No WikiFavelas, a potência da Comunicação Popular
Luisa Santiago*, de Outras Palavras
“A potencialidade política da internet ainda não chegou a muitos processos de resistência” – alerta o verbete sobre a Teia de Comunicação Popular do Brasil, no Dicionário de Favelas Marielle Franco. Em tempos de “pós-verdade”, onde bastam pouco cliques para que se multiplique a desinformação promovida pelas “fake news”, a frase chama atenção para uma das principais pautas a serem reforçadas na contemporaneidade: mais do que nunca, é preciso fortalecer, apoiar e qualificar as iniciativas faveladas e periféricas no campo da comunicação popular contra-hegemônica.
Embora ainda pouco conhecidas pelo grande público, as iniciativas de comunicação popular de favelas e periferias têm uma extensa trajetória histórica, que vai desde a produção por mimeógrafos – como foi a da Revista Nós, da Cidade de Deus, entre 1977 a 1980 – à realização de pesquisas locais, com produção de dados e outros insumos audiovisuais para disputar narrativas com a imprensa formal e o próprio Estado sobre o que acontece, de fato, nas favelas. Esse é o objetivo, por exemplo, do LabJaca – Favela Gerando Dados, criado em 2020 na favela do Jacarezinho, zona norte do Rio de Janeiro.
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Tais iniciativas, portanto, não se propõem apenas a comunicar, mas também a organizar politicamente seus(as) leitores(as) para percepção, crítica e transformação da realidade em que vivem. No contexto de dois anos de combate à pandemia de covid-19 no Brasil, por exemplo, o Dicionário de Favelas Marielle Franco buscou contribuir para essa luta histórica, apoiando os coletivos envolvidos na produção de informação popular sobre a emergência sanitária, e reuniu pesquisas, reportagens, fotos, vídeos, comentários, artigos, ensaios e reflexões acadêmicas sobre os impactos do coronavírus nas favelas. No âmbito desse projeto, foi possível construir uma base de dados aberta com 783 notícias sobre coronavírus nas favelas, ordenadas segundo os tipos de veículos onde foram publicadas – mídia comunitária, imprensa comercial, imprensa alternativa (que não necessariamente possui vinculação territorial) e portais institucionais públicos e privados.
Neste período de enfrentamento às políticas da morte e aos negacionismos, a articulação comunitária na produção de dados sobre os territórios ganhou destaque, como no Painel Covid-19 Santa Marta, iniciativa dos irmãos Thiago e Tandy Firmino; no Painel Unificador Covid-19 nas Favelas, que reúne diversas ações em todo o Brasil numa iniciativa da rede de Comunidades Catalisadoras (ComCat); e no projeto Diário da Pandemia na Periferia, realizado pelo Núcleo Piratininga de Comunicação. Ainda sobre a discussão a respeito das “fake news” em saúde, o Dicionário de Favelas Marielle Franco apoiou a realização de um projeto de extensão junto à Universidade Federal Fluminense (UFF) e ao Pré-vestibular Machado de Assis, no Morro da Providência, com o objetivo de desenvolver ações pedagógicas junto aos moradores dentro da perspectiva da educação popular em saúde. Essas iniciativas buscaram não somente lançar luz sobre as experiências da pandemia nestas localidades, mas fundamentalmente modificar o enquadramento por meio do qual essas questões estavam sendo enfrentadas. Como parte da luta por direitos de cidadania, essas ações apontaram no sentido da valorização das potências emergentes desses territórios e de suas populações.
Apesar do luto e das milhares de vidas perdidas no país, avançada a vacinação pelo SUS, o objetivo estratégico que se impõe a esse novo momento político é o de manter ativa essa ampla rede de coletivos, ativistas e atores vinculados à comunicação popular em favelas e periferias, sobretudo diante dos novos desafios, como por exemplo, a vocalização de suas demandas no debate que envolverá as eleições nacionais de 2022. Por isso, uma das prioridades de atuação do Dicionário de Favelas Marielle Franco neste ano tem sido o fomento de uma rede de parceiros ligados à comunicação e produção audiovisual sobre favelas e periferias, dentre eles o Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde e a VideoSaúde – ambos da Fiocruz –, a Revista de Comunicação Dialógica, o Instituto de Filosofia e Ciências Humanas e a Faculdade de Educação da Baixada Fluminense – todos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
No âmbito desse grupo, o Dicionário de Favelas Marielle Franco juntou-se ao Núcleo Piratininga de Comunicação (NPC), instituição de prestígio e com uma longa trajetória de mais de 25 anos de organização dos trabalhadores e trabalhadoras no campo da comunicação, para promover conjuntamente o 24º Curso de Comunicação Popular do NPC, no Rio de Janeiro, entre abril e setembro deste ano. No curso que, desde 2004, forma lideranças como Gizele Martins, jornalista do Complexo da Maré, e Euro Mascarenhas, jornalista do Rio On Watch, estuda-se comunicação, na teoria e na prática, mas não só. Estuda-se a história e a realidade vivida no Rio de Janeiro por trabalhadores e trabalhadoras, mediadas pelo compartilhamento de suas experiências.
Além de reunir, formar e organizar esses(as) comunicadores populares(as) – como conta o livro “Experiências em Comunicação Popular no Rio de Janeiro”, lançado em 2016, e no “Almanaque da Comunicação e Sindical e Popular no Rio de Janeiro”, lançado na abertura do curso deste ano, é importante destacar que o NPC foi o idealizador da Teia de Comunicação Popular do Brasil, lançada em 2018, no Fórum Social Mundial, em Salvador. Reunindo iniciativas de todo o país, seu objetivo é fortalecer a comunicação daqueles que lutam por direitos, terra, moradia, trabalho, cultura, arte, respeito, dignidade, pelo meio ambiente e pela vida. Mais detalhes podem ser encontrados no verbete escrito por Luisa Santiago, do Núcleo Piratininga de Comunicação, e reproduzido abaixo. (Introdução e seleção: Equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco).
Teia de Comunicação Popular do Brasil
A Teia de Comunicação Popular do Brasil, idealizada pelo Núcleo Piratininga de Comunicação (NPC), busca identificar fios que se entrelaçam, tecendo, juntando e compondo uma rede de solidariedade entre diferentes experiências de comunicação contra-hegemônica, espalhadas pelo Brasil. Foi lançada no Fórum Social Mundial 2018, em Salvador.
O objetivo é produzir e compartilhar as histórias das lutas e da vida das trabalhadoras e dos trabalhadores do país. O povo, organizado em seus territórios, ainda carece muito de comunicação. A potencialidade política da internet ainda não chegou a muitos processos de resistência. Abriu-se um novo campo de possibilidades, mas também cheio de complexidades e com a tendência de apenas reproduzir a estrutura de dominação do capitalismo presente nos meios de comunicação de massa. Isso em conjunto com um profundo avanço do grande capital, do ataque a conquistas históricas dos trabalhadores, da crescente violência contra periferias, camponeses, povos e comunidades tradicionais, contra os direitos humanos e nossa frágil democracia.
O desafio e a proposta é fortalecer a comunicação daqueles que lutam por direitos, terra, moradia, trabalho, cultura, arte, respeito, dignidade, pelo meio ambiente e pela vida.
A Teia, nesse sentido, é uma estratégia para fazer com que tudo isso chegue da forma mais organizada possível à opinião pública e a todas e todos que querem um mundo melhor, mais justo e mais igualitário. Ela pode ser acessada por meio da plataforma http://teiapopular.org/
Compõem a Teia de Comunicação Popular do Brasil: Agência Abraço Brasil; Agência Tambor (MA); CDD Vive (RJ); Jornal A Notícia Por Quem Vive (RJ); Centro Sabiá (PE); Furo (PA); Jornal Abaixo Assinado (RJ); Jornalismo B (RS); NPC (RJ); Outras Palavras; Rádio Classista (CE); Terra Sem Males (PR); Vias de Fato (MA); Voz das Comunidades (BA); Vozes das Comunidades (RJ) – entre outros.
Consideramos a existência dessas diversas iniciativas alternativas para disputa da narrativa junto à sociedade, como coletivos populares e sindicatos, e a nossa responsabilidade como ativistas da comunicação popular há quase 25 anos – com contatos em todo o país –, nos vimos diante de uma conjuntura política assustadora para o campo social e instigados a criar a Teia da Comunicação Popular do Brasil.
O Manifesto
A palavra teia nos remete a um emaranhado de fios. Ao propor a organização de uma, o Núcleo Piratininga de Comunicação (NPC) quer identificar fios que irão se entrelaçar, tecendo, juntando e compondo uma rede de solidariedade entre belíssimas e diferentes experiências de comunicação contra-hegemônica, espalhadas pelo Brasil.
Vamos entrelaçar ideias! Compor e compartilhar as histórias de trabalhadoras e trabalhadores do país. Vamos tramar uma estratégia para fazer com que tudo isso chegue da forma mais organizada possível a opinião pública e a todas e todos que querem um mundo melhor, justo e igualitário.
É com esse objetivo ousado, mas extremamente urgente e necessário, que lançamos no Fórum Social Mundial 2018, em Salvador, a Teia da Comunicação Popular do Brasil. Após quase 25 anos de caminhada do Núcleo Piratininga Comunicação (NPC), e diante da difícil conjuntura que o nosso país enfrenta hoje, nós queremos fazer nossa parte.
Reconhecemos nossa possibilidade e responsabilidade nesse momento de profundo avanço do grande capital, do ataque a conquistas históricas dos trabalhadores, da crescente violência contra periferias, camponeses, povos e comunidades tradicionais, direitos humanos e nossa frágil democracia.
Queremos mapear experiências de comunicação populares espalhadas pelo Brasil, ligadas a processos sociais de resistência.
Queremos estimular a articulação de diversas experiências de comunicação popular, para uma ação que permita ampliar a visibilidade e fortalecer os processos de insurgência e de lutas sociais que ocorrem em diferentes regiões do país, criando uma rede de solidariedade, para incentivar e apoiar a produção de comunicação popular.
O povo organizado, em seus territórios, ainda carece muito de comunicação. A potencialidade política oriunda da internet ainda não chegou a muitos processos de resistência. O desafio é fortalecer a comunicação daqueles que lutam por direitos, terra, moradia, trabalho, cultura, arte, respeito, dignidade, pelo meio ambiente, pela vida.
Por isso, consideramos necessário esse processo de articulação e mobilização, para expandir a força e/ou tirar do isolamento as diferentes experiências de luta social.
E queremos que você ajude o NPC a criar a Teia de Comunicação Popular do Brasil. Com a sua importante participação e colaboração, somada a nossa experiência com inúmeros cursos de formação e milhares de contatos em diversos pontos do país, chegaremos lá.
Resistir e criar! Resistir é transformar! Vamos juntos!
Salvador, 15 de março de 2018
As experiências
Abraço Brasil
Agência Abraço de Comunicação Comunitária é uma instituição criada em 2005 para a produção e distribuição de conteúdos radiofônicos de interesse das comunidades atendidas pelas cerca de 5 mil rádios comunitárias do Brasil.
As políticas públicas, as campanhas de interesse social, o dia a dia, a rotina, os fatos que muitas vezes são ignorados pela imprensa tradicional e que são muito importantes para as pessoas de determinada região ou bairro. É a proximidade da informação com foco no interesse do cidadão e das suas necessidades.
Missão: A missão da Agência Abraço é democratizar o acesso à informação, produzindo e distribuindo notícias, matérias, conteúdos e serviços de interesse social para o cidadão e para as comunidades de maneira mais direta e que realmente sejam de interesse dos moradores de uma determinada região. É levar o serviço de informação para a comunidade de maneira clara, simples e ágil. É a democratização da informação de forma independente e avançada para a conquista da luta de todos por melhores condições de vida na comunidade.
Agência Tambor
A Agência Tambor é uma ação de apoio a comunicação livre, popular, comunitária e alternativa. Fundada em março de 2018, é uma iniciativa da Sociedade Maranhense de Mídia Alternativa e Educação Popular Mutuca, em parceria estratégica com a Associação Brasileira de Rádios Comunitária no Maranhão (Abraço-Ma), com o Sindicato dos Bancários do Maranhão (SEEB-MA), Jornal Vias de Fato e outras organizações sociais.
A Tambor tem uma Rádio Web, que pode ser acessada no site agenciatambor.net.br. De segunda a sexta é produzido o Jornal da Tambor, um rádio-jornal, com uma hora de duração, sempre a partir das 11h.
A Agência é um espaço para produção de conteúdo jornalístico. Um instrumento comprometido com a luta das trabalhadoras e trabalhadores do campo e da cidade, dos povos e comunidades tradicionais, por um movimento sindical forte e independente, pela defesa permanente dos direitos humanos, pelo combate ao machismo, racismo, homofobia, com o compromisso com os povos e comunidades tradicionais, pela preservação do meio ambiente e pelo respeito e estimulo à arte e a cultura.
Trata-se de uma ação em favor da democratização da comunicação do Brasil. Uma ação a partir do Maranhão, estado brasileiro com a maior concentração midiática do país. O projeto da Agência Tambor amadureceu e ganhou força a partir do I Seminário Comunicação e Poder no Maranhão, realizado em São Luís, em outubro de 2017.
O seu nome é uma homenagem à comunicação quilombola, que em vários casos recorre ao toque dos tambores para reunir as comunidades e dar as notícias necessárias.
