El País: Supremo manda prender deputado Daniel Silveira, e Lira tem primeiro teste institucional na Câmara

Deputado divulgou vídeo com ataques à Corte e foi detido em flagrante no inquérito das ‘fake news’, após ordem do ministro do STF Alexandre de Moraes. Câmara decide se o manterá preso e presidente da Casa diz que irá se guiar pela Constituição

Rodolfo Borges, El País

A batalha entre os Poderes em Brasília ganhou um novo front nesta quarta-feira. Quase no início da madrugada, o deputado bolsonarista Daniel Silveira (PSL-RJ) recebeu uma visita da Polícia Federal em sua casa, por instrução do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes. “Polícia Federal na minha casa neste momento cumprindo ordem de prisão, ilegal, do ministro Alexandre de Moraes”, publicou em suas redes sociais o deputado, dando início a uma série de vídeos em que divulgaria os passos de sua detenção. Horas antes, o parlamentar havia publicado outro vídeo com duras críticas e ataques aos ministros do Supremo que foram consideradas por Moraes como parte das “condutas criminosas” de Silveira. O vídeo, de acordo com o ministro, configurou ”flagrante delito”, o que justificou a ordem de prisão inafiançável do deputado no âmbito do polêmico inquérito das fake news, aberto pelo próprio STF, sem pedido da Procuradoria Geral da República, para investigar ameaças à Corte Suprema. Silvera é um dos investigados. Caberá à Câmara, contudo, a última palavra sobre a prisão. Os deputados podem decidir soltar o colega após uma votação com maioria absoluta ―257 dos 513 votos da Casa.

O recém-empossado presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), anunciou convocação de reunião extraordinária da Mesa para as 13h desta quarta-feira. Na sequência, ocorre encontro do Colégio de Líderes. “Vamos, em conjunto, avaliar e discutir a prisão do deputado Daniel Silveira.” Na madrugada, ele já havia comentado via redes sociais que “a Câmara não deve refletir a vontade ou a posição de um indivíduo, mas do coletivo de seus colegiados, de suas instâncias e de sua vontade soberana, o Plenário”. “Nesta hora de grande apreensão, quero tranquilizar a todos e reiterar que irei conduzir o atual episódio com serenidade e consciência de minhas responsabilidades para com a Instituição e a Democracia”, escreveu Lira, que chegou ao comando da Casa legislativa com o apoio do presidente Jair Bolsonaro. “Para isso, irei me guiar pela única bússola legítima no regime democrático, a Constituição. E pelo único meio civilizado de exercício da Democracia, o diálogo e o respeito à opinião majoritária da Instituição que represento”, finalizou.

No vídeo que desencadeou a reação de Alexandre de Moraes, Silveira, que ficou mais conhecido no país após quebrar uma placa em homenagem à vereadora assassinada Marielle Franco, diz que por várias vezes já imaginou o ministro Luiz Edson Fachin “levando uma surra”. “Quantas vezes eu imaginei você e todos os integrantes dessa Corte aí. Quantas vezes eu imaginei você na rua levando uma surra. O que você vai falar? Que eu  fomentando a violência? Não, só imaginei. Ainda que eu premeditasse, ainda assim não seria crime, você sabe que não seria crime”, diz o deputado em um trecho da gravação, que Moraes mandou o Facebook tirar do ar. “Você é um jurista pífio, mas sabe que esse mínimo é previsível. Então qualquer cidadão que conjecturar uma surra bem dada nessa sua cara com um gato morto até ele miar, de preferência após a refeição, não é crime”, completa Silveira, ainda em referência a Fachin.

O fio desse novelo de fim desconhecido começou a ser puxado em 2018, quando o então comandante do Exército Eduardo Villas-Bôas comentou nas redes sociais o julgamento de um pedido de habeas corpus do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Villas-Bôas escreveu em seu perfil no Twitter que o Exército brasileiro compartilhava do “anseio de todos os cidadãos de bem de repúdio à impunidade e de respeito à Constituição, à paz social e à Democracia, bem como se mantém atento às suas missões institucionais”, numa mensagem que foi interpretada como manifestação indevida de um chefe militar, ainda que não mencionasse diretamente o caso de Lula, que seria julgado pelo STF naquele mesmo dia. Villas-Bôas comenta esse episódio em livro recém-lançado, no qual detalha que aquela manifestação foi discutida previamente com o Alto Comando do Exército.

O ministro Fachin divulgou nota nesta terça-feira para dizer, à luz do que o general detalhou em seu livro, que a manifestação de Villas-Bôas foi uma “intolerável e inaceitável” pressão das Forças Armadas no Judiciário. Foi contra esse comentário de Fachin que o deputado Daniel Silveira se insurgiu. “Vá lá, prende Villas-Bôas”, provocou o deputado no vídeo, sempre se dirigindo a Fachin. “Seja homem uma vez na tua vida, vai lá e prende Villas-Bôas. Seja homem uma vez na tua vida, vai lá e prende Villas-Bôas. Fala pro Alexandre de Moraes, o homenzão, o fodão, vai lá e manda ele prender o Villas-Bôas. Vai lá e prende um general do Exército. Eu quero ver, Fachin. Você, Alexandre de Moraes, Marco Aurélio Mello, Gilmar Mendes, o que solta os bandidos o tempo todo. Toda hora dá um habeas corpus, vende um habeas corpus, vende sentenças”, acusa o deputado na gravação, incluindo outros ministros do STF em seus ataques.

