Foto reprodução: Nádia Pontes / DW Brasil

Joenia Wapichana: "Foi um mandato de resistência à boiada"

Nádia Pontes | DW Brasil

Perto do fim de seu mandato como deputada federal, Joenia Wapichana, a primeira mulher indígena eleita para o Congresso, sabia que teria uma estreia difícil. Líder do seu partido (Rede) na Câmara, a advogada diz ter evitado muita "tratorada" e "boiada" nos embates com deputados, em referência a projetos de lei considerados anti-indígenas e antiambientais.

Formada em Direito pela Universidade Federal de Roraima (UFRR), ela atua há décadas como assessora jurídica em movimentos indígenas. Em 2008, foi a primeira advogada indígena a defender no Supremo Tribunal Federal (STF) o polêmico caso da Terra Indígena Raposa Serra do Sol.

Durante a recente 27ª Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas (COP27), no Egito, ela conversou com a DW sobre suas expectativas em relação a um Ministério dos Povos Originários, promessa de campanha do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva que foi confirmada após a vitória dele na corrida presidencial contra Jair Bolsonaro.

"Esperamos, principalmente, um avanço na proteção territorial", disse Wapichana sobre a demarcação de terras indígenas, paralisada sob Bolsonaro.

"Nós esperamos muito tempo por uma recomposição do Estado brasileiro que reconhecesse a importância dos povos indígenas. Então esse espaço tem que ser de respeito. Os povos indígenas têm toda a capacidade hoje de estarem fazendo e encaminhando suas próprias demandas", afirmou.

DW: A senhora está chegando ao fim do mandato de deputada federal, eleita como a primeira mulher indígena na Câmara. Como foram esses quatro anos de trabalho sob o governo de Jair Bolsonaro?

Joenia Wapichana: Foram difíceis, mas quem disse que seria fácil? Dentro de um governo fascista, negacionista, dentro de um governo anti-indígena, antiambientalista.

Foi um momento de resistência, de resiliência, mas também de mostrar a capacidade de uma indígena vinda de Roraima, um estado que rebate direitos indígenas como demarcação das terras e que tem posicionamento antiambiental. Um estado com uma série de casos a serem resolvidos, como a invasão dos garimpeiros na Terra Indígena Yanomami.

A minha atuação parlamentar, a partir do meu estado, do meu povo, sendo indicada a partir de uma assembleia indígena, mostrou que é possível fazer uma política diferente. Uma política que vem trazer o olhar indígena, a questão do valor da coletividade, de manter a floresta em pé. Como indígena originária, eu diria que foi um mandato de resistência. Não tem nome mais apropriado que esse.

Tentamos resistir à boiada, à tratorada, seguramos o máximo possível todos os projetos antiambientais e anti-indígenas. Conseguimos segurar muitas coisas. Acho que esta nova legislatura que vem aí vai continuar sendo uma questão de resistência, mas também propositiva.

O meu mandato contou muito também com o apoio da sociedade civil organizada, que nos deu a força para ser coerentes com os compromissos que nosso país precisa avançar.

Mesmo com essa maioria bolsonarista dentro do Congresso, dentro da Câmara, onde eu estava, a gente conseguiu algum espaço para propor projetos de extrema importância.

Aqui na Conferência do Clima eu falei sobre isso, sobre o Projeto de Emenda Constitucional (PEC) da Segurança Climática. Foi fruto de uma mobilização de pessoas em todo o país. Nós conseguimos aprovar o relatório na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) no mês passado.

Foram muitos embates com a bancada ruralista?

Muitos. Mas a gente conseguiu manter alguns direitos. Lutamos no momento que era mais necessário em favor dos povos indígenas. Fui relatora do projeto que foi aprovado, o plano de enfrentamento à covid.

Além do negacionismo de Bolsonaro neste desgoverno, a gente enfrentou anos de uma pandemia que matou muitos brasileiros e afetou também as comunidades indígenas. Então, o fato de eu ser parlamentar permitiu que outras autoridades pudessem ouvir os povos indígenas e a gente pudesse construir uma política para salvar vidas.

O mandato teve essa visão de trazer os povos indígenas não só pela voz, pelo simbolismo, mas pela capacidade que nós temos de representar o nosso povo politicamente dentro do Parlamento brasileiro e, assim, usar as ferramentas que o Parlamento nos dá.

Congresso que assume no ano que vem contará com duas mulheres indígenas eleitas e um grande número de candidatos que se elegeram apoiando Bolsonaro. O que esperar desta legislatura?

A gente já tinha um Congresso, digamos, bastante pesado. Infelizmente, o Executivo também era pesado. O governo fechou o diálogo com povos indígenas, rompeu com toda a sociedade civil, fechou participação.

Agora vem o governo Lula, que eu defendi, mesmo sendo ameaçada lá no meu estado de Roraima por garimpeiros. Mas eu vejo que é um novo governo que vai dar possibilidade de diálogo. 

Agora a gente tem uma questão essencial, que é o presidente Lula no Executivo, que é uma pessoa que tem demonstrado abertura para o diálogo, principalmente, e maturidade muito importante de exercer uma presidência e juntar pessoas.

Espero que esse seja o diferencial desta legislatura em que, antes mesmo de ele tomar posse, já inicia diálogo com os partidos. É assim que é a política, uma conversa, um diálogo, para ter espaço para propor e decidir.

A partir do Executivo, é possível trabalhar políticas públicas, reformar, resgatar, recuperar agendas importantes, como a socioambiental, indígena, climática. Dá para fazer ações e programas positivos no sentido de proteger a floresta, os guardiões que estão na ponta.

Eu sei que vai ser um desafio muito grande. No Brasil, como em todo o mundo, existe uma crise social, uma crise econômica, que a gente precisa conciliar. Mas só o fato de ter um compromisso afirmado, e reafirmado pelo presidente aqui na COP, nos dá a clareza que vai ser importante ele ali, mesmo tendo um Congresso majoritariamente tendo sido eleito pelo bolsonarismo.

Como a senhora imagina um Ministério dos Povos Indígenas, algo inédito na história do país?

Primeiro, que precisa ser em construção com os povos indígenas. Um espaço de articulação, de fortalecimento das políticas públicas, de direito, de implementação. Nós temos muitos planos, mas falta implementação. 

Esperamos diálogo com os povos indígenas, que vêm de diferentes regiões, biomas, culturas. Esperamos, principalmente, um avanço na proteção territorial.

Nós esperamos muito tempo por uma recomposição do Estado brasileiro que reconhecesse a importância dos povos indígenas. Então esse espaço tem que ser de respeito. Os povos indígenas têm toda a capacidade hoje de estarem fazendo e encaminhando suas próprias demandas.

Foram quatro anos de desmonte de políticas públicas e que merecem urgência. Seria o ministério para fortalecer a relação dos indígenas com o Estado brasileiro.

https://www.youtube.com/watch?v=b1XbbOqIeWA

Matéria publicada originalmente no DW Brasil


Sede da Empresa Brasil de Comunicação (EBC) - Foto: Agência Brasil

GT de Comunicação que tirar EBC e Correios da lista de privatizações e fala em "BBC brasileira"

Cristiane Sampaio,* Brasil Fato

O Grupo de Trabalho (GT) de Comunicação que integra a equipe de transição de governo vem discutindo a retirada dos Correios e da Empresa Brasil de Comunicação (EBC) da lista de privatizações.

As duas empresas entraram na mira do ministro da Economia de Bolsonaro, Paulo Guedes, em meio a uma lista de dezenas de empresas públicas ameaçadas de desestatização pela política neoliberal do atual governo. A proposta, entretanto, enfrenta ampla resistência de setores trabalhistas, populares e acadêmicos especialistas no assunto.

Em entrevista ao Brasil de Fato, a pesquisadora Helena Martins, integrante do GT e professora do Curso de Comunicação Social da Universidade Federal do Ceará (UFC), explicou que o debate ainda será amadurecido dentro do grupo, que, assim como os demais GTs da transição, trabalha atualmente em um diagnóstico da sua respectiva área da administração federal para produzir um relatório final que será entregue ao futuro governo.

A ideia é que a gestão Lula assuma a presidência tendo um raio X da atual situação do Poder Executivo federal, que passou por diferentes reformas administrativas nos últimos anos, com deslocamento e junção de órgãos, bem como com o desmonte de uma série de políticas públicas.

"Há uma compreensão da necessidade de uma empresa pública de comunicação. O próprio Lula falou isso na campanha, [falou] que o Brasil precisa ter uma BBC. Tem todo um cenário hoje de produção audiovisual diversificada, espalhada nas periferias do Brasil, etc. A própria OCDE fez um relatório sobre análise de radiodifusão e telecomunicações e colocou como uma das recomendações para que o Brasil venha a integrar a OCDE, o fortalecimento do seu sistema público [de comunicação]", argumenta Helena Martins.

"Sendo assim, não teria o menor sentido o Brasil caminhar no contrário disso, inclusive no contrário do que diz a Constituição em relação à complementaridade entre os sistemas público, privado e estatal. Então, há uma perspectiva forte de se afirmar o caráter público da EBC", emenda Helena, ao citar o artigo 223 da Carta Magna.

Criada em outubro de 2007, durante a segunda gestão Lula (2007-2010), a EBC nasceu para dar materialização a esse princípio constitucional. A empresa teve a criação chancelada, primeiro, pela Medida Provisória (MP) 398 e, na sequência, pelo Decreto nº 6246. Aprovada pelo Congresso Nacional, a MP se converteu depois em Lei nº 11.652/2008, que oficializou o nascimento da estatal.

Ficaram a cabo da EBC os canais de rádio e TV que até então eram administrados pela Radiobras, estatal extinta naquele ano. Atualmente a estatal responde pela TV Brasil, além de diferentes rádios e portais. A empresa viveu um desmonte especialmente entre os governos Temer (2016-2018) e Bolsonaro (2018-2022), com extinção do Conselho Curador, política permanente de censura e perseguição a jornalistas, entre outros problemas relacionados ao aparelhamento político da estatal.

"Além disso, a mistura que o governo Bolsonaro fez entre TV Brasil e NBR [TV de perfil governamental], acabando com o caráter público da EBC, é uma mistura muito criticada, por tudo que foi dito e visto até aqui", acrescenta Helena Martins.

A meta de privatizar a empresa surgiu, então, como o ápice do movimento de desmonte que tem atingido a EBC. Apesar de carecer ainda de uma decisão final do GT das Comunicações, a retirada da estatal da lista de privatizações tende a receber espaço no relatório final que será produzido pelo grupo.

Na última sexta-feira (18), Helena Martins declarou, em sua conta no Twitter, que ainda não há decisões definitivas a esse respeito, mas que o assunto está sendo discutido.

A equipe tem se reunido diariamente no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB), em Brasília (DF), desde o último dia 11. A rotina dos trabalhos inclui a escuta de uma série de interlocutores de órgãos integrantes da arquitetura do universo da comunicação no âmbito da administração. Já foram ouvidos pelos especialistas, por exemplo, a Secretaria de Radiodifusão, a Secretaria de Telecomunicações e o presidente da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), Carlos Manuel Baigorri.

