Paulo Fábio Dantas Neto: Hora de colocar o guizo no bozo

Desmoralização de Bolsonaro é muito funda e cada palavra sua vale hoje ainda menos do que o pouco que já valia

Quem torcer para Bolsonaro desdizer o que assinou não vai ter muita emoção. Esse é o tipo de torcida desnecessária, porque é certo que o fará. Ele fará qualquer coisa para reduzir os danos na sua base, que esse recuo causará. Mas podemos pedir a estraga-prazeres de plantão que nos deixem celebrar esse momento de alívio, depois de tanta tensão.

E há motivos para celebrar, não importa o que Bolsonaro diga. A desmoralização é muito funda e cada palavra sua vale hoje ainda menos do que o pouco que já valia.  A diferença agora é que não mais somente os seus recuos serão fake - como já eram, aos olhos céticos de todos nós, que lhe somos avessos.  Seus ímpetos de avanço tenderão, doravante, a também ser considerados assim, pelo quarto do eleitorado que até agora o vem apoiando. O ex-presidente da República Michel Temer viajou a Brasília, reencarnou no papel e amarrou no pescoço da fera esse guizo, que deve fazer barulho nas próximas rodadas de pesquisas. 

Em 2015, um ano antes do impeachment de Dilma, escrevi um artigo cujo título foi "O fator Temer". O destino infausto que evasivas e malabarismos demagógicos de políticos pequenos deram à pinguela que ele tentou levantar não me deixava a expectativa, que tenho hoje, de daqui a pouco poder escrever outro artigo com o mesmo título, remetido ao contexto atual.

Sim, dizem que vingança é prato que se come frio. Acrescento que se come sem dizer que está gostoso, não apenas para não tripudiar de quem chacoalha. Não precisa fazer isso para que outros políticos bem centrados possam cooperar entre si para concluírem a missão. Também não se deve ostentar o sabor para não atiçar demais a inveja de pigmeus políticos que também estão no palco, ou na plateia.  Esses seguirão xingando Bolsonaro em lives, entrevistas, tribunas, ou bastidores. Mas, em vez de pautá-lo, como ocorreu quando ele foi levado a se retratar no dia 9/09 do que havia dito no dia 7, continuarão a ser pautados por ele.

Política é como unha. Ainda bem.*Cientista Político e professor da UFBa.

Fonte: Democracia Política e novo Reformismo
https://gilvanmelo.blogspot.com/2021/09/paulo-fabio-dantas-neto-guizo-no-bozo.html


Como violar monumentos desafiando o perigo fascista

Discussão é sobre se estamos dispostos a deixar que nossa História seja incinerada sem levantar nossa voz contra isso

Paulo Fábio Dantas Neto / Democracia Política e novo Reformismo

Chegou-me, pela mão certeira de um aluno, um ensaio de Ortega Y Gasset, escrito há mais de cem anos (“Espanha invertebrada”, 1917), sobre a decadência de sua nação e publicado pelo Estadão/Estado da Arte, em 25.08.2021. O filósofo espanhol reconhece, metaforicamente, no surgimento, então recente, do que hoje chamamos de cinema, uma possibilidade nova de compreensão de um drama de séculos, o qual permaneceria opaco se visto sob os limites de fotografias isoladas de cada ato desse drama.

No mesmo dia, na imprensa e em redes sociais, publicou-se imagens fotográficas da queima, no Rio de Janeiro, de uma estátua de Pedro Álvares Cabral, protagonista da narrativa fundacionista do Brasil historiograficamente consagrada e, por isso mesmo, contestada por um revisionismo histórico proposto por correntes acadêmicas e ativistas de movimentos políticos. A fidelidade jornalística ao registro do fato vincula-o a um protesto em defesa de populações indígenas (ou de “povos originários”, conceito histórico-político amplamente aceito hoje, para nomeá-las e legitimar a causa) e contra o estabelecimento de um marco temporal que reinterpreta e redefine seus direitos constitucionais, discussão ora em curso no Judiciário e no Legislativo brasileiros.

A fotografia do acontecimento carioca e do conflito conjuntural a que se vincula é, como na metáfora de Gasset sobre a derrocada de sua Espanha, insuficiente para a plena compreensão do processo em que o fato se insere. Estamos - assim como se estava na Espanha a duas décadas de uma guerra civil - diante de um script cinematográfico. Processo contínuo, que se não for refratado, pedirá um Picasso vindouro para pintar, como aviso aos pósteros a essa quadra perigosa que vivemos, o quadro agonístico das Guernicas que gestos insólitos como aquele preparam. Com isso quero dizer que não é do conflito de interesses e valores entre agronegócio e povos originários que tratarei aqui. Sem desqualificar sua importância para a pauta política e social do presente, evitarei conferir-lhe a centralidade fotográfica que lhe atribui a gramática polarizadora em voga. Peço passagem para outra pauta, que é coisa de cinema.

Quero discutir as depredações como tema político em si, autônomo (embora não alheio), face a causas econômicas e sociais. E não se trata de questionar apenas o fogo como meio, mas os fins desse gesto iconoclasta. A discussão, conforme a sinto, é sobre se estamos dispostos a deixar que nossa História seja incinerada sem levantar nossa voz contra isso.

Muitas das críticas pontuais à violência como método costumam ser apenas céticas quanto às possibilidades de que ela, a violência, atinja, no caso, o objetivo supostamente nobre ao qual, também supostamente, esse ativismo se dedica, isto é, o de revogar a história “escrita pelos opressores” e reescrevê-la “sob a ótica dos oprimidos”.  Acho preciso falar contra isso, sem meias palavras e logo, antes que a extrema direita, espertamente, o faça.

Mas penso que há um passo a mais a dar, além de manifestar esse lúcido ceticismo. Num momento em que a destruição é o tom da política (na verdade, da antipolítica) imposta por quem deveria governar o País, é preciso ir além de um não ao não estéril desse ativismo carbonário que emula e ajuda o exterminador. É preciso dizer sim ao que a nossa história prevalecente instituiu. Um sim que não é sanção, é reconhecimento de uma condição.  

Ainda que povoada de iniquidades, não só delas a história nacional se fez. Nela estão marcas do labor e obras voltados a torná-la melhor, segundo aspirações em disputa e valores compartilhados, em cada época. Labor e obras que, de modo algum, foram fracassos. Esse juízo maniqueísta, inquisitorial e anacrônico sobre a construção do Brasil, que avalia a obra de atores e movimentos do passado pelo metro de desejos e demandas contemporâneos, nega luz a algumas virtudes políticas de nossas ambiguidades tradicionais. Se cabem ideias de reformar essa tradição, a ideia-força da pacificação precisa estar no centro, não no limbo da política e da história que estamos fazendo hoje. Devemos tão somente achar modos mais civilizados de derrubar as prateleiras, as estátuas e as estantes que nos acompanharam até aqui? Ou conservá-las, no limite do razoável?