Blog Buliçoso
Sob a responsabilidade da jornalista maranhense Flávia Regina Melo, âncora da rádio web Tambor, o blog Buliçoso é um projeto editorial que, a propósito do nome, surgiu de uma profunda inquietação diante da abordagem reducionista em certo modo industrial de noticiar. Interpretar e ir muito além dos fatos, considerando que por trás de cada manchete ou postagem existe uma infinidade de questões ocultas ou negligenciadas pela comunicação hegemônica, são os elementos norteadores da página. O blog adota o provocante slogan “notícia não tem pernas curtas”, em referência direta ao momento difícil vivido pelo jornalismo, em tempos de pós-verdade, fake news e de um limite cada vez mais esgarçado entre opinião x boatos. Porém, em defesa permanente da busca pela enorme variedade de questões e subtemas ocultos em cada matéria jornalística sobre homicídios, chacinas, surtos de doenças, catástrofes e outros, inclusos nos pacotes de problemas da atualidade. Bulir, que significa “mexer”, “mover-se”, é ir além da notícia porque ela não tem pernas curtas!
Blogue do Ed Wilson
Jornalismo com artigos, reportagens, crônicas e notas sobre temas locais, nacionais e internacionais. Resenhas, dicas e outros toques… O blogue é editado por Ed Wilson Araújo, jornalista, doutor em Comunicação (PUCRS), professor do curso de Rádio e TV da Universidade Federal do Maranhão (UFMA). Presidente da Associação Brasileira de Rádios Comunitárias do Maranhão (ABRAÇO-MA).
Brasil de Fato
O Brasil de Fato (BdF) é um site de notícias e uma radioagência, além de possuir jornais regionais no Rio de Janeiro, em Minas Gerais, em São Paulo, no Paraná e em Pernambuco. Lançado em 25 de janeiro de 2003, o BdF circulou por mais de dez anos com uma versão impressa nacional.
Por entenderem que, na luta por uma sociedade justa e fraterna, a democratização dos meios de comunicação é fundamental, movimentos populares criaram o Brasil de Fato para contribuir no debate de ideias e na análise dos fatos do ponto de vista da necessidade de mudanças sociais em nosso país.
O primeiro veículo da rede Brasil de Fato foi o semanário nacional, lançado no Fórum Social Mundial de Porto Alegre, em janeiro de 2003. Logo após, foi lançado o site do Brasil de Fato, com coberturas das lutas sociais, entrevistas e notícias sobre política, economia, direitos humanos e cultura, sob uma visão popular das cidades, do Brasil e do mundo.
Os jornais regionais surgiram a partir de maio de 2013 para promover uma aproximação com os leitores e leitoras, além de dialogar com as realidades locais, e hoje o cenário aponta para uma ampliação da cobertura, que deve alcançar ainda mais estados do país.
Em 2014, o BdF incorporou a Radioagência Notícias do Planalto (NP), que atuava há dez anos na produção radiofônica de notícias. As matérias da Radioagência Brasil de Fato, em áudio e texto, são enviadas para rádios de todo o país e também estão disponíveis no site. Os temas tratados são de política, economia, direitos humanos, cotidiano e cultura, além de produções de serviços.
Plural e diversificado, o BdF reúne jornalistas, articulistas e movimentos populares do Brasil e do mundo.
Além do site, da Radioagência e das edições impressas, o Brasil de Fato circula pelas redes sociais, por Facebook, Twitter, Youtube, Flickr e SoundCloud.
Todos os conteúdos do Brasil de Fato podem ser reproduzidos livremente, sempre citando a fonte e publicados na íntegra.
CDD Vive
O Jornal CDD Vive é feito por moradores da Cidade de Deus, bairro da zona oeste do Rio de Janeiro. [em construção]
Centro Sabiá
O Centro de Desenvolvimento Agroecológico Sabiá é uma organização não governamental com sede no Recife, Pernambuco, fundada em 1993, que trabalha para promoção da agricultura familiar dentro dos princípios da agroecologia. Desenvolvendo e multiplicando a Agricultura Agroflorestal, também conhecida como Agrofloresta ou Sistemas Agroflorestais. Juridicamente é uma associação civil de direito privado sem finalidade econômica, de natureza técnico-ecológica e educacional.
Missão: “Plantar mais vida para um mundo melhor, desenvolvendo a agricultura familiar agroecológica e a cidadania”.
A missão do Centro Sabiá expressa o desafio de interagir com os diversos setores da sociedade civil, desenvolvendo ações inovadoras junto ao trabalho com crianças, jovens, mulheres e homens na agricultura familiar. Na perspectiva de que a sociedade viva em harmonia com a natureza e seja consciente, autônoma e participativa na construção de um modelo de desenvolvimento rural sustentável.
Origem do nome: O SABIÁ é um pássaro que simboliza bem a biodiversidade do planeta. Existem mais de 300 espécies dele em todo o mundo. No Brasil, esse pássaro está presente em todas as regiões, habitando nas matas e também nas cidades. A sobrevivência dele, em diferentes ambientes, deve-se a uma dieta diversificada composta por frutos, pequenos insetos, restos de comidas e minhocas. O pássaro possui um dos mais belos e intensos cantos.
A SABIÁ é uma árvore nativa da Caatinga, do Nordeste brasileiro, que se adapta bem a outros climas e regiões do Brasil. Ela ganhou esse nome por ter a cor do caule muito parecida com a do pássaro. É uma árvore que possui variedades, algumas têm espinho e outras não. É indicada para enriquecer e recuperar solos degredados. É uma árvore bastante querida por quem cuida da agricultura e do meio ambiente.
CIMI
O Cimi é um organismo vinculado à CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil) que, em sua atuação missionária, conferiu um novo sentido ao trabalho da igreja católica junto aos povos indígenas.
Criado em 1972, no auge da Ditadura Militar, quando o Estado brasileiro adotava como centrais os grandes projetos de infraestrutura e assumia abertamente a integração dos povos indígenas à sociedade majoritária como perspectiva única, o Cimi procurou favorecer a articulação entre aldeias e povos, promovendo as grandes assembleias indígenas, onde se desenharam os primeiros contornos da luta pela garantia do direito à diversidade cultural.
Comissão Pastoral da Terra
A Comissão Pastoral da Terra (CPT) nasceu em junho de 1975, durante o Encontro de Bispos e Prelados da Amazônia, convocado pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), realizado em Goiânia (GO). Foi fundada em plena ditadura militar, como resposta à grave situação vivida pelos trabalhadores rurais, posseiros e peões, sobretudo na Amazônia, explorados em seu trabalho, submetidos a condições análogas ao trabalho escravo e expulsos das terras que ocupavam.
Nasceu ligada à Igreja Católica. O vínculo com a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) ajudou a CPT a realizar o seu trabalho e a se manter no período em que a repressão atingia agentes de pastoral e lideranças populares. Logo, porém, adquiriu caráter ecumênico, tanto no sentido dos trabalhadores que eram apoiados, quanto na incorporação de agentes de outras igrejas cristãs, destacadamente da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil – IECLB.
O que a CPT objetiva: A CPT foi criada para ser um serviço à causa dos trabalhadores e trabalhadoras do campo e de ser um suporte para a sua organização. O homem e a mulher do campo são os que definem os rumos a seguir, seus objetivos e metas. Eles e elas são os protagonistas de sua própria história. A CPT os acompanha, não cegamente, mas com espírito crítico.
Jornal Popular do Movimento Fóruns e Redes de Cidadania do Maranhão
Fundado após um enorme acúmulo de debate pelo Movimento Fóruns e Redes de Cidadania do Maranhão, em dezembro de 2018 foi iniciado o projeto de um jornal desvinculado das elites, que representasse o ponto de vista dos trabalhadores e dos verdadeiros lutadores e heróis do nosso povo. A cobertura dica delimitada ao Estado do Maranhão – onde o Diário de Luta conta com o apoio e ajuda de milhares de militantes sociais do Fóruns e Redes de Cidadania. O objetivo é fazer ressoar notícias de Movimentos Sociais por todo o território nacional, assim como textos relativos à realidade brasileira. O veículo parte de um compromisso com a imprensa séria, ética e comprometida com os interesses verdadeiros do povo brasileiro.
Logo, não se pretende um jornal imparcial: sim, o Diário de Luta tem lado! E é o lado do povo.
FURO
Furo na geografia é o canal de comunicação entre um rio e seu afluente. No jornalismo, é gol de placa, o fato noticiado em primeira mão. O blog FURO, editado pelo jornalista Rogério Almeida, tem como objetivo ser um canal de comunicação entre as quebradas da Amazônia e o resto do mundo.
Instituto Democracia Popular
O Instituto Democracia Popular (IDP) foi fundado no final de 2013, em Curitiba, a partir do acompanhamento da luta dos moradores do Ribeirão dos Padilhas pela regularização fundiária. Trata-se de mais um dos tantos casos de comunidades cujas vilas (e mesmos bairros inteiros) foram construídos de maneira informal, dadas às dificuldades de acesso à terra urbanizada no mercado imobiliário formal de Curitiba. Com a resistência da comunidade, para qual o IDP colaborou intensamente, deu-se o encontro do trabalhismo com as pautas urbanas.
O ponto de convergência destes dois eixos – trabalho e acesso à cidade – é a defesa de uma democracia participativa e popular. Terra, trabalho e democracia fundaram a identidade e o escopo de atuação do Instituto, que tem como mantenedor o escritório Filippetto Advogados e outras parcerias de financiamento.
Jornal Abaixo Assinado
O jornal Abaixo Assinado, de Jacarepaguá e das Vargens, no Rio de Janeiro, é um veículo de resistência. Instrumento de informação e formação, tem como objetivos estimular e auxiliar a organização e a mobilização dos trabalhadores no seu local de moradia e de trabalho; divulgar experiências comunitárias; debater as lutas e propostas do movimento social; e promover a cultura popular.
Jornal Voz das Comunidades
O Jornal Voz das comunidades – JVC –, como o nome já diz, nasceu para ser porta-voz das experiências comunitárias. Experiências essas que quase não são divulgadas na imprensa comercial (rádio, jornal e TV).
Esse material é ligado ao MCP (Movimento das Comunidades Populares), e tem como objetivo fortalecer as experiências Comunitárias Indígenas, Quilombolas, Camponesas, Operárias (Trabalhadores Urbanos) e da Juventude Popular, ou seja, construir uma Frente Popular a partir do trabalho de base.
O jornal é publicado há mais de 10 anos. A tiragem atual é de 3.500 exemplares. Essa publicação circula nas cinco regiões do país, em mais de 20 estados. Temos colaboradores que surgem nas próprias Comunidades do MCP, e outr@s que, por simpatizarem com a linha editorial vão na prática divulgando o JVC nos seus espaços de atuação. Passam a enviar relatos e até matérias. Fazem distribuição, campanhas e conquistam novos leitores.
A orientação da direção do JVC é organizar grupos de colaboradores nas comunidades, regiões, estados. Na prática, hoje, temos grupos que se reúnem para discutir e encaminhar tarefas do JVC em Pernambuco, Maranhão, Rio de Janeiro e Bahia. Entre colaboradores individuais, permanentes, no último levantamento, chegamos ao número de 35 companheir@aterraeredonda
Jornalismo B
O blog Jornalismo B nasceu em outubro de 2007. Desde lá, com posts diários, busca desconstruir o discurso da mídia dominante, com análises equilibradas e a defesa intransigente da democratização da comunicação.
A pauta fundamental é o fortalecimento da mídia alternativa e a luta pela democracia na comunicação, com o direito à voz estendido a toda a população, encerrando o monopólio discursivo exercido por apenas onze famílias em todo o país. O trabalho é conectado com diversos outros espaços de mídia alternativa.
Em maio de 2010 nasceu o Jornalismo B Impresso, como uma extensão desse projeto, reconstruindo o discurso a partir de uma visão plural, popular e democrática. Com a colaboração de diversos jornalistas, blogueiros e ativistas, construímos um jornal que trata de Política, Mídia, Cultura, História, Meio Ambiente e de outras temáticas ligadas às lutas sociais mais importantes do nosso tempo.
O jornal é financiado socialmente, com o apoio de quem acredita nas lutas que defendemos e quer também atuar em defesa da mídia alternativa.
O Jornalismo B Impresso circula quinzenalmente de forma gratuita em Porto Alegre, e pode ser assinado em qualquer lugar do Brasil, tendo hoje assinantes em quase todas as capitais do país e em diversas cidades do interior. São 500 exemplares a cada quinzena, distribuídos em cafés, restaurantes e centros culturais na região central da cidade, além de todos os campi da UFRGS.
Núcleo Piratininga de Comunicação
O NPC é constituído por um grupo de comunicadores, jornalistas, professores universitários, artistas gráficos, ilustradores e fotógrafos que trabalham com o objetivo de melhorar a comunicação, tanto de movimentos comunitários ou populares, quanto de sindicatos e outros coletivos.
Temos realizado esta tarefa de forma ininterrupta há mais de quatorze anos, principalmente através de cursos, palestras e seminários e produção de materiais de formação e informação.
Acreditamos que os trabalhadores e os setores populares precisam aperfeiçoar-se constantemente em sua comunicação para alcançar seu objetivo de construção de uma nova sociedade. Apresentamos a esses grupos sociais nossos conhecimentos adquiridos por meio da nossa formação específica e da nossa prática social.
As atividades do NPC remontam a 1992 e o acúmulo destas culminou na sua formalização jurídica em 1997, tornando-se uma organização civil sem fins lucrativos, legalmente constituída, com sede no Rio de Janeiro e atuação nacional.