“Fachin, um conselho pra você. Vai lá e prende o Villas-Bôas rapidão, só pra gente ver um negocinho”, provoca Silveira em outra passagem do vídeo, quando também inclui provocações ao ministro Luís Roberto Barroso.. “Se tu não tem coragem, porque tu não tem culhão pra isso, principalmente o Barroso que não tem mesmo. Na verdade ele gosta do culhão roxo. Gilmar Mendes... Barroso, o que é que ele gosta: culhão roxo. Mas não tem culhão roxo. Fachin, covarde. Gilmar Mendes... [esfrega os dedos no sinal de dinheiro] é isso que tu gosta né Gilmarzão? A gente sabe.” Em outro trecho, o ataque fica mais generalizado: “Eu sei que vocês vão querer armar uma pra mim pra poder falar ‘o que é que esse cara falou no vídeo sobre mim, desrespeitou a Supremo Corte’. Suprema Corte é o cacete. Na minha opinião, vocês já deveriam ter sido destituídos do posto de vocês e uma nova nomeação convocada e feita de onze novos ministros. Vocês nunca mereceram estar aí. E vários que já passaram também não mereceram. Vocês são intragáveis”.

A prisão de Silveira pôde ser acompanhada por seus seguidores por meio do Facebook. No último vídeo que divulgou, o deputado aparece no Instituto Médico Legal (IML) batendo boca com uma agente sobre a obrigação de usar máscara para evitar a disseminação do novo coronavírus. Após resistir, Silveira acaba colocando uma máscara. Seus perfis nas redes sociais seguem sendo abastecidos após a detenção. “Aos esquerdistas que estão comemorando, relaxem, tenho imunidade material. Só vou dormir fora de casa e provar para o Brasil quem são os ministros dessa suprema Corte. Ser preso sob estas circunstâncias, é motivo de orgulho”, diz uma das mensagens.

O PSL, partido do parlamentar, afirmou em nota que o parlamentar deve ser afastado do partido, e informou que “repudia com veemência os ataques proferidos pelo deputado Daniel Silveira (PSL-RJ) a ministros do Supremo Tribunal Federal”. A direção nacional da legenda pela qual o presidente Jair Bolsonaro foi eleito ―mas do qual ele saiu em novembro de 2019 para fundar um partido próprio, ainda não consolidado― também defendeu o STF, que classificou como “guardião da Constituição Federal e, como tal, um dos pilares do Estado Democrático de Direito”. A nota de repúdio do PSL é uma explícita tentativa de afastar o partido do viés golpista das mensagens divulgadas pelo parlamentar. “A Executiva Nacional do partido está tomando todas as medidas jurídicas cabíveis para a afastamento em definitivo do deputado dos quadros partidários.”

Resta saber como a Câmara, enquanto instituição, irá se manifestar. “Foi uma fala gravíssima contra a ordem democrática e contra a autonomia dos Poderes, e [o deputado] deve ser duramente reprimido. Mas para ser preso não basta que ele tenha cometido um crime”, comentou o deputado Marcelo Ramos (PL-AM), 1º vice-presidente da Câmara, em entrevista ao programa Sua Excelência, o Fato, dos jornalistas Luis Costa Pinto e Eumano Silva. “Se a Câmara tivesse dado exemplo desde o primeiro caso [de ataques ao STF], não estaríamos passando por este momento. Se não tivesse sido leniente com outras declarações, não estaríamos nisto”, comentou.


Pedro Dória: Prisão de deputado bolsonarista põe Arthur Lira em xeque

Com a prisão do deputado federal Daniel Silveira (PSL-RJ), já no fim da noite de terça-feira, o Supremo colocou o presidente da Câmara, Arthur Lira, em xeque. E, simultaneamente, enviou um forte aviso ao Exército Brasileiro e ao Palácio do Planalto. A situação toda é muito delicada.

Para Lira, o problema é simples: Silveira foi preso por ameaçar o Supremo. Por ele ser deputado, o plenário da Câmara precisa confirmar a prisão — ou negá-la. Se nega, o Legislativo manda ao Judiciário uma mensagem. Considera normal que parlamentares ameacem outro Poder. Aquilo que o presidente Jair Bolsonaro passou o primeiro semestre de 2020 fazendo — ameaçar o Supremo — passa a ser prerrogativa também dos deputados. Se, porém, permite a prisão, Lira entra em conflito com o próprio Planalto e a base ideológica do presidente.

O centrão, do qual Lira é líder, tem duas características. Uma é de que troca favores no Parlamento por espaço no Executivo e verbas para os deputados. Outra é que é ideologicamente amorfo e evita se definir. O gesto de Silveira — em seu vídeo o deputado essencialmente desafiou o Supremo a prendê-lo — obriga o centrão a se posicionar para defender um discurso bolsonarista radical. Ou, então, se afastar.

Ocorre que o Planalto ainda não liberou as verbas e mal distribuiu cargos no ministério. O acerto de contas para ser feito pela eleição de Lira ao comando da Câmara não ocorreu. É cedo para ter este desgaste na relação — mas o centrão vai ter de se posicionar. E não é simples. Muitos deputados precisam estar nas graças do STF. Como precisam estar nas graças do Planalto.

De sua parte, o STF agiu claramente dentro da lei para efetuar a prisão. O ataque foi a Edson Fachin, o relator da Lava-Jato, num momento em que a operação está sob fogo cerrado. E, indiretamente, mostra uma resposta da Corte à pressão que sofreu em 2018, só agora se sabe, não apenas do então comandante do Exército, general Eduardo Villas Bôas. Mas de todo o Alto Comando da Arma. Afinal, quando atacou o Tribunal no vídeo que motivou sua prisão, Silveira desafiava os ministros a prenderem Villas Bôas — ou se abaixar perante a pressão. Com seu gesto, ofereceu à Corte uma terceira saída. Prendê-lo e assim mostrar um gesto forte.