Uma noção de perigo exige uma atitude política que mostre a incautos o quão estamos distantes de 1968, muito mais do que de 1929; quão é grave derrubar estátuas, estantes e prateleiras numa hora em que o fascismo não é mais passado e nos assombra, de novo, com sua atualidade, em vários países. Efeitos nefastos da falta dessa noção podem ir muito além das mazelas intelectuais legadas pelas vertigens de 1968 e que José Guilherme Merquior tão bem apontou no seu O marxismo ocidental. A rejeição moral, culturalista, ao capitalismo e ao mercado, a cada dia mais realidades imperativas para a vida das pessoas comuns; a estetização da política por um discurso crítico da razão; a hipervalorização da vontade política como via de libertação contra a racionalidade das instituições, tudo isso afetou, sem matar, o pensamento da geração seguinte. Mas agora o preço pode ser a integridade mental e mesmo física da comunidade política. Nas circunstâncias do mundo atual, em que a década 1930 está politicamente mais próxima que ade 1960, reclamando mais Churchills do que Sartres, iconoclastia é ímpeto colaboracionista com o agressor. Fazem falta pensamentos reformadores que recusem nacionalismos, mas ajudem seus países a resgatarem seus selfs nacionais. Sem dizerem sim a si, as nações impactadas pela força de gravidade global nada terão a contribuir para um cosmopolitismo generoso.

É por isso que considero apropriado olhar para a estátua de Cabral na fogueira e pensar em Ortega y Gasset. No seu texto, o enredo cinematográfico do infortúnio espanhol, narrado com sentimento e razão, traça, retrospectivamente, um caminho que começa no particularismo dos atores e termina em inelasticidade social. Vale-nos como prevenção:

(...) A essência do particularismo é que cada grupo deixa de sentir-se a si mesmo como parte e em consequência deixa de compartilhar os sentimentos dos demais. Não lhe importam as esperanças ou as necessidades dos outros (...). Por outro lado, é característico deste estado social a hipersensibilidade para os próprios males. Irritações e dificuldades que em tempos de coesão são facilmente suportados, parecem intoleráveis quando a alma do grupo se desintegrou da convivência nacional (...)

(...) Dizem que os políticos não se preocupam com o resto do país. Isto, que é verdade, é, contudo, injusto, porque parece atribuir exclusivamente aos políticos tal despreocupação. A verdade é que se para os políticos não existe o resto do país, para o resto do país existem muito menos os políticos. E o que acontece dentro desse resto não político da nação? (...). Cada agremiação vive hermeticamente fechada em si mesma. (...)Rodam umas sobre as outras como órbitas estelares que se ignoram mutuamente. Polarizada cada qual em seus tópicos gremiais, não tem nem notícia dos que regem a alma do grupo vizinho. Ideias, emoções, valores criados dentro de um núcleo profissional ou de uma classe, não transcendem minimamente às restantes. O esforço titânico que se exerce em um ponto do volume social não é transmitido, nem obtém repercussão a alguns metros de distância, e morre onde nasce.

Propus ir além da reação e do ceticismo. Pauta positiva, sim, mas outra pauta. Não a iconoclasta, que resulta de um racionalismo jacobino, sempre oscilando entre delírios subjetivistas e o pragmatismo de interesses mal compreendidos. Pauta positiva para dialogar com os “de baixo” reais do país, não com seres simbólicos, imaginários, estetizados por ideologias que vão parar no obscurantismo. Um caminho do meio, para dialogar com gente para quem, ao tempo em que "cada tauba que caía doía no coração", faz sentido dizer que "os home tá com a razão, nóis arranja outro lugar". 

Nem as pessoas treinadas nos ofícios de estudar e pensar, nem os matogrossos e jocas do Brasil, precisamos de pautas postiças. Aos primeiros cabe baixar a bola e falar a língua de quem busca cobertores adequados a seus vários frios e, na chuva, aprende, com o tempo, a encontrá-los não apenas nos estoques de Deus (embora neles também, por que não?). Talvez lhes ocorra reformar sua atitude resignada de deixar a vida lhes levar. Mas se o fizerem, em algum momento, não será porque vanguardas iluminaram seu caminho. Será para reformar, sem renegar, a nossa tradição, pois ela também tem lá a sua serventia. O caminho do meio não subestima o amor que pessoas sentem pelas suas saudosas malocas.

Assim a maloca, assim a história de cada pessoa e a do nós nacional em contínua construção. Pauta positiva só pode vir daí. Não há caminho do meio possível se aceitamos, sociológica ou filosoficamente, a naturalização coercitiva de pautas incendiárias. Inexistem “verdadeiros anseios”. Eles são sempre contingentes, descobertas da vida em comum. Vanguardas não são apenas equívocos de método. São enganos existenciais.

Embora seja também verdade que aumenta a aceitação social das pautas revisionistas. É um processo de mudança de mentalidade que transcorre sob nossos olhos. Processo, no entanto, que não é nem irreversível, nem automaticamente virtuoso. Do ponto de vista da democracia, por exemplo, algumas das novas tendências em processo (como a promoção de maior igualdade entre os indivíduos, pela consideração de suas diferenças de condição) democratizam a própria democracia. Outras, como, por exemplo, a de refundar identidade e história do país, empobrecem um repertório que, historicamente, vem se tornando cada vez mais plural e dilapidam um patrimônio que, sendo cada vez mais democrático, já fez Pedro Álvares Cabral sair da vida para se tornar História. Por que trazê-lo de volta? Não será esse um flerte indesculpável com as taras regressistas dessa má hora que vivemos?

*Cientista político e professor da UFBa.

Fonte: Democracia Política e novo Reformismo
https://gilvanmelo.blogspot.com/2021/08/paulo-fabio-dantas-neto-historia-de.html


Paulo Fábio Dantas Neto: As chances da 3ª via diante da reciclagem da primeira

Paulo Fábio Dantas Neto / Democracia Política e novo Reformismo

Tornou-se lugar comum em análises políticas prospectivas voltadas às eleições de 2022 vaticinar que o chamado centro democrático até aqui não emplacou e que não emplacará. Temos aí uma constatação irrefutável e uma previsão afoita. Um uso de flash fotográfico para tratar de processo que requer filmadora.

Os raciocínios decorrentes dessa ilusória percepção do processo político como algo linear, no qual o presente é criado e explicado pelo antecedente e, ao mesmo tempo, cria e explica o sucedente são: primeiro, que Bolsonaro seria resultado direto e lógico da rejeição ao PT, logo, a rejeição foi o erro do qual resulta a tragédia social e política que o Brasil vive hoje; segundo, que a situação atual, indicada em pesquisas, de inconteste liderança de Lula comprova que esse é o caminho para derrotar o mal. A remissão de um suposto pecado, supostamente original, seria condição para que o país volte a ter futuro.

Acontece que a banda não tocou, não toca, nem tocará assim. Comecemos por relembrar: a eleição de Bolsonaro não foi desfecho natural e obrigatório da rejeição ao PT. Assim como a pedalada fiscal foi o argumento jurídico, a rejeição do eleitorado, sentindo-se logrado pelo marketing da campanha de 2014, foi o lastro social do impedimento de Dilma Rousseff, que passara a ser objetivo político de várias forças que a apoiaram naquela eleição, com destaque ao MDB e ao Centrão. Mas o que ocorreu depois (o esgarçamento e não a unidade eleitoral das forças que sustentaram o impeachment e a instalação de um governo de transição) não estava escrito nas estrelas. A Lava-Jato foi um solvente externo, cuja ação foi potencializada pela incapacidade política da nova coalizão governante de ir além do salve-se-quem-puder. Em vez de continuidade entre transição e nova situação (como entre Itamar e FHC, em 1993/94), deu Bolsonaro.

