonstram a entrevista do governador gaúcho e a decisão, da Executiva do partido, de prorrogar, por um ano, o mandato do presidente que Doria queria substituir. Evidentemente, como no caso do DEM, o dedo do palácio comparece para incendiar a luta interna, mas quem a provocou é questão em aberto e não uma premissa.

Resta, ainda, falar do MDB e o farei de modo sucinto porque nesse partido não há, por enquanto, uma crise interna com as proporções das que afetam DEM e PSDB. O deputado Baleia Rossi, que se conduziu com dignidade na disputa da Câmara e mantém, após a derrota, um também digno silêncio, precisará mesmo submergir para tentar se manter, ou ao seu grupo, no comando nacional do partido. Terá, para isso, que refratar o duplo ataque que lhe aguarda. De um lado, o do palácio, que quer tornar invertebrados os três principais partidos do centro de modo a ampliar o seu centrão. De outro, o do hábil senador Renan Calheiros, que ensaia fazer da posição de líder do partido no Senado um posto articulador para levá-lo a mover guerrilhas tão verbalmente imoderadas quanto pragmaticamente pontuais contra o governo, como se o MDB pudesse ser uma espécie de centrão do B.

É logico que está em curso, por parte do governo, uma operação para rachar os três partidos, que estão entre os mais institucionalizados do país. Operação que, ademais dos seus objetivos táticos, é coerente com uma tradição estatal brasileira de modelar partidos ao gosto dos interesses do Executivo e com uma estratégia mais geral, do governo atual, de esgarçar e, no limite, destruir instituições. Tem ficado evidente, também, a vulnerabilidade desses partidos a esse tipo de investida, seja por uma crescente dependência de fontes de financiamento orçamentárias (fenômeno estrutural dos sistemas políticos atuais e não uma jaboticaba brasileira), seja por uma cultura personalista que os afeta (embora não os defina, nem seja singularidade deles, pois se espalha por toda a sociedade e tem também uma incidência internacional), seja por  redes de clientela que a eles se vinculam (embora a vida desses partidos não se resuma a elas), seja, ainda, por particularidades regionais próprias da forma federativa do Estado brasileiro e por aí vai. As duas coisas (a investida do governo e a vulnerabilidade dos partidos) são facilmente verificáveis.

O que é obscuro na argumentação - aparentemente límpida, em sua simplicidade - de que o centro político cava sua própria sepultura ao se comportar mal, é o motivo pelo qual deveríamos achar que a estratégia do governo é meramente uma ação beneficiária da má qualidade de uma elite política formada por políticos “menores”, em especial de uma inépcia essencial do centro político. Sem colocar aqui em questão essa qualidade geral, ou a inépcia do centro atual, penso que se toma como causa o que é mais consequência ligada a uma baixa capacidade de certos atores do sistema em dar resposta a desafios. As crises internas do DEM e do PSDB são análogas, mas com raízes distintas. A do DEM resulta de uma iniciativa do palácio, que não está sendo refratada a contento. A do PSDB, de uma afoiteza endógena, aproveitada pelo palácio.  Mas, varejos à parte, a baixa capacidade de resposta afeta os voluntaristas, mais do que os políticos praticantes da moderação. Daí a preocupação prioritária de extremistas adversários do sistema político de alvejarem lideranças e instituições partidárias ligadas ao centro, onde a moderação é mais frequente.

De todo o modo, o extermínio do centro é estratégia de governo e não cabe fazer, de seus alvos vulneráveis, sujeitos de uma oração cujo sentido é uma sentença acusatória que reitera, pela direita, o diagnóstico de “falência da velha política”, por vezes corroborado, na ponta esquerda, pelo de “crise da representação”. Depois de render homenagens, nem sempre sinceras, a políticos que, por terem sido derrotados no jogo pelo seu voluntarismo, tornam-se resíduos funcionais ao argumento, o arremate final dessa argumentação contra políticos moderados resilientes é que, diante do seu adesismo, o jeito é Trajano, mora? Aqui se conclui o diálogo com Cantanhede e começa a análise de um sentimento difuso de contestação da política, que, a meu ver, data vênia, a sua análise subestima.

Extremismo tornou-se consenso negativo tanto na sociedade civil, como no âmbito das instituições. Mesmo se a Câmara de Lira se converter em turba, arrancar recursos de poder para reeleição de deputados e dividir o país em torno de costumes, dificilmente dirá tudo bem, diante de arroubos extremistas contra o sistema democrático. Embora não se saiba até que ponto o eleitorado corresponderá, em 2022, a esse feliz consenso negativo, as urnas de 2020 também deixaram claro um recado por moderação, agora reforçado pelo exemplo de processo político pacificador que deu a vitória a Biden, nos EUA.  Com isso a roda da fortuna girou favoravelmente à elite política e o “lugar de fala” que ela ocupou, no pós-2018, passou a ser cobiçado. Agora todo mundo quer ser moderado, até Bolsonaro.

A acusação de adesismo ao governo Bolsonaro é a tocha acesa por adversários da política dos políticos, deserdados pelo acordo do governo com o centrão, para desalojar políticos moderados da posição relativamente confortável que vinham ocupando. Podiam, desde já, dialogar com a esquerda em torno de protocolos civilizados e, mais adiante, atrair parte do centrão a uma ampla frente democrática, num segundo turno. A imputação de adesismo cumpre o papel centrífugo que acusações de corrupção cumpriram no pre-2018. Em vez de lavar a política, trata-se agora de incendiá-la de novo. A aposta parece ser que ocorrerá o que ocorreu no clima de lacração prévio àquele pleito, ou seja, políticos em geral seguirão atras da tocha, disputando quem é oposição mais firme, num salve-se-quem-puder, procrastinando as pautas unitárias que realmente importam, nesse momento. Essas pautas poderiam ser, então, empalmadas por algum outsider adversário, tanto dos políticos sem rumo, quanto do presidente extremista. O problema é que, enquanto a tocha é seguida, o governo se expande, ocupa o centro, tenta roubar os discursos da vacina, do auxílio social e até o da conciliação.  Daqui a pouco será confundido com a misericórdia.

Especula-se, nas últimas horas, que Luciano Huck, dobrando a aposta de Dória e Maia, poderia ir até a esquerda tourear com Ciro, Lula e Boulos. Flavio Dino, se o está atraindo, faz o jogo certo de quem está na esquerda, tentando levar gente do centro para oxigenar seus ares e torná-la mais competitiva. O jogo do centro é outro e não dá nem pra fazer cócegas em ninguém se não for capaz de unir seus quadros e ainda dividir a direita, costeando o alambrado do centrão. Se uma direita governista é difícil de ser vencida, mesmo quando dividida, imaginem se estiver unida, sob uma hegemonia antidemocrática!