O Globo: Bancada evangélica resiste a decretos das armas - 'Contradição' com valores religiosos

Deputados e senadores argumentam que igrejas sempre foram contra o armamentismo

Paulo Cappelli e Jussara Soares, O Globo

BRASÍLIA — Os novos quatro decretos editados pelo presidente Jair Bolsonaro sobre armas de fogo encontram resistência em uma das principais bases de sustentação do governo: o segmento evangélico. Lideranças religiosas do Senado e da Câmara criticaram o ato do chefe do Executivo que, sem o aval do Legislativo, flexibiliza regras para compras e uso de armas e munições. Na volta às atividades após o feriado do carnaval, parte dos parlamentares ligados às igrejas deve apoiar medidas para a derrubada dos decretos, enquanto outros defendem construir uma solução para que as medidas sejam discutidas no Congresso.

Leia: Decreto das armas divide Centrão e será primeiro teste da nova base aliada de Bolsonaro no Congresso

Ontem, a senadora Eliziane Gama (Cidadania-MA) apresentou quatro projetos para sustar os decretos de Bolsonaro. A parlamentar, que integra a bancada evangélica, classificou os decretos como “uma traição à democracia”, que não se justifica “nem por interesses econômicos legítimos nem por um suposto aumento da segurança dos cidadãos frente ao crime organizado ou comum”.

— Eu entendo que colocar armas nas mãos das pessoas, dessa forma, é produto de um instinto anti-humano, anticristão e a favor de mortes. É uma irresponsabilidade completa. Todo parlamentar e sobretudo os que defendem o princípio maior do Cristianismo, que é o amor, precisarão impedir que isso avance — disse a senadora, frequentadora da Assembleia de Deus

Contradição

No dia anterior, o vice-líder do Cidadania na Câmara, deputado Daniel Coelho (PE), já havia ingressado com uma proposta de decreto legislativo para derrubar o decreto 10.630, que ele julga ser o mais “amplo” dos quatro. O vice-presidente da Câmara, Marcelo Ramos (PL-AM), também criticou os decretos e disse que Bolsonaro exacerbou suas competências.

Líder da Frente Parlamentar Evangélica, o deputado Cezinha de Madureira (PSD-SP), ligado à Assembleia de Deus, diz que apoiar a pauta armamentista é contraditório para quem faz a defesa da vida feita pelos cristãos. Ele evitou opinar se o presidente extrapolou sua competência ao usar decretos para definir novas normas sobre armas.

— Nós que defendemos a vida, por mais que sejamos base do governo, não podemos compactuar no apoio ao armamento, porque pregamos a paz, não temos uma ideologia no Brasil de usar as armas — disse Cezinha. — Muitos acreditam que, como há uma discussão no STF (Supremo Tribunal Federal), teria que ser passar pelo Congresso um tema muito espinhoso, mas não acredito que houve irresponsabilidade do presidente — disse o líder.

Veja também:'A falta de fiscalização agora é institucionalizada', diz advogado sobre decretos que flexibilizam armas

Um dos representantes da bancada evangélica mais próximos de Bolsonaro, Sóstenes Cavalcante (DEM-RJ), membro da Assembleia de Deus, defende que seja encontrado um “meio termo” entre a ampliação de armas defendida pelo presidente desde a época de campanha e o atual Estatuto do Desarmamento.

— Avalio que não temos uma cultura que permita armar a população como nos EUA, onde o acesso é muito fácil. Temos regiões do país com índice muito alto de brigas de trânsito, de violência doméstica. Imagina essas pessoas com armas? Por outro lado, não sou um desarmamentista. Sou contra, por exemplo, a discricionariedade da Polícia Federal para conceder ou não a posse de arma. Já falei para o Bolsonaro que temos que chegar a um meio termo — disse, pontuando que ainda não leu os quatro decretos.

— O governo foi vencedor na presidência da Câmara e do Senado e deveria fazer um debate franco e harmonioso. Essa imposição da extrema direita pode levar o presidente para um caminho sem volta. Pautas que mexem na vida da sociedade devem ser referendadas pelo Congresso — disse o deputado Fausto Pinato (PP-SP), frequentador da Congregação Cristã no Brasil.

— Não sou favorável a facilitar o acesso às armas, ainda mais por meio de um decreto. O tema deveria ser amplamente discutido no Congresso, ouvindo inclusive especialistas sobre o impacto que essas medidas podem acarretar — opinou o deputado Áureo Lídio (SD-RJ), frequentador da Igreja Metodista.

Entenda: As mudanças nos decretos de Bolsonaro sobre armas

Evangélico, o bolsonarista Otoni de Paula (PSC-RJ) é um dos mais ferrenhos defensores da facilitação do acesso de armas para civis. Para ele, o presidente “atendeu ao anseio das urnas e de seu eleitorado” ao publicar os decretos:

— Não acho que as medidas adotadas por Bolsonaro firam princípios cristãos. Se por um lado a igreja historicamente é contra o armamento, por outro tem defendido cada vez mais a autodefesa. Essa resistência ao armamento dentro da igreja tende a diminuir.


Rosângela Bittar: O tempo Huck

Empresário tem a candidatura mais consistente fora da política e tem de tomar uma decisão

Entre a máxima de que há vida pensante fora do fisiologismo do Centrão e a constatação de que setenta por cento dos brasileiros não querem mais quatro anos do extremista Jair Bolsonaro, o tempo de tolerância concedido a Luciano Huck está se esgotando. Ele tem a mais consistente das candidaturas fora dos eixos da política partidária e está sendo forçado a se decidir, o que fará em meados do ano.

Não se trata de prazo da lei eleitoral, nem de atender às conveniências pessoais e profissionais do empresário. Mas de uma exigência imposta pelo cenário dinâmico. Huck, que parecia atravessar olimpicamente as preliminares de resistência, inclusive aos preconceitos, está diante da hora da verdade. Avança, em silêncio. Os movimentos políticos de fevereiro não levaram o potencial candidato a mudar sua estratégia. Nem mesmo o revés da submissão do DEM, partido com quem vinha se alinhando, a Bolsonaro.