Hoje não há só duas bandas tocando, a do governo Bolsonaro e a da oposição de esquerda. Assim querem e fazem pensar as análises que vaticinam o caráter irremovível dessa polarização. Família e milícias de Bolsonaro, seu entorno militar e áreas do chamado centrão constituem três camadas de um bolo solado. Desse arranjo pode sair (e tem saído) muita coisa em comum, desde tentativas de saques devastadores aos cofres da União, até tolerância para com ameaças à democracia e às eleições, passando por devastação ambiental, educacional, cultural e informacional, por metódica desconstrução institucional do Estado, seu aparelhamento e a sabotagem, pontual e difusa, de direitos constitucionais, inclusive supressão do direito à vida de centenas de milhares de brasileiros. Em suma, pode sair tudo, menos uma coalizão capaz de vencer eleições normais, em dois turnos. Políticos profissionais sabem disso e não ficam à espera do abraço de afogado do capitão.

Isso quer dizer que as bases ainda ligadas ao governo, ou não rompidas com ele, rumarão para a oposição? Seria mais provável dois e dois somarem cinco. Abrir mão da máquina eleitoral federal quando se pode contar com ela é algo que contraria o beabá eleitoral de candidatos ao Parlamento e a governos estaduais, exceto aqueles que estejam previamente excluídos do acesso a ela, pela sua condição de oposição aberta. A recusa ao abraço de afogado quer dizer é que a direita e a centro-direita buscam outro candidato para derrotar Lula. Atuam e tendem a cada vez mais atuar num registro que rejeita o discurso e os métodos autocráticos do presidente. O eixo estruturante, criador dessa possível candidatura, seria o próprio governo e não uma aliança mais ao centro, de oposição. O centro iria, supostamente, por gravidade, parte dele logo, outra parte, no segundo turno. O nome? Não sabemos (é possível que nem mesmo os artífices dessa solução já saibam) mas entre Rodrigo Pacheco e Hamilton Mourão não se deve descartar nada.

A solução que surja desse eixo pode ter maior ou menor teor democrático. É bom não nivelar o juízo sobre cada uma dessas possibilidades, porque não é desprezível a distinção entre gravata e farda num momento tão delicado como esse pelo qual passa a nossa democracia. Seja como for, não é sensato apostar que o establishment ficará inerte, paralisado pela pluralidade de visões, valores e interesses que abriga. Se essas forças da direita não-bolsonarista (governistas e independentes) se entenderem sobre o nome e se conseguirem se acertar com Artur Lira – um ator com poder de veto - vão tirar Bolsonaro do caminho, por bem ou por mal. Isso se o Judiciário não consumar o fato antes, ou se o próprio Bolsonaro não entornar o caldo preferindo, em vez do script de eleitoralmente derrotado (ainda que inconformado), cumprir o de insurreto, ou o de vítima batendo em retirada. Penso ser assim que se deva ver, por exemplo, a operação de remontagem do DEM no Rio de Janeiro. Além de deslocar Rodrigo Maia no plano estadual, retaliando sua transição barulhenta e agressiva em busca de lugar na oposição frontal ao governo federal, ganhar aliados de Bolsonaro para a via governista sem ele, desbolsonarização do governo.

Visto que as bandas não tocaram antes, assim como não tocam hoje, do jeito simples insinuado por análises que usam flashes no lugar de filmadoras, resta argumentar como é possível que toquem em 2022 de modo menos óbvio do que aquele que coros equivocados e/ou interessados anunciam. Se, de fato, o chamado centro democrático for politicamente anulado em 2022, conforme os sinais mais visíveis apontam, não será pela imperiosidade da polarização entre Lula e Bolsonaro, mas pela perda da chance de ocupar a posição de eixo articulador de uma suposta terceira via, A primeira via (governista) adianta-se a esse centro como eixo articulador de uma alternativa liberal-conservadora ao bolsonarismo.

O sinal mais evidente dessa ultrapassagem é o posicionamento crescente do DEM na direção dessa primeira via sem Bolsonaro. Embora menos evidente, a conduta do MDB tende a ser parecida, ou ainda mais problemática, pelas inclinações lulistas que ali existem. Sem o DEM e o MDB, o centro democrático não poderá ser centro, no sentido de eixo. Estará condenado a ser coadjuvante, por mais que o PSDB seja um partido relevante. E as últimas votações no Congresso não devem iludir. Também no terreno tucano a força do governismo se mostra. Do mesmo modo que não se pode confundir isso com bolsonarismo, também não se pode negar a propensão de parte do partido a desistir da hipótese da terceira via.

É uma situação irreversível? Penso que não, enquanto existirem, simultaneamente, em mais de um terço do eleitorado (noves fora adesões e rejeições a Bolsonaro e a Lula), percepções de que o governo que aí está não presta e de que a volta do PT seria um desastre, ambas as percepções orientadas pela aversão à corrupção, à ineficácia econômica e/ou à instabilidade política. Se a direita conseguir, afastando ou eclipsando Bolsonaro, convencer que o governo passou a ser outro; ou se Lula conseguir convencer esse mais de um terço de que um novo governo seu será algo diferente do que foi, o centro democrático tende a ter um papel apenas coadjuvante, mesmo que importante para moderar e qualificar o debate. Se a direita e a esquerda lograrem, ambas, esses tentos, aí sim, o centro, por inutilidade, virará poeira.

Mas é muito cedo para vaticínios. A direita patina pela ausência de nome. Nela, esse limite é maior do que no chamado centro. Pode acenar com estabilidade, mas tendo o centrão como seu eixo, como contornar os receios do eleitorado com a corrupção e a incompetência do governo? Para estimular esses receios estão aí as ativas e experimentadas redes petistas. Por seu turno, Lula até aqui faz exatamente o oposto do que buscar a reversão da aversão àquele modo petista de governar. Tem prometido um retorno ao passado, que vê como um ativo político para apostar e não como algo a problematizar. Parece convencido de sua capacidade de convencer as pessoas de que, administrativa e politicamente, ele e Dilma são como trigo e joio. A direita não dispensará uma bola assim na marca do pênalti. Além de lembrar, com ênfase simétrica, da corrupção e da incompetência alheia, ainda acenará com riscos de golpe, se o PT retornar. Mantidas tais circunstâncias problemáticas, por que o projeto de uma candidatura mais ao centro deveria ser suicidado de véspera?

O maior problema do chamado centro democrático tem sido, desde 2015, ele mesmo. Pagou um alto preço eleitoral pela sua pusilanimidade durante o governo Temer. E arrisca-se a pagar outro em 2022 se não conseguir criar uma identidade e uma rota de navegação distinta não apenas da oposição de esquerda, mas também do governismo maquiado. Esses cacoetes permanecem nos partidos, mas é visível o esforço interessado que alguns pré-candidatos têm feito para superá-los. Enfrentam obstáculos para se tornarem agregadores em seus partidos, seja pela divisão (casos de João Dória e Eduardo Leite, no PSDB), seja pela força interna de um governismo difuso (caso de Luís Mandetta, no DEM). Quando, a princípio, não tem esse problema (caso de Ciro Gomes, no PDT), há problemas de afinidade política e de perspectiva econômica com os possíveis parceiros. Apesar de todos esses fatores reais, a coisa tem andado no sentido do amadurecimento de uma convivência cooperativa, simultaneamente a uma explicitação e discussão de diferenças entre eles. Se chegarão a tempo não se sabe, mas não há nada de melhor a fazer. Bom exemplo foi o segundo debate público entre três deles (Ciro, Mandetta e Leite) , ocorrido na última quinta-feira, dia 12/08. Apesar do formato engessado, foi possível aprofundar certos assuntos e ir lapidando um discurso comum, que pode se tornar amplo.