Temos uma estrutura jurídica formada por uma Diretoria e um Conselho de Membros do NPC em vários estados do País (Rio de Janeiro, São Paulo, Paraná, Rio Grande do Sul, Mato Grosso e Ceará).
A estrutura do NPC possui uma equipe técnica responsável pelo trabalho administrativo. Contamos, também, com uma rede de mais de dez mil parceiros (na maior parte ex-alunos dos nossos cursos) com quem trabalhamos ao longo de nossa trajetória e com os quais estamos em constante contato, inclusive por meio de um boletim quinzenal especializado em comunicação sindical e popular.
Colaboramos, também, estreitamente com várias entidades e movimentos co-irmãos seja realizando ações conjuntas, seja solicitando ou oferecendo apoios pontuais.
Outras Palavras
Lançado em 2009, o site Outras Palavras tornou-se uma referência importante na galáxia da chamada “comunicação compartilhada” ou da “mídia livre”, abordando uma temática pouco presente neste universo: o exame crítico da globalização, as novas culturas políticas da autonomia e os movimentos de ocupação das redes e das ruas. O reconhecimento veio logo, em 2010 o site e as plataformas de redes sociais criadas em torno dele receberam, do Ministério da Cultura o Prêmio Ponto de Mídias Livres.
A linha editorial do site busca avançar naquilo que gostamos de denominar “pós-capitalismo” por um lado frisando a obsolescência das lógicas associadas ao sistema ainda hoje hegemônico (mercantilização da vida, lucro como valor supremo, concentração de riquezas, redução da natureza a “recurso”) e por outro iluminando propostas e alternativas que vem surgindo em todos os planos da vida social.
Com audiência expressiva, cerca de 10 mil textos lidos por dia, o site Outras Palavras reúne um grupo de 200 colaboradores brasileiros e, entre eles, alguns internacionais.
Semanalmente, o boletim de atualização de Outras Palavras seleciona as principais matérias da semana alcançando cerca 20 mil assinantes [assine aqui].
Empenhado em diversificar os formatos de um novo jornalismo compartilhado e colaborativo, desenvolvemos projetos especiais paralelos às publicações diárias, tais como coberturas colaborativas, webdocumentários, Séries especiais (de Política e Desenvolvimento) e a Escola Livre de Comunicação Compartilhada, que promoveu 40 oficinas de formação em midialivrismo, empoderando com ferramental e tecnologia dezenas de jovens para o exercício do jornalismo colaborativo.
Complementando a horizontalidade proposta pelo Blog da Redação, o Outras Mídias é a nossa seleção do melhor da mídia alternativa, é por meio dele que ampliamos o acesso de nossos leitores a um conteúdo de altíssima qualidade e diversidade, reunidos pela curadoria da equipe do Outras Palavras e para aqueles que desejam aprofundar os temas mais caros ao site Outras Palavras, criamos o Outros Livros, uma parceria com o Acervo Antropofágico que traz uma seleção preciosa de títulos do mercado editorial nacional e internacional.
Rádio Classista
A Rádio Classista tem como princípio não divulgar práticas de desrespeito às leis ambientais, às mulheres, crianças, aos jovens, idosos, afrodescendentes, povos indígenas, povos ciganos ou a outros povos e comunidades tradicionais, à população de baixa renda, às pessoas com deficiência, às lésbicas, aos gays, bissexuais, travestis e transexuais, ou que expresse qualquer outra forma de preconceito, religioso ou incentivo ao uso de drogas.
Rádio SindCT
No ar 24 horas por dia, a rádio web do SindCT possui uma programação musical de altíssimo nível, retransmite o Jornal da ONU-Brasil, e mantém um programa de entrevistas ao vivo, que acontece todas as segundas, quartas e sextas-feiras, às 15 horas, com o radialista Paulo Silva.
Rádio Trabalhador
A Rádio Trabalhador apresenta informações sempre do ponto de vista dos trabalhadores, das trabalhadoras e dos movimentos sociais organizados do campo e da cidade. Esse veículo é uma criação da Rede CUT de Comunicação – Goiás.
Século Diário
O Jornal Século Diário foi criado em maio de 2000. Com orientação editorial independente e foco na interpretação dos fatos, o Século Diário é leitura obrigatória para notícias do Espírito Santo.
Terra Sem Males
O Terra Sem Males é um projeto que pratica o jornalismo independente. Queremos uma comunicação popular e acessível para os trabalhadores e trabalhadoras.
Nossa missão é dar voz e visibilidade às populações e povos que são deixadas de lado pelos donos da mídia convencional e atuar na defesa dos direitos humanos e dos trabalhadores.
Lutamos pela democratização da comunicação, para que seja efetivamente uma concessão pública de fato. E incentivamos a criação de novos espaços de comunicadores e comunicadoras populares.
Apostamos na produção de reportagens, sob o ponto de vista dos trabalhadores, com a valorização das imagens como fonte de informação.
Nosso objetivo é ampliar o acesso à comunicação popular. Contamos com uma estrutura que tem: site de notícias, redes sociais e um jornal impresso, que é temático e com distribuição gratuita.
Em 2016 o Terra Sem Males apareceu no Mapa do Jornalismo Independente, da Agência Pública.
Para manter o projeto (site, viagens para reportagens, exposições fotográficas, etc) vendemos fotos, temos espaços publicitários no site e vamos criar um sistema de assinatura. Acreditamos que temos potencial para crescer mais, com qualidade e compromisso. Para isto precisamos da ajuda de vocês, leitores.
Vias de Fato
O Vias de Fato é um jornal de doze páginas, tamanho tabloide, que circula mensalmente no Maranhão.
Vozes das Comunidades
O blog Vozes das Comunidades é alimentado por alunos do Curso de Comunicação Popular do (NPC), que é realizado anualmente no Rio de Janeiro com apoio da Fundação Rosa Luxemburgo. Participam do curso moradores de favelas ou ocupações, militantes sociais diversos, jornalistas, estudantes e demais interessados em construir a comunicação comunitária, aquela que dá voz a quem normalmente não possui espaço nos meios tradicionais. Ao longo do curso aprendemos a importância de construirmos uma mídia contra-hegemônica para construir um mundo mais justo. Também temos aulas práticas de internet, redação, diagramação, edição de vídeos etc.
Fonte: Outras Palavras
Revista online | Balanço do mês da janela partidária
Arlindo Fernandes de Oliveira*, especial para a revista Política Democrática online
Como se esperava, uma grande quantidade de agentes políticos valeu-se da licença legal chamada “janela partidária”, também conhecida como “janela de infidelidade”, para trocar de partido durante o mês de março deste ano de 2022.
Vale breve memória sobre como o tema vem sendo tratado pela lei e sua leitura judicial: no ano de 2007, o Poder Judiciário havia decidido que o mandato eletivo obtido nas eleições proporcionais pertence ao partido pelo qual o mandatário foi candidato. Na época, a decisão foi saudada como algo muito positivo e inovador, pois “finalmente alguém coloca alguma ordem nesta barafunda partidária”.
Perde o mandato quem alterar sua filiação partidária, decidiu, sob aplausos, o Supremo Tribunal Federal (STF). No caso, a decisão veio em respaldo à outra, adotada pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Havia a ressalva da justa causa, e sua definição. Depois esse entendimento foi, por pouco tempo, estendido aos mandatos obtidos pelo sistema majoritário.
Em seguida, aos poucos, vieram as mitigações desse entendimento: decidiu-se, em 2010, excluir do dever de fidelidade partidária quem houvesse sido eleito pelo sistema majoritário, vale dizer, prefeito, governador e presidente, e, no plano legislativo, senador. São agentes políticos que recebem um voto também pessoal, alegou-se então.
Quanto aos eleitos pelo sistema proporcional, a Lei dos Partidos havia sido alterada para ensejar, na forma como definira o TSE, que também estaria autorizado à infidelidade, isento de qualquer pena, quem saísse de um partido para participar da criação de outro. Essa decisão foi, certamente, um dos principais motores da proliferação de partidos políticos que veio a ocorrer na década seguinte.
Daí termos, por algum tempo, poucas situações em que o detentor de mandato eletivo pudesse alterar sua filiação partidária sem ônus jurídico: caso detentor de mandato majoritário; caso participasse de criação de novo partido; caso seu partido participasse de processo de fusão ou incorporação; na hipótese de mudança substancial ou desvio reiterado da sigla do programa partidário original; e, finalmente, caso fosse reconhecida pela Justiça Eleitoral uma situação de perseguição dentro do partido.
Na chamada Lei da Minirreforma Eleitoral (n° 13.615, de 2015), acrescentou-se nova norma à Lei dos Partidos para permitir ao parlamentar alterar sua filiação partidária, sem necessidade de justificação, no prazo de 30 dias, seis meses antes das eleições, ou seja, até o mesmo prazo exigido de filiação partidária e domicílio eleitoral para concorrer ao pleito. O chamado “transfugismo partidário” passou a dispor de uma nova e ampla licença.
No mesmo momento, foram excluídas da Lei Partidária duas hipóteses permissivas de mudança de filiação sem ônus jurídico da perda do mando, a participação em fusão ou incorporação ou a criação de novo partido.
Os parlamentares passaram a contar, portanto, com um mês a cada quatro anos para pular a janela da fidelidade partidária, na bem-humorada definição dos jornalistas que cobriam o Congresso.
No texto da lei, somente poderia alterar a filiação partidária, em tese, aqueles parlamentares que ocupam um dos cargos que estará em disputa nas eleições seis meses depois, ou seja, deputados federais e deputados estaduais/distritais. Entretanto, neste ano de 2022, detentores do cargo de vereador, que não estarão em disputa no pleito de outubro, valeram-se da licença legal para também mudar de partido. Desconhecemos questionamentos judiciais a esse respeito.
Chamam muito a atenção do observador, na análise do período da janela de infidelidade do mês de março de 2022, dois aspectos muito relevantes e pouco comentados: em primeiro lugar, praticamente desaparecem os questionamentos de natureza ética ou moral sobre a incoerência político-ideológica, o desrespeito ao eleitor e a fraude contra sua vontade de quem altera a filiação partidária como quem muda de camisa.
Como esse comportamento, antes famigerado e denunciado como imoral e antiético troca-troca, promovido à custa de manipulações e corrupção, passou a ser do interesse de grupos políticos governantes, esse fato, de súbito, começa a ser descrito como algo inevitável, como se evento da natureza fosse observado por muitos de forma desprovida de qualquer senso crítico.
O segundo aspecto a considerar é que as análises respectivas ao processo se limitaram a uma descrição aritmética sobre quem ganha e quem perde nas bancadas, especialmente na Câmara dos Deputados, sem apreciar outros aspectos desse contexto, os efeitos legais inclusive, como os denominadores e os divisores dos recursos dos fundos partidário e eleitoral e do tempo de propaganda no rádio e na TV.
Por exemplo, um partido que elegeu 60 deputados federais em 2018 e perdeu 20 no troca-troca de 2022 é visto como perdedor, por ver diminuída sua bancada na Câmara. Não se vê, por exemplo, que as mudanças produzem um efeito bastante limitado na definição dos recursos do Fundo Eleitoral, e nenhum efeito na definição do volume de recursos do Fundo Partidário, que tem como referência a votação para deputado federal obtida pelo partido no pleito de 2018. Ou seja, na prática, os 40 deputados que remanesceram nesse partido terão a seu dispor os recursos que correspondem à bancada de 60 federais, pois os deputados que saíram não carregam consigo os recursos respectivos ao seu mandato (Fundo Eleitoral) ou aos votos (Fundo Partidário).
O mesmo ocorre com relação do tempo de propaganda eleitoral na televisão e no rádio: o tempo é repartido de duas formas, 10% igual para todos os partidos e 90% na proporção da bancada de cada partido na Câmara dos Deputados, que, neste caso, é a bancada resultante da eleição anterior.
Ou seja, ganha, em ambas as situações, o deputado federal ou o candidato a deputado federal (ou a qualquer outro cargo) que permaneceu filiado ao partido original, pois haverá um contexto de menos candidatos à reeleição com mais recursos e mais tempo de antena, ao passo que os que pularam a janela da infidelidade afluíram normalmente para partidos com bancadas mais numerosas. Serão, ao fim das contas, candidatos com menos recursos e menos tempo de TV e de rádio para suas campanhas.
Faz sentido. Alguma coisa, afinal, deve haver para prestigiar quem se manteve coerente com o mandato partidário que a cidadania lhe concedeu.
Saiba mais sobre o autor
*Arlindo Fernandes de Oliveira é consultor do Senado e especialista em Direito Eleitoral
** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática online de abril de 2022 (42ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.
*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores. Por isso, não reflete, necessariamente, as opiniões da publicação.
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Nas entrelinhas: Áudios rompem o silêncio militar sobre torturas
Luiz Carlos Azedo / Nas Entrelinhas / Correio Braziliense
Questionado sobre os áudios divulgados pela jornalista Míriam Leitão em sua coluna no jornal O Globo, que mostram sessões do Superior Tribunal Militar (STM) na época do governo ditatorial, nas quais os ministros generais que integravam o órgão falam sobre torturas, o vice-presidente Hamilton Mourão respondeu: “Apurar o quê? Os caras já morreram tudo, pô. (risos). Vai trazer os caras do túmulo de volta?”