Ele tem exposto aos colaboradores sua teoria dos três tempos. Há o tempo dos políticos, e os movimentos de hoje nele se encaixam. Há o tempo do jornalismo político, que precisa de definições para trabalhar suas análises. E há o tempo das ruas. Huck acredita estar no tempo certo.

Superou a fase de conhecer o Brasil, reunir as melhores pessoas para ter a melhor visão de cada área e construir, também em discreta ação, um projeto. Sem este, acredita, não poderá se apresentar.

Poucos possíveis candidatos desfrutaram desta regalia e a etapa passou, com sucesso.

A questão agora é transferir para a realidade política estas escolhas. Identificar as afinidades de partidos e líderes, aprofundar as conversas e fechar compromissos. Reúne-se com o PSB e o PSD, dois novos parceiros que se somaram a Podemos, Cidadania, PSDB, PCdoB. A ideia é estimular os “players” destas legendas, para usar um termo do vocabulário empresarial do futuro candidato.

A marca oposicionista essencial é quase um lema: “Quem achar que é Bolsonaro o presidente que o Brasil merece, está fora”.

A própria pandemia exclui o bolsonarismo de um projeto que acene com compromissos políticos racionais. E é a questão número um da agenda da desconstrução do negacionismo, obrigatória para quem vencer. Tal como o modelo Joe Biden, ao remover o entulho deixado por Donald Trump.

Bolsonaro retomou agora um arremedo de governo assinando uma série de medidas insanas que exigem supressão, ao mesmo tempo em que se inicia novo projeto. A vedete é o inoportuno pacote da liberação irresponsável de armas e munições, que as ruas podem definir como “fique em casa e tranque a porta”. Qualquer brasileiro será um atirador em potencial ou vítima provável. Por razões irrelevantes, inclusive nenhuma. Os amigos do rei ficam protegidos, haverá o excludente de ilicitude.

Para a saúde, mantém-se a crença de que o Brasil estará vacinado até o fim do ano, apesar de Bolsonaro. Uma premissa nos encontros preparatórios dos quais participa Huck. Há muito o que revogar nesta área e, também, a transpor nos escombros da Educação e do Meio Ambiente. Bem como muito a desfazer em matéria de constrangimentos nas relações internacionais.

Mas tarefa tão árdua quanto delicada é o necessário resgate das formas apropriadas do Estado de Direito, hoje desfigurado. A desmilitarização de áreas civis de governo é necessária tanto por razões de competência como para afastar temores de golpe. O Supremo, como se viu esta semana, já vem discutindo isto.

É inegável que a atual Presidência dá, a cada dia, mais espaço à expansão de medidas autoritárias e de culto à violência, de conflitos institucionais e desprezo pela vida. AI-5 não é só fechar o Congresso e o Supremo, embora isto esteja no horizonte da família presidencial. Muitos ‘AIs-5’ de Bolsonaro, como os citados, estão em vigor. Mas ele quer mais.


general Eduardo Villas Bôas

Alvaro Costa e Silva: Como é boa a comida do quartel

Picanha, bacalhau, cerveja e uísque: não basta participar do governo; é preciso comer e beber bem

Em seu livro-depoimento, o general Eduardo Villas Bôas não trata de picanha nem de cerveja. Os assuntos abordados pelo comandante do Exército nos governos Dilma e Temer são mais indigestos: ataques ao politicamente correto e ao movimento antirracista, pressões e alertas ao STF contra o perigo de conceder habeas corpus a Lula, a luta pela preservação moral do país e a preocupação de as Forças Armadas não se envolverem em política.

O último apelo teve efeito contrário: um batalhão de militares da ativa e da reserva ocupa hoje cargos no governo. Portanto, não custaria nada ao general pedir que a caserna, num momento em que grande parte da população não tem o que comer, maneirasse o apetite. E os gastos.

Ao longo de 2020, as Forças Armadas usaram dinheiro público para comprar mais de 700 toneladas de picanha e 80 mil cervejas. Haja churrasco. De lombo de bacalhau, foram 140 toneladas; para rebater, caixas de uísque 12 anos. Desconfiados de superfaturamento nas aquisições, deputados enviaram uma representação ao procurador-geral da República. A ver no que vai dar (se é que vai dar em alguma coisa).

Em recente coluna (9 de fevereiro), lembrei meus tempos de recruta zero no forte de Copacabana. A alimentação funcionava em regime de castas, a dos soldados e cabos, a dos sargentos e a dos oficiais. Estes se reuniam no cassino para café da manhã, almoço, jantar e ceia. No rancho dos recrutas nunca comemos algo nem parecido com picanha. O prato de resistência tinha apelido: “galinha atropelada”. Dava para encarar. O maior sacrifício era o cardápio das terças: peixe. Não importando se frito ou ensopado, causava uma azia que só desaparecia na terça seguinte.

Nas corridas pelo calçadão da praia, o sargento dialogava aos berros com a tropa: “Ela é boa!”, ao que respondíamos: “Muito boa!”. “O que é que é boa?” “A comida do quartel!”.


Cristina Serra: Será possível mandar militares de volta para os quartéis?

 De volta à política 30 anos depois do fim da ditadura, eles ocupam milhares de cargos, acumulam salários, privilégios e benesses

O livro "General Villas Bôas - conversa com o comandante", do professor da FGV Celso Castro, joga luz sobre a atuação dos militares no período mais turbulento da história recente do país, que vai do impeachment de Dilma Roussef à eleição de Jair Bolsonaro.