O critério para avaliar amplitude, no caso desse campo do centro, é distinto do que precisa ser adotado para avaliar a amplitude da conduta de Lula. Não se pode dizer que a postura pouco aberta a revisões que ele tem adotado é, necessariamente, sinal de que se preocupa só com seu “cercadinho” e que está fechado a uma inflexão futura. Se for fustigado pela emergência de uma candidatura agregadora do centro pode mudar essa postura. A atual tem sua racionalidade, pois Lula joga para apressar a consumação de um quadro em que ele seja a única opção de oposição ao "que aí está". Esse é um jogo compreensível. Quem quer coisa diferente tem de apresentar. Ainda há tempo, mas está passando rápido. Tudo indica que Lula e o PT não vão conseguir que a eleição se resuma a um plebiscito contra Bolsonaro, o cardápio dos seus sonhos. Provável que comam mais poeira enfrentando outro candidato, um sujeito oculto que mais dia, menos dia, vai aparecer. Arma-se no país um cenário de polarização entre Lula e outra candidatura governista.

Uma alternativa democrática a esse tipo de polarização seria uma candidatura de oposição ou independente que, mesmo vindo da centro-direita, pudesse agregar o centro e até morder áreas da esquerda, programática e eleitoralmente. É para esse tipo de solução que o tempo está ficando cada dia mais escasso. Ao contrário da hipótese de uma candidatura governista alternativa a Bolsonaro, que tem a seu favor o desespero generalizado para se livrar de Bolsonaro, que com o tempo condicionará mais o establishment. A ponto de não fazer diferença, para quem precisa dessa arca, se o comandante usará farda ou paletó.

*Cientista político e professor da UFBa.


Fonte: Democracia Política e novo Reformismo
https://gilvanmelo.blogspot.com/2021/08/paulo-fabio-dantas-neto-as-chances-de.html


Vitórias parciais e novos desafios ao sistema político

Paulo Fábio Dantas Neto / Democracia Política e novo Reformismo
Foto: Marcelo Casal Jr/Agência Brasil

Prossigo, como fiz na semana passada, batendo na tecla de que, ao reverso do que ocorreu em 2018, dessa vez a caravana da política precisa passar. A defesa do sistema político que temos é das mais elementares condições para que se produza um desfecho democrático da crise de múltiplas faces que a política brasileira vem enfrentando há quase uma década e se exorcize os fantasmas de metástase que passaram a ameaçar nossa república, desde que, naquele ano, um autocrata extremado chegou, pelas urnas, à sua presidência.

Essa reflexão é institucional e, também, política. O sistema de governo, o sistema eleitoral e o sistema partidário são partes solidárias de um todo que, bem além de reproduzir um modelo formal de democracia representativa tendente à tolerância e à produção de consensos, pelos freios e contrapesos de poder que o constituem, tem sido, de fato, um ambiente interativo de negociação política refratário às intenções do autocrata de forjar sua autocracia, por meio de uma polarização radical. Nossa ordem política funda-se em boa doutrina e num saldo positivo quanto aos resultados políticos de suas virtudes e mazelas. As primeiras facilitam que, ao lado desse sistema, atue, com razoável autonomia, uma sociedade civil cada vez mais vigilante. Soma-se, então, aos próprios freios e contrapesos formais do sistema, uma opinião pública nada indulgente com as segundas.

Em artigo atual (“Dribles na tirania” – Revista Veja, edição em circulação), a jornalista Dora Kramer apresentou evidências recentes da dinâmica política que produz o saldo positivo. Elas revelam um padrão de conduta, do Congresso e de partidos em geral, em que, ao lado do sempre lembrado “toma-lá-dá-cá”, vigora um geralmente subestimado “chega pra lá”. Desenham-se, assim - lembra Kramer –, a frustração da manobra golpista da exumação do voto impresso para deslegitimar as eleições, bem como contenções legais , tardias e bem vindas, à militarização desmedida do Poder Executivo e da administração pública e ao uso autoritário da LSN, em si mesma entulho autocrático cujos dias parecem estar contados.

Por outro lado, é por esse mesmo Congresso – mais exatamente pela Câmara dos Deputados – que tem encontrado passagem uma boiada reacionária, subversiva de direitos, que emana da agenda do governo. A operação passa graças a espaços pródigos abertos a partidos e parlamentares fisiológicos na composição ministerial, sendo dessa mesma natureza a mudança em curso, nessa composição, cujo sentido é fazer prevalecer, no Senado Federal, a mesma atitude de prevaricação política. Que é do jogo, não se pode negar. Mas não se pode deixar de apontar que, nesses casos, os efeitos são nefastos.

O reconhecimento concomitante das virtudes e das mazelas é indispensável para se avaliar com realismo e a devida ponderação a presente conduta de diferentes facções da elite política no âmbito dos partidos e dos poderes Executivo e Legislativo. Os limites que a política real tem mostrado, no enfrentamento das ameaças à democracia, por omissão ou por ações na contramão da república, precisam ser investigados e iluminados, assim como é necessário considerar como ameaças poderiam ter sucesso se estivesse ausente o muro de contenção que, com seu barro impuro, a política institucional tem erguido à barbárie.  

Essa complexidade exige condução cuidadosa. Daí precisar ser tratada de modo sério e responsável por quem faz e por quem toca a agenda de partidos e de poderes da República. É mesmo uma orientação, digamos, metodológica inescapável da ordem do dia de atores institucionalmente poderosos. Frequentemente a afinação dos instrumentos da orquestra sistêmica soa mal aos ouvidos de uma sociedade que não tem gosto pela partitura da política. Gera-se um contencioso entre estado e sociedade que, se não se contiver em limites razoáveis, por ambas as partes, compromete pacto e consensos que são necessários, entre elas, para defender a república e a democracia dos inimigos comuns.

Veja-se, por exemplo, a questão do fundo financiador da atividade eleitoral dos partidos.   Essa questão é mais complexa e delicada do que parece. A opinião pública reage a todo dispêndio público com partidos e eleições. Mas não podemos esquecer que desde 2018 proibiu-se o financiamento empresarial e por demais pessoas jurídicas, por conta do clima de escândalo reinante sob a operação Lava-Jato. De fato, o financiamento empresarial gerava custos de campanha absurdos e elitizavam a representação. Era preciso conter a farra, parteira de uma promiscuidade entre setor público e empresas privadas. Mas se o STF foi aplaudido quando resolveu dar freio radical naquilo (poderia ter havido fixação de limites, mas sob pressão do clima de faxina, optou-se pela proibição) de algum lugar haverá de sair o dinheiro. Para haver competição democrática não apenas é necessário, mas também desejável, que advenha de recursos públicos. Senão, será candidato com chance real de competir apenas quem tiver recursos próprios para financiar sua campanha, ou – ao se vedar também, ou limitar fortemente, o uso desse tipo de recurso - quem possa dispor de apoiadores individuais abastados, ou quem já tenha mandato e, através dele, acesso privilegiado a meios de comunicação. Seria uma oligarquização ainda maior do que aquela, propiciada pelo financiamento empresarial.   Portanto, é preciso ter como premissa que o fundo público para financiar eleições via partidos não tem nada de espúrio. É legitimo, necessário, democrático, o que se pode e deve discutir é seu montante.