Edição: Thalita Pires

*Matéria publicada originalmente no Brasil de Fato


Santos Cruz é um dos generais mais respeitados de sua geração e teve passagem-relâmpago pelo governo Bolsonaro| Foto: reprodução BBC News Brasil /REUTERS/ADRIANO MACHADO

Governo Lula não precisa temer militares, diz general Santos Cruz

Leandro Prazeres | BBC News

É nesse clima de tensão que o general da reserva Carlos Alberto Santos Cruz disse em entrevista à BBC News Brasil que o novo governo do PT não tem motivos para temer a atuação dos militares nos próximos quatro anos. Ele diz apostar em uma relação harmônica entre Lula e os militares.

"Do meu ponto de vista, não precisa temer nada. Nem o governo e nem a população", disse Santos Cruz.

O general da reserva é um dos militares mais respeitados de sua geração. Comandou o contingente militar de missões de estabilização da Organização das Nações Unidas no Haiti e na República Democrática do Congo. Em 2018, foi um dos primeiros oficiais de alta patente a apostar na candidatura vitoriosa de Bolsonaro em 2018.

Em janeiro de 2019, foi nomeado como ministro da Secretaria de Governo da Presidência, mas ficou no cargo por apenas seis meses. Em junho daquele ano, foi exonerado por Bolsonaro após virar alvo de ataques da chamada ala ideológica do governo na época comandada pelo escritor Olavo de Carvalho, morto em janeiro deste ano.

Desde sua saída, Santos Cruz vem tecendo críticas ao atual presidente e, neste ano, chegou a colocar seu nome à disposição para formar uma chapa à Presidência ao lado do ex-juiz federal e atual senador eleito Sergio Moro. Mesmo na reserva, ele é frequentemente procurado por interlocutores interessados em saber como funcionam as engrenagens das Forças Armadas do Brasil às quais ele serviu por mais de quatro décadas.

À BBC News Brasil, Santos Cruz também disse que acreditar que Lula tem experiência política e saberá lidar com as Forças Armadas e também rechaçou a tese difundida por apoiadores de Bolsonaro e mencionada em uma nota assinada pelos comandantes do Exército, Marinha e Aeronáutica há duas semanas segundo a qual as Forças Armadas teriam uma função "moderadora" na República brasileira.

"Qualquer interpretação de que as Forças Armadas são um poder moderador está completamente errada", disse.

Confira os principais trechos da entrevista.

BBC News Brasil - Qual é a origem das desconfianças e tensões dos militares das Forças Armadas em relação ao presidente eleito Lula?

Santos Cruz - Eu não vejo essas tensões porque nós tivemos anteriormente dois mandatos do atual presidente eleito e não houve nenhuma dificuldade de relacionamento. Houve respeito institucional e houve um orçamento regular. O Brasil, naquele período, participou de missões de paz dentro do esforço de política exterior do Brasil. Houve vários projetos (estratégicos) das Forças Armadas que são daquela época. Temos todas as condições de contornar esse período de política conturbada, de muito fanatismo político, e termos um relacionamento respeitoso sem maiores problemas.

BBC News Brasil - Já houve manifestações de diversos militares que não veem com bons olhos a eleição do presidente Lula. Por que, na sua opinião, parte dos militares não se sente satisfeita com a eleição do presidente Lula?

Santos Cruz - Em primeiro lugar, o militar como eleitor tem direito de votar em quem ele quiser. Ele tem direito de gostar ou não da eleição, de ficar satisfeito ou não. Isso é no nível de aceitação individual. Agora, é importante separar o que é individual do que é institucional. Sem dúvida nenhuma, no meio militar teve gente que votou no atual presidente Bolsonaro e gente que votou no presidente Lula. Outra coisa é a aceitação institucional. Institucionalmente, você não pode ter restrição à eleição. É preciso fazer essa diferença. Eu vejo que todos, não só os militares, mas todas as pessoas em carreiras de Estado, mesmo aquelas que tenham votado em outro candidato, precisam aceitar o resultado da eleição. Isso está um pouco difícil para algumas pessoas, mas não vejo dificuldade institucional.

BBC News Brasil - O novo governo do presidente Lula precisa temer os militares de alguma forma nesses próximos quatro anos?

Santos Cruz - Eu não posso falar pelos militares porque eu sou da reserva. Quem dirige os destinos das instituições militares hoje são os seus comandantes, que são pessoas extremamente capacitadas e preparadas [...] que chegaram à situação de comandante por mérito. [...]

O que eu falo é pessoal e baseado na cultura militar em que eu fiquei por mais de 45 anos [...] Eu acho que o povo brasileiro tem que continuar confiando, como sempre fez, nas instituições e nos comandantes atuais. É importante que essas instituições se comportem de forma apolítica, sem preferência de nomes e de partidos. Isso é fundamental para toda a sociedade brasileira. Isso vale não só para a instituição militar, mas para outras como a Receita Federal, Polícia Federal, Polícia Rodoviária Federal [...] Elas precisam ter esse comportamento porque a briga política sempre vai existir de quatro em quatro anos. Mas as instituições do Estado têm que dar essa tranquilidade para a nossa população.

BBC News Brasil - O senhor disse que a população brasileira precisa continuar confiando nas Forças Armadas, mas o governo do presidente Lula pode confiar nas Forças Armadas?

Santos Cruz - Todos os governos podem confiar nas Forças Armadas. Todos. Comecei a votar em 1974 e todos os governos tiveram o trabalho das Forças Armadas em prol da nossa população em todos os momentos de crise…

Apesar do relativo bom relacionamento entre Lula e os militares em seus dois primeiros mandatos, é grande a expectativa sobre como será essa relação em seu terceiro governo

BBC News Brasil - Mas general, existe uma desconfiança em relação ao compromisso das Forças Armadas na manutenção do regime democrático nos próximos quatro anos por conta do histórico recente de proximidade entre os militares e o governo do presidente Bolsonaro que, em vários momentos, colocou em xeque o sistema eleitoral. Por isso, volto a perguntar: o presidente Lula precisa temer o compromisso das Forças Armadas com o regime democrático?

Santos Cruz - Do meu ponto de vista, não precisa temer nada. Nem o governo e nem a população.

Você está correto na sua interpretação de que houve muita confusão do governo com as Forças Armadas. Isso aconteceu e a imagem transmitida era de vinculação das Forças Armadas com o governo. Só que isso não é real. Isso foi fabricado porque o tempo todo o discurso (de Bolsonaro) foi 'o meu Exército', 'sou o comandante-em-chefe'. Tudo isso foi transmitindo a ideia de que as Forças Armadas estavam vinculadas ao governo, à pessoa ocupando a função de presidente. Mas isso aí não é real.

As Forças Armadas têm o seu posicionamento que é constitucional. Acho que não só o próximo governo pode contar (com as Forças Armadas), mas este governo também pode contar com ela. Agora, não se pode contar com as Forças Armadas para sair da Constituição.

BBC News Brasil - Alguns números indicam que possa ter havido mais de 3mil militares em cargos dentro do atual governo. O presidente Bolsonaro usou os militares ou os militares usaram o presidente Bolsonaro?

Santos Cruz - Sem dúvida nenhuma, o presidente da República e toda a estrutura de governo convidaram um número muito grande de militares para participar do governo. Isso causou um desequilíbrio de representação social. O Brasil tem pessoas ótimas, especialistas em todas as áreas, inclusive nas Forças Armadas. Mas esse grande número desequilibrou e chamou a atenção da sociedade. Não são as pessoas que exploraram o governo. Foi o governo que causou esse desequilíbrio. As Forças Armadas como instituição jamais pleitearam posições no governo.

BBC News Brasil - A imagem dos militares sai melhor ou pior do governo presidente Bolsonaro?

Santos Cruz - Eu penso que sai um pouco desgastada pelo comportamento presidencial, sem dúvida nenhuma. Mas mesmo com algum desgaste, ela segue muito preservada.

BBC News Brasil - Quais os pontos mais sensíveis, na sua opinião, que deveriam ser observados pelo novo governo do presidente Lula para evitar tensões com os militares?

Santos Cruz - Eu não vejo muita dificuldade. Você tem que manter um orçamento, tem que manter os projetos estratégicos das Forças Armadas e tem que prestigiar a hierarquia e disciplina, que são a base das Forças Armadas. Tem que evitar qualquer discurso político no interior de unidades militares [...] O discurso tem que ser de incentivo profissional e não sobre política partidária [...] é preciso manter os projetos especiais, talvez até fazendo um orçamento fora do regular. É respeito institucional. Fui oficial no governo do presidente Fernando Collor de Mello que sofreu impeachment, no tempo do presidente Lula, da ex-presidente Dilma Rousseff, de Michel Temer e José Sarney e sempre houve um relacionamento bom e respeitoso. É isso que tem que ser feito. O atual presidente eleito sabe disso. Ele tem experiência de dois mandatos e sabe qual é o relacionamento com as Forças Armadas e como ele se mantém respeitoso.

BBC News Brasil - Em geral, a esquerda é criticada por supostamente tensionar as relações com os militares, mas as Forças Armadas vêm usando a ordem do dia referente ao dia 31 de março para celebrar a data em que ocorreu o golpe militar de 1964. O senhor acha que usar a ordem do dia nesse contexto contribui para esse tensionamento?

Santos Cruz - Sobre o 31 de março de 1964, eu tinha 12 anos de idade na época. Então, eu vivi dos 12 aos 33 anos de idade dentro do período dos governos militares. Eu tenho uma boa imagem daquela época. Só que isso também não significa que aquilo seja um modelo político a ser seguido. Não é. Foi um período de exceção. Temos que entender que por melhor que seja a imagem do período, aquele período não serve como modelo político porque foi uma época de exceção.

Tem que haver entendimento dos dois lados. [...] Estamos falando de um período que ocorreu há quase 60 anos. Era outro mundo, eram outras condicionantes políticas, outra política internacional, outras tensões internas.

Foi uma decisão daquela época e eu penso que, naquela época, foi a decisão correta. Eu sou dessa geração. Então, (fazer) uma análise agora, 60 anos depois, é completamente diferente. Agora, tem que haver entendimento dos dois lados. Só que como tem muita gente viva que participou (daquele período), particularmente o pessoal que era dos movimentos revolucionários de guerrilha, então ainda existem os problemas pessoais… ainda é uma história muito viva e precisa haver um pouco de tolerância e conversa.

BBC News Brasil - O senhor disse que, naquele contexto, o golpe de 1964 foi a decisão correta a se tomar. Hoje, sabe-se que durante esse período, que o senhor mesmo classificou como período de exceção, houve tortura, desaparecimentos, assassinatos. O senhor acha que essas práticas também foram corretas à luz daquele momento?

Santos Cruz - Claro que não. O que está errado está errado. Uma coisa é fazer uma análise política, outra coisa é pegar determinados fatos que aconteceram. É claro que está errado. Temos que ser muito honestos nesta análise.

BBC News Brasil - Recentemente, houve o lançamento de um filme chamado Argentina 1985, que conta a história do julgamento de membros da junta militar que comandou a Argentina entre o final dos anos 70 e o início dos anos 80. Tenho duas perguntas. A primeira é: o senhor viu o filme? A segunda é: no Brasil, pela Lei da Anistia, esse tipo de julgamento não ocorreu. O Brasil errou ao não julgar os militares envolvidos em graves violações de direitos humanos durante o período da ditadura militar?