Numa democracia, no entanto, a política dos políticos não chega nunca a ser suprimida e, em geral, após uma faxina, renasce como unha. Foi o que começou a ocorrer nas eleições de 2020. Sobreveio, para o dito centro, um começo de 2021 adverso, pela combinação de assédios de fora e erros em casa. O impulso das urnas do ano passado pode ser retomado se esse agrupamento informe tiver compromisso social para priorizar o combate à pandemia e o auxílio aos mais pobres, responsabilidade para entrar no debate econômico, firmeza na defesa da Constituição, instinto de preservação para não incendiar suas instituições partidárias e prudência política para pacificar os ânimos. São muitos “ses”, o que torna o protagonismo do centro uma hipótese pouco provável no horizonte atual. Sem a concretização de, ao menos, parte dos “ses”, será difícil uma aliança nesse campo tomar forma política e atrair um candidato competitivo – como Luiz Mandetta, por exemplo - para, na hora certa, chamar o eleitorado. Mesmo cumprindo seu dever de casa, até aqui mal encaminhado, não é certo que esse pretenso campo político consiga protagonismo. Mas se parar de bater cabeça terá ao menos como marchar razoavelmente unido para uma outra solução democrática, mesmo exógena, para tentar derrotar o extremismo, que deve piorar muito, se houver reeleição. Pela consideração dessas distintas hipóteses (endógena e exógena), Mandetta será o foco da coluna, na próxima semana. E na seguinte, a esquerda. 

*Cientista político e professor da UFBa.


Evandro Milet: Para evitar o cancelamento, lideranças analógicas precisam se digitalizar

Os cursos de liderança no mercado, em geral, não estão captando as mudanças que acontecem de maneira muito rápida nas exigências dos cidadãos, na tecnologia e nas suas consequências nos costumes e comportamentos na sociedade.

Líderes devem construir uma visão inspiradora. Como fazer isso se estão defasados no mundo digital e fora de sintonia com o mundo da diversidade, da desigualdade e da sustentabilidade, ítens cada vez mais presentes no interesse das novas gerações? Como passar para dentro da empresa uma visão e um propósito sem perceber as sutilezas das mudanças exponenciais que exigem uma transformação digital?

Nas décadas de 1980/1990 o tema “qualidade” dominou as discussões sobre gestão, assim como o tema “inovação” ocupou a preocupação dos gestores nas duas primeiras décadas deste século. Isso se refletiu até nas preocupações da governança corporativa e as recomendações dos perfis de conselheiros passaram a considerar a importância de mesclar as competências tradicionais em finanças e controle com aquelas associadas à inovação. 

A terceira década deste século ampliou, com força, a importância do mundo digital no amplo tema da inovação, turbinada por uma pandemia que antecipou em alguns anos as demandas dos consumidores confinados.
Mas a tecnologia digital não traz somente novos equipamentos e software. Traz também novos comportamentos e permite coisas impossíveis anteriormente. Jeff Bezos, da Amazon sinalizou isso: “Comerciantes nunca tiveram a oportunidade de entender seus consumidores de forma individualizada. O comércio eletrônico possibilita isso.”

Nas fábricas a tecnologia permite a customização em massa, isto é, produtos individualizados produzidos em série. As redes sociais criaram uma nova maneira de comunicação. Os clientes foram para lá em massa, obrigando as empresas a correr atrás com algoritmos sofisticados que buscam não só chegar neles, mas produzir engajamento. No mundo anterior, um atendimento mal feito gerava algumas reclamações, hoje pode quebrar uma empresa pela velocidade de transmissão.

As facilidades para desenvolvimento de software fizeram explodir o mundo das startups com suas ameaças disruptivas. As plataformas que aproximam fornecedores de clientes moldaram um novo comportamento onde as pessoas não precisam mais ter as coisas, podem simplesmente usá-las. A internet provocou uma tendência à desintermediação, colocando fornecedores primários em contato direto com clientes.

São tantas tecnologias, com tantas implicações na sociedade e no mercado, em uma velocidade tão grande, que os ciclos tradicionais de planejamento estratégico são implodidos. A alternativa de gestão vem das startups com experimentação rápida, métodos ágeis, squads. 

Enfim, são alterações dramáticas, permanentes e fluidas na forma de lidar com clientes, com colaboradores e com concorrentes que tornam a função do líder espinhosa se ele não acompanhar esse tumulto digital em detalhes. 
Se não bastasse isso, as mudanças de costumes pressionam por diversidade de raça, gênero e idade, sustentabilidade, ações contra a desigualdade, direitos humanos, relacionamento com a comunidade e ética nos negócios.

A sigla ESG (meio ambiente, social e governança) foi adotada no mundo pelas empresas mais conscientes. Um escorregão nas atitudes provoca o cancelamento(para usar uma expressão da moda) da empresa pelo público e consequentemente do líder junto à empresa. Liderança não é mais o que já foi. São novos tempos, novas exigências. Digitalizem-se e diversifiquem-se.

*Evandro Milet é consultor e palestrante em Inovação e Estratégia


Breno Altman: Por que o STF está enfrentando a Lava Jato?

Corte tenta se redimir da chancela dada ao que resultou numa anarquia da ordem constitucional promovida pela operação, inclusive com aval do ministro Gilmar Mendes, que hoje lidera as críticas contra seus métodos

Houve um tempo em que a República de Curitiba, com suas regras e procedimentos atípicos, comandada pelo ex-juiz Sergio Moro, recebia a bênção da Corte Suprema. Apesar de um ou outro reparo, o STF parecia avalizar os mecanismos de excepcionalidade que marcavam os processos em curso na 13ª Vara Federal, a sede da Lava Jato. Deslanchada em 2014, a operação viveria sua primavera até o final de 2017. Sob as luzes e aplausos dos principais veículos de comunicação do país, transformados em correias de transmissão do espetáculo exibido a partir do Paraná, a Lava Jato dominava a cena política. Os partidos que compunham a oposição de direita, particularmente PSDB e DEM, entusiasmavam-se com a escalada repressiva contra o Partido dos Trabalhadores e seu líder histórico. Derrotados em quatro eleições presidenciais seguidas, os tucanos apostavam que Moro poderia carimbar seus passaportes de retorno ao comando do Estado.

Forjou-se ambiente de indomável euforia antipetista, semeado por amplos setores da imprensa, a começar pela poderosa Rede Globo, açulando as camadas médias e contagiando as instituições. Sob a bandeira do combate à corrupção, eram corroídas as garantias constitucionais e democráticas. Sequer tratava-se de uma situação nova. A maioria do STF, desde a Ação Penal 470, o chamado “mensalão”, concluída no final de 2012, abdicara da guarda do Estado de Direito, aceitando ou inventando manobras que pudessem solapar o Governo Lula. Alguns dos ministros agiam de forma consciente, talvez acreditando nas denúncias apresentadas pela promotoria. Outros decidiam com a faca no pescoço. Absolver chefes petistas poderia significar um penoso ostracismo.

Somente resistiam algumas vozes isoladas, especialmente o ministro Ricardo Lewandowski. Mesmo a maioria dos indicados durante os mandatos petistas iria aderir à onda das excepcionalidades. O clamor popular fabricado pela mídia de massa, contra um inimigo ao gosto das elites que regem a sociedade, mostrou-se capaz de estimular incontido espírito de manada, cujo ápice ocorreria em 2016, entre a condução coercitiva de Lula e o golpe parlamentar que derrubaria a presidenta Dilma Rousseff.