General da reserva, Mourão traduziu uma espécie de senso comum entre os militares: o silêncio das Forças Armadas em relação à questão das torturas, dos assassinatos e dos desaparecimentos de oposicionistas durante o regime militar. Colocou-se uma pedra sobre esse assunto. As Forças Armadas se recusam a revisitá-lo publicamente, com um olhar autocrítico e democrático, como ocorreu em outros países.
Essa atitude é legitimada pelo pacto de aprovação da “anistia recíproca”, pelo Congresso, em 1979. O acordo entre o governo militar e a oposição, que beneficiou “subversivos” e torturadores, é um assunto sacramentado, também, pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Àquela época, a anistia foi um efetivo avanço em direção à democracia, pois possibilitou a libertação de presos políticos e a volta dos políticos exilados. Entretanto, enfrentou reações dos “porões” do antigo regime militar, inclusive por meio de atentados à bomba, entre os quais o do Rio Centro, que fracassou.
Naquela noite de 30 de abril de 1981, um show comemorativo do Dia do Trabalho reunia 20 mil pessoas no Rio Centro, na Zona Oeste do Rio de Janeiro, quando uma bomba explodiu no estacionamento. O sargento Guilherme Pereira do Rosário, que morreu na hora, e o capitão Wilson Luís Chaves Machado, gravemente ferido, preparavam o artefato no interior de um veículo Puma com placa fria, utilizado pelo Doi-Codi. Segundo as autoridades militares da época, estavam num serviço de rotina. Outra bomba colocada na casa de força do prédio não chegou a explodir.
Aquele episódio acabou sendo um divisor de águas do processo de abertura política, que iria desaguar na eleição de governadores oposicionistas, em 1982; na campanha das Diretas Já; e na eleição de Tancredo Neves, em 1985, no colégio eleitoral, que pôs fim ao regime militar. Caso o atentado fosse bem-sucedido, resultaria num massacre de artistas, estudantes e sindicalistas. Nada ocorreu com o capitão Wilson Machado, que se recuperou dos graves ferimentos, continuou no serviço ativo e chegou a ser professor no Colégio Militar de Brasília.
Vez por outra, como agora, o militar terrorista é lembrado. Reformado como coronel, é a única testemunha viva do atentado do Rio Centro. Ao contrário do que disse o general Mourão, outros 97 militares envolvidos com as torturas também estão vivos, segundo lista divulgada pelo Instituto Vladimir Herzog, criado em memória do jornalista assassinado nas dependências do Doi-Codi, na Rua Tutóia, em São Paulo, em 1975.
Política de Estado
O presidente Jair Bolsonaro trata-os como heróis, a começar pelo falecido coronel Carlos Brilhante Ustra, sob cujo comando registram-se 434 oposicionistas mortos pelo Doi-Codi. Os áudios das sessões do STM revelam que a cúpula militar tinha conhecimento das torturas e dos assassinatos e não mandou investigar, inclusive no governo do presidente Ernesto Geisel, que chegou a admitir a existência de torturas num longo depoimento a Maria Celina D’Araújo e Celso Castro. Somente após a morte de Herzog, que provocou ampla mobilização da sociedade civil, Geisel reagiu à linha-dura e impôs sua autoridade aos quartéis.
Os áudios foram reunidos e analisados pelo professor Carlos Fico, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, que pesquisa a memória do regime militar. Só foram liberados pelo STM em razão de decisão do Supremo Tribunal Federal, a pedido do advogado Fernando Fernandes. A ministra Maria Elizabeth Rocha, do STM, classificou como positiva a divulgação: “Importante serem revelados esses áudios porque tudo faz parte da história do país, memória do país — e para que erros não se repitam”, declarou.
A tortura e a eliminação física de oposicionistas foram uma política de Estado, denunciada por suas vítimas e respectivos advogados nos tribunais. Não eram divulgadas pela imprensa como deveriam porque havia censura. O que chegava às redações oficialmente eram relatos fantasiosos, típicos das estratégias militares de contrainformação. As denúncias de prisões e sequestros, feitas por advogados e familiares, não podiam ser publicadas. Os registros oficiais, lacônicos, eram publicados nas páginas de notícias policiais.
As denúncias, entretanto, circulavam por meio de publicações clandestinas, como o boletim Notícias Censuradas, com informações colhidas nas redações, e o jornal Voz Operária, órgão central do antigo PCB, que deixou de ser impresso no Brasil após os órgãos de repressão localizarem sua principal gráfica, em Campo Grande, em janeiro de 1975, numa operação que deixou um rastro de prisões, torturas e assassinatos, entre os quais o de Orlando Bomfim Junior, responsável pela publicação, cujo corpo nunca foi encontrado nem sua prisão reconhecida.
Fernando Gabeira: Brasília está mais truculenta
O Globo
De novo em Brasília, pois fiz uma viagem pelo Amazonas, e faltou ouvir os índios. Alguns líderes estão reunidos em Brasília.
Esta passagem é diferente das outras. Sempre falava com o fotógrafo Orlando Brito, ao chegar. Ele me mantinha informado de tudo o que se passa por aqui.
A cidade para mim nunca mais será a mesma sem Brito. Somos jornalistas de velha geração, dinossauros transitando pelas quadras do plano-piloto.
Quando mudava o governo, vinha aqui fazer matéria sobre a nova Corte, o grupo de vitoriosos que se instala em Brasília, com seus costumes, preferências culinárias, suas estranhas figuras.
Brito era meu cicerone. Às vezes, me transmitia a psicologia do presidente. Sensível, a cada manhã, intuía o humor do homem ou da mulher mais poderosa do Brasil:
— O Bolsonaro está maluco. Usou o helicóptero para ir do Alvorada ao Planalto.
Essas histórias, como aquela confissão de Bolsonaro de que sua vida era uma desgraça, a nostalgia pelo caldo de cana— tudo isso, soube antes de sair nos jornais.
Ainda tenho uma dezena de amigos no Congresso. Mas o clima é desolador. Na verdade, o poder tenta resolver as eleições de Brasília. A união do Centrão com Bolsonaro é poderosa porque canaliza muito dinheiro para que continuem mandando no país. E não é só o auxílio emergencial, mas sobretudo o orçamento secreto.
Eles destinam robôs para escolas que não têm água potável, superfaturam; enfim, fazem o diabo porque o controle é precário, e há a confiança de que a luta contra a corrupção no Brasil retrocedeu.
O tema que me trouxe aqui, a Amazônia, passa ao largo. Pesquisas feitas na rede indicam que praticamente não há parlamentar cuidando do tema no mundo virtual.
Os índios fazem protesto, mas ninguém parece escutá-los. O garimpo invade suas terras, como é o caso dos ianomâmis, polui suas águas, violenta as jovens da tribo.
Uma autoridade do próprio governo me revelou que a situação nas terras ianomâmis está fora de controle. Houve quatro mortes, os garimpeiros ocuparam o posto de saúde para colocar seus equipamentos. São 30 mil pessoas buscando ouro.
Júnior Yanomami, a quem entrevistei por aqui, me disse que, além de toda essa desgraça, há um barulho incessante. Quem estava acostumado apenas com o ruído das florestas escuta apenas motores que não param. Não se ouvem mais os animais, pois desapareceram ou foram caçados a tiro.
Isso não interessa aos brancos, mas deveria interessar. Os grandes rios são o elo entre cidade e floresta. Recentemente, uma pesquisa feita em Santarém revelou que as comunidades à beira do Tapajós estão contaminadas por mercúrio num nível muito superior ao tolerável, de acordo com os padrões da Organização Mundial da Saúde.
Como se não bastasse o veneno do mercúrio, há ainda o perigo do tráfico de animais. A indiferença diante da devastação não se justifica. O desmatamento e o tráfico de animais podem estar gestando novas pandemias. Quando acontecem, já é tarde: as perdas humanas e materiais são imensas.
Andando pelo acampamento dos índios de tão diferentes etnias, lembrando-me do Brito, grande pessoa e excelente fotógrafo, sinto que o Brasil tal como conhecemos e amamos está em grande perigo.
Apesar de o Censo oficial contar cerca de 900 mil índios, não existem mais do que 300 mil de verdade. Eles resistem numa floresta que também pode desaparecer como fonte de importantes serviços ambientais.
Isso parece importar pouco para a coligação que nos governa: extrema direita, Centrão, militares e evangélicos. Numa dessas manifestações antidemocráticas, para variar, espancaram repórteres e derrubaram os óculos do Brito.
Quando nos falamos logo depois, ele simplesmente tinha trocado de óculos e continuado seu trabalho. Estamos num longo túnel e temos de continuar vivendo. Ainda bem que os amigos mortos não se foram completamente e sobrevivem, dentro de nós, para nos animar.
Fonte: Democracia e Novo Reformismo ( https://gilvanmelo.blogspot.com/2022/04/fernando-gabeira-brasilia-esta-mais.html?m=1)
Revista online | Políticas de desenvolvimento regional no Brasil: entre a fragmentação e a resiliência das desigualdades
Luiz Ricardo Cavalcante*
O Brasil é recorrentemente apontado como um dos países mais regionalmente desiguais do mundo. Essas desigualdades evidenciam-se, por exemplo, nos indicadores de PIB per capita, muito inferiores à média nacional no norte e nordeste. Os percentuais relativos dessas regiões se mantêm mais ou menos estáveis desde pelo menos a metade do século XX, quando políticas com foco explícito em seu desenvolvimento começaram a ser adotadas no país.
O processo teve início na década de 1950, quando foram criados o BNB, a Sudam e a Sudene. Na década seguinte, foi a vez da Zona Franca de Manaus (ZFM). Criados na década de 1980, os fundos constitucionais de financiamento dirigiram-se para as regiões norte (FNO), nordeste (FNE) e centro-oeste (FCO). A esse conjunto pode se somar a Sudeco, as áreas de livre comércio e as zonas de processamento de exportações, além de outras iniciativas menores. Em seu conjunto, esses instrumentos oferecem incentivos fiscais e financeiros para investimentos nas regiões menos desenvolvidas do Brasil a um custo fiscal da ordem de 0,75% do PIB em 2018. Trata-se de um valor correspondente a cerca de 1,7 vezes em relação ao orçamento do Programa Bolsa Família daquele ano.
A lógica é romper uma espécie de círculo vicioso observado nas regiões menos desenvolvidas: os investimentos as evitam porque nelas não há oferta de insumos ou de mão de obra especializada, e a baixa oferta decorre da ausência de demanda. A ideia é, portanto, oferecer menores níveis de tributação e empréstimos em condições mais favoráveis para que novas empresas se instalem nas regiões menos desenvolvidas e rompam uma espécie de armadilha em que essas regiões se encontram. Os investimentos criariam economias de aglomeração que permitiriam que, após algum tempo, as regiões beneficiadas já não precisassem dos incentivos.
Ao se examinar o histórico desses instrumentos no Brasil, fica evidente que não houve diretriz unificada que orientasse sua adoção. A ausência de coordenação das ações pode ser atribuída a uma espécie de “desbalanceamento” já apontado em análises da Política Nacional de Desenvolvimento Regional (PNDR). Nesse “marco legal invertido”, instrumentos específicos – como a ZFM, o FNO, o FNE e o FCO – têm previsão constitucional, ao passo que as superintendências de desenvolvimento regional – que, em tese, teriam um caráter mais estruturante – têm apenas previsão legal. A eventual coordenação dos instrumentos, por sua vez, seria feita pela PNDR, editada por decreto.
Na ausência de uma coordenação explícita e de uma definição constitucional ou legal de prioridades, a abrangência geográfica dos vários instrumentos assume contornos fortuitos, resultantes da ocasional capacidade de mobilização de representantes de regiões específicas. Eventuais tentativas de criação de um padrão de intervenção – como aquela proposta na PNDR – fracassaram porque não têm força constitucional ou legal. Acresce que municípios mais ricos em regiões pobres dificilmente estariam dispostos a abrir mão dos incentivos que têm hoje em favor de uma distribuição mais sistemática dos recursos.
Uma análise das proposições legislativas sobre o tema indicou, por exemplo, que há incentivo para que os parlamentares busquem beneficiar as regiões onde estão suas bases eleitorais, ainda que seus indicadores agregados não sejam necessariamente inferiores à média nacional. Nesse quadro, embora a adoção de políticas explícitas de desenvolvimento regional remonte à década de 1950, as desigualdades regionais no país que lhes deram origem parecem bastante resilientes. Os indicadores de desenvolvimento das regiões norte e nordeste se mantêm mais ou menos estáveis em relação à média nacional, embora a região centro-oeste – destinatária do FCO, mas que não conta com incentivos como os da Sudam ou da Sudene – a tenha superado.
A resiliência das desigualdades regionais sugere que haveria espaço para uma melhor alocação dos recursos destinados à sua superação. Não se trata apenas da distribuição regional dos recursos, mas da própria natureza dos instrumentos, uma vez que há evidências de que formatos alternativos em alguns casos podem ser mais bem sucedidos. Por exemplo, já se mostrou, há mais de dez anos, que programas sociais têm forte impacto na redução das desigualdades regionais. Iniciativas mais ajustadas às realidades locais podem também contribuir para maior enraizamento dos investimentos, evitando o caráter itinerante das empresas que se movem de acordo com os incentivos que lhes são oferecidos e que não criam as economias de aglomeração que motivaram as políticas originais. Na ausência de coordenação e de reflexões desse tipo, as políticas de desenvolvimento regional correm o risco de se converter em um balcão permanente de reivindicações fragmentadas, perpetuando as desigualdades apontadas no início deste artigo.