Santos Cruz - Em primeiro lugar, eu não vi o filme. Em segundo lugar, a sociedade argentina decidiu dessa forma. Já a sociedade brasileira decidiu pela anistia e eu acho que foi o correto porque você tem que pacificar o país [...] eu acho que o Brasil acertou na sua busca pela paz, pelo processo de anistia. Já a sociedade argentina, com outra característica, uma outra paixão política, com outra alma, decidiu de outra forma. Não vou comparar porque são sociedades distintas que decidiram por um caminho que elas acharam melhor.

BBC News Brasil - Na semana passada, comandantes das três forças militares divulgaram uma nota em que voltaram a usar o termo moderador para classificar a atuação dos militares dentro do dentro da democracia brasileira. Na Constituição Federal, porém, não existe poder moderador. Minha pergunta é: por que parte dos militares insiste em propagar a ideia de que as Forças Armadas seriam os moderadores da democracia brasileira?

Santos Cruz - Isso aí tem origem e consequências. Em primeiro lugar, nós tivemos uma interpretação de um jurista, o Ives Gandra Martins, que ressuscitou, faz algum tempo, a ideia de que as Forças Armadas seriam um poder moderador. O Brasil não tem poder moderador. O que está escrito na Constituição não dá nenhuma pista, nenhum direito explícito de que as Forças Armadas possam interferir no funcionamento dos outros poderes. Qualquer interpretação de que as Forças Armadas são um Poder Moderador está completamente errada, completamente equivocada. Qual é o nosso poder moderador? Nossa Constituição, nossas leis, nossos parlamentares, nosso Judiciário e nosso Executivo com todos os defeitos que eles têm. Eles são obrigados a procurar uma conciliação. Eles são obrigados a procurar a harmonia prevista na Constituição sem interferência da área militar.

BBC News Brasil - Na sua avaliação, os comandantes das três forças erraram ao utilizar o termo moderador para classificar o papel das Forças Armadas na democracia brasileira.

Santos Cruz - Eu teria que reler a nota agora. Eu olhei muito por cima. O termo traz esse trauma. Tem que ver se foi isso exatamente o que eles queriam dizer. Acredito que não foi utilizado com a ideia de interferência porque não tem como interferir. A população elegeu um novo Congresso. Então, esse Congresso tem que tomar consciência da atribuição dele e é isso que vai moderando e regulando o relacionamento. Então, eu não acredito que eles tenham colocado esse termo uma ideia de interferência.

BBC News Brasil - O Ministério da Defesa divulgou um relatório sobre o sistema eletrônico de votação do Brasil. Nenhuma fraude foi apontada, mas no dia seguinte, após repercussão negativa entre apoiadores do presidente Bolsonaro, o Ministério da Defesa soltou uma nota dizendo que, apesar de não ter encontrado nenhuma fraude, não poderia descartar a sua ocorrência. Como o senhor analisa a participação dos militares ao longo dessas eleições? Ela foi adequada ou contribuiu para tensionar o ambiente político?

Santos Cruz - Não foi adequada e eu acho que contribuiu para a confusão. O erro começa quando convidam as Forças Armadas para participar do processo. O outro erro é quando as Forças Armadas aceitam (o convite). A responsabilidade de transmitir segurança no processo para a sociedade brasileira é do TSE e não das Forças Armadas. Ele (TSE) tem um conjunto de instituições que fazem essa avaliação [...] Você tem a Unicamp, UnB, USP, partidos políticos, Polícia Federal [...] Não era o caso das Forças Armadas participarem. Muito menos num ambiente politizado.

Sobre o relatório técnico, eu não tenho conhecimento para analisar o parecer. Só que depois saiu uma nota que fala: 'Não posso comprovar, mas não posso descartar'. Num ambiente desses, você tem que ser muito mais taxativo. Você tem que dizer: 'Não existe condições de comprovar a fraude'. Porque essa é a dúvida da população. Você precisa deixar isso claro. E essa dubiedade dá chance para extremistas de um lado interpretarem de um jeito e os extremistas de outro interpretarem de outro. Isso acaba não colaborando com a pacificação das coisas.

BBC News Brasil - Na sua avaliação, os militares brasileiros estariam dispostos a embarcar em uma nova empreitada de Bolsonaro nas urnas, em 2026?

Santos Cruz - Então Não. De jeito nenhum. Não embarcaram antes e nem embarcarão depois. Agora, cada um tem sua opção política. Não tem nada de errado em um eleitor optar por um candidato ou por outro. Não podemos criticar um eleitor porque ele escolheu Bolsonaro, Lula, Simone Tebet, ou seja lá quem for. E não se pode nem criticar quem anulou o voto porque ele anulou o voto por não se sentir representado. Por isso tem a tecla de anulação. Então, eu acho que os militares nunca embarcaram, não vão embarcar em ondas pessoais e vamos respeitar todo mundo que votou num candidato ou em outro. Seja ele militar ou civil.

BBC News Brasil - Civil ou militar: qual o melhor perfil para o comando do Ministério da Defesa?

Santos Cruz - Civil ou militar? Que ele seja competente, seja ele civil ou militar. Não adianta você colocar um civil ou militar que seja incompetente.

BBC News Brasil - Além do senhor, um dos generais mais conhecidos do Brasil é o general da reserva Eduardo Villas Boas. Em 2018, ele publicou um tuíte que foi encarado por alguns analistas como uma ameaça ao STF às vésperas do julgamento de um recurso da defesa do ex-presidente Lula contra a sua prisão. Mais recentemente, ele voltou ao Twitter para se manifestar sobre a eleição do presidente Lula. Qual sua avaliação sobre a conduta de Villas Boas?

Santos Cruz - Villas Boas é uma pessoa por quem eu tenho uma amizade muito especial. Sobre aquela manifestação na época do julgamento no STF, a responsabilidade ficou com ele. Na época, apesar de ser comandante do Exército, ele disse em um livro que consultou os demais (membros do Alto-Comando do Exército), então mais tarde ficou parecendo uma coisa institucional. Mas na época em que ele fez (a postagem), explicou, não ficou institucional. E eu não acredito que o STF se intimidou com aquilo.

BBC News Brasil - Mas isso faz diferença?

Santos Cruz - Faz, porque tem gente que pensa que o STF votou o recurso por conta do tuíte. Não tenho a mínima sensação de que o STF se influenciou por aquilo. Agora, a manifestação mais recente dele de que reprovava a eleição do Lula, eu não vejo assim. Eu li e não achei tão clara essa reprovação. Ele falou mais sobre o nosso problema, essa disputa toda apesar de as eleições já terem acabado. Parece que não terminou.

Mas acho que tem que respeitar a eleição. A maioria do povo brasileiro votou e acho que tem que respeitar. Não tem motivo para não respeitar. Pode até cometer as dificuldades de aceitação de quem perdeu. Mas tem que respeitar essa eleição como todas as outras foram respeitadas. Villas Boas é um amigo, uma liderança muito grande, mas eu vejo dessa forma os tuítes dele de 2018 e de agora. No entanto, qualquer referência que possa confundir a população com a aceitação do resultado eleitoral, eu acho que dificulta o bom andamento.

BBC News Brasil - Não ficou claro para mim, general, qual é a sua opinião sobre o tuíte dele na época do julgamento do STF?

Santos Cruz - Acho que o tuíte dele não interferiu em nada o STF. Não é com um tuíte que você vai interferir no STF.

BBC News Brasil - Mas independente de ter interferido ou não, a dúvida é: a atitude dele como comandante do Exército na época foi correta ou não?

Santos Cruz - Olha, eu não vou analisar a correção porque ele estava numa função de comando onde há responsabilidades políticas e não só operacional. Eu não me manifestaria. Já ele se manifestou, mas tem que ver quais as condicionantes dele na condição de comandante de uma força armada que era diferente da minha que estava na reserva.

- Este texto foi publicado em https://www.bbc.com/portuguese/brasil-63711057


“O bolsonarismo está diretamente relacionado ao aprofundamento do racismo no Brasil” - Foto: Christian Parente | Divulgação

Silvio Almeida: “Vamos ter que desbolsonarizar o Brasil”

Osvaldo Lyra | A tarde

O professor Silvio Almeida é um dos principais pensadores brasileiros da atualidade. Além de filósofo e advogado tributarista, ele estuda as relações raciais no pais e é enfático ao afirmar que “o racismo é uma questão estrutural, no sentido de que o racismo organiza as hierarquias sociais, a vida cotidiana, organiza o imaginário brasileiro”.

Integrante da equipe de transição do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva, ele diz, nessa entrevista exclusiva ao A TARDE, que o “bolsonarismo está diretamente relacionado ao aprofundamento do racismo”. “Vamos ter que desbolsonarizar o Brasil”, disse o filósofo, ao enfatizar que “a vitória de Lula abre espaço para a recomposição da democracia”.

Questionado sobre como pensar uma política de segurança pública e as questões raciais diante do contexto atual, Silvio Almeida diz que a “segurança tem que ser repensada sob o prisma da igualdade racial”. “Política de segurança pública é política de direitos humanos”.

Confira:

Vivemos em uma sociedade ainda muito preconceituosa, onde a capacidade das pessoas muitas vezes é medida pela cor da pele. No entanto, a gente está no mês da consciência negra. É importante pensar em ações afirmativas, ainda mais falando para a Bahia, falando para Salvador, que é a cidade mais negra fora da África?

Eu acho que o mês da consciência negra tem papel crucial para que nós possamos mergulhar na compreensão da condição negra não só no Brasil, mas no mundo. Porque a condição negra daqui também se conecta fortemente com o ser negro no mundo. E mais do que isso, as circunstâncias em que o mundo se encontra expande a importância do mês da consciência negra e a própria ideia de consciência negra. Eu digo isso porque nós estamos vivendo um contexto de crise. Quando a gente fala de crise, nós estamos falando, portanto, de um contexto em que a grande baliza civilizatória, as grandes crenças... Eu não falo de religião, eu falo das nossas crenças das instituições políticas, da regularidade da vida econômica, das nossas balizas éticas. Tudo isso está em xeque agora diante de um desarranjo que vai levando as pessoas ao desamparo, ao desespero. As condições precárias, as condições de vida, de existência rebaixadas que o racismo renegou aos negros do mundo passam a servir de parâmetro para a destruição de outras vidas que não apenas vidas negras. Isso é importante. Então, o mês da consciência negra é uma reflexão sobre a condição negra no mundo, mas é uma reflexão, e quando eu falo de reflexão não é só um olhar passivo, mas também a formulação de estratégias políticas para que nós possamos, ao pensar na condição negra, pensar também na superação dos grandes problemas da humanidade. Por isso que esse mês da consciência negra, principalmente no contexto brasileiro, em que nós estamos no período de transformação, de mudanças, uma nova fase do Brasil, é também o chamado para que nós pensemos a condição negra como condição existencial, e nesse sentido, pensar também os rumos da humanidade e do Brasil. E não é só pensar sobre as ações afirmativas. Mas pensar também em como o racismo cria um déficit naquilo que nós chamamos de humanidade. Como ele inviabiliza a criação de uma humanidade que seja projetada em direção ao futuro. 