Chega-se aí a outro ponto: é intuitivo e, também, induzido pela experiência da sociedade brasileira em lidar com a ambição e ousadia de interesses corporativos (inclusive, mas não apenas, de agentes estatais e da elite política), que o montante previsto é exagerado. Isso tem de ser avaliado e comprovado com critérios objetivos e comparativos com a eleição de 2018, que foi a mais recente eleição do porte da próxima, que envolverá Presidência da República, Senado, Câmara dos Deputados, governos estaduais e assembleias legislativas. É razoável tomar aquela eleição como parâmetro e fazer naquele valor correções mínimas, tendo em conta o contexto crítico que se atravessa. Mas não é razoável dizer que o fundo é ilegítimo, nem que deva ser depreciado, pois é do financiamento da democracia que se trata. De uma democracia ameaçada, sob fogo cerrado. Se a sociedade não quiser financiar eleições e o setor privado está proibido de fazê-lo legalmente, o dinheiro virá de alguma fonte do submundo. O preço a pagar será maior.

Em resumo: democracia não sai grátis, nem barato. Ela é vital para tudo o mais e o discurso de opor gastos com eleições a, por exemplo, com o auxílio emergencial é de um populismo politicamente esperto, porém, raso e vizinho da demagogia. As duas coisas são essenciais nesse momento. O que falta para o auxílio emergencial e outras políticas sociais inadiáveis precisa ser buscado em rubricas que alimentam posições plutocráticas e não nas que financiam a democracia, desde que estejam razoavelmente dimensionadas.

Enquanto os olhares da sociedade são desfocados para uma cruzada contra o fundo de financiamento das eleições, nova boiada – essa sim, espúria - está prestes a passar no Congresso sem que até mesmo os canais de comunicação estejam lhe dando o merecido destaque. Políticos individuais (negam-se como elite política pela simples razão de que operam para destruí-la) sem outro mister senão a contemplação grosseira e politicamente malsã do auto-interesse, organizam-se para liquidar, de um só golpe, o sistema eleitoral e o sistema partidário, através de o chamado “distritão”, pelo qual se consagra o candidato de si mesmo, mandando às favas o sentido institucional da política.

Os pormenores desse projeto e seus previsíveis efeitos requerem nova coluna.  Mas o mais evidente deles será imediato (os de longo prazo ainda são incomensuráveis) Anulará, na prática, os efeitos do fim das coligações partidárias em eleições proporcionais (para deputados e vereadores), a melhor medida de reforma política que o Congresso anterior aprovou, em 2017. Em vez de fortalecer os partidos e dar consistência maior ao sistema partidário – possibilidades que não são quimeras, como mostraram os resultados eleitorais de 2020, já sob efeito da reforma anterior - a destruição institucional de agora, autonomeada de reforma, pode converter os partidos em entidades fantasma e revogar qualquer traço de sistema partidário digno desse nome, no Brasil.

A aprovação dessa matéria, tida como provável, dá uma medida das sequelas da eleição de 2018, do retrocesso político que o seu resultado causou, ao alterar de modo radical a composição das Casas legislativas entronizando ali contingentes expressivos de pregadores e praticantes de antipolítica. Convém recordar que o Congresso anterior recebeu as críticas moralistas de sempre, de ter aprovado a reforma de 2017 exclusivamente movido pelo interesse de reeleição dos então parlamentares. Essa obviedade foi guindada à condição de descoberta e assim denunciada, sem se considerar que, naquele momento, auto-interesse e aperfeiçoamento do sistema estavam sendo, simultaneamente, contemplados.

Mas havia uma cobrança de dimensão eleitoralmente relevante por parte de um sentimento público, alimentado por uma direita voluntarista, que clamava por "renovação", eufemismo que traduzia o desejo de exterminar a classe política, suposta responsável pelas mazelas da hora e pelas de sempre. A força desse senso comum de inspiração demagógica cegava a maioria das análises para os fatores institucionais e a isso se somava o ressentimento da esquerda para com o então Congresso, que havia votado o impeachment de Dilma Rousseff.  Então, tome pedras, vindas de todos os lados. Mas, na verdade, aquela reforma preservava e aperfeiçoava o sistema no mérito e no modo incremental que, há anos, vinham sendo cobrados pelas mesmas consciências críticas que seguiam, naquele contexto perigoso, apontando o dedo acusador para o "corporativismo" de uma elite parlamentar que apenas lutava para não ser varrida do mapa, a jatos de demagogia. Aí está agora, para que comparemos com a reforma de 2017, essa mixórdia do distritão, que reforçará, exponencialmente, tudo contra o que se batia a lógica da faxina.  Se passar, será a mais nova cria com digitais e DNA da "nova política" vencedora em 2018.

O sistema político brasileiro - em sua ambiguidade tradutora da ambiguidade da própria política que processa - tem diante de si duas possibilidades de afirmação permitidas pela pauta atual do Congresso. A de revisar, sem capitular, os termos em que está posto o fundo eleitoral e a de se recusar a cometer, com o distritão, um haraquiri político num instante em que a democracia da Carta de 88 precisa que seu hardware político sobreviva íntegro a essa crise, para retomar, com reformulações incrementais típicas de democracia em modo gerúndio, a trajetória ascendente e socialmente inclusiva de suas duas primeiras décadas.

*Cientista político e professor da UFBa.


Fonte:
Democracia Política e novo Reformismo

https://gilvanmelo.blogspot.com/2021/07/paulo-fabio-dantas-neto-vitorias.html


Paulo Fábio Dantas Neto: Rotas eleitorais para uma democracia em trânsito 

Desde maio de 2017, quando houve a primeira tentativa de derrubar o governo Temer, o país entrou num ponto morto, apesar da pulsão de confronto que acomete aquelas facções da elite política onde estão vencedores ou vencidos que ainda não viraram a página do impeachment de 2016. O enredo da trama reiterativa do trauma beneficiou-se da instabilidade provocada pelas investidas da Lava Jato e de parte influente dos meios de comunicação contra o grupo político do Presidente e de fato conseguiu eclipsar o enredo da recuperação e da travessia, que durante seu primeiro ano o governo engatara com certo êxito. Mas a coalizão de veto não logrou substituir, no cotidiano dos brasileiros, a partitura da travessia pelas do dilúvio e do apocalipse. A marcha-a-ré também travou e aqui estamos, numa situação que avaliza a metáfora do ponto morto mas já no limiar do engate de uma marcha lenta para nova partida, com a chegada da fase decisiva dos acordos e desacordos eleitorais.

Institutos de pesquisa têm providenciado o argumento que ainda faz render a novela da “faxina” e do “golpe”. As performances de Lula e Bolsonaro são filhas da insistência de se submeter ao público do pré-jogo cenários de polarização e fragmentação radicais que já não correspondem aos movimentos reais que, fora dos dois nichos, se dirigem à contenção dos discursos e à busca de alianças eleitorais. Com a convergência que ora se consolida em torno do candidato do PSDB os institutos indutores serão induzidos a trocar o disco para sintonizarem a nova música. Assim, outubro vai se firmando no horizonte político como encontro esperado, que vale ponto, mesmo cheio de ressalvas e sobressaltos.