Saiba mais sobre o autor
*Luiz Ricardo Cavalcante é consultor legislativo do Senado Federal e professor do Mestrado em Administração Pública do IDP.
** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática online de abril de 2022 (42ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.
*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores. Por isso, não reflete, necessariamente, as opiniões da publicação.
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PL das Fake News: o que é e por que está sendo sabotado
Projeto que visa enfrentar o abuso do poder econômico nas redes – e obrigar gigantes da internet a revelar quem financia a desinformação – foi travado na Câmara. Em campanha truculenta, corporações tentam manipular o debate público
Renata Mielli/ Outras Palavras
A campanha de terrorismo midiático realizada principalmente por Google e Facebook – somada à ação de bastidores junto aos deputados e deputadas nas últimas semanas contra o Projeto de Lei 2630, conhecido como PL das Fake News – resultou em não aprovação pelo plenário, neste 6 de abril, do requerimento de urgência para que o projeto entrasse na pauta da Câmara. Ainda funcionando em regime especial em função da covid-19, ele precisava que um pedido de urgência fosse aprovado.
O projeto dispõe sobre uma Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet e estrutura um elenco de obrigações, regras e mecanismos de governança para enfrentar o abuso do poder econômico nas redes. Isso permitiria aos cidadãos e aos órgãos públicos identificar conteúdos de publicidade e impulsionados, saber o montante e a origem de recursos usados – como, por exemplo, os usados para impulsionar conteúdos pregando o inexistente “tratamento precoce” contra a covid-19 que tantos prejuízos trouxeram (e ainda trazem) à Saúde. Ou seja, o projeto obriga as corporações de internet, que prestam serviços para centenas de milhões de brasileiros, a fornecerem informações para que a sociedade compreenda como as fake news circulam e são patrocinadas, o que é fundamental para adotar medidas para combatê-las.
Dedica uma seção inteira para elencar os Deveres de Transparências que os provedores de redes sociais, serviços de mensageria e ferramentas de busca devem observar no país. Apenas para citar algumas, apontaria a obrigação de transparência sobre a elaboração e aplicação dos termos e políticas de uso dessas empresas, divulgação de relatórios semestrais com informações sobre número total de usuários no Brasil, quais critérios são usados para remover conteúdos e contas, o volume total de medidas de moderação (exclusão, indisponibilização, redução de alcance, rotulação) de contas e conteúdos por motivação – termos de uso, decisões judiciais ou para fins de aplicação da lei, volume de decisões da plataforma que foram revertidas, características das equipes de moderação, como idioma de trabalho, indicativos de diversidade, nacionalidade e outros, isso para citar apenas uma parcela das obrigações de transparência.
Há, também, um conjunto robusto de regras de transparência sobre impulsionamentos, publicidades e também sobre como agentes públicos fazem uso de suas redes próprias e como o Estado direciona recursos de publicidade para contas em redes sociais.
Se o fenômeno da desinformação – e seu impacto atual – está relacionado às dinâmicas de circulação da informação no interior das plataformas, se elas ganham alcance e velocidade graças aos fatores de relevância considerados pelos algoritmos e pela soma de recursos aplicadas em impulsionamento e publicidade, ter mais transparência sobre a operação dessas empresas é estratégico para enfrentar as fake news.
O projeto 2630 está em debate na Câmara desde agosto de 2020. Ao longo desses quase dois anos de debate, foram organizados por iniciativa do atual relator, o deputado federal Orlando Silva (PCdoB/SP), e dois seminários com a participação de centenas de especialistas. Organizações da sociedade civil, entidades acadêmicas e empresariais também realizaram inúmeros eventos sobre o PL e, ao longo desse período, o tema foi tratado na mídia especializada e em veículos jornalísticos. Houve, portanto, um amplo debate que resultou num aprofundamento de muitos dispositivos e amadurecimento do que é a espinha dorsal do projeto. A ofensiva atual das Big Techs nesta reta final é justamente uma reação a isso.
Terrorismo midiático das Big Techs contra o projeto
Com medo da regulação, as plataformas como Google, Youtube, Facebook e outras iniciaram uma campanha de vale tudo para tentar colocar a sociedade contra o PL 2630 – e a possível criação de dispositivos para regulá-las.
Em 3/3 deste ano, o Facebook veiculou propaganda em jornais de grande circulação nacional com o título: “O PL das Fake News deveria combater Fake News. E não a lanchonete do seu bairro”. No dia 11, foi a vez do Google soltar nota dizendo que, caso aprovado, o PL modificaria “a internet como você conhece”. No dia 14, o Google também colocou em sua página inicial um link para a nota, de forma que todos os usuários que fizeram uma busca neste dia entraram em contato com a visão alarmista da empresa sobre o projeto. Além disso, a corporação estadunidense circulou publicidades em outras plataformas com essa mesma retórica do medo, um mecanismo largamente usado para estruturar conteúdos de desinformação e manipular a opinião pública.
Na semana de votação da urgência, de novo o Google usou sua home para fazer campanha contra o PL. Os milhões de brasileiros que acessaram o site Google Brasil se depararam com link que os redirecionavam para um texto com o seguinte título: “Saiba como o projeto de lei 2630 pode obrigar o Google a financiar notícias falsas” (Leia o teor da “campanha” aqui). No blog brasileiro da corporação, estava um artigo assinado pelo seu presidente, Fábio Coelho, argumentando que o PL “pode acabar promovendo [sic] mais notícias falsas no Brasil, e não menos”. Todo o projeto era criticado, em particular o artigo 38 que obrigaria as plataformas a remunerarem as empresas jornalísticas pelo uso de seus conteúdos.
O fenômeno da desinformação – e seu impacto atual – está relacionado às dinâmicas de circulação da informação no interior das plataformas: elas ganham alcance e velocidade graças aos fatores de relevância considerados pelos algoritmos e pela soma de recursos aplicadas em impulsionamento e publicidade. Portanto, o Google, por exemplo, não precisa de lei nenhuma para “financiar notícias falsas”, pois já é um dos maiores disseminadores e financiadores da desinformação através de anúncios do Google Adsense e dos seus mecanismos de indexação de buscas. Mas, quanto a esse fato, não há sequer uma linha no texto do presidente do Google Brasil.
Anúncios via Google Adsense, o pote de ouro da desinformação
O modelo de negócios das Big Techs – e particularmente das plataformas da empresa Alphabet – holding estadunidense que é a dona do Google – baseia-se na escala gerada por viralização orgânica ou patrocinada, determinada por palavras chaves, que alimentam um sistema online de leilões de publicidade. O objetivo: direcionar conteúdos de forma segmentada, com base no perfil de cada usuário, e maximizar a monetização da plataforma e do canal/página que recebe o anúncio.
Esse mecanismo gera distorções no debate público, pois favorece sites e páginas que publicam seus materiais a partir da busca de cliques, usando manchetes, fotos, leads e recursos chamativos que abusam de elementos morais/emocionais. Busca-se, assim, capturar a atenção do internauta por meio do choque e do reflexo – e, logo, gerar um clique, um compartilhamento ou uma reação ao conteúdo.
Dessa forma, o Google – através de seus anúncios publicitários via o sistema Google Adsense – despeja milhões de reais em sites como Terça Livre (suspenso pela Justiça brasileira), Jornal da Cidade Online e muitos outros. Além disso, existem estratégias de publicação de conteúdos que modulam os mecanismos de funcionamento de seus algoritmos de indexação dos resultados de busca, definidos pelo Search Engine Optimization (SEO), para beneficiar a disseminação da desinformação. Isso sem falar dos algoritmos de recomendação de vídeo no caso do YouTube.
A pesquisa Follow the Money: How the Online Advertising Ecosystem Funds COVID-19 Junk News and Disinformation [“Siga o dinheiro: como o ecossistema de publicidade online financia as notícias-lixo e a desinformação sobre a covid-19”], publicada em 2020 pela Universidade de Oxford [1], mostra como o sistema de publicidade e de indexação do Google gerou receita para sites que propagavam a desinformação sobre a pandemia, dando mais visibilidade a estes conteúdos. “A plataforma de publicidade mais popular em ambos os conjuntos (jornalismo profissional e conteúdo tóxico e de desinformação) foi o Google. Mais da metade dos anúncios […] são fornecidos pelo Google: 59% dos domínios de notícias profissionais e 61% dos domínios de notícias tóxicas e desinformação usaram anúncios do Google”.
No Brasil, o Google tem gerado receita para os sites de desinformação através do Google Adsense e também intermediando as receitas de publicidade do governo. Reportagem de agosto de 2020, publicada pelo The Intercept Brasil, mostra como o governo Bolsonaro entregou mais de R$ 11 milhões em verbas públicas de publicidade para que o Google a transformasse em anúncios que foram direcionados para sites de extrema direita e que propagavam desinformação. Parte considerável desse dinheiro – até 68%, segundo o próprio Google – vai para o bolso dos editores desses sites via sistema AdSense.
“A CPMI [Comissão Parlamentar Mista de Inquérito] das Fake News já identificou dois milhões de anúncios publicitários do governo que foram parar em site de ‘conteúdo inadequado’ por meio do AdSense. Dezenas de sites de fake news foram beneficiados com esse dinheiro”, denuncia a reportagem. Essa mesma CPMI também apontou que, entre os que receberam recursos de publicidade com anúncios do governo federal feitos pelos Adsense, estava o Terça Livre, canal no Youtube do blogueiro Allan dos Santos, atualmente foragido da justiça brasileira. Outra reportagem, da agência de checagem Aos Fatos, mostrou como alguns sites como esse lucraram com desinformação durante a pandemia.
Em face disso tudo, o fato é gravíssimo: o Google usa o seu poder econômico – e dominância de mercado – para publicar anúncios em jornais de todo o Brasil e estampar sua home com desinformação sobre o PL 2630 e, assim, tentar interferir no debate regulatório brasileiro.
Mas e o PL 2630 e seu artigo 38?
O artigo 38 do PL das Fake News tem sido um dos mais polêmicos desde que apareceu pela primeira vez em uma das versões do relatório do deputado Orlando Silva. O propósito do dispositivo, de acordo com o parlamentar, é exatamente o de fortalecer o jornalismo e valorizar o conteúdo jornalístico, numa perspectiva de que a melhor maneira de combater a desinformação é oferecer para a sociedade mais informação de qualidade.
Austrália, Espanha, França, Canadá e outros países vêm criando dispositivos legais semelhantes para que as plataformas digitais remunerem o jornalismo. O debate é fundamental, uma vez que o modelo de publicidade que financiava a mídia antes do advento das corporações de internet foi impactado: os anunciantes migraram massivamente para as Big Techs. É fundamental, portanto, reequilibrar essa assimetria de mercado para valorizar a produção de conteúdo jornalístico.
Então, qual a polêmica em torno do artigo? A questão é que no Brasil não existe uma regulamentação da atividade jornalística e, sem uma definição do que é um veículo jornalístico ou um conteúdo jornalístico, a aplicação desse dispositivo, além de bastante frágil, pode trazer mais concentração de mercado, remunerando apenas os grandes e tradicionais meios de comunicação como Globo, Record, SBT, Folha de São Paulo, O Globo, Estadão etc – e prejudicando todo um conjunto de veículos pequenos e médios, nativos digitais ou não.
Além disso, detalhes necessários – como será o processo de remuneração? Como garantir que não só a empresa, mas o jornalista autor do conteúdo seja remunerado? Como trazer transparência para impedir as assimetrias citadas acima?, por exemplo – não são possíveis de serem feitos dentro de um projeto de lei, cujo escopo já é por si só complexo e não tem o objetivo de tratar de forma específica sobre essas questões.
Mas, é importante reconhecer que a nova versão do relatório, apresentada nesta semana pelo deputado, incorporou novos incisos para detalhar um pouco mais o artigo, trazendo salvaguardas para deixar mais explícito o seu objetivo. Todas as questões que geravam certa insegurança quanto a esse artigo foram resolvidas, não. Mas, ao contrário do que sugeria o lobby da Big Tech, não há nada no artigo que vá obrigar plataformas como o Google a financiarem sites de desinformação. Esse é um argumento de má fé, construído para colocar a sociedade contra o projeto e tirar o foco do motivo real pelo qual Google & Cia tentam sabotar a aprovação do PL: impedir que o Brasil, como poucos países já o fizeram, avance na criação de mecanismo de transparência para as atividades dessas corporações de internet, e tantos outros comandos que podem, ainda que de forma muito inicial, impor regras e acabar com a discricionariedade e a falta de compromisso com o interesse público que elas demonstrar nutrir.
[1] Pequisa publicada pelo The Computational Propaganda Project (COMPROP), which is based at the Oxford Internet Institute, University of Oxford,
Fonte: Outras Palavras
Revista online | Derrota de Bolsonaro é essencial para o Brasil, analisa Marco Antonio Villa
Equipe da Política Democrática e Paulo Roberto de Almeida, como convidado especial
O historiador Marco Antonio Villa acredita que o maior desafio para o Brasil, nos próximos anos, é o crescimento econômico com democracia. Para isso, segundo ele, é necessário que o presidente Jair Bolsonaro (PL) seja derrotado nas eleições de outubro deste ano. Professor aposentado da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), colunista do UOL e autor de mais 30 livros, Villa é o entrevistado especial desta 42ª edição da revista Política Democrática online (abril/2022).