Em seu livro “Por uma outra globalização”, o professor Milton Santos reflete sobre a globalização com fábula, com perversidade, a globalização como possibilidade, nos convidando justamente a uma nova construção global. É chegada a hora de acabarem as barreiras que impedem a igualdade entre os povos, com mais oportunidade e acesso a todos?

Sim. O professor Milton Santos, que é uma grande referência intelectual, há muitos anos enxergou isso que a gente falava. Ou seja, quando ele anunciou a necessidade de se pensar numa nova globalização, ele estava justamente falando sobre pensar uma nova forma de relações econômicas e sociais a partir desse modelo existente hoje. ]

Eu estou falando do quê? Eu estou falando que o professor Milton Santos está nos convidando a pensar como vai ser fundamental que nós mudemos a forma com que nós reproduzimos a nossa economia, além da maneira com que nós organizamos nossas instituições políticas e como elas são baseadas na violência, na repressão, na discriminação. Isso em nome de um determinado modo de organização da economia.

 Ele está nos convidando, portanto, a redesenhar, a reconfigurar a nossa forma de relação uns com os outros e a nossa forma de relação com o planeta. Ele está olhando para o regional, para o local, mas ele entende que tanto o regional como o local são resultado de uma interação com o global. Genial. 

A gente vive um tempo de retrocessos, nas mais variadas áreas, ao longo dos últimos anos do governo Bolsonaro. Qual o impacto desses acontecimentos nas discussões raciais do país, em especial nos partidos progressistas e nas instituições democráticas de direito?

Bolsonaro é um sintoma. É importante dizer isso. O bolsonarismo é um sintoma de um país que tem problemas estruturais muito graves, que carrega consigo pendências que não se resolveram ao longo da história, que se juntam mais uma vez em um contexto global de crise que vai certamente levando à ascensão de fascismos e de versões mais diferentes da extrema direita. E a nossa versão da extrema direita, a nossa versão do fascismo damos o nome de bolsonarismo.

Ou seja, é a soma das nossas deficiências estruturais, da decadência das nossas instituições políticas, e também de uma soma de sentimento de precarização da vida. O Brasil é um país que não consegue vencer a dependência econômica, o que se reflete na desigualdade profunda, reflete na precarização do trabalho, reflete nessa tentativa frequente de captura do orçamento público por parte de grupos específicos, grupos privados, empresários. E isso reflete também na violência social. Isso é a dependência econômica.

O segundo problema é a nossa aversão à participação popular nos processos políticos, ou seja, uma aversão à democracia, o autoritarismo. Nós não conseguimos criar espaços públicos de resolução de processos, formas de participação popular efetiva. ]

Então, vejam como o bolsonarismo se alimenta muito disso. E, por fim, a questão fundamental que é sua pergunta: o racismo. O racismo é uma questão estrutural no Brasil, no sentido de que o racismo organiza as hierarquias sociais, organiza a vida cotidiana, organiza o imaginário brasileiro. 

Então, não tenha dúvida. O bolsonarismo está diretamente relacionado ao aprofundamento do racismo no Brasil, ao racismo escancarado, e eu vou ser mais direto ainda. Eu acho que o bolsonarismo traz para o Brasil de maneira aberta, de uma maneira mais forte algo que é tipicamente dos países como os Estados Unidos, países da Europa e África do Sul.

Ou seja, o que você tem com o bolsonarismo é o flerte com a extrema direita racista nazifascista internacional e uma construção de um pensamento de supremacia branca no Brasil. O detalhe é que eles não estavam bem delineados na realidade brasileira. Nós estamos falando de supremacismo branco, e uma espécie de demonstração escancarada de que se pensa os negros, indígenas a partir de um prisma de inferioridade.

Então, eu acho que está tudo ligado. A dependência econômica, a aversão à democracia, o autoritarismo, o racismo são problemas estruturais no Brasil que se aprofundam no momento de crise e que o bolsonarismo é o veículo fundamental disso. Uma coisa que eu acho que é nossa tarefa nos próximos anos é, tal como os alemães tiveram a tarefa de desnazificar a Alemanha, nós vamos ter que desbolsonarizar o Brasil.

Qual o papel do poder público no combate ao racismo e na promoção da igualdade racial no Brasil e como o senhor viu a vitória do presidente Lula para o combate a intolerância e ao próprio racismo estrutural do país?

O poder público tem papel fundamental. Mais uma vez, nós temos que aprender a trabalhar com as contradições e até com os paradoxos. O racismo só consegue se reproduzir se houver a participação das estruturas políticas estatais.

Ou seja, na criação de um imaginário permanente de racismo, de inferioridade dos negros e indígenas no Brasil... É fundamental que haja uma ação estatal em torno disto. As desigualdades que se refletem na vida das pessoas negras no Brasil são também parte de uma ação ou de uma omissão estatal, porque no fim das contas o estado age também se omitindo. E nesse sentido o estado é fundamental, é um território em permanente disputa. E, portanto, é fundamental uma ação estatal no combate ao racismo. Isso tem efeitos mais perversos, que é o extermínio da juventude negra que ocorre no país, nas periferias, nas favelas.

Então, se o estado é capaz de provocar isso, esse mesmo estado em disputa e nas suas contradições, ele tem papel fundamental também para barrar isso. Então, a vitória do presidente Lula é, de fato, uma abertura de caminhos e acho que se abre também a possibilidade de uma disputa por esse território, um estado que a sociedade brasileira tanto clama... Abre-se, com o presidente Lula, a possibilidade de organizarmos programas de redução da desigualdade, abre-se a possibilidade de disputarmos sim programas de proteção à juventude negra.

Ou seja, o presidente Lula nos coloca da melhor maneira possível em uma encruzilhada. O que quer dizer isso? Ele nos coloca, portanto, diante de caminhos e possibilidade, o que é uma coisa boa. Porque até então nós estávamos sem esse caminho, sem essa possibilidade. Então, agora nós precisamos escolher os melhores caminhos, disputar os melhores caminhos nessa encruzilhada que a vitória do presidente Lula nos colocou. Portanto, acho que a perspectiva em torno de um efetivo combate à desigualdade racial no Brasil agora se faz no campo da disputa institucional, o que é muito importante para nós.

O senhor é uma das grandes vozes antirracistas do país e tem boas chances, inclusive, de se tornar ministro do presidente Lula, caso a pasta da Justiça seja desmembrada da Segurança Pública e pode também lá na frente ser indicado para uma vaga no Supremo. Como estão essas articulações?

São especulações. Nada foi conversado a respeito disso. Isso é uma decisão que cabe única e exclusivamente ao presidente Lula, que pelo que eu saiba ainda não tomou nenhum tipo de decisão. O que eu posso dizer pessoalmente é que eu estou na equipe de transição para ajudar o Brasil da melhor maneira possível. E a equipe de transição serve para fazer um diagnóstico sobre o estado de coisas que se encontram no Brasil, depois da devastação que foi o governo Bolsonaro nos últimos 4 anos.

Então, o que nós vamos fazer, junto com os companheiros e companheiras da equipe de transição, é entregar ao presidente Lula esse diagnóstico, colocando todos os nossos melhores esforços para que ele possa tomar as decisões que lhe cabem e que são resultado do mandato que o povo brasileiro deu a ele.

Em relação a mim, nada posso dizer, nada foi decidido, nada foi resolvido. Não há nenhuma articulação nesse sentido e, mais uma vez, essas decisões são tomadas única e exclusivamente pelo presidente Lula e a sua equipe e estou à disposição para servir ao Brasil agora na equipe de transição na área de direitos humanos.

Como pensar uma política de segurança pública e as questões raciais diante do contexto atual do Brasil, além dos problemas estruturais, sistêmicos, históricos e sociais das causas da violência que sempre acaba penalizando jovens, negros e a população menos favorecida?

Não existe política de segurança pública que não passe por uma redistribuição do que nós entendemos por segurança. Segurança de quê? Segurança para quem? Nós pensamos segurança no Brasil como segurança para o patrimônio e segurança para as instituições e para o estado. O que nós temos que pensar agora é segurança para as pessoas. Segurança para os negros, para os indígenas.

Então, veja, o estado brasileiro historicamente tem sido veículo de desorganização da vida comunitária. O estado tem entrado nas comunidades, desorganizado a vida das pessoas em nome da segurança. Segurança dos mais ricos, dos brancos, dos moradores dos centros urbanos e das localidades mais ricas e mais abastadas da sociedade.

O que nós precisamos fazer a partir de agora é redefinir a ideia de segurança para pensar a segurança como um veículo, primeiro, de organização comunitária. Segundo, a segurança tem que ser pensada a partir de um prisma necessariamente antirracista.

Não existe a possibilidade de pensar segurança se não pensar também como a gente consegue colocar na agenda da chamada segurança pública políticas antirracistas. Eu quero dizer que o racismo é um fator de insegurança social, um fator de conflito.

Então, toda política de segurança pública que não pense na questão racial está simplesmente realimentando os instrumentos de violência e fazendo com que o estado, mais uma vez, desorganize a vida comunitária e coloque as pessoas dentro de um prisma de insegurança. Então, a gente tem que rever isso. Rever a nossa noção de segurança e, a partir daí, criar os instrumentos sociais para proteger a vida das pessoas mais pobres, para proteger a vida dos negros. E parece uma coisa muito comum, parece uma coisa trivial, mas não é trivial.

Porque, veja, o aparato de segurança não é utilizado para que as pessoas negras, as populações mais fortes sejam protegidas. Então, como é que a gente consegue criar formas, sistemas de proteção? Outra coisa que eu acho fundamental: no Brasil, precisamos ressignificar a relação entre segurança e território.

Nós precisamos estender aos territórios das favelas, das periferias, dos lugares mais pobres, mais afastados, precisamos estender também essa possibilidade de que as pessoas sejam respeitadas. Eu estou dizendo isso porque eu considero, por exemplo, que uma política de direitos humanos no Brasil não pode ser só uma política que levante bandeiras éticas e diga o seguinte: olha, nós respeitamos os direitos humanos. Não é isso. Nós precisamos, portanto, fazer da política de direitos humanos, que é uma política de segurança pública, tem que estar conectado.

Política de segurança pública é política de direitos humanos. Nós precisamos, portanto, fazer com que isso seja difundido também ideologicamente. Então, é uma disputa ideológica. No sentido de dizer que a forma correta de se pensar segurança é pensar a partir de uma política que respeita os direitos humanos. E quem não entender isso, eu falo inclusive das autoridades, tem que ser responsabilizado. Falar de direitos humanos não quer dizer que não tenhamos que usar a força do estado, que nós não tenhamos que ser mais duros. Mas essa dureza, essa força tem que ser usada para proteger as pessoas de populações mais vulneráveis.


Foto: reprodução Metrópoles | Mario Sérgio Telles / reprodução Metrópoles

Reforma tributária: CNI defende Imposto sobre Valor Agregado Único em 2023

Deborah Hana Cardoso | Metrópoles

Defendido pela indústria e pelo setor financeiro e considerado o “filé mignon” das propostas já apresentadas, o Imposto sobre Valor Agregado (IVA) Único deverá reunir uma gama de tributos federais, estaduais e municipais em uma única alíquota. O novo governo já sinalizou que pretende retomar as discussões sobre uma reforma tributária no próximo ano.