A revelação mais importante é sobre o famoso tuíte do comandante do Exército, em abril de 2018, com ameaças ao STF na véspera do julgamento do habeas corpus do ex-presidente Lula. Villas Bôas informa que o tuíte teve um "rascunho" e que foi "discutido minuciosamente" por generais do Alto Comando. Nas palavras do entrevistado: "Recebidas as sugestões, elaboramos o texto final, o que nos tomou todo o expediente, até por volta das 20h, momento em que liberei o CComSEx [centro de comunicação do Exército] para expedição."

Sim, foi isso mesmo que você leu. Villas Bôas confessa que a tradição golpista segue firme e forte entre os fardados e que o topo da hierarquia do Exército tramou para afrontar a mais alta corte do Judiciário brasileiro. Qual o comando constitucional que autoriza militares a exercer tutela sobre o poder civil? Em nome de quem? Como se sabe, o Supremo rejeitou o HC de Lula, preso dias depois. E agora, STF?

Em meio a tortuosos raciocínios sobre geopolítica e um ego que transborda das páginas, Villas Bôas deixa claro que as Forças Armadas não engoliram a Comissão Nacional da Verdade ("foi uma facada nas costas"), dá versões duvidosas sobre alguns acontecimentos e faz comparações despropositadas. Uma delas: que a desintrusão de não indígenas da reserva Raposa Serra do Sol (RR) equivale aos "pogroms de Stalin" na extinta União Soviética.

De volta à política 30 anos depois do fim da ditadura, os militares ocupam milhares de cargos, acumulam salários, privilégios e benesses. De mãos dadas com Bolsonaro, também são responsáveis pela catástrofe que já custou a vida de 240 mil brasileiros, até agora. A grande dúvida é quando —e se— será possível mandá-los de volta para os quartéis.


Hélio Schwartsman: Pedido de impeachment é remédio para não normalizar atitudes contra a democracia

Há situações em que batalhas simbólicas precisam ser travadas, mesmo quando estamos cientes de que não as venceremos

Donald Trump foi, pela segunda vez, absolvido num processo de impeachment. Tal resultado era mais ou menos óbvio, ainda assim os democratas insistiram na ação contra o ex-presidente. Valeu a pena?

Do ponto de vista pragmático, a decisão dos democratas parece difícil de sustentar —e não apenas pela previsibilidade do desfecho. Processos de impeachment presidencial servem basicamente para um país livrar-se de um líder que não se mostrou à altura do cargo. No caso deste segundo processo contra Trump, isso nem sequer se colocava, pois seu mandato já havia acabado.

Existia, é verdade, a possibilidade de, com a condenação, aplicar uma pena acessória que o impediria candidatar-se em 2024, mas não creio que essa tenha sido a principal motivação dos democratas. A grande preocupação, penso, foi com aquilo que podemos chamar de julgamento da história.

No cálculo das lideranças democratas (e de alguns republicanos), as ações de Trump que culminaram na invasão do Capitólio constituem um dos mais duros golpes jamais desferidos contra a democracia americana. Deixar de tentar aplicar o remédio constitucional cabível, que é o impeachment, seria, no plano moral, normalizar essas atitudes, o que é bem complicado, para dizer o mínimo.

Concordo com o raciocínio e acho que ele vale para o Brasil sob Bolsonaro. Embora me considere um pragmático, creio que existam algumas situações em que batalhas simbólicas precisam ser travadas, mesmo quando estamos cientes de que não as venceremos.

O impeachment, hoje, não seria aprovado, mas daí não decorre que a parcela dos brasileiros que rejeita as atitudes do capitão reformado não tenhamos a obrigação moral de pelo menos ensaiar uma reação institucional para que seus muitos crimes de responsabilidade não fiquem impunes. É uma satisfação que devemos à história. Sem ela, os pósteros irão com razão nos considerar um país de maricas.


Míriam Leitão: Aos que não brincaram o carnaval

Hoje é terça de carnaval e não haverá blocos com aquela alegria resistente querendo esticar o que já estaria acabando. Não houve desfile no sambódromo, as baterias não tomaram os corações ao passar com seu ritmo e cadência, nem as baianas rodaram sua dança envolvente. As costureiras não bordaram o brilho da avenida. Os foliões que saíram não encontraram respaldo. Não é engraçado vestir-se de alguma paródia, se a morte à espreita na esquina não é uma fantasia.

Houve aglomeração e escutei no domingo a interminável festa de um vizinho, mas mais interessante é o silêncio de quem não foi para a rua, mesmo sendo apaixonado pela folia. Por isso dedico essa coluna aos que não brincaram o carnaval de 2021. É admirável a festa do avesso, da ausência, dos que demonstram respeito ao outro. Cada folião que não saiu, que dispensou a fantasia, que se enfeitou para si mesmo, estava celebrando a vida.

O Rio é do folguedo momesco. Eu admiro essa alegria como parte essencial da natureza do país apesar de me sentir estrangeira às vezes. No Rio, o carnaval de rua renasceu há vários anos em blocos de nomes tradicionais, divertidos e poéticos. Os trios elétricos da Bahia. Os ranchos de Belém. O Largo da Batata, em São Paulo. Metódico, São Paulo tem se esmerado para que o seu sambódromo brilhe mais do que a Sapucaí. Vai vai que consegue. No Recife, o frevo com suas muitas pernas trançantes e suas sombrinhas coloridas avisou ao galo que não cante de madrugada. Em Brasília, o pacotão ficou embrulhado. Em Salvador, o Pelô fez silêncio. Manaus. Manaus é o centro da nossa dor.

Ninguém melhor que Maria Bethânia refletiu o momento ao pedir “vacina, respeito, verdade e misericórdia”, na live em que mostrou a força inteira da sua voz de rainha. Ela reclamou da saudade do público distante, mas esteve tão próxima. Fez o que sempre soube fazer no canto, na poesia, na mensagem direta. Bethânia é opinião. Miguel em queda lembrava o passado que não corrigimos. Cálice parecia ter sido composta na véspera. As raízes do Brasil estavam todas no canto da filha de Dona Canô.