O ex-juiz Sergio Moro, exatamente nesse período, divulgaria gravações de conversas entre a chefe de Estado e seu antecessor, jogando para a plateia de verde e amarelo. Mais que uma irregularidade, tratava-se de crime escancarado. O STF, no entanto, contentou-se com um muxoxo do ministro Teori Zavascki (1948-2017), criticando a atitude do magistrado curitibano. Seu colega, Gilmar Mendes, agiu no sentido contrário. Com base nos diálogos difundidos, emitiu decisão contrária à nomeação de Lula para a chefia da Casa Civil, em inédita usurpação de atribuição exclusiva do Poder Executivo.

A subversão e a anarquia da ordem constitucional eram chanceladas, entre outras razões, porque jogavam água no moinho da oposição de direita liderada pelo tucanato. O PSDB inegavelmente era a legenda do coração e o bastião dos interesses da imensa maioria dos empresários e banqueiros, dos integrantes da alta burocracia estatal, dos barões da comunicação e das classes médias. Também eram conhecidos e comprovados os vínculos dessa agremiação com os democratas norte-americanos, que governaram a grande potência ocidental até o início de 2017.

Um novo fenômeno, porém, emergiria da potente mobilização golpista contra Dilma, capaz de levar milhões às ruas por sua derrubada. A teia sobre a qual se desenvolveu esse movimento era formada por grupos disseminados nas redes sociais durante os anos anteriores e que tinham mostrado sua musculatura nas chamadas jornadas de junhoem 2013, tomando da esquerda o comando das ruas e as incendiando contra o Palácio do Planalto.

Esses grupos, embora sem coordenação central e com fortes divergências entre si, eram bastante influenciados pela combinação, em diversos graus, de ideias neoliberais com paradigmas neofascistas. Não se reportavam às velhas legendas de direita, fundadoras da VI República, configurada pela Constituição de 1988. Seu papo era outro, misturando nostalgia da ditadura militar, culto às Forças Armadas e antigos credos anticomunistas, um viés autoritário que também embalava valores racistas, sexistas e homofóbicos.

Tais patotas eram adoradoras da Lava Jato, sua principal arma na guerra contra o PT. A turma de Curitiba foi paulatinamente correspondendo a esse amor, se afastando do bloco que havia comandado o impeachment de Dilma e constituído o Governo Michel Temer. Os setores lavajatistas do sistema de justiça, em expansão para outros Estados, como o Rio de Janeiro, foram se incorporando ao caudal político que desaguaria no bolsonarismo. Esse deslocamento refletia a permanente busca por popularidade e a identidade crescente com o projeto de Estado policial representado pelo ex-capitão.

Os sinais práticos logo se manifestariam, entre 2017 e 2018, com investigações e processos abertos contra cardeais do PSDB e do PMDB, atingindo a Aécio NevesEduardo Cunha e o próprio Temer. Além de fortalecer o ramo político de sua nova preferência, a operação Lava Jato queria exibir provas de neutralidade, esvaziando parcialmente as críticas de perseguição à esquerda e preparando terreno para o bote final, a prisão e a interdição do ex-presidente Lula, fundamentais para a disputa presidencial.

Esse cenário levou a uma lenta, mas essencial mudança no STF, liderada por Gilmar Mendes, talvez o ministro menos preocupado em agradar a opinião pública. Um grupo importante de ministros começou a questionar os métodos e as ilegalidades da operação, tratando de colocar-lhe algum anteparo.

A alteração de forças começou a ter maior nitidez em abril de 2018, quando foi julgado habeas corpus que poderia impedir o encarceramento de Lula. O receio de uma derrota levou o general Eduardo Villas Bôas, então comandante do Exército, a desembainhar espada e ameaçar veladamente com a reação dos quartéis. A faca no pescoço deixava de ter sentido figurado e definia a batalha.

A vitória de Bolsonaro e a nomeação de Moro para a pasta da Justiça acabariam por fortalecer o mal-estar político e jurídico contra a Lava Jato dentro do STF, que passaria a ser defendida, com radicalidade, apenas por um trio de magistrados indicados por Lula e Dilma: Edson Fachin, Luís Roberto Barroso e Luiz Fux. O apoio de Cármen Lúcia e Rosa Weber, também nomeações petistas, passou a ser incerto. Conquistava espaço a aliança entre Lewandowski, Mendes, Dias Tóffoli e Alexandre de Moraes, muitas vezes acompanhada por Marco Aurélio de Mello e Celso de Mello.

Os fatos adquiriram outra velocidade em junho de 2019, com os diálogos sigilosos entre os integrantes da força-tarefa e o ex-juiz, revelados pelo site The Intercept e outros veículos. A ala garantistada Corte, junto com a defesa de Lula e a campanha por sua libertação, passava a ter munição de sobra para colocar a operação Lava Jato na berlinda, desarmando sua sustentação na sociedade e no Estado. O mecanismo estava nu, com a mão no bolso.

O tiro de misericórdia, no entanto, seria dado pelo principal beneficiário das arbitrariedades cometidas sob a batuta de Moro. O presidente Jair Bolsonaro, com pouco mais de um ano no governo, via com desgosto e temor a especulação de que seu ministro poderia ser candidato em 2022, enfrentando-o nas urnas em coalizão com a direita tradicional. Tratou de isolá-lo e desestabilizá-lo, até que saísse do governo, em abril de 2020. Para se assegurar da morte política de um perigoso rival, ao mesmo tempo em que tratava de proteger a si próprio e seu clã frente ao sistema judicial, já tinha nomeado Augusto Aras como procurador-geral, em setembro de 2019, com a tarefa de limar o legado da Lava Jato e construir pontes com os garantistas.

Esse giro seria selado em novembro de 2020, com a indicação de Kassio Nunes Marques ao STF, para o lugar de Celso de Mello, retirado por limite de idade. Essa substituição foi primordial, pois consolidava na Segunda Turma do tribunal, encarregada de todos os processos da Lava Jato, uma maioria crítica, formada por Mendes, Lewandowski e o ministro novato, contra Fachin, podendo atrair Carmen Lúcia para um quarteto dominante. Foi o que se viu no julgamento, em 9 de fevereiro, que liberou o acesso da defesa de Lula às conversas entre os procuradores da força-tarefa e o magistrado responsável.

Rompida com a direita tradicional e abandonada pelo bolsonarismo, a Lava Jato recebeu o beijo da morte, ainda que viúvas e órfãos lutem por sobrevida. Seu corpo, fétido, ainda precisa ser enterrado. A anulação das sentenças contra Lula, por suspeição do ex-juiz Sergio Moro, é a grande chance para o STF, redimindo-se, extirpar o “maior escândalo judicial da história humana”, nas palavras de um articulista do New York Times, repetidas pelo ministro Gilmar Mendes, presidente da Segunda Turma do STF, durante a histórica sessão que cravou mais um punhal no coração da República de Curitiba.

Breno Altman é jornalista e fundador do site Opera Mundi.