Marco Antonio Villa, que lançou no fim de 2021 o livro Um País Chamado Brasil - que apresenta panorama sobre a formação econômica, política e cultural nacional -, afirma que há uma crise de lideranças políticas brasileiras, o que, conforme analisa, fortalece os extremismos. Contudo, na avaliação do escritor, transformações importantes ocorrem na América Latina e Europa em relação à democracia, e a população precisa manter o otimismo.
A guerra entre Rússia e Ucrânia é outro tema abordado com profundidade pelo entrevistado. “O mundo está passando por transformações abruptas desde 24 de fevereiro. Até então, a história tinha registro de dois pontos de inflexão: a segunda guerra e a queda do muro de Berlim”, explica. “A invasão russa da Ucrânia lança novo desafio para todos nós, nos planos da economia, da política e da sociedade”, complementa.
As dificuldades da terceira via e os cenários políticos para as eleições de 2022 no Brasil também estão entre os temas da entrevista especial. Confira, a seguir, os principais trechos da conversa Marco Antonio Villa.
Revista Política Democrática Online (RPD): Seu livro Um país chamado Brasil consegue ser uma crônica de nossa trajetória desde o descobrimento até o século 21, portanto, de leitura leve e envolvente. Sem descurar o rigor histórico, traça a origem de várias distorções de nossa formação. Destaco apenas uma: o descaso dos governantes quanto às necessidades e às aspirações das classes menos favorecidas. Herbert de Souza, o saudoso Betinho, costumava falar da incapacidade da elite de elaborar um conceito de humanidade que incluísse o pobre. Seu livro ilustra essa assertiva. Seria esse o maior óbice ao nosso projeto de desenvolvimento, isto é, enquanto não corrigirmos as imensas desigualdades, o Brasil não poderá decolar?
Marco Antonio Villa (MV): Uma das questões importantes do século 20 brasileiro, especialmente do período 1930 e 1980, meio século, portanto, quando o Brasil exibia os mais elevados índices de crescimento no Ocidente, era precisamente como incorporar as classes populares, no sentido sociológico mais amplo, ao processo político e aos ganhos do desenvolvimento econômico. Basta levantar a literatura no campo da economia, da sociologia, da política, da história dessa época.
A cidade de São Paulo, no final dos anos 1950 e anos 1960, era conhecida como a que mais crescia no mundo. E não era exagero. Era uma verdade, como resultado da industrialização, do deslocamento populacional do nordeste e do próprio interior do Estado para a cidade, para a região metropolitana, que desenvolveram os serviços, modernizaram o Estado, impulsionaram a infraestrutura. Dá gosto explorar os sebos do centro da cidade e olhar aquelas estantes de sociologia, cheias de projetos para o Brasil, em que tudo se discutia. Mas a questão hoje não é incorporar na base programas sociais e intervenções imediatas da dimensão de um Bolsa Família, hoje renomeado e mal elaborado. Além disso, são necessários, para se combater com eficácia a miséria e a pobreza, programas efetivos que desloquem socialmente, usando uma expressão ao Elio Gaspari, o andar de baixo para andares intermediários na estrutura social brasileira.
Esse é o grande desafio da atualidade, políticas permanentes. É a condição sine qua non para o país voltar a crescer. Fico ouvindo discussões sobre como melhorar a defesa dos direitos trabalhistas no campo do direito, quando, na verdade, a questão central não está no que falta ou sobra na legislação trabalhista. A questão é que a economia não volta a crescer, como crescemos em certo momento da nossa história. Se olharmos as últimas quatro décadas – a de 80, a de 90 no século passado e as duas primeiras deste século – são quase décadas perdidas. Quando dizíamos que os anos 80 foram uma década perdida, tínhamos como referência os anos 60 e 70. Mas, na comparação com o que veio depois, não há dúvida de que 80 foi a melhor das últimas quatro décadas.
O desafio é, portanto, voltar a crescer e combinar crescimento econômico, que em si já é um desafio, com democracia. Este é o desafio duplo brasileiro. Já tivemos, em certo momento da nossa história, no século 20, crescimento econômico sem democracia: durante o primeiro governo Vargas e durante a ditadura militar. A democracia plena foi recuperada a partir da Constituição de 1988. O que precisamos agora é voltar a crescer de forma sustentável mesmo, ter um papel de destaque no mundo, entrar nas cadeias produtivas globais. Tudo isso que se fala todo dia, e, ao mesmo tempo, enraizar o que dizia Otávio Mangabeira, essa plantinha tão frágil que é a democracia no Brasil.
RPD: Virou moda, hoje em dia, matizar o conceito de democracia diante das dificuldades de o sistema capitalista fazer refletir sobre os níveis de renda e emprego da população, os frutos das incessantes conquistas alcançadas pela tecnologia. Seria essa a origem de discursos políticos alternativos, populistas e demagógicos, que buscam simplificar conceitos que fissuram o edifício da democracia para valorizar o recurso à discórdia, senão o ódio, entre os cidadãos?
MV: Na breve conversa que tivemos hoje no café da manhã, minha mulher fez uma relação entre a vitória do Orbán, na Hungria, a guerra da Rússia contra Ucrânia e questões do Brasil. É inevitável, muitas vezes, entrever uma leitura um pouco pessimista da conjuntura contemporânea. Não sou o doutor Pangloss redivivo, o célebre personagem de Voltaire, eternamente otimista. Mas temos que ver sempre um outro lado das questões. Estamos com o espírito tão baixo – natural depois da tragédia do governo Bolsonaro – que não conseguimos ver transformações importantes e positivas que estão ocorrendo no mundo até mesmo no tocante à democracia.
Por exemplo, o que está ocorrendo no Chile é muito positivo e torço muito para que dê tudo certo lá e influencie nas eleições na Colômbia, onde são promissores os avanços na direção do fortalecimento da democracia. Lembro, ainda, os resultados da última eleição portuguesa, em que o partido socialista obteve a maioria absoluta das cadeiras. Na Alemanha, os sociais-democratas fizeram pelo menos o chanceler. Vamos ver o que vai acontecer na França, onde tudo é sempre problemático. Macron deverá vencer no segundo turno, mas a extrema direita é historicamente fortíssima. Basta recordar que, no século 19, se germinou todo aquele antissemitismo alemão, cujo padrão teórico veio de Gobineau, na França, e de Chamberlain, na Inglaterra.
O mundo está passando por transformações abruptas desde 24 de fevereiro. Até então, a história tinha registro de dois pontos de inflexão: a segunda guerra e a queda do muro de Berlim. A invasão russa da Ucrânia lança novo desafio para todos nós, nos planos da economia, da política e da sociedade.
Refiro-me, em particular, a essa disputa na sociedade em torno de questões identitárias. Reli, recentemente, textos – decerto de autoria de jovens pesquisadores – que refletem visões da sociologia americana que não se podem aplicar à realidade brasileira, na análise da revolução burguesa no Brasil e da integração do negro na sociedade de classe. As contradições do Brasil não são as mesmas da sociedade americana. Falar isso eu sei que é um terreno pantanoso, perigoso, mas temos que falar, não dá para tergiversar. A questão que envolve a identidade no Brasil não é naturalmente a mesma que a dos Estados Unidos, por exemplo.
São desafios, assim, que temos de considerar no campo acadêmico e no campo político. Há, infelizmente, nos tempos atuais, uma fratura entre esses dois campos, que não existia nos anos 1950, nos anos 1960. Basta recordar que, nos anos 1970, a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) promovia grandes reuniões, prática que se estendeu a alguns momentos da década de 1980. Hoje, temos só fratura, justo quando enfrentamos questões complicadíssimas e fundamentais que mereceriam nossos melhores esforços conjuntos para, senão resolvê-las, listar as melhores recomendações para equacioná-las.
RPD: Com relação à conjuntura política atual, estamos vivendo uma espécie de inflexão. A polarização entre Bolsonaro e Lula parecia ter vencedor garantido, mas começa a revelar uma certa reversão em favor do presidente, ao passo que forças da oposição batem cabeça. Essa avaliação é procedente? Em caso afirmativo, o que as forças oposicionistas deveriam fazer?
MV: Hoje de manhã, olhava no portal Metrópoles um levantamento interessante sobre o que acontecia há cerca de seis meses antes das eleições de 1989, 1994, 1998 e, sucessivamente, até 2018. Qual era o desenho eleitoral no primeiro e segundo turnos. O estudo verificou que, na maior parte das vezes, o retrato seis meses antes não foi o retrato do primeiro turno das eleições presidenciais. Pode ser que o fato se repita, não sei, é necessário cuidar.
Lembro que, em 2014, a morte do Eduardo Campos, em 13 de agosto, mudou a situação eleitoral. Naquela segunda quinzena de agosto e na primeira semana de setembro, Marina Silva passou a liderar as pesquisas, quando sofreu o maior bombardeio da história de fake news, na eleição mais suja das eleições presidenciais, e acabou chegando ao terceiro lugar no primeiro turno. Em 2018, o atentado de 6 de setembro afetou radicalmente as pesquisas pela exposição de cerca de um mês de Bolsonaro. O que poderá ocorrer em 2022? São aqueles fatos incontrolados, a bela história do futebol, do Sobrenatural de Almeida. Tem aqueles fatos que a gente não domina.
Há, ainda, outras variáveis. A pesquisa que saiu hoje (6/4/2022), do Instituto de Pesquisas Sociais, Políticas e Econômicas (Ipespe), dá 41% para Lula e 30%, Bolsonaro, confirmando que haverá segundo turno, diante da impossibilidade de se construírem alternativas em torno de uma chamada terceira via, seja por uma explosão de Ciro Gomes, seja por uma composição entre o MDB e o PSDB. Tudo indica que uma chapa liderada por Simone Tebet, uma mulher com ampla experiência política, poderia ser viável. Só que acertos desse tipo são bastante difíceis em momentos tão polarizados, tanto mais porque uma terceira via não pode ser buscada às vésperas das eleições. Teria de ser construída no processo cultural, como um produto da história, pelo menos desde 2019, e não agora, diante da cristalização de tantas rivalidades regionais e interesses pessoais. Tenho vontade de rir quando ouço algumas análises no sentido de que, em julho, todos se unirão. Será necessário combinar com os eleitores, porque por essa época tudo já deverá estar decidido. Temos 27 unidades da Federação. Imaginem a diversidade das alianças estaduais. Quem não entender isso não entende de eleição presidencial. Mas haverá sempre alguém que diga que, em 2018, Bolsonaro era um ponto fora da curva e agora é candidato à reeleição. Não cabe a comparação.
RPD: O que as oposições deveriam fazer para crescerem na disputa?
MV: Justamente o que não fizeram nos últimos três anos, uma política na unidade, na diversidade das diversas forças oposicionistas. A questão central é que há uma pedra no meio do caminho, como alguém já disse. E a pedra é o PT. Este é o nó górdio. O bolsonarismo se construiu contra o PT, e as forças chamadas de democráticas têm uma visão de política também oposta ao PT. Dá impressão que elas são forças auxiliares ao bolsonarismo, e não são. Ao combater o PT, passa-se para um eleitorado mais atrasado – recordando o baixo nível da cultura política no Brasil, que venho confirmando diariamente, para minha perplexidade – a impressão de que está fazendo o jogo do bolsonarismo, tanto quanto, ao atacar o Bolsonaro, é a vez de fazer o jogo do PT.
O desafio é, então, como construir uma alternativa de poder não só eleitoral, mas algo que demonstre que, no futuro, quando se chegar ao poder, não se seguirá as linhas do bolsonarismo nem as do PT. O problema, embora seja duro reconhecer, é que o país nunca teve uma crise de liderança política como a que temos hoje. Costumo dar o exemplo da eleição de 1982, final do regime militar, quando Franco Montoro venceu em São Paulo, Tancredo Neves venceu em Minas e Leonel Brizola no Rio de Janeiro. Hoje temos João Doria, Romeu Zema e Cláudio Castro, referências que dispensam análise, diante da evidente pobreza de lideranças nacionais. Na eleição de 1989, tivemos número elevado de candidatos, os nomes mais notáveis do cenário político nacional, incluindo Roberto Freire. E o que temos hoje? A pobreza não é só de líderes políticos; estende-se também ao setor empresarial, ao setor acadêmico. Não temos nada.
Diante desse vazio de líderes, não se surpreende o crescimento dos extremismos, segundo a máxima do futebol de que espaços vazios têm de ser ocupados. Daí a expansão do extremismo bolsonarista, esse circo dos horrores que a gente vê todo santo dia. O desafio é, portanto, a conquista dos espaços, fazer política democrática. Mas isso não é fácil, demora e não se resolve em um processo eleitoral. É algo de médio prazo. Não foi feito no passado. Então, vamos ver se ao menos consigamos fazer neste processo eleitoral de 2022.
RPD: Existe hoje, em alguns setores da sociedade, certa perplexidade quanto à percepção popular do conceito de democracia, como se fosse difícil para muitos alcançar a complexidade dos valores envolvidos na questão. Isso estaria na base de sua afirmação do baixo nível político do eleitorado brasileiro, que dificulta a arrancada cívica da sociedade?
MV: Estamos vivendo um desafio que afeta o processo de conhecimento sobre nosso próprio país. E, se não sabemos em que país vivemos, como será possível fazer política? E nós não conhecemos o Brasil de hoje. O Brasil de hoje não é o Brasil da década de 1950, não é aquele reducionismo do Jacques Lambert dos dois Brasis, o atrasado e o moderno, o do litoral e o do sertão. Hoje o país é muito complexo. A região metropolitana de São Paulo, que é a maior do Brasil, tem cerca de 20 milhões de habitantes, 18 a 20 milhões na região metropolitana, que são três dúzias de municípios. Só que parte desses municípios não tem serviço de tratamento de água e esgoto, na região metropolitana mais desenvolvida do país.