A pinguela balança mas não cai e a caravana vai passando. Não chega a ser um samba popular de partido alto nem a pista é avenida larga, mas o eleitor terá como cantar seu chorinho por ruas e ladeiras cujos paralelepípedos seguem inteiros e no lugar. Alguns serão retirados se - e somente se - o eleitor quiser e do modo que pregava Joaquim Nabuco: a nível e compasso, um a um, como foram colocados. A transição a algo novo, um novo cujos traços ainda são em boa parte ignorados, segue na marcha do método conservador, por isso irá além de outubro, mas não parece que será evitada.

Houve danos, há sequelas. O que poderia ser construção tornou-se resistência, devido a revezes impostos pela Lava-Jato ao sistema político e também à pouca virtù da elite política. Disparando fogo amigo e inimigo contra o governo ela agiu na contramão do entendimento e da moderação, virtudes da nossa tradição política que o governo procurava praticar. Por outro lado a elite política insistiu no cultivo do lado não virtuoso, patrimonialista, da mesma tradição, sem nesse caso se poder excetuar a facção governante, muito pelo contrário, a julgar pelo rol de novos residentes de Curitiba.

Os fogos amigos e inimigos partiram de atiradores situados muito além do previsível e proverbial populismo de Jair Bolsonaro. A oposição de esquerda alvejou, por exemplo, a Petrobras que seus ícones políticos já haviam alvejado quando eram governo e pediu, sem recato ou cerimônia, a volta da política antiga. O Presidente da Câmara, na greve dos caminhões, violou a matemática e, como em outros momentos, também a ética da responsabilidade, como se a desmoralização do governo pudesse servir de trampolim para um salto pessoal que poderia ser mortal para a instituição que preside. E o partido dos tucanos, de um modo geral, não se conduziu à altura do compromisso público que assumiu ao emprestar o peso da sua influência à viabilização do impeachment.

Tomo esses exemplos como representativos da atitude mais visível na elite política quanto ao destino do pacto que levou Temer ao governo. O conjunto revela padrão deficiente de interação política. Se escapamos de ardis dos amantes de esquinas e teremos eleições, elas decerto avaliarão esse padrão.

Talvez pela consciência desse fato tem havido correções de rota à medida em que se aproximam datas decisivas do calendário pré-eleitoral. Isso ocorre tanto no profissionalíssimo ambiente do chamado Centrão como no da articulação, ao mesmo tempo periférica e crucial, do chamado Polo democrático e reformista. Dois blocos de forças, ao tempo em que se unem e tornam competitivo o candidato tucano, iniciam uma competição interna à aliança. De um lado, quatro ou cinco partidos do Centrão ou a ele ligados (DEM, PP, PR, PRB e talvez SD) e do outro cinco do Polo (PSDB, PSD, PPS,

PV, PTB). A hipótese de que alguns desses partidos transitem entre um bloco e outro faz parte do jogo. O árbitro central, desde a preliminar, será o candidato, mas o juiz de vídeo já será o eleitor. Em caso de vitória eleitoral, o campeonato seguirá até a montagem e exercício do governo. Aí o árbitro central recrutará mais auxiliares dentre aqueles que passarem pelo crivo eleitoral preliminar do árbitro de vídeo. Em caso de derrota, os juízes serão outros e não se sabe se o jogo também será.

Há ainda a considerar que antes do eleitor entrar em cena três outros jogadores, de variáveis relevos, ainda podem entrar nesse time dos sonhos do sistema político: o MDB, o PSB e o Podemos. Aqui não incluo a Rede, face ao seu perfil de estilingue e por mais motivos que serão comentados adiante.

O MDB poderá dar agora aos antigos aliados o apoio que lhe foi negado por eles a partir de 2017. Aliás, se o partido mantém um pré-candidato à parte, o governo não lava as mãos e já atuou para tirar o Centrão de Ciro e jogá-lo para Alkmin. Cedendo aos fatos o MDB poderá fazer o entendimento abrindo mão da primazia e reconhecendo a provisória posição de maior força do outro parceiro grande, no caso o PSDB. Esse último, fiel ao seu estilo, não cortejará o MDB em público para além das formalidades. Nem o PSDB nem o Centrão fazem, por ora, questão de passar recibo do apoio de um MDB com alta expertise em ser decisivo, sendo fiel da balança. Mas o tucanos sabem que sem aquela geni não consolidarão a posição predominante. O MDB, ainda virtual aliado, já é relevante sócio oculto e, a essa altura, ansioso para sair da posição de primeira vidraça.

Quanto ao PSB, as duas canoas em que pôs seus pés desde 2015 (a do impeachment e a do lulismo) parecem agora ser embarcações impróprias para levar o partido a um porto seguro. Se voltasse à primeira canoa, apoiando Alkmin, prestaria louvável serviço ao polo democrático e reformista que tenta levar o candidato a posição centrista, sem adernar à direita. Mas se arriscaria a perder suas posições eleitorais no nordeste, preço alto demais. Se ficar na segunda canoa pode prestar um serviço aos moderados do PT mas se arriscará, junto com eles, a ser tragado pelo abraço de afogado de Lula, que tentar interceptar a recepção dos socialistas a Ciro Gomes. Mas como o casco grosso dessa óbvia terceira canoa também parece ter furos, o partido pode até optar por não optar. O liberou geral já vigora e ninguém segura mais, haja ou não uma votação na cúpula ou até um candidato próprio.

A questão do Podemos é menos complexa. Entre a sua busca de vencer a cláusula de barreira por uma articulação nacional e o voo solo de Álvaro Dias a primeira tende a prevalecer, formalmente ou não. Sinal de que, em meio aos seus pesares, o sistema político produz regras que, no intuito de conservar a competividade de atores tradicionais, acabam reforçando a institucionalização do sistema partidário contra scripts personalistas. Um bem público colateral, derivado de vícios privados gerais.

Se o time de Alkmin ganhar esses jogadores - mesmo pontual e oficiosamente, graças a liberou geral para dissonâncias estaduais no MDB e no PSB -, o arco político que viabilizou o impeachment.estará politicamente recomposto, por mal traçadas linhas e ao preço de uma crise que se arrastou mais do que precisaria. O novo seria a troca de pilotos, saindo o MDB, entrando uma sociedade entre PSDB e Centrão. Possível implicação dessa troca é a criação, em 2019, caso Alkmin vença, de situação análoga à que em 2003 levou Lula, em busca de base parlamentar, a rejeitar o PMDB como aliado preferencial para montar o balcão varejista mais tarde conhecido como Mensalão. No Brasil pós-Lava Jato, se o PSDB não tiver repertório alternativo a esse varejo – repertório político, não bom mocismo udenista ou tecnocrático – poderá ter mais dificuldades do que teve o PT àquela época.

O êxito da aliança de Alkmin em fazer acordos pragmáticos com alguma convergência programática prevalecer sobre projetos eleitorais isolados depende do apetite prévio dos eleitores corresponder à intenção dos cozinheiros. A campanha terá que ser contundente na polêmica e eficaz nos bastidores para retirar clientes e fornecedores da mal assombrada cozinha que Bolsonaro abriu à sua direita.

Luta interna também já se dá na cozinha da esquerda, onde labutam difusores dos fantasmas de 64. Ali enfrentam-se os que prestam atenção nas nuvens para também rever as suas rotas e os que navegam naquelas, tentando que a realidade desista de si mesma em favor da narrativa catastrófica.