Luiz Augusto de Castro Neves: ‘Papel do Itamaraty se tornou secundário’

Pragmático, governo da China busca outras vias de negociação, como os governadores, diz Luiz Augusto de Castro Neves

Francisco Carlos de Assis, O Estado de S.Paulo

Para o embaixador do Brasil em Pequim, de 2004 a 2008, e hoje presidente do Conselho Empresarial Brasil-China (CEBC), Luiz Augusto de Castro Neves, o governo chinês optou pelo pragmatismo e não tem levado em consideração os ataques recebidos de alguns membros do governo brasileiro. “O governo brasileiro, nas suas manifestações públicas, tem apresentado algumas disfuncionalidades”. A seguir, os principais trechos da entrevista ao Estadão.

Apesar do discurso ‘antichina’ do governo, a exposição das exportações brasileiras à China saltou de 28%, em 2019, para 32%, em 2020. Teremos uma repetição deste aumento este ano?

Sim. A China, embora tenha crescido 2% no ano passado, sofreu uma desaceleração muito grande, o que gerou uma capacidade ociosa que deverá ser preenchida este ano. E o Brasil se mantém ainda em recessão e tem aumentado as exportações para o mercado chinês e reduzindo suas importações. O aumento das exportações para a China se dá por sua economia estar crescendo mais que a economia mundial.

Mesmo com as compras de insumos para vacinas as importações de produtos chineses não devem ter destaque este ano?

A compra de produtos chineses, de modo geral, tende a se estabilizar ou até diminuir. As importações dos insumos necessários para a fabricação de vacinas contra a covid-19, quantitativamente, não serão decisivas, no agregado, para gerar um aumento nas importações. Nossas importações da China são basicamente de bens intermediários essenciais para a indústria.

Os ataques feitos à China por membros do governo não causam ruídos nas negociações comerciais entre os dois países?

O governo brasileiro, nas suas manifestações públicas, tem apresentado algumas disfuncionalidades. São manifestações vinculadas ao governo e que exprimem posições pessoais. Mas o que tem prevalecido é o pragmatismo e, bem ou mal, a China ainda é o nosso maior parceiro comercial.

Recentemente, os chineses andaram negociando com governadores e com o ex-presidente da Câmara Rodrigo Maia. É uma forma de reduzir o papel do Itamaraty, do Ministério das Relações Exteriores?

A China vai sempre negociar com interlocutores eficazes. O ex-presidente Michel Temer negociou com eles com a anuência do governo federal, mas é fato que o papel do Ministério de Relações Exteriores se tornou secundário. Mas esta tem sido uma tendência mundial. Se antes as negociações comerciais eram de exclusividade do Ministério de Relações Exteriores, hoje Estados e empresas privadas têm seus próprios canais de conexão com o mundo.


Roberto Abdenur: ‘Houve uma destruição da política externa brasileira’

Comércio com os EUA também foi afetado, apesar das concessões feitas por Bolsonaro, em uma postura de 'subserviência', avalia ex-diplomata

Douglas Gavras , O Estado de S. Paulo

O saldo dos dois primeiros anos de governo Bolsonaro nas relações exteriores é destrutivo, avalia o ex-embaixador na China Roberto Abdenur. Na entrevista a seguir, o ex-diplomata, que também já representou o Brasil em Washington, ressalta que a postura de “subserviência” do governo brasileiro em relação ao ex-presidente americano Donald Trump foi ruim para o País sob diferentes aspectos. 

É possível classificar a relação atual do Brasil com a China como uma dependência comercial?

A China despontou como parceiro comercial brasileiro, graças à imensa demanda por commodities, mas não creio que o Brasil seja dependente deles, no sentido de que eles não têm poder para ditar rumos ao governo brasileiro, assim como não éramos dependentes dos Estados Unidos, quando o peso deles era maior na balança brasileira. 

O que temos é uma parceria? 

Temos uma parceria estratégica, que ajudei a lançar quando era embaixador em Pequim, até o início da década de 1990. De lá para cá, isso floresceu, graças ao extraordinário crescimento da China. Na época, já via o avanço chinês com otimismo, mas não imaginei que eles fossem sustentar esse crescimento por quase 30 anos, e que o país se transformaria em uma potência econômica, comercial, militar e tecnológica. 

Como definir a política externa brasileira no atual governo?

O que houve nos dois anos de Bolsonaro é que o Brasil não teve, a rigor, uma política externa. Houve uma destruição da diplomacia. As coisas de que falam o chanceler, Ernesto Araújo, e os assessores da ala ideológica são devaneios, uma nuvem de teorias da conspiração. Chegamos a considerar as próprias Nações Unidas algo indesejável. Nos tornamos o único país do mundo que ataca o multilateralismo.

O saldo da relação muito próxima entre Bolsonaro e Trump é negativo para o Brasil, portanto?

No ano passado, houve um forte encolhimento do comércio com os EUA, muito por conta da pandemia, mas também por protecionismo. O ex-presidente Donald Trump impôs tarifas abusivas sobre aço, alumínio e etanol brasileiros. O comércio foi afetado, apesar de todas as concessões feitas por Bolsonaro, em uma postura inacreditável de subserviência.

A afinidade entre os dois governos feriu o interesse nacional?

Na primeira metade de seu mandato, Bolsonaro se pendurou em Trump. Também já fui embaixador em Washington e as relações com os EUA eram conduzidas de outra forma. Havia diferença de tom, mas também uma linha de continuidade que atravessou governos tão diferentes entre si, como o de Sarney, Collor, FHC e Lula.

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Rolf Kuntz: Com atraso e sem rumo, vai sair o bloco do governo

Sem Orçamento e sem plano, o governo vai afinal entrar em 2021

Sem carnaval, sem dinheiro, sem rumo claro e sem Orçamento, o governo segue, no entanto, o costume imputado ao povo brasileiro: começar o ano só depois do fim da batucada. Bem depois, no caso do governo, como se a pandemia solta, a vacinação apenas iniciada e a economia sem fôlego admitissem lentidão, indecisão e administração segundo o modelo pazuellino. O presidente Jair Bolsonaro anunciou mais quatro parcelas de auxílio emergencial, provavelmente a partir de março. A recém-nomeada presidente da Comissão Mista de Orçamento, deputada Flávia Arruda (PL-DF), prometeu aprovação da lei orçamentária até o fim do próximo mês. Com as duas providências, o Poder Executivo poderá iniciar, enfim, algo parecido com uma gestão normal, com uns três ou quatro meses de atraso.

Sem a ajuda emergencial, milhões de famílias continuam sofrendo os horrores econômicos produzidos pela pandemia. O auxílio acabou no fim do ano, porque foi programado como se o drama devesse acabar em 31 de dezembro. O projeto de lei orçamentária, enviado ao Congresso no fim de agosto, foi elaborado como se 1.º de janeiro fosse o começo de uma nova história.