Os parlamentares, no entanto, discutem duas opções: se seria aplicado o IVA Único, que reuniria todos os impostos em uma única alíquota; ou o Dual, que faria a distinção entre impostos federais e estaduais. “A CNI defende o IVA Único, como alavancador do crescimento econômico no Brasil”, explicou ao Metrópoles o gerente-executivo de economia da Confederação Nacional da Indústria (CNI), Mário Sérgio Telles (imagem em destaque).

As pretensões da indústria, porém, esbarram em muitos fatores: governos federal, estadual, municipal; serviços; agro; e população. “São interesses conflitantes, que dificultam a reforma”, avalia Telles.

“Governos, estados e municípios – cada um briga para arrecadar mais. Tem as empresas, que buscam simplificação para pagar menos e ganhar mais; e o consumidor, que quer pagar menos”, explicou Jules Queiroz, doutor em direito econômico, financeiro e tributário pela Universidade de São Paulo (USP).

De acordo com Telles, o governo Lula já fez acenos positivos em relação à pauta. “Há manifestações favoráveis internas dentro do governo eleito, como Simone Tebet e o próprio Geraldo Alckmin. Também existe apoio para a reforma em diferentes níveis, incluindo integrantes do PT e da ala técnica; Pérsio Arida é favorável”, afirma.

“Ela [a reforma tributária] ajudará o Brasil a crescer. Tem efeito na produtividade, simplifica, reduz custos, evita a guerra fiscal”, disse o vice-presidente eleito, Geraldo Alckmin (PSB), ao jornal O Globo.

Telles foi questionado se o nome escolhido para o Ministério da Fazenda poderia influenciar o andamento da pauta no Congresso. “Não vejo que o próximo ministro seja um problema para o avanço da reforma tributária; é uma pauta que tem um apoio amplo”, declarou.

A reforma precisa andar no período da “lua de mel” do governo, ou seja, nos primeiros seis meses de 2023, quando há popularidade do presidente eleito e “boa vontade” do Parlamento. Outras gestões, inclusive a de Bolsonaro, não conseguiram avançar com a pauta. “O governo de Jair Bolsonaro autossabotou a própria reforma, pois o debate do IVA estava mais maduro, e Paulo Guedes insistiu em uma CPMF”, explicou Telles.

Impostos e federalismo

Especialistas ouvidos pelo Metrópoles consideram que a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) nº 110/2019, que pretende criar o Imposto sobre Valor Agregado (IVA), apresenta o texto mais “maduro”. O projeto segue o modelo francês de tributação, que está vigente no país europeu desde 1930 e deve desembarcar no Brasil quase 100 anos depois.

O IVA Único substituiria PIS (Programa de Integração Social), Cofins (Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social), Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI), Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) e Imposto Sobre Serviços (ISS). “O IVA, diferentemente da Contribuição Social de Bens e Serviços (CBS), é o filé da discussão.”

A PEC nº 110/2019 une todos os tributos da Federação – não só os federais, como queria Paulo Guedes [com a CBS]”, explicou Jules Queiroz.

“Uma reforma tributária deve tributar o consumidor, e não a origem, o que beneficiaria o Nordeste e o Norte. Mas isso faria o Sul e o Sudeste perderem muito. Isso tem que ser conversado, implementado de forma gradual, para que a Federação seja reequilibrada”, completou Jules.

O popular IVA Único também recebe críticas. “Há preocupação com o federalismo brasileiro, em se manter a autonomia administrativa dos estados e municípios”, disse o advogado tributarista Bruno Teixeira, sócio do escritório Tozzini Freire Advogados. “O [IVA] Dual se adapta melhor às necessidades do federalismo brasileiro”, observou Jules.

“A reforma tem de levar em consideração as desigualdades regionais […]. Há estados que dependem de incentivos fiscais para a manutenção de sua atratividade, como a Zona Franca de Manaus”, finalizou Bruno Teixeira.


Foto: Reprodução Brasil de Fato | Brasil usa agrotóxicos proibidos na União Europeia - Foto: Getty Images

Relator da ONU falará ao Senado nesta terça (22) sobre "Pacote do Veneno"

Cristiane Sampaio | Brasil de Fato

O relator especial da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre Tóxicos e Direitos Humanos, Marcos A. Orellana, falará ao Senado na próxima terça-feira (22) durante audiência pública sobre o "PL do Veneno". O emissário foi convidado pelos parlamentares da Comissão de Agricultura e Reforma Agrária (CRA), onde tramita atualmente o Projeto de Lei (PL) 1459/2022.

A proposta, que modifica o marco legal sobre pesticidas no Brasil e facilita o registro desse tipo de produto, está sob a alçada do Senado desde junho deste ano, após aprovação na Câmara dos Deputados.  

O texto tem alta impopularidade, especialmente entre segmentos do campo, ambientalistas e outros especialistas que alertam para os riscos do consumo de agrotóxicos. A proposta figura entre os destaques da agenda defendida pela bancada ruralista e é de autoria do ex-senador e ex-ministro da Agricultura Blairo Maggi, filiado ao PP, um dos expoentes da elite agrária nacional.

A audiência do dia 22 foi solicitada pelos senadores Paulo Rocha (PT - PA), Zenaide Maia (Pros-RN), Jean Paul Prates (PT-RN), Eliziane Gama (Cidadania-MA), Dário Berger (PSB-SC) e Acir Gurgacz (PDT-RO). O evento deve contar também com a presença de representantes da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), do Ministério da Agricultura (Mapa) e do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama).

O agendamento da sessão tem como pano de fundo o ímpeto da Frente Parlamentar Agropecuária (FPA), que tenta fazer o PL avançar na Casa, e também as manifestações já feitas pela ONU a respeito do tema. Em junho deste ano, por exemplo, uma nota de especialistas do organismo chegou a pedir ao Senado que rejeitasse o PL 1459.

O grupo destacou, na ocasião, que a eventual aprovação seria um retrocesso ambiental no país, que já vem acumulando uma série de problemas na área de meio ambiente, especialmente nos últimos quatro anos. Entre outras pontos, a ONU afirmou, no documento, que é falsa a ideia de que a adoção de agrotóxicos seja necessária à alimentação do planeta.

O relator  

Dedicado ao tema das consequências causadas pela gestão ambientalmente correta e pelo descarte de substâncias e resíduos perigosos, Marcos A. Orellana tem atuação focada na área de direitos humanos. A expectativa é de que, ao participar da audiência, ele aponte aspectos que permeiam a utilização de agrotóxicos, como é o caso do risco que oferecem para o lençol freático, a produção de alimentos saudáveis e as comunidades que vivem no seu entorno.

O relator já se pronunciou criticamente a respeito do assunto em outros momentos. Em entrevista concedida ao Brasil de Fato em junho deste ano, ele destacou, por exemplo, que o "Pacote do Veneno" pode se tornar uma das legislações mais permissivas do mundo aos agrotóxicos, qna comparação do Brasil com os demais membros da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).

"Não há dúvida de que foi feito sob medida para os interesses de um poderoso lobby agroindustrial, em detrimento dos direitos básicos de todos à saúde, à integridade física e ao meio ambiente saudável", afirmou Orellana.

Edição: Thalita Pires

Matéria publicada originalmente no Brasil de Fato


Foto: reprodução Flickr

O encaminhamento da questão fiscal

Benito Salomão* | Folha UOL

Com o processo de transição de governo em curso, ganha relevância agora o encaminhamento da questão fiscal, dado o teor das promessas realizadas durante a campanha.

Em artigo publicado nesta Folha ("Os limites eleitorais do déficit público", 3/9), argumentei, com base em revisão da literatura empírica mais recente, que o manuseio eleitoral de expansões fiscais não seria suficiente para eleger o incumbente Jair Bolsonaro (PL). O alerta vale também para o governo que começará a partir de 2023, de forma que Luiz Inácio Lula da Silva (PT) será tão mais bem-sucedido em seu terceiro mandato quanto mais capaz for de conciliar agenda social com responsabilidade fiscal.

A boa notícia é que responsabilidade social e fiscal não são agendas antagônicas. Lula foi eleito prometendo aumentar o salário mínimo e manter o valor de R$ 600 para o Auxílio Brasil, além de ampliar o benefício em R$ 200 para famílias com crianças de até seis anos. Todas as agendas com elevado impacto fiscal. Para encaminhá-las, além de outras promessas que irão demandar recursos, o governo está negociando com o Congresso mudanças no Orçamento de 2023, o que pode ser alvo de críticas de setores mais fiscalistas da opinião pública.

É importante salientar, no entanto, que o equilíbrio fiscal é um problema de otimização dinâmica. Ou seja: em modelos macroeconômicos dinâmicos, uma expansão fiscal de curto prazo das despesas públicas, a fim de fazer face a algumas necessidades, pode não ter efeitos duradouros no tempo e, portanto, não comprometer a sustentabilidade fiscal de longo prazo.

Nesses modelos, agentes formam expectativas acerca do comportamento futuro da economia. Se eles creem que uma expansão fiscal terá efeitos duradouros, passam a projetar juros e impostos mais altos, tomando posições defensivas quanto a consumo e investimento. Se, por outro lado, o governo é crível e sinaliza que a expansão fiscal estará contida em um momento do tempo, isso estimula a confiança dos agentes, que passam a cooperar com o governo em suas decisões de consumo e investimento.

Para que os fiscalistas empedernidos sejam convencidos de que o plano social de Lula não irá impor custos fiscais de longo prazo, o novo governo deverá sinalizar com uma nova regra. O teto de gastos foi a regra fiscal vigente até 2021, quando morreu após a PEC dos Precatórios. Isso custou uma sensível piora do ambiente macroeconômico brasileiro, com juros e inflação altas, além de câmbio depreciado.

Uma nova regra fiscal —sinalizada já na transição e com foco na contenção do gasto obrigatório a partir de 2024 (independentemente dos detalhes técnicos)— pode ser o ingrediente que falta para que Lula ponha em prática suas promessas de campanha, ganhando confiança, acomodando expectativas e permitindo a queda dos juros e da inflação, além do fortalecimento do real.

*Benito Salomão é Doutor em economia (UFU)

TENDÊNCIAS / DEBATES
Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo.

Artigo publicado originalmente no Folha UOL


Foto: reprodução DW Brasil | Sergio Lima / AFP

Movimento negro cobra maior representatividade sob Lula

Edison Veiga | DW Brasil

Para falar sobre as expectativas do movimento negro frente ao governo do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva, o filósofo e teólogo David Santos remete à primeira passagem do petista pelo Planalto. 

"A inclusão dos afro-brasileiros foi a primeira lei assinada pelo presidente Lula em 2003. É uma ação afirmativa potente e necessária", comenta o frade franciscano, fundador e diretor-executivo da organização Educafro Brasil, que já ajudou mais de 100 mil negros jovens a terem acesso ao ensino superior.

Santos se refere à lei 10.639, de 9 de janeiro daquele ano, que estabeleceu a obrigatoriedade do ensino de história e cultura afro-brasileira nos ensinos fundamental e médio e determinou que o dia 20 de novembro fosse reconhecido pelo calendário escolar como Dia da Consciência Negra.