Exorcizando fantasmas

Se é para olhar pelo retrovisor, ponhamos colírio na memória. Com o golpe de 64 instalou-se, como se sabe, um regime autocrático que depôs, além do presidente, governadores e prefeitos; cassou mandatos parlamentares e, em certo momento, até fechou o Congresso; dissolveu partidos e cancelou eleições marcadas; censurou a imprensa, cerceou a liberdade de reunião e manifestação; reprimiu e interveio em sindicatos, entidades estudantis e outras organizações da sociedade civil; usou violência física para excluir ativistas da cena política. Um núcleo militar, com apoio político e empresarial, ditou atos institucionais que feriam a Constituição, em seguida a revogou, fabricou uma nova e incluiu, na carta fabricada, o conteúdo do mais extremo dos atos institucionais, o AI-5.

O que há de semelhante ao que se dá em nossos dias? Os contrastes prevalecem na comparação. Mas é preciso admitir que, como em 1964, a política está sendo bloqueada. Isso não costuma sair grátis.

Afasto qualquer determinismo que queira fazer da história uma ciência exata da repetição. Friso é que métodos e qualidade da ação política fazem diferença para levar a desfechos diversos situações semelhantes de alta polarização no sistema político. Em 64, apesar da polarização política contaminar parte da sociedade civil, o cidadão comum, quando pesquisado, queria moderação. Já em 84, a polarização radical se desfez quando elite política e sociedade civil entenderam-se em torno de uma solução democrática, em sintonia com o eleitorado. A diferença é que em 64 a elite política e parte da sociedade civil não souberam, ou não quiseram, ler o recado do seu eleitorado. Visitas ao passado são úteis, não para buscar fantasmas, mas para fazer cada qual, antes de somar sua voz aos impropérios do dia, ver se é diverso o recado dos cidadãos e cidadãs de hoje, ou se facções políticas e corporações em confronto estão querendo arrastá-los a uma contenda que não é sua, atormentando, oprimindo e mediocrizando seus cérebros com a exumação de uma metodologia política morta.

Assim como desfechos de situações de polarização extrema podem variar conforme a lucidez e a direção da ação política, a polarização extrema, ao se prolongar sem desfecho, pode tornar-se padrão de relacionamento político capaz não só de produzir uma crise política, como de levá-la a desfecho semelhante ao que tiveram, em outros tempos, processos críticos diversos e até opostos ao atual.

A polarização hoje não chegou a ganhar a sociedade civil, mas já a afetou o bastante para ligarmos a luz amarela. Convergência entre sociedade civil e eleitorado tende a democratizar o estado, mas há sinais de coisa diversa: setores da sociedade civil mobilizados para conflitos em curso na sociedade política; conflitos entre corporações do Estado e o governo; entre as próprias corporações; entre algumas delas e os partidos; entre partidos, é claro; e entre facções internas aos partidos.

Se o extremismo se tornasse padrão para lidar com esses conflitos, pouco serviria a análise concluir que há mais diferenças que semelhanças entre a crise de hoje (que opõe a democratização da democracia à sua tutela por corporações ou personalidades messiânicas) e a de 64, que pôs o Brasil numa esquina entre democracia e ditadura. Ganhando asas, o extremismo, em vez de ser contido pela fortuna da tradição moderadora, removeria a tradição do caminho pondo a roda da fortuna a seu favor. Se democratas sinceros – todos, e em especial os que se situam na esquerda – indagarem-se a favor de quem haverá mudanças por força de extremismos, remeterão o cabo de guerra a um museu.

A convergência no método do desentendimento permitiria, a grupos políticos e sociais que prevalecessem no cabo de guerra, impor uma fórmula política antes que o eleitorado indicasse a sua. Por isso, embora tratar de eleições possa até parecer prosaico aos olhos de quem se liga em fantasmas ou tramas de terror, é de eleições que tratarei agora.

Quatro opções de rota política e seis cenários de segundo turno

Propus a ideia do ponto morto para negar que estamos numa esquina entre democracia e ditadura. Agora proponho a de uma rotatória na avenida, indicando 4 distintas rotas, a partir das eleições. Elas não resultam da genética política de pré-candidaturas. Para enxergá-las é preciso sair do fulanismo. A rotatória é onde agora estão as candidaturas e o eleitorado. Antes e durante o primeiro turno as candidaturas trafegarão, em vaivém, pela rotatória. Só quando o eleitorado escolher as que irão ao segundo turno saberemos que rotas ainda se poderá seguir e quais as que estarão descartadas.

Rota A: retomada do script institucional da Carta de 88 que foi, em geral, seguido de 1993 a 2013: amplo pluralismo político, significativa participação eleitoral, competição e alternância partidárias; crescente controle social de políticas públicas; balizamento institucional de atores políticos; controle mútuo e equilibrado entre os poderes da república; ampla liberdade de expressão. Nesse ambiente institucional cabem inflexões de política econômica em sentidos mais ou menos liberal, com maior ou menor contenção do estado; afirma-se o caráter laico do estado no trato com a cultura e direitos individuais; induz e promove uma mentalidade cosmopolita, tolerante e democrática na sociedade.

Rota B: derivação liberal conservadora à direita, do script de 88, na linha de restringir, em nome da ordem, da segurança e/ou conservação de certas tradições, o espaço para inovações ampliadoras da participação política; de dar mais poder a instituições de controle, a molde do que Dahl chamou de “quase guardiania”; de restringir a capacidade de resposta do sistema a questões como defesa do ambiente, da diversidade cultural e sexual, da equidade entre gêneros e etnias; de arrefecer o combate institucional a discriminações e o reconhecimento de novos direitos sociais.

Rota C: derivação iliberal à esquerda, do script de 88, no sentido de acentuar linhas de reformismo social pela via estatal, desenvolvimentismo, redução de desigualdades, afirmação de direitos sociais e identitários. Apelo a formas de democracia direta para reduzir a centralidade da representação política, ou a vias plebiscitárias que concentrem, no Executivo, poderes derivados da representação.

Rota D: Retorno a um ponto inicial, mais estreito, da avenida da democracia, onde o trânsito pode ficar truncado por uma polarização extremada entre populismos/nacionalismos de diversos matizes e um liberalismo de forte viés elitista, termos característicos do contencioso ideológico do pré-64 e do seu imediato pós até 68, quando, em vez de se debater qualidade da democracia e da república, como se faz hoje, pregava-se ordem ou movimento; conservação ou reformas sociais, revolução ou reação.

A depender do sentido do voto no primeiro turno, as quatro rotas podem se combinar em seis cenários de segundo turno. Deles, o que vejo como, digamos, o mais virtuoso dentre os possíveis, é um segundo turno em que as duas candidaturas apontem à rota A. Nosso retrovisor se posicionaria em 2013, quando o país parou na rótula, para retomar a direção em geral seguida desde o pós-Collor.