Levou-se em conta, no projeto, o legado fiscal das ações especiais de 2020: um enorme desajuste nas contas federais, uma dívida pública bem maior do que se podia prever, uma gestão financeira muito complicada e nada além disso. Mas o mundo real seguia um roteiro diferente, com desafios bem mais amplos. O governo ignorou essa possibilidade, preferindo festejar uma suposta recuperação em V e apostando numa economia mais forte e com mais emprego em 2021.

Enquanto a pandemia matava, os pobres afundavam, o presidente se envolvia em polêmicas sobre a vacina e o ministro da Saúde fazia tudo errado, o governo derrapava na confusão e perdia tempo. O ministro da Economia, Paulo Guedes, demorou a admitir, pelo menos em público, a hipótese de novos pagamentos de auxílio. Pressionado pelos novos presidentes da Câmara e do Senado, Arthur Lira e Rodrigo Pacheco, acabou, aos poucos, discutindo o assunto mais abertamente.

Resistiu, no entanto, a entrar no jogo, como se a nova ajuda aos mais necessitados só interessasse, politicamente, aos interlocutores. Cobrou soluções, tomando como exemplo as condições especiais aprovadas no ano passado, mas sem a iniciativa de uma proposta. Numa ação paralela, ao menos em aparência, o presidente Bolsonaro logo se mostrou favorável à retomada do auxílio, mas sempre ressaltando as limitações do Tesouro.

No entendimento enfim anunciado na quinta-feira, o ministro da Economia apareceu em segundo plano, porque o presidente da República e os presidentes da Câmara e do Senado se haviam destacado como defensores da nova ajuda.

O interesse do presidente Bolsonaro talvez seja, como em outros momentos, basicamente eleitoral. Mas o socorro aos necessitados pode ser também relevante para a economia. A recuperação iniciada em maio obviamente se enfraqueceu no segundo semestre.

Em dezembro, a produção industrial foi 0,9% maior que em novembro, mas o crescimento perdeu vigor nos oito meses de retomada. No balanço final, o desempenho da indústria em 2020 foi 4,5% inferior ao de 2019. O varejo encerrou o ano com vendas 6,1% menores que as de novembro. O volume vendido em 12 meses foi 1,2% maior que o do ano anterior, mas os números do bimestre final foram muito ruins. Quanto aos serviços, começaram a melhorar só em junho, com pouco impulso, e recuaram 7,8% em 12 meses.

Os últimos dados do desemprego mostraram 14 milhões de pessoas desocupadas no trimestre setembro-novembro. Nada sugere condições muito melhores nos meses seguintes, até porque o setor de serviços, importante fonte de empregos, entrou muito enfraquecido em 2021.

Mas o governo pareceu desconhecer todos esses dados, como se a continuação da retomada estivesse magicamente garantida. Nada relevante foi feito na política econômica desde o início do ano. Nem os saques da poupança em janeiro, um recorde histórico, pareceram inquietar a equipe econômica. Ninguém parece haver considerado a hipótese temível: quantos terão sacado dinheiro para simplesmente sobreviver?

Sem Orçamento, o governo depende agora de um decreto, assinado na quinta-feira, para realizar gastos inadiáveis. Não há notícia de uma política de sustentação da atividade. Os únicos incentivos são os mantidos pelo Banco Central (BC), com juros baixos e estímulos ao crédito.

Com a aprovação do Orçamento e a liberação do auxílio emergencial, importante para o consumo, o governo poderá aproximar-se de algo parecido com uma gestão normal. Para isso será preciso combinar ajuste fiscal e ativação econômica, tarefa tão complicada quanto indispensável.

Mas até a noção de normalidade parece estranha. Afinal, o presidente e sua equipe só tomaram medidas típicas de governo quando foram forçados, pela pandemia, a iniciar ações parecidas com as implantadas em mais de uma centena de outros países. Mas a pandemia continua e as ações típicas de governo sumiram quase inteiramente.


Eliane Cantanhêde: PSDB ataca Doria, DEM tira o tapete de Huck, Lava Jato engole Moro. E Luiza Trajano?

Quem pode preencher esse vácuo é uma mulher, empresária, colecionadora de êxitos, com o pé no chão e defensora de boas causas

Se parece pato, anda como pato e grasna como pato, pato é. Se o novo ministro da Cidadania, João Roma, fez toda a sua carreira no DEM, colado em ACM Neto e era seu chefe de gabinete, ACM Neto ele é. Jura que foi parar no colo do presidente Jair Bolsonaro pelo Republicanos e por Marcos Pereira, ninguém acredita. Depois de Sérgio Moro, em 2019, o maior troféu de Bolsonaro é ACM Neto, que perde o status de uma das grandes promessas nacionais e arrasta junto o DEM.

Além de, novamente, garantir mais armas e mais balas para civis, Bolsonaro está soltando fogos. O Centrão transformou o Congresso em puxadinho do Planalto e o DEM cala Rodrigo Maia, voz decisiva da resistência ao autoritarismo e ao atraso, imobiliza Luciano Huck, obrigado a procurar outra sigla, e desarticula uma saída da catástrofe pelo centro – que está descambando para a extrema direita.

Num movimento combinado, o PSDB segue o desastre do DEM, como um piloto que, em meio a forte tempestade, entra em estado de desorientação espacial. Trancado na cabine (no caso, na bolha), não enxerga nada à frente, não sabe mais se está subindo ou descendo e acelera até se esborrachar no solo logo ali. É mesmo estonteante o DEM e o PSDB elegerem João Doria e Maia como inimigos prioritários.

É hora de atacar Doria? Goste-se ou não dele, e muita gente não gosta, ele é governador do principal Estado do País, ocupa a mais importante vitrine nacional dos tucanos e merece aplausos pela visão, diligência e decisão ao providenciar as vacinas. Com legitimidade, fazia uma dupla fundamental com Rodrigo Maia para dizer “não” a investidas golpistas e medidas retrógradas.

O que seria do Brasil sem as “vacinas chinesas do Doria”? Em fevereiro, teríamos dois milhões de doses para 210 milhões de habitantes, com 9,8 milhões de contaminados, 238 mil mortos e novas variantes mais ameaçadoras, enquanto o presidente insiste no “e daí?”. E, sem Maia na Câmara e Doria no PSDB de São Paulo, quem dará voz e cara à oposição? Bolsonaro torce para Lula e Fernando Haddad.

O tucano Eduardo Leite, governador do Rio Grande do Sul, tem lá suas qualidades, mas não pode ser séria a articulação do seu nome para a Presidência. Muito jovem, está no primeiro mandato relevante, num Estado que se especializou em torrar seus quadros políticos e nunca reelegeu um único governador. Logo, a caravana tucana pode tê-lo convencido, mas a ninguém mais.

Chutar Doria para pôr Leite no lugar tem cara de blefe, para dissimular uma outra jogada: a aproximação com Bolsonaro. Consolida, assim, a análise de que o melhor que pode acontecer ao PSDB é pôr ponto final na sua bela história, antes de um triste fim - que pode estar perto. Depois do ministro de ACM Neto, Bolsonaro busca nomes vistosos do PSDB e do MDB para o governo.