Ele também reconhece que naquele ano começou um debate mais intenso a respeito da importância da instituição das cotas raciais para acesso às universidades — medida que já vinha sendo tomada de forma avulsa e gradual por algumas instituições de ensino, mas que só se tornou regra a nível nacional em 2012, já no governo Dilma Rousseff.

No atual período de transição para o terceiro governo Lula, ativistas do movimento negro vivem grande expectativa de mudanças.

"Historicamente, a sociedade brasileira tem mais tempo negando a gravidade das desigualdades raciais do que as combatendo. Nesse sentido, o que se pode esperar do novo governo Lula é uma disposição para aprender com os erros cometidos anteriormente, o que precisará se reverter na desnaturalização da ausência ou da subrepresentação negra em espaços de decisão", defende a historiadora Ana Flávia Magalhães Pinto, colaboradora da Geledés - Instituto da Mulher Negra, integrante da Rede de Historiadoras/es Negras/os e professora da Universidade de Brasília (UnB).

Participação no governo

A historiadora acredita que "não se pode mais insistir no equívoco de circunscrever o enfrentamento do racismo basicamente a uma secretaria com status de ministério e uma fundação", em referência à Secretaria Nacional de Políticas de Promoção da Igualdade Racial e à Fundação Cultural Palmares. E cobra que a luta antirracista esteja presente em todo "o desenho da gestão pública".

Diretor do Instituto Luiz Gama, o advogado Julio César Santos, pede uma maior participação de negros em postos do governo.

"É necessário que o governo Lula tenha a compreensão de que a maioria dos que o elegeram foram os negros, que compõem 56% da população brasileira", argumenta. "Nesse sentido, este público gostaria de simbolicamente se ver representado nos ministérios, não somente em um possível ministério da Igualdade Racial, mas também em outras pastas estratégicas, como o Ministério da Economia, Educação, Justiça, Direitos Humanos, Defesa, Cultura, Esportes, entre outros."

Para o advogado, o Brasil tem "negros e negras extremamente preparados intelectualmente para assumir cargos e desenvolver suas funções", mas esbarra em um "drama, tanto em governos da esquerda quanto na direita: a manutenção dos privilégios nos atos de mando nas lideranças brancas, excluindo as possibilidades de representatividade negra governamental".

Doutorando na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), o professor e historiador Philippe Arthur dos Reis vê como naturais as demandas por mais espaço do movimento negro, diante do contexto atual.

"Todas as minorias políticas sub-representadas têm uma grande expectativa frente a esse novo governo Lula. Foi uma eleição difícil, e o estado em que o Brasil está hoje, de destruição completa das contas públicas e das instituições de representação, cria uma expectativa muito grande com relação o que o governo vai promover e à forma como isso vai ser promovido", analisa.

Nesse sentido, Reis acredita que será muito importante acompanhar as posturas do novo governo frente a questões como a reserva de cotas raciais e outras políticas afirmativas instituídas.

Retrocessos sob Bolsonaro

Os ativistas e pesquisadores ouvidos pela DW foram unânimes em citar medidas e posturas do atual governo do presidente Jair Bolsonaro como retrocessos para a luta antirracista no Brasil. Lembraram, por exemplo, que o jornalista Sérgio Camargo, que presidiu a Fundação Cultural Palmares de 2019 a março deste ano, negou em diversas situações a existência de racismo estrutural no Brasil.

Também comentaram declarações antigas do próprio Bolsonaro, como a de que ele não corre o risco de ter uma nora negra porque seus filhos "foram muito bem educados". Esse tipo de discurso, avaliam os militantes, legitima manifestações e atos racistas por parte de setores da população.

Em termos práticos, César Santos acredita que o principal retrocesso do governo Bolsonaro no sentido de incluir e dar possibilidades de inserção social aos negros tenha sido a letargia, em um processo que ele define como "a política é não desenvolver a política".

"Como o governo Bolsonaro não reconhece que o Brasil tem um problema racial, ações governamentais nesse sentido foram paralisadas", analisa o advogado. "Não tivemos nenhum encontro de entidades negras promovido pelo Estado, a discussão da manutenção da Lei de Cotas no Ensino Superior não foi pautada pelo governo, as famílias negras, principais beneficiadas pelo programa Minha Casa Minha Vida, infelizmente observaram o desmonte do programa para famílias de baixa renda… Podemos observar, com a ausência de políticas habitacionais, o aumento de famílias negras em situação de rua."

Lembrando que os negros são maioria entre os estimados mais de 33 milhões de brasileiros que passam fome e as mais de 688 mil vítimas da pandemia de covid-19 no país, o advogado afirma que, nos últimos quatro anos, "a necropolítica se fez presente".

"Estabeleceu-se como política de Estado quais seriam as vidas desprezíveis e desnecessárias e, entre elas, as dos negros foram as principais", argumenta.

Pobreza afeta sobretudo os negros

Coordenadora estadual paulista da Pastoral Afro-Brasileira, a professora Vera Lúcia Lopes enfatiza que, por conta da própria história do país e do racismo estrutural, as pessoas negras são maioria dentre aquelas em situação de vulnerabilidade social. E isso tem de ser visto como prioritário pelo novo governo Lula.

"Há um tanto de pessoas desempregadas e no subemprego, famílias em situação de extrema pobreza… É urgente olhar para isso", enumera. "Tem de priorizar a segurança alimentar porque são muitos passando fome. E a população de rua? Na maioria, são negros. E a cada dia vemos mais famílias em situação de rua."

David Santos concorda e lembra que a volta do Brasil ao mapa da fome acaba vitimando mais o povo negro. "Sabemos a cor da maior parte da população que está nessas condições. São os afro-brasileiros", diz ele.

Lopes pede um resgate de ações humanitárias. Ela argumenta que aqueles que "já tinham a índole para a maldade deixaram aflorar isso graças ao incentivo de um governo que primava pela violência". "A sociedade precisa ser reumanizada com um governo que fale com o coração. Acreditamos que isso é possível", afirma a militante.

"Enquanto houver racismo, não haverá democracia"

Em manifesto publicado em 2021, a Coalizão Negra por Direitos disse que "enquanto houver racismo, não haverá democracia". É endossando esse mote que ativistas esperam uma postura de inclusão e total intolerância a manifestações discriminatórias.

"Nesse sentido, é preciso partir da garantia do direito à vida. Não podemos mais negligenciar a gravidade do fato de que as pessoas negras têm muitas vezes mais chances de morrer que pessoas brancas. Uma política de segurança pública fundamentada na garantia do direito à vida é imprescindível", cobra a historiadora Magalhães Pinto.

"Isso, aliás, está absolutamente articulado com o combate à fome e ao desemprego. Esse enfrentamento articulado das desigualdades demanda um modelo de gestão menos compartimentado", conclui.

https://www.youtube.com/watch?v=MeSqDl7yrMw

Matéria publicada originalmente no DW Brasil


Imagem: reprodução | Metrópoles -or Anna Beatriz Anjos, Caio de Freitas Paes, Júlia Rohden e Matheus Santino

No Brasil, cônsules honorários sob suspeita de lobby, venda de sentenças e grilagem

Metrópoles

Um cargo desconhecido, fora da carreira diplomática, mas que permite alguns privilégios. Esse é o cônsul honorário, um posto voluntário que muitas vezes é usado por pessoas que abusam do status para enriquecer, burlar leis ou fazer lobby político.

Investigações realizadas por jornalistas de 46 países encontraram cerca de 500 cônsules honorários, atuais e antigos, envolvidos em escândalos ou crimes. Foram essas as descobertas da investigação Diplomacia nas Sombras, uma colaboração do Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos (ICIJ), da ProPublica e de outros 59 veículos, entre eles, a Agência Pública e o Metrópoles, no Brasil.

A Agência Pública, em parceria com o Metrópoles, encontrou doze casos de cônsules honorários que atuaram no Brasil e estavam envolvidos em suspeitas ou escândalos relacionados a corrupção, grilagem de terras e contrabando.

Entre os casos, um cônsul honorário foi suspeito de comandar uma organização criminosa que montava máquinas de jogos de azar para vender no Brasil e no exterior. Outro caso envolveu um homem que disse ser cônsul honorário quando seu carro foi parado pela polícia. No porta-malas do carro estava um dos maiores traficantes do país na época, Nem da Rocinha, que foi preso naquele momento. Outra pessoa que ocupou o cargo de cônsul honorário e se envolveu em um escândalo foi um empresário do setor financeiro denunciado por lavagem de dinheiro durante a operação Lava Jato.

Um caso escandaloso é o de Adailton Maturino dos Santos, que se dizia cônsul honorário da Guiné-Bissau. Por conta do cargo, o empresário brasileiro encontrou-se com desembargadores e juízes de diversas instâncias e lidou até mesmo com o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) enquanto participava de um esquema de grilagem de terras no oeste da Bahia.

Outros dois cônsules honorários da índia participaram do lobby pela venda da Covaxin, a vacina produzida pela empresa indiana Bharat Biotech, para o governo Bolsonaro. Mas, além de um problema de sobrepreço, a compra foi suspensa pelo Ministério da Saúde, após auditoria da Controladoria-Geral da União (CGU) apontar suspeitas de fraudes em documentos apresentados pela empresa mediadora da venda no Brasil.

O Brasil tem cerca de 300 cônsules honorários atuando em outros países. Além disso, existem cerca de 265 representantes de países estrangeiros com o mesmo cargo em terras brasileiras.

O que é um cônsul honorário?

A principal atribuição do cônsul honorário brasileiro no exterior é auxiliar brasileiros que moram ou que estejam de passagem no país onde atual. “O cônsul honorário acaba fazendo uma espécie de ponte nos lugares onde não há o consulado oficial, mas reporta o trabalho que faz ao consulado mais próximo. Tem a função de apoiar aquela comunidade, de ser uma figura de representação. Se tiver alguma emergência, ele pode ser o primeiro contato do país com seus nacionais”, explica Lucas Mesquita, professor e coordenador de pós-graduação em Relações Internacionais pela Universidade Federal da Integração Latino-Americana (Unila).

No Brasil, o cônsul honorário é um cargo não remunerado – mas aprovado pelo Ministério de Relações Exteriores (MRE) – com duração de quatro anos, e que pode ser renovado. Qualquer cidadão, brasileiro ou estrangeiro, pode ocupar o cargo, que não conta com pré-requisitos formais. De acordo com o Itamaraty, geralmente são escolhidos candidatos que tenham conhecimento básico do português e que mantenham vínculos com a comunidade brasileira do país.

“Os cônsules honorários, ademais das limitadas funções consulares a eles atribuídas, estão, em geral, atrelados a atividades profissionais particulares remuneradas. São selecionados localmente entre residentes do Estado que recebe, para um trabalho voluntário”, informou o Ministério em nota à Pública.

No caso de representantes de países estrangeiros que atuam no Brasil, o cônsul honorário precisa da autorização do governo brasileiro através do “exequatur”, uma autorização concedida de um Estado para o outro para que o cônsul de um país seja admitido em outro.

De acordo com o Itamaraty, diferente dos cônsules de carreira, os honorários não têm imunidade penal e nem passaporte diplomático – e portanto podem ser sujeitos a medidas legais e ações policiais. Mas, apesar de não receberem salários, o status do cargo pode abrir portas no mundo político e facilitar o trânsito com personalidades importantes.