Trata-se de uma geração nem-nem, que nem trabalha nem estuda, diante da ausência do Estado na criação de empregos, na escola, na saúde, no posto de saúde, na segurança pública, na água tratada.
A presença hoje do conflito religioso político é nova na história do Brasil. Nunca tivemos isso: a presença do catolicismo nunca colocou o dilema catolicismo versus política. Quando houve uma tentativa na eleição de 1933 de criar a liga eleitoral católica, não teve relevância eleitoral alguma. Foi coisa do Tristão de Ataíde, do Alceu de Amoroso Lima. Hoje, não tem essa novidade, e temos de tentar entendê-la para superá-la. Os partidos políticos não conseguem compreender o fenômeno. Ao contrário, passam a mão na cabeça do pastor, e todos os partidos, sem exceção, vão beijar a mão do pastor, do dono da franquia religiosa, a cada dois anos, na coincidência dos processos eleitorais. Os partidos não conseguem mais uma relação direta com o eleitor, ou com o “rebanho”, como gostam de falar.
Temos um país que não cresce há décadas, as pessoas estão frustradas. Antigamente, o filho vivia melhor que o pai, e o pai, melhor que o avô. Hoje isso não ocorre mais. Não existe mais esse processo de deslocamento social, de ascensão social. É um país que tem dificuldade de entender o que ele é. É um país muito fraturado. O fenômeno do agronegócio reforça isso. Pela primeira vez na história do Brasil, o agronegócio, o setor mais dinâmico da economia, está deslocado absolutamente do litoral. Alguém vai falar assim: a mineração do século 18 estava vinculada ao litoral, por meio dos portos do Rio de Janeiro e Parati. Mas o agronegócio é outro mundo, é como se fosse um outro Brasil, fortemente reacionário, que não tem identidade com as grandes questões sociais do Brasil, paga poucos impostos, tem um olhar de violência para a democracia e as questões do século 21. Até sua saída não é mais pelos portos tradicionais. Suas mercadorias partem pelo norte do Brasil, e já se pensa em usar a alternativa do Peru. São segmentos da sociedade totalmente dissociados, têm outra cultura, ouvem outras músicas, não leem nada, têm ódio da cultura. É outro mundo. Esse é o Brasil que queremos? Nós queremos outra coisa.
Por isso, digo que é difícil fazer hoje política no Brasil com tantos Brasis, como na cidade de São Paulo tem muitas cidades de São Paulo. A questão que se coloca é entender aqueles trabalhos clássicos que tínhamos de interpretação do Brasil, nos anos 30, 40, 50 e 60 até anos 70, com mais visões de totalidade, o que não temos, e acho difícil termos na atualidade. Tomando emprestada uma expressão de Ortega y Gasset, o Brasil, tal como a Espanha, é um país invertebrado, invertebrado socialmente, culturalmente, politicamente. Daí, com isso, eu vou saltar no rio Tietê? Não, temos de entender isso, compreender e dar o passo adiante. Este é o nosso desafio. Fácil não é.
RPD: Quando você usa a primeira pessoa do plural “nós”, nós quem? Não se trata de uma consciência individualizada, mais do que plural, com dificuldades de contaminar o conjunto da sociedade?
MV: Tenho conversado com muitas pessoas, e o que ouço é uma demonização dos partidos e da política, o que fez muito mal ao país. Isso decorreu do que se passou na década passada, com os escândalos de corrupção do governo do PT, o mensalão, petrolão, coisas absurdas que minaram a base da democracia. Quando menciono "nós'', em termos abstratos, me refiro às universidades, sobretudo, nas áreas de ciências médicas e biológicas, que tiveram papel fundamental na pandemia, agiram muito bem. O Brasil conheceu cientistas que desconhecia e foi apresentado a gente muito importante, a cientistas de valor. Mas, no campo das ciências humanas, entram em campo a universidade, os partidos políticos, organizações da sociedade civil, e aí o astral muito baixo.
Bolsonaro tem de perder no dia 2 de outubro e no segundo turno. Esta é a condição sine qua non para a gente começar a enfrentar algumas dessas questões que acho que o Brasil tem de enfrentar. Hoje o desenho que se projeta é a vitória do PT, ou seja, voltarmos a algo que imaginávamos já ter superado com o processo de impeachment. Só que, nesse processo, as forças democráticas foram derrotadas pelos extremistas reacionários. Digo nós porque eu participei desse processo ativamente, imaginando que teríamos de construir alternativas democráticas após o impeachment.
Mas aí veio o governo Temer, que tem uma conta terrível a pagar na história, que não o absolverá. O governo Temer poderia ter sido um governo Itamar Franco, não foi. Primeiro, porque há uma distância enorme entre Itamar Franco e Michel Temer, em todos os sentidos, da moralidade republicana, de fazer política, de entendimento do Brasil. E, segundo, ele prometeu um ministério de notáveis e entregou um ministério de Geddels. O fracasso do governo Temer conduziu o que estamos vivendo hoje. perdemos a chance de mudança para transformar 2018 em um bom processo eleitoral. Inclusive para a participação dele, porque ele poderia ser candidato à reeleição. A gente se esquece disso, porque ele estava tão embaixo, tinha sido tão desastroso que ninguém cogitou mantê-lo no poder.
De qualquer forma, é muito difícil buscar as origens dessa crise. É melhor nos concentrarmos no desafio de construir a participação. E a eleição serve para isso, sacode as pessoas e as leva a se identificarem com ideias e com candidatos. Revelados os resultados das urnas, o desafio é fazer com que o eleitor que escolheu seus candidatos, no dia 2 e no dia 30 de outubro, continue se interessando por política. É importante manter a sociedade atenta à política, porque é onde se constroem os consensos, pelo debate, pelo intercâmbio de ideias, a coluna vertebral do regime democrático.
RPD: Na sua opinião, o conflito armado entre a Rússia e a Ucrânia é um ponto de inflexão da história contemporânea quanto à queda do muro de Berlim. Poderia ampliar um pouco essa sua visão?
MV: Na minha leitura, tivemos, grosso modo, de 1945 até a queda do muro de Berlim, em 9 de novembro de 1989, a Guerra Fria, que opôs os Estados Unidos e a União Soviética, implicando a formação de blocos de países de um lado e de outro do confronto. Aí veio a queda do muro e, dois anos depois, no natal de 1991, o fim da União Soviética. De 1989 a 24 de fevereiro de 2022, os Estados Unidos foram militarmente a potência hegemônica e deram as cartas. Mas, no plano econômico, sofreram com a sombra da China, que não é (ainda) uma potência militar à altura dos Estados Unidos nem da Rússia, mas já é uma potência econômica. Dizem mesmo não PIB per capita, mas o PIB total deve ser nesta década superior ao dos Estados Unidos.
O que ocorreu em 24 de fevereiro surpreendeu a todos, pensou-se num primeiro momento que Putin estivesse blefando, mas a invasão aconteceu. Alegaram-se razões históricas para justificar o ataque à Ucrânia, e também o apoio a mercenários russos para os combates nas regiões separatistas. O fato é que a invasão ocorreu, sem uma declaração formal de guerra, porque até hoje o governo russo se recusa reconhecer a existência de uma guerra.
Acontece que a invasão foi mal calculada. Não se confirmou o pretenso passeio de no máximo sete dias para derrubar o governo de Kiev. O que se viu foi a ineficácia militar do exército russo, para a surpresa – e alívio – de muitos, e, mais importante a indignação coletiva e frontal da comunidade de nações, sobretudo dos Estados Unidos e membros da Comunidade Europeia, circunstância que gerou particular tensão internacional, ante a possível ampliação do conflito, envolvendo forças da OTAN.
O desgaste político de Putin aumentou em vista da resistência heroica dos ucranianos às forças superiores em armas, tecnologia e efetivos, e, ao que tudo indica, os riscos de um conflito mundial, até mesmo com o uso de armas nucleares, parecem não ser iminentes.
Vive-se, atualmente, situação complicada por conta dos efeitos sobre a economia mundial das sanções impostas à Rússia pelos EUA e a Comissão Europeia (CE). A meu ver, o governo brasileiro se saiu muito mal nessa situação. Não parece estar acompanhando o rearranjo geopolítico que a guerra implicará. A provável derrota política e econômica da Rússia terá graves consequências. Como uma das possíveis ironias da história antecipadas por Isaac Deustcher, a Rússia provavelmente vai passar a depender da China, que, a médio prazo, deverá se transformar em uma potência militar superior à Rússia, situação que será particularmente grave levando-se em conta o isolamento a que o mundo ocidental, o Japão e outras nações asiáticas estarão relegando o regime de Moscou no cenário internacional.
Quando terminará a guerra? Não sabemos, mas é muito provável que ocorram alguns dos seguintes fenômenos. A Ucrânia será neutralizada, não poderá entrar na OTAN, mas deverá ser admitida na CE. Terá de reconhecer a incorporação pela Rússia da Crimeia. Vai gastar bilhões para reconstruir o país, contando, decerto, com a ajuda de países ocidentais. Putin vai se declarar vencedor, mas terá de sair do país. Nem mesmo a autocracia do regime russo conseguirá seguir bancando essa aventura militar malsucedida.
De qualquer forma, 24 de fevereiro é uma ruptura no contexto das relações internacionais. Como se costurarão as articulações dessa nova realidade. Qual será o papel do Brasil? Isso é uma questão importante. Como o Brasil vai se posicionar? O Brasil está nos BRICS, mas, se olharmos para os BRICS, quem cresce no BRICS são o I, de Índia e o C, da China, já que o B, o R e nem mesmo o S, da África do Sul, parecem estacionados.
Como vai ficar isso, como vai ser o mundo? Realmente, nós estamos sendo testemunhas presenciais de um novo momento da história, de uma nova recomposição de forças. Quem imaginaria uma guerra, uma guerra mesmo de um país contra outro na Europa depois de 45? Alguém vai mencionar a Iugoslávia? Mas a Iugoslávia foi uma história de secessão, uma divisão de mais de meia dúzia de países. Não se aplica, portanto. Ninguém imaginava que isso fosse ocorrer, e ocorreu. Na verdade, ninguém conseguiu antever a queda do muro de Berlim e o fim da União Soviética. Os famosos analistas internacionais erraram nas previsões. Recentemente, falaram do fim da história, do fim da globalização, do fim do nacionalismo, e o mundo nunca foi tão nacionalista como o que estamos vivendo na terceira década do século 21.
Saiba mais sobre o entrevistado
*Marco Antonio Villa é historiador, escritor e comentarista político brasileiro. Villa é bacharel e licenciado em história, mestre em sociologia e doutor em história social pela Universidade de São Paulo. É professor aposentado da Universidade Federal de São Carlos.
** Entrevista especial produzida para publicação na Revista Política Democrática Online de abril/2022 (42ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.
*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na Revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores, não refletindo, necessariamente, as opiniões da Revista.
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Nas entrelinhas: Por que a terceira via não empolga nem ela própria?
Embora a pré-campanha tenha começado de forma muita antecipada, em grande medida em razão das prévias do PSDB, que em vez de unir dividiu ainda mais a legenda, a campanha eleitoral para presidente da República será curta: começará em 15 de agosto. Até lá, o que está se decidindo é o grid de largada: quem serão os candidatos para valer e as respectivas coligações, que garantirão o tempo de propaganda eleitoral gratuita no rádio e na tevê de cada um. De 2 a 30 de outubro, se houver segundo turno, o país poderá estar à beira de uma ruptura institucional.
A distância entre o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e o presidente Jair Bolsonaro (PL) vem se encurtando, enquanto o espaço para uma candidatura alternativa, nessa pré-campanha, parece cada vez mais restrito. As pesquisas de opinião apontam uma tendência de consolidação de votos, em razão de os candidatos serem mais conhecidos, porém, a eleição ainda está no estágio de “guerra de posições”, ou seja, de ocupação de espaços e acumulação de forças. Entretanto, como sabemos, as eleições presidenciais no Brasil são decididas numa “guerra de movimento”, quando a grande massa de eleitores efetivamente se envolve nos debates eleitorais e decide o que fazer. Ninguém leva o eleitor para votar pelo nariz.
As últimas pesquisas estão mostrando que o favoritismo de Lula continua inequívoco nas pesquisas de segundo turno, mas seu crescimento estacionou, no primeiro turno. O ex-presidente trabalha para esvaziar os candidatos da terceira via e não para atraí-los no segundo turno. É uma aposta perigosa, que mira uma vitória improvável no primeiro turno, mais não impossível, num cenário de extrema radicalização política. O petista se considera mono opção para derrotar Bolsonaro, o que não deixa de ser uma arrogância.
Bolsonaro joga com as mesmas cartas. Aposta suas fichas no sentimento antipetista, que parece ser mais encardido do que Lula imagina. Esse sentimento, diante das fragilidades da chamada terceira via, alimenta seu crescimento na classe média, para além do impacto do auxílio emergencial e outras benesses do governo na massa de eleitores de baixa renda. Setores que haviam se afastado do governo, por causa da pandemia, da recessão e declarações extremadas de Bolsonaro, estão começando a ver a sua reeleição com naturalidade, principalmente no meio empresarial.