Com PSDB e DEM se autodestroçando, Bolsonaro corre sozinho, cada vez mais lépido, fagueiro, sem noção e sem escrúpulos, sustentado por Forças Armadas, polícias, milícias, os reinos de Deus, Centrão, Congresso e “oposição”. Não pensem o PT e a esquerda que isso é bom para Lula, Haddad ou quem quer que seja. Na implosão do centro, a debandada é para Bolsonaro.

Doria, Huck, Moro e Luiz Henrique Mandetta são torpedeados antes de alçar voo, mas, como não há vácuo em política, quem pode preencher esse vácuo é uma mulher, empresária, colecionadora de êxitos, com o pé no chão e defensora de boas causas, como cotas, vacinas, menos ideologia e mais resultados. Sim, Luiza Trajano, sem partido e sem traquejo político, mas instada a botar o bloco na rua e, num carnaval tão atípico, animar e atrair um grande aliado de Bolsonaro: o eleitor desiludido, ou desesperado, que só vê o buraco aumentando.


Vinicius Torres Freire: A nova lei da gasolina de Bolsonaro e as velhas mentiras sobre combustíveis

Projeto do governo é até razoável, mas não resolve o problema dos preços

O projeto de lei do governo Jair Bolsonaro que propõe mudar o ICMS sobre combustíveis é razoável. Ou melhor, seria razoável em um mundo em que:

1) Bolsonaro não fosse o demagogo Bolsonaro: a lei não mexe necessariamente com o nível do preço dos combustíveis;

2) os estados se dispusessem a perder receita do ICMS sobre combustíveis, o que é politicamente inviável se não houver compensações que, em um futuro remoto, talvez sejam decididas em uma reforma tributária.

O projeto prevê que o ICMS sobre cada tipo de combustível seja idêntico em todos os estados e que o tributo tenha um valor fixo por quantidade (litro ou quilo), em vez de uma porcentagem. Parece inviável.

A alíquota de ICMS varia de 12% a 34% entre os estados. Ninguém vai querer perder receita se não houver alguma compensação. O ICMS sobre combustíveis equivale a quase 15% da arrecadação dos estados, na média.

O ICMS é cobrado como um percentual do preço de referência dos combustíveis. Quanto maior o preço, maior a receita de imposto, pois. Se o imposto fosse fixo por litro, digamos, o preço final de venda subiria menos em caso de aumento do combustível. Em tese, cairia menos também. Tudo depende da inclinação dos estados de mexer periodicamente nesse valor fixo de imposto por quantidade.

É verdade que o projeto de lei pode limitar a sonegação e também acabar com uma outra mutreta. O ICMS é cobrado sobre um valor estadual de referência do combustível, em geral uma média de preços em algum período. A fim de arrecadar mais, alguns estados mexem pouco nessa média (quando esse valor é alto).

Mas não está aí o problema central. Gasolina ou diesel ficam mais caros porque o dólar aqui está caro e porque o preço do petróleo está aumentando. Deve aumentar mais caso a economia mundial saia da lama da epidemia. O dólar está aparentemente caro demais em parte por causa do estado de avacalhação da economia e da política.

O preço nas refinarias é “livre”: nesse setor ainda dominado pela Petrobras, desde 2017 segue o mercado mundial (ou quase isso, pois a petroleira tem atrasado reajustes). Caso o governo tabelasse o preço dos combustíveis, o prejuízo acabaria na conta da Petrobras, como no governo Dilma Rousseff (tudo mais constante, a empresa tem receita menor, dívida relativamente maior, paga juros mais altos e investe menos). Com a venda das refinarias da Petrobras, vai ser difícil controlar preços.

O preço dos combustíveis tem impacto social sério, como no caso do gás de cozinha. É possível subsidiá-lo com verba do Orçamento (mas seria preciso também cortar outra despesa ou aumentar impostos). Subsidiar gasolina e diesel incentiva a poluição e arruinou a indústria do etanol.

É também possível reduzir a variação excessiva de preços cobrando um imposto regulador (como a Cide). Esse imposto aumenta quando os combustíveis estão em baixa e diminui quando estão em alta. Assim, é possível manter o custo do combustível dentro de uma faixa mais estreita de variação (desde que baixas e altas no mercado mundial não sejam muito grandes). O governo não cuidou de implementar tal política.

Essa conversa toda é bem velha. Já foi objeto de muita discussão sob Michel Temer, em 2018. Mas não houve solução alguma para o problema a não ser subsidiar o diesel dos caminhoneiros a fim de evitar um colapso de abastecimento ou coisa pior durante o caminhonaço, tumulto aliás apoiado por Bolsonaro, que volta agora a fazer demagogia.

A gente está cada vez mais rodada, mas não sai do lugar


Elio Gaspari: Villas Bôas contou, reviu e errou

O tempo e novas memórias do período lapidarão as lembranças de Villas Bôas. Num caso, porém, sua memória (revista) falhou feio.

Está nas livrarias “General Villas Bôas: Conversa com o comandante”. É o resultado de 13 horas de entrevistas do professor Celso Castro com o general Eduardo Villas Bôas, que comandou o Exército de 2015 a 2019. O texto foi revisto pelo general até maio de 2020 e devolvido com acréscimos que engordaram o livro em 30%.

“VB”, como é chamado pelos colegas, rememora sua vida, da infância de Cruz Alta aos dias tensos do impedimento de Dilma Rousseff e da eleição de Jair Bolsonaro.

Ele tratou do seu famoso tuíte de 2018, às vésperas do julgamento do habeas corpus de Lula pelo Supremo Tribunal Federal (“um alerta, muito antes que uma ameaça”) e do agradecimento que Bolsonaro lhe fez pouco depois de ter sido empossado:

“Meu muito obrigado, comandante Villas Bôas. O que nós já conversamos morrerá entre nós. O senhor é um dos responsáveis por estar aqui. Muito obrigado, mais uma vez.”

O general explicou: “Morrerá entre nós! Garanto que não foi um tema de caráter conspiratório.”

O tempo e novas memórias do período lapidarão as lembranças de Villas Bôas.

Num caso, porém, sua memória (revista) falhou feio. Ele conta:

“O presidente Sarney relata que, após a morte de Tancredo Neves, houve uma reunião para deliberar como se processaria a nova sucessão. O deputado Ulysses Guimarães tentou impor sua posição que consistia na realização de um novo pleito. O ministro Leônidas (general Leônidas Pires Gonçalves) posicionou-se no sentido de que, conforme a legislação vigente, o cargo de presidente caberia ao senador Sarney (que havia sido eleito para a vice-presidência). Ato contínuo, voltou-se para ele, prestando uma continência disse: ‘Boa noite, presidente.’ Com seu arbítrio, o fato estava consumado, o que assegurou uma transição sem percalços”.

Sarney nunca relatou isso. Ele vestiu a faixa na manhã de 15 de março de 1985, e Tancredo só morreu no dia 21 de abril.

As incertezas com relação à posse do dia 15 foram desencadeadas na noite da véspera, quando Tancredo foi levado para o Hospital de Base de Brasília, para uma cirurgia de emergência. A posse estava marcada para horas depois.