O folião desgarrado que volta pra casa, lúcido e triste, como diria Manuel Bandeira, com sua fantasia um pouco estragada pelos excessos, sempre me pareceu a melhor poesia do carnaval. A alegria se esbaldou, o canto aquietou, os pés já não pulam, o grupo se desfez e essa volta lenta, ainda marcado da festa, é a imagem que sempre prendeu meus olhos quando andei pela cidade, nos carnavais. Hoje, se houver algum folião voltando com restos de festa, não será uma imagem poética. Eu veria, se eu o visse, a pessoa que decidiu que o risco coletivo não é importante.

Eu nasci numa cidade que tem hoje 92 mil habitantes. Com quantas caratingas se conta a dor de hoje do Brasil? Que métrica mediria o que temos vivido? As mortes somadas não informam tudo sobre o sofrimento desse tempo. Houve também as esperas longas e angustiadas por um parente, um amigo, uma pessoa amada, houve a aflição de contar os dias, isolado num quarto, temendo que o ar fugisse dos pulmões e, ainda, a espera ansiosa pelo resultado dos testes. Houve a solidão e a saudade.

Na história dos carnavais haverá a cicatriz de 2021. Esse lapso, intermédio, ausência, parêntesis será o que de melhor teremos a contar nos anos vindouros. A folia recolhida foi o maior presente dado ao outro. Ó abre alas que vamos passar sem o carnaval. Momo foi levado a uma república. Destronou-se. Reinará no futuro, em outros carnavais.

O pior é a festa dos incautos, insensatos e insensíveis, dos que desprezam o risco, não por coragem, mas pela covardia de expor outros ao perigo, dos que por estupidez duvidam da ciência, fruta madura da inteligência humana.

Há muito sobre o que escrever no Brasil, numa coluna de jornal. Temas nunca me faltaram, nos quase 30 anos que aqui pontuo. Hoje a melhor notícia é a festa que não houve, a fantasia não vestida, os foliões que não foram vistos por aí. Aos que se recolheram, mesmo tendo alma carnavalesca, todo o meu respeito nessa terça magra do carnaval de 2021.

Bethânia mistura palavra falada e cantada. Declama e canta. Estilo dela. Opinião. Buscou Cecília Meireles para avisar que “a primavera chegará, mesmo que ninguém mais saiba seu nome, nem acredite no calendário, nem possua jardim para recebê-la”.


Carlos Andreazza: Inação calculada

Como cantado longamente aqui, o auxílio emergencial voltará; a dúvida sendo sob que grau de oportunismo populista. Agora parece uma obviedade, mas não foram poucos os especialistas cujos calls — em janeiro de 2021 —bancavam a improbabilidade da volta; talvez decorrendo daí, da fé nas palestras de Paulo Guedes, o estado, segundo Bolsonaro, “irritadinho” do mercado.

Muita gente bacana ficou de mau humor na semana passada — o governo de repente afobado, preocupado com os pobres, o presidente falando em fome —, porque acreditou na fantasia de que a economia virara o ano crescendo em V, e a segunda onda da peste seria mero repique. Estaria tudo sob controle — mesmo que ainda não haja orçamento para 2021. (Mas temos o direito a seis armas!) Tudo sob controle, livres de Maia, com as reformas chegando — e, claro, com o Banco Central independente, esta prioridade. Né?

Aí está, porém, o IBGE a nos situar; as vendas no varejo tombando 6,1% em dezembro. A imposição do mundo real. A premência do auxílio emergencial; o agente que induzia o consumo, sem o qual a miséria de um país miserável se expandirá — a miséria de um país miserável cujo governante boicota a vacinação em massa, a única forma de gerar empregos novamente. Voltará. Virou pra ontem.

O governo — até ontem — tinha pressa nenhuma. E agora, de súbito, o ai-jesus; porque também a popularidade de Bolsonaro geme. Guedes, aliás, precisa esclarecer se temos crescimento em V ou se é imperiosa a volta da assistência. Os dois discursos não casam.

Estava dado que o auxílio seria a principal agenda do Parlamento, uma vez escolhidos os novos presidentes de Senado e Câmara. Ato contínuo, procuraram o Planalto para impor a retomada. Virem-se. Há urgência — uma demanda social que não poderia ser condicionada por rigores fiscais. Esse foi o recado inicial; mensagem que vem do Congresso profundo. A da imposição de uma agenda que afrontaria o teto de gastos, ultimato em consequência do que ora vemos a correria do Ministério da Economia. Um barata-voa que muitos chamam de negociações com o Parlamento. Tomara. Eu desconfio.

Fala-se, desde o fim da semana passada, em acordo. Já haveria um entre Guedes e os presidentes das Casas legislativas para que o restabelecimento do auxílio contemplasse, imediatamente, ajustes fiscais compensatórios. Será preciso, contudo, combinar com as lideranças no Congresso. Recomendo prudência. A maré ali é outra, postas as condições para o atropelo. Isso seria o normal.

Tudo indica que o instrumento para a reconstituição a jato será algo como o orçamento de guerra, uma guarida excepcional já testada, que autorizaria, à margem do teto, a liberação de crédito extraordinário. Como em 2020, a âncora fiscal seria preservada de gastos que, no entanto, integrariam a fatura do déficit primário. Pronto. Desde que eleitos os novos comandos legislativos, ficara evidente que a preocupação do Congresso com a balança fiscal ia até somente a foto em que se acordaria um compromisso verbal para que, apenas em meados do ano, fosse votada uma emenda constitucional com medidas duras de verdade. Isso seria o normal. A promessa de austeridade projetada no amanhã.