Esse cenário benigno não é imediatamente visível, dado o clima de radicalização. Um Alkmin reciclado ao centro contra um Ciro lacônico ou um PT paz e amor não é no momento o mais provável por dois motivos: primeiro a presumida força do Centrão, que empurra Alkmin para a rota B. Se por essa rota poderá se celebrar o esvaziamento de Bolsonaro, é preciso ver o preço a ser pago por isso. O Centrão afastou-se do capitão por ter afinidade com outra pauta econômica e por afinidade do candidato com o discurso faxineiro. Mas leva a Alkmin a agenda social e cultural regressiva que compartilha com o capitão. Segundo complicador é Lula, que oscila entre ser o grande eleitor ou o anticandidato. Se prevalecerem o humor do preso e o pathos da fera acuada, a solução da ambiguidade dependerá, em parte, do desempenho de Alkmin. Se o tucano continuar patinando ou crescer pouco, o grande eleitor de Curitiba se animará com as chances de vitória do seu indicado. Se Alkmin decolar o anticandidato rifará qualquer indicado e se manterá na cena tentando melar o jogo.

Pelo que se supõe ser a cabeça de quem se fez e se crê mito, o pessimismo da razão manda contar com um PT em guerra até o fim do seu próprio mundo. Mas como em política há lugar também para o otimismo da vontade, não descartemos de todo que o político por vocação se imponha ao messias e em vez de celebrar o sermão da montanha ou evocar Canudos, Lula reze pela cartilha da responsabilidade política e libere seu PT para ir às urnas, seja para encorpar a candidatura de Ciro, hoje eleitoralmente mais viável do que a de qualquer petista, seja para ter candidato próprio, com menos ressentimento e rancor. Nessa eventualidade, somada à da centro direita esvaziar o capitão populista sem herdar seu discurso e agenda, há a chance do segundo turno ocorrer dentro da Rota A.

Porém, possibilidade maior é a rota A disputar o segundo turno contra alguma das outras opções de rota (derivações do script da Carta de 88, à direita, ou à esquerda e o retorno ao marco zero). Dependendo de quem seja o outro contendor saberemos qual a outra rota possível de, nesse segundo cenário, ser votada no segundo turno. Esse cenário admite variações: poderemos ter A de Alkmin x C de Ciro (que também pode piscar para D); ou A de Alkmin x D de Bolsonaro (que também pode se deter na B); e a configuração de um petista ou um Ciro centristas em A contra um Bolsonaro em D.

O realismo manda ainda considerar como possível a Rota A ficar fora do segundo turno. Nesse caso poderão abrir-se outros cenários, todos mais complicados. Num deles - segundo turno entre as rotas B (derivação à direita) e C (derivação à esquerda) - estaríamos, depois de outubro, a meio caminho entre a continuidade e a ruptura do fio da democracia da Carta de 1988. Pensar em quem nesse caso apontaria à rota B leva-nos de novo a um Alkmin, agora em linha com o figurino da centro direita conservadora, capaz de esvaziar a candidatura mais radical de Bolsonaro. Já para ser a candidatura propositora da rota C ninguém se apresenta hoje melhor posicionado do que, outra vez, Ciro Gomes, desde que esteja acertado com o PT e também à vontade com o eleitorado lulista dos grotões.

Um quarto e um quinto cenários de rotas em disputa no segundo turno trariam potencial um pouco maior de ruptura do fio. Uma disputa entre as rotas B e D poderia se dar entre um Alkmin mais conservador contra um Ciro mais ousado no apelo populista, exumando a memória do primeiro Brizola, como já ensaiou fazer em discurso logo após a frustração de sua corte ao DEM e ao Centrão. Seria bastante arriscado para o script da Carta de 88, porém risco ainda maior traria o quinto cenário, de um confronto entre C e D, com Ciro sendo a opção menos radical e Bolsonaro um pós Lacerda.

Por fim, um sexto cenário supera todos os demais no potencial de esgarçar o fio da democracia de 88 e fazê-la regredir aos marcos de uma democracia populista. Seria, como anunciam profetas do apocalipse, um segundo turno entre dois contendores que proponham o retorno a esse marco zero (rota D), uma confrontação direta entre dois populismos, envernizados por retóricas de esquerda e de direita. Essa é a praia lacerdista de Bolsonaro: bater-se com o lulopetismo na versão gramatical de Gleisi Hoffman. Duelo que Lula talvez aceite para tentar fugir de um naufrágio no seco, em Curitiba.

Dois fatores contribuem para que esse sexto cenário, embora improvável, esteja entre os possíveis: o desgaste do governo Temer, que deixa de ser eixo principal da aglutinação centrista e o isolamento da oposição de esquerda, sem discurso positivo e engessada pela miragem da candidatura de Lula. Daí que Gleisis e Bolsonaros não deixarão de ligar o pisca-pisca à rota D, semeando o sexto cenário.

Aquém e além das rotas

Para falar também em Marina Silva, penso que se ela mantiver a candidatura, como até aqui parece que fará, tende a parar na rotatória durante o primeiro turno, esperando que um helicóptero surja para iça-la e pousá-la numa avenida por onde possa fluir alguma democracia “nova”. Como a maioria dos eleitores não gosta de andar nas nuvens, ela pode repetir votações expressivas que já teve, mas tende, no segundo turno, a ser eleitora de peso, não mais concorrente. Não foi incluída na simulação das rotas e dos cenários - na qual vários incluídos estão abaixo de si nas pesquisas - porque segue sendo outsider e, por isso, imprevisível. Se chegar ao segundo turno será porque o primeiro turno já terá tirado a política brasileira da rotatória em que se encontra. A rotatória foi a premissa da simulação, que só naquela tem sentido. Fora dela o futuro do fio desencapado da República de 88 dependerá de “o que ocorrer”, nas urnas e na interação posterior dos atores que definirão as novas regras do jogo.

No mundo imaginado dessa democracia nova, reiteradamente pregada em tempos de Lava-Jato, Marina Silva encontraria, a lhe fazer contraponto, alguém menos votado, mas politicamente situado, como Guilherme Boulos. Ele representa o que de mais emblemático há da esquerda iliberal no Brasil. Talvez represente seu futuro, mais que o PT, ente hoje distópico de quem o PSOL herdou o passado. Inspirado no marco zero da atual democracia – marco ao qual retornaríamos se fosse escolhida a rota D - esse partido adotou (ao que se diz por sugestão de Lula) um candidato capaz de ser crítico de Ciro Gomes, se o eleitorado puser Ciro no segundo turno como o condutor na rota C; ou superego do PT moderado, na hipótese desse partido moderar o uso do retrovisor e tentar refazer seu pacto de convivência tensa com a rota A. Boulos só não tem conexão com a rota B. Essa curiosa flexibilidade num radical pode ser sinal de virtude política, ou só de irrelevância eleitoral. A conferir.

Importante frisar ainda que, mesmo pela rota D, a mais regressiva e perigosa das quatro, o cenário não seria ainda uma esquina que levaria à supressão da democracia política. Seria exagero confundi-lo com aquela ruptura pela direita, ocorrida em 64. Ruptura que, aliás, também foi alimentada por visões golpistas à esquerda, avessas à democracia “burguesa”, como as que depois animaram a luta armada contra a ditadura. Arriscando-se com fogo, fechavam os olhos ao fato de que cordas tão esticadas tendem a quebrar do lado mais fraco. O fio partido em 1964 levou décadas até se recompor, noutro patamar, em 1988. Com olhos abertos deixemos os mortos em paz e acionemos o pensamento para o desafio que se põe hoje aos democratas vivos, à esquerda, à direita e ao centro: o de relaxar o cabo de guerra e voltar a tecer o fio que nos permite caminhar, diferentes, divergentes, porém juntos, como sociedade civil e como povo civilizado, ancorado num estado democrático de direito.