Sarney chegou ao hospital às 21h30m.

Nas suas palavras:

“Lá encontro Ulysses. Tenho os olhos marejados. Rasga-me a alma o sofrimento de Tancredo. Ulysses me desperta ríspido: ‘Sarney, não é hora de sentimentalismos. Nossa luta não pode morrer na praia. Temos de tomar decisões. Você assume amanhã, como manda a Constituição, na interinidade do Tancredo.’

‘Não, Ulysses, assume você. Só assumo com Tancredo.’

‘Você não pode acrescentar problemas aos que estamos vivendo. É a democracia que temos de salvar.’”

O general Leônidas, ministro do Exército escolhido por Tancredo, jantava na Academia de Tênis quando soube que o presidente eleito estava no hospital. Foi para lá defendendo a posse de Sarney. Conseguiu uma gravata emprestada e seguiu com uma pequena comitiva de políticos para um encontro com o chefe da Casa Civil, professor Leitão de Abreu. Sarney ficou no hospital e depois foi para casa.

Leitão estava em dúvida (ou fingia estar em dúvida), se deveria ser empossado o vice ou o presidente da Câmara (Ulysses). Nesse encontro Ulysses e Leônidas queriam a posse do vice-presidente. Fernando Henrique Cardoso testemunhou a cena. Ela aconteceu nas primeiras horas da madrugada do dia 15. Àquela altura, achava-se que em alguns dias Tancredo estaria recuperado.

Às 3h da madrugada tocou o telefone na casa de Sarney. Era o general Leônidas, que começou a conversa com um “boa noite, presidente”. Sarney repetiu que não queria assumir, e Leônidas disse-lhe que “não temos espaço para erros”. Despediu-se com outro “boa noite, presidente.”

A cena contada por Villas Bôas nunca aconteceu. Tancredo não estava morto. Ulysses nunca quis uma nova eleição e sempre defendeu a posse de Sarney. O general Leônidas era formal, mas não dava continência falando ao telefone.

O Lavajatismo de Bretas

Enquanto o Supremo Tribunal Federal resolvia o destino das conversas promíscuas de procuradores de Curitiba, algumas das quais envolvem o ex-juiz Sergio Moro, o ministro Gilmar Mendes dava uma entrevista a Felipe Recondo e Fábio Zambeli. Nela, descascou as impropriedades praticadas durante a Operação Lava-Jato e perguntou:

“Como nós chegamos até aqui? (...) O que nós fizemos de errado para que institucionalmente produzíssemos isso que se produziu. (....) Sabiam que estavam fazendo uma coisa errada, mas fizeram.”

Gilmar reconheceu as limitações do Judiciário, condenou a “blindagem” com que a imprensa protegeu a turma da Lava-Jato e foi ao essencial: “O que nós devemos fazer para evitar que esse fenômeno se repita?”

Nesse mesmo dia, o juiz Marcelo Bretas, lavajatista do Rio de Janeiro, ouvia o ex-governador Luiz Fernando Pezão. A certa altura, Pezão disse ter certeza de que seu parceiro Sérgio Cabral e dois de seus colaboradores haviam combinado as versões de suas delações enquanto estavam na cadeia.

Pezão estava no meio do seu raciocínio quando o procurador Carlos Aguiar interrompeu-o, dizendo que ele estava fazendo “juízo de valor sobre as colaborações”.

Vá lá, porque é conhecido o espírito de corpo do Ministério Público, mas o juiz Bretas entrou no diálogo, informando a Pezão que não lhe cabia, como testemunha, avaliar se a colaboração “é justa ou correta”. Vá lá, juízes adoram dar aulas, mas Bretas foi adiante:

“É preciso ter cuidado quando se afirma que certa irregularidade aconteceu, porque é preciso provar.”

Em seguida, Pezão mudou o tom.

O repórter Athos Moura noticiou o fato. O que aconteceu?

Nadinha, pois, tomando cuidado, chegara-se àquilo.

Faz tempo que se chega.

Em 1974, quando Elzita Santa Cruz de Oliveira procurava seu filho Fernando, escreveu cartas a chefes militares contando seu caso, e um tenente-coronel acusou-a de caluniar o Exército, pois “seria desonrar todo nosso passado de tradições, se nos mantivéssemos calados diante de injúrias ora assacadas contra nossa conduta de soldados da Lei e da Ordem que abominam o arbítrio, a violência e a prepotência”.

Meses depois, o mesmo tenente-coronel estava na sala do comandante do II Exército, general Ednardo D’Avila Mello, quando o ministro Sylvio Frota interpelou-o por que um oficial da Polícia Militar de São Paulo “tinha sido insultado e agredido a socos durante um interrogatório” no DOI.

Nas palavras de Frota:

“Não é possível, Ednardo, que isso aconteça! Você deve tomar enérgicas providências. É preciso mudar, logo, alguns dos oficiais que trabalham no DOI; substituí-los, porque estão ocorrendo exageros que não podemos admitir.”

Fernando, filho de Elzita, era o pai de Felipe Santa Cruz, atual presidente da Ordem dos Advogados do Brasil. Nunca foi encontrado.


Cacá Diegues: Uma nova adolescência

Deixem o esquecimento em paz, ele é a garantia de uma existência mais alegre para idosos feito nós

Estamos perdidos, o Supremo acaba de proibir o esquecimento. Não sei se a sábia decisão inclui questões de foro privado, como fracassos pessoais e amores insanos, essas coisas que fazem de nossa vida inevitável sequência de frustrações dolorosas. Vou ler o documento com atenção, deve haver um parágrafo redentor dizendo que, a partir de certa idade, temos o indiscutível direito de não mais lembrar tristes momentos.

Em vez de nos condenar à memória, bem que o Supremo podia nos ajudar no suplício do que preferíamos que não tivesse acontecido. Valorizar nosso empenho em esquecer por respeito a nós mesmos. Não temos mais como reparar o desastre da juventude. Mas temos o direito de não darmos atenção aos que, nos salões, balbuciam nosso nome com trejeitos e risadas. Esquecer é uma bênção dos céus; rejeitá-la é um grave pecado masoquista de orgulho e pretensão.

Em certo momento adiantado da vida, começamos a nos conformar com o que somos. Seguimos vivendo a combinação patética de euforia e depressão, marca da existência, mas sabemos que o que somos dificilmente deixará de ser o que é. Ninguém vai nos reavaliar. O que foi já foi, não temos como consertar. Para que lembrar de tudo, mesmo que tenhamos sido campeões do mundo ou namorados de princesas? Sempre haverá algo de desagradável, em cada um desses sucessos.

Para a nova humanidade, não existem mais “velhos”, coisas gastas e desnecessárias. Agora somos “idosos”. O que, convenhamos, é muito mais conveniente e impõe um certo respeito. Outro dia, li na internet um post, encaminhado por meu amigo Walter Lima, o cineasta baiano, dizendo que os jovens estão achando nos idosos sinais de adolescência. Somos uma nova faixa social, idolescentes vivendo de um jeito peculiar, inventivo e agitado, capaz de renovadas provocações civilizatórias. A adolescência foi uma invenção de meados do século XX, para dar identidade demográfica e cultural a um desabrochar humano original, depois da Segunda Guerra Mundial. O desabrochar dos idosos é uma invenção desse século XXI, posterior à Guerra Fria, sei lá pra quê.