Há vários exemplos revelados pela investigação transnacional do ICIJ. Em Myanmar, um cônsul sancionado pelos Estados Unidos e outros governos supostamente se utilizou de suas conexões para ajudar no fornecimento de armas para a brutal junta militar do país durante sua campanha genocida contra minorias étnicas. Um antigo cônsul no Egito foi condenado por tentar contrabandear mais de 21 mil artigos de antiguidade para fora do país em um contêiner diplomático, incluindo máscaras de múmia e um sarcófago de madeira.

Outros casos internacionais apontam que o cargo muitas vezes serve como um escudo diplomático; acusados tentam escapar de inquéritos criminais com alegações falsas de imunidade legal, confundindo e obstruindo o trabalho da polícia.

Fabrício Bertini Pasquot Polido, professor associado de Direito Internacional Privado, Direito Comparado e Novas Tecnologias da Faculdade de Direito da UFMG, lembra que os cônsules honorários possuem alguns privilégios junto à justiça do país onde atuam: não são obrigados a depor sobre fatos relacionados ao exercício de suas funções – como atendimento ao cidadão, às empresas locais –, nem a exibir correspondência e documentos oficiais. Possuem uma certa imunidade, embora não completa.

“Agora, se não estiver no exercício da função, essa imunidade não se aplica, porque as atividades que esse cônsul exerce podem exorbitar as funções de representação”, explicou. “Por exemplo, se ele se envolve em atividades ilícitas ou corrupção de empresas, ele não pode usar essa imunidade e pode ser obrigado a depor e mostrar documentos e informações desses atos específicos que exorbitem a função de representação”.

Segundo MPF, cônsul honorário da Guiné-Bissau foi peça-chave de esquema de corrupção e grilagem

A história de Adailton Maturino dos Santos mostra como um título de cônsul honorário abre muitas portas. Munido de um título de cônsul honorário da Guiné-Bissau, o empresário brasileiro encontrou-se oficialmente com desembargadores e juízes, e teve entrada até mesmo com o Tribunal Superior Eleitoral (TSE).

No mesmo período, ele e sua esposa, Geciane Maturino, seriam peças-chave de um milionário esquema de corrupção judicial e grilagem de terras no extremo oeste baiano, conforme revelado pela operação Faroeste da Procuradoria-Geral da República (PGR) em novembro de 2019. As investigações apontam Adailton Maturino como um dos responsáveis por um esquema de compra e venda de sentenças junto à cúpula do Tribunal de Justiça (TJ) da Bahia, com participação até de ex-presidentes do tribunal, para a tomada ilegal de mais de 360 mil hectares de terras no Cerrado do extremo oeste Baiano, na fronteira da soja.

De acordo com a investigação, Maturino teria formado uma organização criminosa junto a membros do Judiciário e supostos proprietários de terras para tomar a posse da chamada fazenda São José, em Formosa do Rio Preto (BA). Usando uma matrícula de terras datada de 1981, o grupo obteve decisões favoráveis na justiça estadual, como a controversa expansão da área referente à matrícula, de 43 mil para mais de 360 mil hectares, com a subsequente regularização da posse por um dos juízes presos, anos depois, por envolvimento no esquema. O grupo de Maturino teria se utilizado desta matrícula para forçar fazendeiros instalados na área a pagarem pelo uso da terra por meio de um acordo, referendado por políticos baianos à época, que garantiria, anualmente, mais de R$ 1 bilhão ao grupo do cônsul honorário.

Segundo o MPF,“ofícios enviados pela embaixada da Guiné-Bissau à justiça qualificaram Adailton como “diplomata” e cônsul honorário” e a esposa dele, Geciane Maturino, como “diplomata” e “conselheira especial” do ministro de Comércio, Turismo e Artesanato do país africano. No entanto, o Itamaraty informou ao MPF, em um documento revisado pela Pública, que “não autorizou, em qualquer momento, a designação de Adailton e Geciane como agentes diplomáticos ou consulares”.

Adailton Maturino se reuniu com autoridades da Guiné-Bissau e membros influentes do Judiciário e da política brasileira nos últimos cinco anos, mesmo período dos fatos investigados pela PGR na operação Faroeste. Em agosto de 2017, por exemplo, acompanhou o presidente da Assembleia Nacional Popular guineense, Cipriano Cassamá, e a embaixadora do país, Eugénia Pereira Saldanha Araújo, em uma reunião com a Justiça Eleitoral para “estreitar os laços de cooperação” entre as duas nações.

Dali em diante, Maturino participou de solenidades com políticos, como na concessão de um título de cidadão honorário a um embaixador angolano pela Câmara Municipal de Salvador (BA). E foi até agraciado com o mesmo título pela Câmara Municipal de Teresina (PI).

Apresentando-se como cônsul honorário da Guiné-Bissau, reuniu-se oficialmente também com desembargadores, como em 2018, quando acompanhou uma comitiva do país africano em um encontro com o então presidente do Tribunal de Justiça do Piauí, Erivan Lopes. A reunião visava um “processo de parceria” entre o tribunal e o país africano.

Maturino não era o único a exibir um título questionável. Rui Barai estava nessa mesma reunião e apresentou-se como “ministro das Relações Exteriores da Guiné-Bissau”. Mas o material obtido pela Pública mostra que o suposto ministro das Relações Exteriores da Guiné-Bissau teria envolvimento no mesmo esquema de corrupção e grilagem.

Segundo o Ministério Público Federal (MPF), Rui Barai não era ministro, mas um “encarregado de negócios” da embaixada da Guiné-Bissau, e teria assinado pedidos de “emplacamento diplomático de veículos” para a esposa de Adailton, “com o claro intuito de blindagem patrimonial” do casal, por conta do esquema no oeste da Bahia.

Presos inicialmente em novembro de 2019, durante a 1ª fase da operação Faroeste, o cônsul honorário da Guiné-Bissau e sua esposa ficaram detidos até março passado, quando a 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça revogou as prisões preventivas de ambos.

A Agência Pública procurou a defesa do casal, mas não houve resposta até o fechamento deste texto.

A defesa de ambos tem negado as acusações e alegado que o inquérito que deu base à operação Faroeste “é confuso e com muitas interpretações”.

A Pública também enviou perguntas à embaixada da Guiné-Bissau no Brasil. Não houve resposta até o fechamento desta reportagem e, caso haja, o texto será atualizado.

Conexão com a Covaxin e um contrato de R$ 1 milhão

Um ofício do Ministério das Relações Exteriores ao Ministério da Saúde, em 06 de janeiro de 2021, mostra que dois cônsules honorários da Índia estiveram em uma reunião na Embaixada do Brasil em Nova Delhi sobre a venda da vacina indiana Covaxin durante a pandemia de Covid-19. Eram eles o cônsul honorário da Índia em Belo Horizonte, Élson de Barros Gomes Jr., e o do Rio de Janeiro, Leonardo Ananda Gome. Ambos eram também presidentes das Câmaras de Comércio Brasil Índia naquelas cidades.

Francisco Maximiano, dono da Precisa Medicamentos, empresa responsável por intermediar a venda da Covaxin no Brasil, ressaltou que a delegação que o acompanhava tinha um “perfil mais elevado do que o habitual” porque a visita à Índia era um esforço para estreitar relações com companhias do país. Ele defendia que a parceria com a fabricante indiana Bharat Biotech ajudaria a “romper o oligopólio” da vacinação no Brasil.

Além da Precisa Medicamentos, também participaram do encontro representantes da Associação Brasileira das Clínicas de Vacinas (ABCVAC) – ambas instituições são associadas à Câmara de Comércio que tem os dois cônsules honorários como presidentes.

No dia seguinte, em 07 de janeiro de 2021, Leonardo Ananda Gomes e Elson de Barros estiveram ainda junto com funcionários da Precisa Medicamentos e da ABCVAC em visita à sede da Bharat Biotech.

Uma foto da visita foi publicadas nas redes sociais da Câmara de Comércio Índia-Brasil, mostrando os dois cônsules honorários junto à indiana Suchitra Ella, sócia da Bharat Biotech que se tornou membro do Conselho Consultivo da Câmara de Comércio Índia-Brasil. “A Ilustríssima Sra. Suchitra Ella é uma das sócias da Bharat Biotech, empresa responsável pelo desenvolvimento da Covaxin, vacina que irá ajudar a salvar vidas no Brasil. Ademais, Bharat Biotech é parceira da Precisa Medicamentos, empresa associada à Câmara de Comércio Índia Brasil”, informou outra publicação na rede social em março de 2021.

O lobby funcionou – ou quase. Logo após o encontro na Embaixada em Nova Delhi, em 8 de janeiro, o presidente Jair Bolsonaro escreveu uma carta ao primeiro-ministro da Índia, Narendra Modi, dizendo que a Covaxin havia sido selecionada para o Programa Nacional de Imunizações (PNI). Vale lembrar que, na época, ainda não havia sido concluída a última fase dos estudos clínicos da Covaxin – e Bolsonaro estava ignorando as ofertas da Pfizer.

Mas a vacina nunca chegou a ser vendida no Brasil. Em agosto, o Ministério da Saúde cancelou o contrato, após uma auditoria da Controladoria-Geral da União (CGU) apontar suspeitas de fraude em documentos apresentados pela Precisa. A CGU, no entanto, descartou suspeitas de sobrepreço nas doses da Covaxin levantadas anteriormente pela Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI), e informou que o preço praticado mundialmente pela empresa nas negociações era de US$ 15 a dose. A vacina indiana tinha a dose mais cara entre as negociações feitas pelo Brasil com fabricantes.

Os senadores da CPI também colocaram a lupa sobre a atuação dos dois cônsules honorários, depois do jornal O Globo revelar um repasse de R$ 1 milhão feito pela Precisa Medicamentos para a Câmara de Comércio Índia Brasil. As transferências ocorreram em 17 e 23 de fevereiro de 2021, às vésperas da assinatura do contrato da Precisa com o Ministério da Saúde para a compra de 20 milhões de doses da Covaxin, no valor total de R$ 1,6 bilhão. Parlamentares suspeitaram que este dinheiro pudesse ser uma “recompensa” por ajudar a viabilizar o contrato.

A CPI também investigou viagens para a Índia feitas por um grupo de empresários em diferentes vôos, mas em dias próximos, entre dezembro de 2020 e junho de 2021. Assim como a Câmara de Comércio Índia Brasil, as empresas dos representantes que viajaram nesse período receberam repasses da Precisa.

Questionado sobre os registros de pagamento à Câmara de Comércio e as viagens dos representantes à Índia durante a CPI, Maximiano não respondeu. “Vou exercer o direito ao silêncio”, disse. Ele foi indiciado no relatório final da CPI por fraude processual, fraude em contrato, improbidade administrativa, falsidade ideológica e uso de documento falso. Com o fim da CPI, a Polícia Federal e o MPF passaram a investigar o contrato de compra da Covaxin.

O relatório final da CPI, entretanto, não menciona os dois cônsules.

A Agência Pública entrou em contato com a Câmara de Comércio Índia Brasil e tentou contactar os dois cônsules honorários, mas foi informada que ambos estavam viajando e não poderiam responder aos questionamentos da reportagem. A embaixada da Índia também não retornou.