O governo diz que não; que haveria mesmo um pacto de responsabilidade para já, e que se trabalha conjuntamente pela concepção do modelo. O modelo: embutir o novo orçamento de guerra na PEC do Pacto Emergencial, o que equivaleria a usar a pressão pela assistência para empurrar um projeto contra o qual há resistência no Parlamento. Essa é a estratégia. Prosperará? Se sim, afinal capaz de formar consensos, o Ministério da Economia daria uma demonstração de competência até hoje inédita. Haja empenho de fé.

Sugiro ceticismo. Maiores são — sob a vara do afogo — os riscos de triunfar uma resposta fácil. Sempre se soube que o auxílio emergencial acabaria com 2020; e que, não preenchido, o vácuo resultaria no agravamento da pobreza. O V de Guedes sendo amassado pela realidade, a que nos esfrega a forma bruta do K na lata; a perna que desce, a da saúde econômica dos ferrados.

O governo teve muitos meses para formular alternativas que abrissem espaço fiscal capaz de conciliar auxílio e teto. Houve mesmo tempo para que se estudasse, em nome da previsibilidade, uma modalidade de flexibilização da âncora fiscal ante uma situação excepcional. Mas se preferiu mentir sobre a saúde da economia. Preferiu-se a inação calculada, que alivia Bolsonaro dos prejuízos de fazer escolhas ao mesmo tempo que lhe dá a colheita das glórias.

Não é a primeira vez que o Planalto age assim. Ou seja: não age. Espera o Parlamento exigir. Forma-se o impasse. O governo, bancando o equilibrado, então solta o balão de ensaio: associar o mecanismo que viabilizaria a política pública urgente a uma PEC impopular parada no Congresso. E, dessa forma, empurra ao Legislativo o ônus de qualquer solução que não fiscalmente ponderada. Uma armadilha. Como diria Guedes, a granada no bolso do inimigo. Ganha-ganha para Bolsonaro; porque o auxílio, que nunca deveria ter cessado, voltará — um crédito extraordinário para o mito brincar de salvador.


Vera Magalhães: Com vacina acabando, Bolsonaro troca cloroquina por spray nasal israelense

Depois de passar quase um ano fazendo propaganda de cloroquina e hidroxicloroquina, inclusive ordenando ao Ministério da Saúde adotar um protocolo para que esses medicamentos fossem prescritos em casos leves de covid-19, determinar sua fabricação pelo Exército brasileiro e importar doses não utilizadas dos Estados Unidos, Jair Bolsonaro parece ter um novo xodó no enfrentamento da pandemia.

Enquanto começam a acabar as poucas doses de vacinas enviadas pelo governo federal a Estados e municípios, Bolsonaro postou neste domingo em sua conta no Twitter que conversou com o primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, para que o Brasil participe da fase 3 de testes do spray nasal EXO-CD24, que, escreveu "vem obtendo grande sucesso no tratamento da covid-19 em casos graves".

De novo, o presidente vende um remédio "milagroso" antes de ciência atestar isso. Nesta segunda-feira, ele voltou ao assunto (o que mostra que estamos a caminho de uma nova obsessão; as emas do Alvorada que se cuidem), dizendo que ele tem eficácia "próxima de 100%" e que, em breve, será enviado pedido de aprovação da Anvisa para uso emergencial.

As pesquisas com sprays nasais, não só em Israel, mas em várias partes do mundo, de fato são uma das vertentes abertas pela ciência na tentativa de combater a covid-19. A epidemiologista Denise Garrett, vice-presidente do Sabin Vaccine Institute, publicou um fio no Twitter em que esclarece que o que existe publicado a respeito do EXO-CD24 é um registro de ensaio clínico de fase 1, com resultados promissores.

Segundo os fabricantes, explica ela, dos 30 pacientes com casos graves que usaram o spray nasal, 29 teriam se recuperado. É a isso que Bolsonaro se refere empolgadamente como "eficácia de praticamente 100%": um estudo preliminar com 30 pacientes.

Mais: mesmo para ter o uso emergencial aprovado pela Anvisa o medicamento precisa apresentar estudos de fases 2 e 3. O Brasil pode fazer parte de protocolos de estudos clínicos, como sugere o presidente, mas o uso do medicamento em escala capaz de aplacar os efeitos da pandemia, ainda que a eficácia seja comprovada, levará meses.

O que a nova obsessão do presidente mostra é sua busca desenfreada por uma narrativa que o tire do atoleiro de popularidade em que está enfiado por ter minimizado a pandemia, atuado contra o isolamento social, boicotado a compra de vacinas e mesmo a confiança da população em sua necessidade, segurança e eficiência.

A progressão de uma ainda ínfima campanha de vacinação mostra duas coisas concomitantemente: a adesão esperançosa e entusiasmada da população à vacina, algo em que o Brasil sempre foi vanguardista e exemplo para o mundo em logística, e a completa incompetência do governo para fazer andar o Plano Nacional de Imunização.

A "vacina chinesa do Doria", como o presidente de forma irresponsável insistiu em chamar a Coronavac, produzida pelo Instituto Butantan, é o imunizante em maior quantidade no Brasil, mas mesmo assim, somada às doses da vacina da AstraZeneca/Oxford, com a qual a Fiocruz tem parceria, o que existe disponível não nos permitirá acabar a imunização da maioria da população neste ano.

Com a média móvel de casos no mesmo patamar de julho e picos de médias diárias que beiram os 1.500 óbitos por dia, e com a difusão da nova cepa de Manaus em outros Estados, inclusive de forma autóctone, a insistência de Bolsonaro em remédios "milagrosos" e a incapacidade de seu ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, em fazer chegar vacina a todo o País mostram que nem tão cedo o Brasil vai superar o pior momento da pandemia. 