Como muitos de minha idade, esses que chamo de idolescentes, faço exercícios físicos para manter certa forma. Meu mestre em fisioterapia e shiatsu, o doutor Sashide, me garantiu que o idoso pode fazer tudo que um jovem faz. A diferença é que o idoso tem que fazer uma coisa de cada vez, concentrado no que está fazendo. Se você estiver subindo uma escada, por exemplo, se concentre só nisso, esqueça para onde vai, quem está a seu lado ou que música está tocando mais adiante. Preste atenção apenas a cada degrau, ao espaço em que, no próximo, você vai colocar o pé. A vida talvez fique mais lenta e mais chata, mas certamente mais segura e comprida.

Um amigo meu, cuja jovem filha morreu recentemente de mal incurável, me disse que, mesmo aos 79 anos de idade, só depois desse evento trágico começou de fato a envelhecer. Ele não desejou morrer por causa da morte da jovem e bela menina, a vida apenas perdeu para ele grande parte de sua graça. Agora estou tentando transformar esse meu amigo, com todo o respeito por sua dor, num idoso disposto a viver. Mas, para isso, ele precisa esquecer. Não necessariamente tudo. O rosto de sua filha sem vida, por exemplo, nunca mais deixará sua memória.

Por favor, senhores ministros do Supremo, defendam com ardor a liberdade e a democracia, deem a vida pelas duas. Mas deixem o esquecimento em paz, ele é a garantia de uma existência mais alegre para idosos feito nós.


Dorrit Harazim: Cidadão radioativo

A vida pós-presidencial de Donald Trump não será menos desviante das normas e da tradição política do que seus anos no poder. Com apenas 13 meses de intervalo, encerrou-se ontem o segundo processo de impeachment que o alcança na aposentadoria em Mar-a-Lago. Desta vez, a acusação foi por “incitamento à insurreição” de sua horda de militantes armados, que desembocou na selvagem invasão do Capitólio de 6 de janeiro. Atiçado pelos longos meses de retórica incendiária do comandante-em-chefe, o bando tentara impedir a ratificação burocrática, pelo Legislativo, da vitória eleitoral de Joe Biden. Naquele surto de terrorismo messiânico a peito aberto, com torcida na Casa Branca, viu-se a face do horror possível.

Os democratas que impulsionaram esse impeachment nº 2 sabem fazer contas. Sabiam, portanto, da dificuldade de obter junto à geleia desfibrilada de senadores republicanos os votos necessários para a condenação de Trump. Talvez por isso, ao longo de 14 horas, apresentaram seus argumentos de acusação visando a atingir também duas audiências cruciais, ambas fora do plenário: a opinião pública mundial e os anais da história. É essa minuciosa reconstituição dos fatos que passará a constar como registro oficial, indelével, da primeira tentativa de sedição de um presidente dos EUA contra as leis democráticas do país.

Absolvido de impeachment pela segunda vez, o cidadão Trump ainda é capaz de causar grandes estragos à nação, avalia seu sucessor. Biden já sinalizou que quebrará uma norma de cortesia e confiança republicana em vigor desde o século passado: não franqueará ao antecessor aposentado o privilégio de receber o boletim diário ultrassecreto reservado ao chefe da nação. O famoso PDB (sigla para President’s Daily Briefing) é a compilação de informações e análises sobre segurança nacional preparada a cada 24 horas para o presidente. Entre as centenas de relatórios diários produzidos pelas 19 agências de inteligência dos EUA, apenas o PDB é elaborado para um único cliente — o comandante-em-chefe. E não chega a 10 o número de altos funcionários com acesso a seu conteúdo.

Talvez o mais célebre PDB de todos os tempos, tornado público em 2004, tinha por título “Bin Laden determinado a atacar nos Estados Unidos”. Fora dirigido ao republicano George W. Bush, 43º ocupante do cargo, com data de 6 de agosto de 2001. Deveria ter recebido a atenção que merecia. Pouco mais de um mês depois, os ataques de 11 de setembro derrubariam as Torres Gêmeas e colocariam o país de joelhos.

Além do PDB convencional, um analista em carne e osso também aponta ou esclarece algum outro elemento-chave do boletim, na suposição de que o informe já tenha sido lido. Suposição frustrada no caso de Trump. Ao longo de seus quatro anos no poder, ele nunca demonstrou interesse pela papelada. Simplesmente não tinha paciência para ler, além de não distinguir o que vinha assinalado com um “S” (de secreto). Colocava-se acima das picuinhas de segurança nacional para poder impressionar seus pares mundiais, arrostando segredos.

Suas transgressões foram inúmeras. Certa vez, no próprio Salão Oval, compartilhou com o chanceler russo uma peça de inteligência ultrassecreta sobre o Estado Islâmico, produzida por Israel; doutra vez, copiou com celular não criptografado a raríssima imagem obtida por satélite de uma base de lançamento de foguetes do Irã. Sem contar as célebres reuniões com a raposa russa Vladimir Putin, sem a presença de qualquer assessor. Numa delas, Trump chegou a confiscar as anotações dos intérpretes, fazendo com que os EUA não tenham qualquer registro do que ali foi falado.

Biden avaliou tudo isso, além do que chamou de “comportamento errático” do antecessor, para não estender ao cidadão Trump acesso a esses briefings, tradicionalmente disponibilizados a todo ex-ocupante do cargo. Atualmente, tanto Jimmy Carter como Bill Clinton, George W. Bush e Barack Obama têm passe livre aos PDBs. Isso porque a utilidade da cortesia e da confiança interessa às duas partes. Não é incomum a Casa Branca recorrer a presidentes aposentados para missões especiais no exterior, conferindo-lhes uma representatividade oficiosa, sem precisar ser oficial. E, quando a viagem é de caráter privado, todo ex tem interesse em saber se marcou encontro com alguém que anda sabotando a política dos EUA. Também lhe interessa estar atualizado com os bastidores de negociações em curso, para não dizer besteira.

À luz do currículo que deixou na Casa Branca, o cidadão Trump não preenche nenhum requisito dessa confiabilidade. “Todo ex-presidente é, por definição, um alvo e representa um risco. Mas o ex-presidente Donald Trump é particularmente vulnerável a más intenções por parte de maus atores”, alerta Susan M. Gordon, que, na qualidade de vice-diretora de Inteligência Nacional entre 2017 e 2019, participou de incontáveis briefings com o chefe.

Pela primeira vez na história dos EUA, um ex-presidente é visto como risco potencial à segurança do país. Sua teia mundial de negócios e dívidas o tornam tão vulnerável a chantagem quanto um espião com esqueletos brabos no armário. Sem falar no risco de ele fazer uso indevido por conta própria, com material tão valioso em mãos.

Melhor não arriscar. O cidadão Trump continua radioativo em seu próprio país. Sua militância radical também.