Ao jornal O Globo, a Câmara respondeu que as transferências feitas pela Precisa foram para patrocinar eventos e os integrantes da associação negaram que tenham ajudado no contato inicial entre Precisa e Bharat Biotech.


Alckmin falou à imprensa após apresentar texto da PEC a congressistas | Foto: reprodução

Texto da PEC da Transição é entregue e prevê desvinculação do Bolsa Família do teto de gastos

Brasil de Fato

A equipe comandada pelo vice-presidente eleito Geraldo Alckmin (PSB) entregou nesta quarta-feira (16) ao Congresso a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) da Transição de Governo. Entre os principais pontos do texto está a retirada dos valores do Bolsa Família das amarras do teto de gastos.

"Entregamos uma proposta, um anteprojeto para ser avaliado pelos senadores e deputados", disse Alckmin. "A PEC dá o princípio, que é o cuidado com as crianças e com as famílias em pobreza extrema, e a LOA [Lei Orçamentária Anual] vai decidir como fazer", completou.  

Na ausência do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), que está no Egito para a COP27, o texto foi entregue ao senador Davi Alcolumbre (União Brasil-AP) e ao relator do Orçamento de 2023, senador Marcelo Castro (MDB-PI). Líderes da Câmara, como o presidente da Casa, Arthur Lira (PP-AL), também participaram da reunião.

Dúvidas

Ainda não se sabe, por exemplo, por quanto tempo o Bolsa Família ficará desvinculado do teto. O governo eleito espera que isso se torne algo definitivo, mas há setores do Congresso que defendem que a desvinculação valha por apenas um ano ou pelos quatro próximos anos. 

"A proposta não tem prazo. Ela tem princípios, que é a exclusão do Bolsa Família [do teto de gastos]. Cabe aos deputados e senadores discutirem para decidir", afirmou Alckmin.

Promessa de campanha do agora presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva (PT), o Bolsa Família retornará a seu nome e características originais, substituindo o Auxílio Brasil, nome dado por Jair Bolsonaro (PL). Lula se comprometeu a pagar R$ 600 mensais às famílias beneficiárias. 

Se aprovada, a desvinculação vai abrir espaço no orçamento para outras áreas, já que R$ 105 bilhões que estavam originalmente destinados ao Auxílio Brasil ficarão sem rubrica definida. Com isso, haverá mais recursos para, por exemplo, ações na Saúde, Cultura e aumento do salário mínimo. 

O texto será avaliado primeiro pelo Senado antes de chegar à Câmara dos Deputados. Segundo Marcelo Castro, os senadores devem discutir - e aprovar - a PEC ainda em novembro. Em seguida será a vez dos deputados discutirem o tema.

"Não tem um cronograma, é o mais rápido possível. Temos 40, 45 dias para encerrar o ano legislativo. A PEC e tudo está sendo feito no sentido de fortalecer o Legislativo. O presidente Lula tem orientado: fortalecer a política no sentido de se resolver problemas. E quem tem que dar a palavra final é o Legislativo: Senado e Câmara. A recepção foi muito boa, não quer dizer que essa proposta vai ser aprovada, mas é um início importante", destacou Alckmin.

Universidades

Outro trecho importante da proposta diz respeito ao funcionamento das universidades públicas. O texto entregue nesta quarta-feira prevê que arrecadações de "esforço próprio" das universidades possam ser utilizadas independente do teto de gastos.

As arrecadações de esforço próprio incluem, por exemplo, doações feitas por ex-alunos e convênios assinados com instituições de outros países. Por causa das amarras do teto, em alguns casos esses recursos não foram aplicados.

Doações realizadas para outros setores, por exemplo, dinheiro vindo do exterior para investimento direto no meio ambiente, também devem ser desconsideradas nas contas para o teto de gastos, segundo a proposta.

Edição: Rodrigo Durão Coelho

Matéria publicada originalmente no Brasil de Fato


Nas entrelinhas: Lula propõe aliança estratégica com o agronegócio

Luiz Carlos Azedo | Nas entrelinhas | Correio Braziliense

A reforma agrária, a velha bandeira da esquerda brasileira, que remonta ao debate sobre a industrialização na década de 1930, partia da premissa de que monocultura agrícola, inclusive a agromanufatura açucareira, era uma das causas do nosso subdesenvolvimento. Havia até então a concepção de que somente a eliminação dos grandes latifúndios poderia desenvolver o capitalismo no campo, o que na verdade já existia desde o fim da escravidão. Achava-se que éramos um país de agricultura feudal.

Essa compreensão, por exemplo, ignorava o fato de que o Convênio de Taubaté havia mudado completamente a relação do Brasil com o mercado mundial de café, sendo um fator decisivo para a própria industrialização, principalmente em São Paulo, cujos cafeicultores acumularam muito capital e priorizaram os investimentos em atividades produtivas, em vez do patrimonialismo que predominou em outras regiões do país.

Fruto de um pacto entre os governadores de São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro, respectivamente Jorge Tibiriça, Francisco Sales e Nilo Peçanha, o Convênio de Taubaté fora assinado em 6 de fevereiro de 1906, garantindo a compra do café por um preço mínimo e a regulagem dos estoques para controlar os preços internacionais, mais ou menos como fazem hoje os países produtores de petróleo. Na ocasião, o presidente Rodrigues Alves não se dispôs a assumir o ônus desta política, porém, os estados assumiram a compra do café excedente.

Com a eleição de Afonso Pena, essa situação finalmente iria mudar, cabendo ao governo federal manter a política de valorização do café. Os resultados foram positivos. Na década seguinte, o lucro conseguido pelos cafeicultores iria aumentar consideravelmente devido ao crescimento da compra do produto no mercado internacional. A modernização das principais cidades do país, principalmente o Rio de Janeiro, tem tudo a ver com o êxito dessa política.

Nada disso, porém, abalou o dogma da esquerda de que o país não poderia se desenvolver sem reforma agrária e nacionalização das empresas estrangeiras, o chamado caminho da “revolução brasileira” (a democracia estaria em segundo plano). No começo da década de 1960, enquanto Francisco Julião e suas ligas camponeses defendiam a reforma agrária “na lei ou na marra”, o presidente João Goulart prometia realizar as reformas de base por decreto, à revelia do Congresso, o que foram fatores decisivos para o êxito do golpe militar de 1964.

Por pura ironia, o Estatuto da Terra, aprovado no governo Castelo Branco, viria a ser o instrumento da reforma agrária no ciclo de modernização conservadora da década de 1970. O governo Fernando Henrique Cardoso, tendo Raul Jungmann como ministro da Reforma Agrária, foi aquele que mais desapropriou terras, distribuiu títulos de propriedade e assentou trabalhadores rurais da história republicana, além de ter criado o Pronaf, o muito eficiente programa de financiamento de agricultura familiar do país.

Créditos de carbono

Desculpem-me esse longo parêntesis. O fato é que o Brasil se tornou o maior produtor de proteína animal do mundo e é um dos maiores produtores agrícolas do planeta. Com monocultura e grandes propriedades agrícolas, fez uma verdadeira revolução agrícola no campo, que hoje lidera a economia do país em termos de inovação e tecnologia embarcada. Não depende mais da expansão da área cultivada e dos pastos para aumentar a produção de alimentos, porém, precisa se preocupar com a questão ambiental. As atividades rurais predatórias, principalmente na Amazônia, são um anacronismo, que compromete o futuro de nossa integração à economia mundial, devido às retaliações que poderiam advir em razão da política mundial de combate aos gases do efeito estufa e ao desenvolvimento de uma economia de baixo carbono.

Assim como existe institucionalidade financeira na globalização, emerge da COP27 uma nova institucionalidade ambiental, que ditará os rumos das relações comerciais e das cadeias globais de produção. Por isso tudo, faz todo sentido a aliança estratégica com o agronegócio para combater o desmatamento e promover a nova economia proposta pelo presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva, ontem, em seu pronunciamento na COP27, no Egito.

Um grande passo seria regulamentar a Política Nacional de Pagamento por Serviços Ambientais (PNPSA), que pode beneficiar grandes e pequenos produtores, ao remunerar ou recompensar quem protege a natureza (créditos de carbono) e mantém os serviços ambientais funcionando em prol do bem comum. De iniciativa dos deputados federais Rubens Bueno e Arnaldo Jordy, com as diversas alterações realizadas no Senado Federal e aperfeiçoamentos das duas casas legislativas, a Lei 14.119 definiu conceitos, objetivos, diretrizes, ações e critérios de implantação do programa.

Em países como Costa Rica, Colômbia, EUA, Holanda, Canadá, China, Equador, Zimbábue, Bolívia, Honduras, México, Nicarágua, Panamá, Paraguai, Venezuela, República Dominicana e Austrália já existem disposições normativas que regulam a gestão do PSA. Santa Catarina, Rio de Janeiro, Minas Gerais, São Paulo e Espírito Santo, e diversos municípios brasileiros, dispõem de normas jurídicas específicas para implementar uma nova política ambiental e financiar o desenvolvimento sustentável, em parceria com o agronegócio. É mais uma ferramenta de combate às iniquidades e injustiças sociais no campo.

https://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-lula-propoe-alianca-estrategica-com-o-agronegocio/

(crédito: Caio Gomez)

Artigo: A transição, o social e o fiscal

BENITO SALOMÃO - Doutor em economia pelo PPGE/Universidade Federal de Uberlândia (MG)

Diante da transição em curso, o governo eleito sinaliza suas prioridades, deixando claro, no meu entendimento de forma acertada, que vai recuperar a agenda social abandonada na última década. O Brasil empobreceu nos últimos anos e as camadas posicionadas na base do estrato social sofrem mais com isso, por vias de privações de itens básicos de cidadania como alimentação e vestuário. Portanto, a agenda de readequar o aos seus critérios originais de focalização e contrapartidas, somado ao fortalecimento do salário mínimo, são extremamente bem-vindas. Outras pautas, igualmente importantes, como a recuperação da ciência e tecnologia deveriam estar entre essas prioridades.

A agenda social de Lula, no entanto, passa por um desafio não trivial. Seus programas exigem recursos públicos escassos e vão, certamente, ser confrontados em algum período com a restrição fiscal do Estado. De forma que o problema que a equipe de transição enfrenta não é puramente o de redesenhar políticas públicas a fim de torná-las mais progressivas, mas sim de fazer isso respeitando a sustentabilidade fiscal de longo prazo.

A boa notícia é que essas pautas não são inconciliáveis se bem desenhadas e anunciadas adequadamente ao público. O Auxílio Brasil, tal qual foi concebido pelo governo atual, tinha problemas de focalização, isso tornava o programa relativamente caro e pouco efetivo no seu objetivo principal de mitigar a pobreza. O salário mínimo, por sua vez, indexa um conjunto relevante de rubricas do orçamento, como, por exemplo, a previdência social. Achatar em termos reais o salário mínimo nos últimos anos foi uma estratégia de segurar o crescimento compulsório das despesas públicas, particularmente as obrigatórias. Evidentemente que o represamento do salário mínimo é uma tentativa injusta de jogar o custo do ajuste fiscal nos ombros dos pobres.

Artigo publicado originalmente no Correio Braziliense.