Merval Pereira: Operação abafa

Uma entrevista do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Luís Roberto Barroso ao historiador Marco Antonio Villa está viralizando nas redes sociais, como contraponto à campanha de tentativa de desmoralizar a Operação Lava-Jato, com o objetivo de anular a condenação do ex-presidente Lula pelo então juiz Sergio Moro por parcialidade no processo do triplex do Guarujá, sentença que foi confirmada no Tribunal Regional Federal em Porto Alegre e no Superior Tribunal de Justiça (STJ) em Brasília.

Segundo Barroso, há uma “operação abafa” em curso, por meio da aliança de todos os setores para enterrar ações de combate à corrupção. Ele já havia abordado esse tema, entre outros, no livro “Sem data venia”, publicado pelo selo História Real, coordenado por Roberto Feith na editora Intrínseca. Para Barroso, referindo-se às mensagens roubadas dos celulares de procuradores de Curitiba, o problema não é “alguém ter dito uma frase inconveniente ou não. É que estão usando esse fundamento pra tentar destruir tudo que foi feito, como se não tivesse havido corrupção”.

No livro, Barroso desenvolve a tese de que há em curso no Brasil “um esforço imenso para capturar a narrativa do que aconteceu no país”, fazendo uso “de provas ilícitas, produzidas por criminosos, Deus sabe a soldo de quem”.

Ele classifica esse como um “processo de tentativa de reescrever a História, com tinturas stalinistas”, e ironiza: “Só falta a criação de um Ministério da Verdade, como na obra ‘1984’, de George Orwell, que vivia de reescrever a história a cada tempo, modificando os fatos”.

No livro, e também na entrevista a Marco Antonio Villa, Barroso relata os fatos, “para que não se perca a memória do país”: “a) Eu ouvi o áudio do senador pedindo propina ao empresário e indicando quem iria recebê-la, bem como vi o vídeo do dinheiro sendo entregue; b) eu vi o inquérito em que altos dignitários recebiam propina para atos de ofício, abriam offshores por interpostas pessoas e, sem declará-las à Receita, subcontratavam empresas de fundo de quintal e tinham todas as despesas pagas por terceiros; c) eu vi o deputado correndo pela rua com uma mala de dinheiro com a propina recebida, numa cena que bem serve como símbolo de uma era; d) todos vimos o apartamento repleto com 51 milhões de reais, com as impressões digitais do ex-secretário de Governo da Presidência da República no dinheiro; e) eu vi, ninguém me contou, o inquérito em que o senador recebia propina para liberação dos pagamentos à empreiteira pela construção de estádio; f ) todos vimos o diretor da empresa estatal que devolveu a bagatela de R$ 182 milhões; e g) todos vimos a usina que foi comprada por US$ 1,2 bilhão e revendida por menos da metade do preço”.

Barroso compara o que está acontecendo aqui com o que aconteceu na Itália, na Operação Mãos Limpas, que acabou sendo neutralizada por ações do governo e do Congresso: “Como seria de esperar, o enfrentamento à corrupção tem encontrado resistências diversas, ostensivas ou dissimuladas. Em primeiro lugar, as denúncias, processos e condenações têm atingido pessoas que historicamente não eram alcançadas pelo direito penal. (...) Tem-se, assim, a segunda situação: muitas dessas pessoas, ocupantes de cargos relevantes na estrutura de poder vigente, querem escapar de qualquer tipo de responsabilização penal”.

Para Barroso, “a articulação para derrubar a possibilidade de execução das condenações criminais após a segunda instância foi o momento mais contundente da reação, logrando obter a mudança de posição de dois ministros do Supremo que, antes, haviam sido enfaticamente favoráveis à medida”.

Barroso, no entanto, mantém uma visão otimista do processo — ele se diz “realista” —, acreditando que é menos provável que aconteça aqui o que aconteceu na Itália, por várias razões que elenca no livro: “Sociedade mais consciente e mobilizada; imprensa livre e plural; e Judiciário independente e sem laços políticos, ao menos na primeira e na segunda instâncias (apesar de ainda ser extremamente lento e ineficiente)”.


Ricardo Noblat: Fux mata no peito as revelações do general Villas Bôas

Fachin sai em socorro do tribunal

Ainda no governo Lula, em campanha para ser indicado ministro do Supremo Tribunal Federal, Luiz Fux deu uma resposta famosa à pergunta que lhe fez o então deputado João Paulo Cunha (SP) sobre como votaria no processo do mensalão do PT:

– Esse assunto eu mato no peito porque eu conheço. E sei como tratar.

Foi Dilma, em fevereiro de 2011, que o indicou para o Supremo. Ali, Fux votou pela condenação dos réus do mensalão – inclusive João Paulo Cunha e José Dirceu que lhe fizera também a mesma pergunta e recebera a mesma resposta.

Atual presidente do Supremo, Fux tem sido alvo de críticas de colegas por não ter reagido às revelações do general Eduardo Villas Bôas sobre a nota de ameaça que fez ao tribunal antes do julgamento que negou em 2018 pedido de habeas corpus em favor de Lula.

“O silêncio de Fux foi a maneira que ele encontrou de matar o assunto no peito”, este blog ouviu de um ministro. Foi por isso que o ministro Luiz Fachin resolveu falar. Classificou de “intolerável e inaceitável” a interferência militar no Judiciário.

De Fachin, diz-se que levou três anos para condenar a interferência. Acontece que, à época, pelo tribunal, falou Celso de Mello, o mais antigo dos ministros:

– O respeito indeclinável à Constituição e às leis da República representa o limite intransponível a que devem se submeter os agentes do Estado, quaisquer que sejam os estamentos a que eles pertencem.