Ciro
Enquanto isso, a terceira via não empolga, não consegue se colocar em cena como alternativa de poder. Há um mistério nisso aí, que tem a ver com a mesmice da narrativa de centro, que não enfrenta o problema das desigualdades e da exclusão social. Com a desistência do ex-juiz Sergio Moro, o ex-governador Ciro Gomes (PDT) seria o candidato natural da terceira via, mas não consegue sair do isolamento. É um político experiente, mas de temperamento intempestivo. Seu maior problema é político: seu projeto nacional-desenvolvimentista foi abduzido por Lula e não atrai as forças políticas de centro. Ciro é uma espécie de patinho feio entre os candidatos da terceira via.
Doria
O desempenho do ex-governador de São Paulo João Doria (PSDB) à frente da administração paulista exibe resultados espetaculares, na infraestrutura, no desenvolvimento econômico, na geração de emprego, na educação, sem falar na saúde, principalmente nas vacinas. Entretanto, não consegue capitalizar esses resultados em termos eleitorais. O ex-governador gaúcho Eduardo Leite faz um piquenique nas articulações da terceira via, mas seu desempenho à frente do governo gaúcho, principalmente do ponto de vista fiscal, não chega nem perto do que Doria realizou em São Paulo. Como se sabe, o Rio Grande do Sul é um estado falido. Talvez a mesmice explique.
Simone
Simone Tebet é uma incógnita. Por sua atuação no Senado, conquistou a simpatia dos colegas e se tornou uma aposta do presidente do MDB, Baleia Rossi, e do ex-presidente Michel Temer. Ontem, mostrou capacidade de reação à ofensiva feita por Lula junto aos velhos aliados do MDB: a maioria dos diretórios da legenda reiterou apoio à candidatura, que havia sofrido um ataque especulativo do grupo de Renan Calheiros e do ex-presidente José Sarney, que apoiam Lula. Simone poderia ocupar o espaço de Marina Silva na cena eleitoral, mas também está muito contingenciada eleitoralmente, inclusive em Mato Grosso do Sul, seu estado. Encarna uma agenda identitária, que não empolga a grande massa de eleitores, como também Eduardo Leite, embora esteja sintonizada com os novos tempos.
Revista online | Com Claude Lévi-Strauss: a arte plumária dos índios
Ivan Alves Filho*
“Prezado Senhor, concordo com nosso encontro. Peço apenas que o senhor entre em contato novamente comigo dentro de dois meses. Estou particularmente sobrecarregado de trabalho no Collège de France, devido à retomada de meus cursos. Receba as minhas melhores saudações”. Foi esse o teor da carta que o maior mestre da antropologia do século 20, Claude Lévi-Strauss, me enviara, há mais de quarenta anos, em reposta a uma consulta minha. Meu objetivo era entrevistá-lo para a revista de cultura Módulo, dirigida por Oscar Niemeyer. Para viabilizar isso, vali-me da amizade existente entre o antropólogo e a escritora siberiana radicada na França Lydia Lainé, sua antiga colega de turma na Sorbonne, no curso de filosofia.
Esperei acontecer os dois meses e fui conversar com o velho sábio. O encontro se realizou em seu gabinete de trabalho, no Collège de France, a principal instituição universitária da Europa. Silenciosa, apinhada de livros e revistas de cultura, a sala de Lévi-Strauss mais parecia um santuário. O velho sábio leu durante alguns minutos as questões que eu levara por escrito e começou imediatamente a respondê-las. “As questões são excelentes. O senhor está de parabéns”, disse ele, gentilmente. Eu tinha apenas 27 anos de idade e não pude disfarçar meu contentamento com seu comentário. Mas ele só aumentava a minha responsabilidade.
Lévi-Strauss discorreu sobre tudo – ou quase tudo. Falou da prática artística dos povos ditos primitivos, dos seus mitos. Revelou-se um admirador das sociedades sem classes, ele, um velho defensor do socialismo, formado ainda nos embates ideológicos do final da década de 20. Emocionou-se, ainda, ao descrever sua vida no Brasil, sua convivência com os índios do Mato Grosso. Ao relembrar os nambiquara, sua voz ficou embargada e seus olhos se encheram de lágrimas. Aquilo me comoveu muito: Lévi-Strauss pertence àquela raça de sábios que se envolve emocionalmente com o objeto de seus estudos.
Porém, o que mais me surpreendeu foi sua firme defesa dos postulados materialistas. Confessou ter dois livros de cabeceira. O primeiro deles, A contribuição à crítica da economia política, de Karl Marx. O outro, Viagem ao Brasil, de Jean de Léry, um relato que praticamente inaugura a antropologia moderna, em meados do século XVI. Aprendi com Claude Lévi-Strauss que os fenômenos da superestrutura – tais como a arte e os mitos – refletem sempre o que se passa na infraestrutura de uma sociedade determinada. Vale dizer, eles têm sempre uma raiz concreta, não se podendo separar o imaterial do material. Para alguém que sofreu a acusação de desenvolver seu sistema de pensamento – o estruturalismo – fora da realidade histórica, isso não é pouco.
Claude Lévi-Strauss morreu quando completou um século de vida. Quase já não escrevia mais. Guardo com carinho as duas cartas que me escreveu, uma delas manuscrita, devidamente emoldurada por mim. Ao pensar no velho sábio, me vem à mente um belo poema de Worsworth:
“Assim como uma imensa pedra que às vezes vemos encolhida no topo nu de uma montanha...semelhante a uma coisa dotada de sensibilidade, qual um animal marinho...aquecido ao sol; assim parecia este homem, nem completamente vivo nem completamente morto ou de todo adormecido, em sua extrema velhice".
Saiba mais sobre o autor
*Ivan Alves Filho é historiador e documentarista
** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática online de abril de 2022 (42ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.
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Nas entrelinhas: Ideias de Lula e Bolsonaro têm raízes profundas
Há um Brasil submerso, cujas raízes históricas nos dão algumas pistas sobre a radicalização política que estamos vivendo, na qual Lula e Bolsonaro lideram a polarização eleitoral
A polarização entre o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), que lidera as pesquisas da corrida eleitoral para o Planalto, e o presidente Jair Bolsonaro (PL) tem muitas explicações. As mais evidentes são o recall dos dois mandatos do petista como chefe do Executivo, de um lado, e as vantagens estratégicas de uma candidatura à reeleição no pleno exercício do mandato, na qual a inércia do poder favorece o presidente da República, como aconteceu com Fernando Henrique Cardoso, o próprio Lula e Dilma Rousseff.
Decorrem daí as dificuldades dos demais pré-candidatos para romper a polarização, ou seja, de Ciro Gomes (PDT), Sergio Moro (União), João Doria (PSDB) e Simone Tebet (MDB). Mas isso apenas não explica a resiliência de Lula, que chegou a ser preso na Operação Lava-jato, acusado de envolvimento com a corrupção no seu governo, nem a de Bolsonaro, que protagonizou o negativismo antivacina durante a pandemia de covid-19, cujo saldo de 661 mil mortes não foi suficiente para tirá-lo do páreo, assim como a estagnação, o desemprego e a maior inflação da história do real. Há um Brasil submerso, cujas raízes históricas nos dão algumas pistas sobre a radicalização política que estamos vivendo.
Lula
O ex-presidente Lula é protagonista de um processo no qual a redemocratização do país coincidiu com a emergência de um novo movimento operário, mais centrado em grandes unidades de produção e capaz de liderar a numerosa classe média assalariada que surgiu com a forte presença das empresas estatais no modelo econômico adotado pelos militares no período de 1964 a 1985. A formação de uma sociedade civil mais complexa emoldurou essas mudanças na transição à democracia, rivalizando com os partidos.
A criação do PT desvinculou a esquerda brasileira dos modelos soviético e social-democrata, mas agarrou com as duas mãos o nacional-desenvolvimentismo impregnado da ideia de revolução brasileira, inspirada em Caio Prado Junior e outros autores. A velha aliança operário-camponesa se traduziu no apoio de Lula ao MST, que protagonizou a ocupação de terras num momento em que a reforma agrária já não fazia sentido, do ponto de vista do desenvolvimento capitalista no campo, com a emergência do agronegócio produtor de commodities de grãos e proteínas, mas refletia a iniquidade o social que persistia no campo, mesmo em grande parte tendo migrado para as cidades.
Lula pôs em prática uma política de projeção do Brasil na cena internacional, exercendo forte influência em toda a América Latina, a partir de um novo modelo de capitalismo de Estado, no qual grandes empresas brasileiras, as “campeãs nacionais”, foram financiadas pelo Estado para que se tornassem players de cadeias globais de comércio, principalmente de minérios, alimentos e serviços de infraestrutura. Em contrapartida, essas empresas financiariam o seu projeto de poder, o que acabou resultando nos escândalos da Lava-Jato.
O colapso econômico desse modelo arrastou consigo a sustentabilidade política do governo Dilma Rousseff. Do ponto de vista das concepções, havia uma linha de continuidade entre a “nova matriz econômica”, as Reformas de Base de João Goulart e o Plano de Metas de Juscelino Kubitschek. Até que ponto Lula estará disposto a retomar esse fio da história é a grande interrogação de sua atual candidatura à Presidência.
Bolsonaro
As ideias reacionárias de Bolsonaro e dos militares e setores conservadores que o apoiam também não surgiram do nada, são centenárias. Talvez a matriz possa ser encontrada em Oliveira Vianna, um dos ideólogos do Estado Novo, cujo primeiro livro, Populações Meridionais do Brasil, lançado em 1920, viria a influenciar fortemente o movimento tenentista e a Revolução de 1930.
Vianna interpretava a realidade brasileira em duas chaves. A primeira desagregava o país em três formações político-culturais: o sertanejo, o matuto e o gaúcho. Os centros de formação do matuto, as regiões montanhosas do Estado do Rio, o grande maciço continental de Minas e os platôs agrícolas de São Paulo, exerceriam forte influência na organização da vida social e do patriarcado brasileiro. A segunda seria a incompatibilidade entre o liberalismo e a realidade brasileira. As instituições políticas nacionais refletiriam o divórcio entre o Brasil real e o Brasil legal.
Nossas elites dirigentes seriam alienadas da realidade nacional, sob influência do liberalismo de origem francesa e anglo-saxônica, descolado das características do Brasil e desagregador da coesão nacional. O antiliberalismo, o elitismo castrense e o nacionalismo estão disseminados de forma difusa na sociedade brasileira e são catalisados pelo projeto político de Bolsonaro. O regime militar (1964 e 1985) também refletia esses sentimentos. Os generais que presidiram o Brasil nesse período eram jovens oficiais nos anos 1930 e 1940, no auge do prestígio de Oliveira Viana.
Nas entrelinhas: Contra quem se articula a terceira via?
Perguntem ao ex-governador João Doria (PSDB): quem é o seu adversário principal? A mesma pergunta pode ser feita a Simone Tebet (MDB) ou a Ciro Gomes (PDT). Não quererão responder
Na arte da guerra, não identificar o inimigo principal pode ser um erro capaz de levar ao desastre. Numa ordem democrática, é melhor chamar o “inimigo” de adversário, porque ele pode ser o aliado de amanhã, como está acontecendo agora, com o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e o ex-governador de São Paulo Geraldo Alckmin (PSB), seu rival no segundo turno das eleições de 2006, então pelo PSDB. Numa eleição polarizada entre Lula e o presidente Jair Bolsonaro, o desafio da chamada terceira via é identificar o adversário principal no primeiro turno.
A história está repleta de erros de avaliação sobre essa questão. O mais notório foi o confronto entre comunistas e social-democratas na Alemanha, que dividiu o movimento sindical e a intelectualidade, abrindo caminho para Adolf Hitler chegar ao poder. Os comunistas chamavam os social-democratas de social-fascistas, o que era um equívoco, mas havia lá suas razões: o assassinato de Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht, que representavam o espírito revolucionário da época. Eles acusavam a Social-Democracia Alemã de traição, por ter aprovado os créditos de guerra no Reichstag (parlamento alemão), em 4 de agosto de 1914. Liebeneck foi o único deputado a votar contra a guerra.
Quando a onda da Revolução Russa impactou a Alemanha derrotada na guerra, em 1918, com o surgimento de conselhos operários, a queda do Kaiser e a Proclamação da República, o governo ficou nas mãos dos dirigentes mais conservadores da social-democracia, que fizeram um pacto com o estado-maior militar para liquidar o levante dos operários da Liga Spartacus, núcleo inicial do Partido Comunista Alemão. Em 15 de janeiro, um destacamento de soldados prendeu Liebknecht e Rosa, que lideravam o levante. Foram levados para o Hotel Éden, quartel-general dos Freikorps — veteranos do exército do Kaiser —, no centro de Berlim, paramilitares com os quais o governo social-democrata havia feito um acordo para reprimir a insurreição. Os dois líderes foram espancados, arrastados e mortos a tiros. O trauma da guerra dividiu a esquerda mundial, principalmente depois de Revolução Russa, e nunca mais foi superado.
Lula x Bolsonaro
Aqui no Brasil, erro igualmente trágico ocorreu às vésperas do golpe militar de 1964. João Goulart havia assumido o governo como vice de Jânio Quadros, que renunciara em 1961, em meio a forte crise institucional, na qual os militares não queriam dar-lhe posse. Houve um acordo para isso: a adoção do parlamentarismo. A posse de Jango fora garantida pela confluência de uma grande mobilização popular, liderada pelo então governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola, e uma hábil articulação parlamentar, na qual se destacaram Tancredo Neves e San Tiago Dantas. Para recuperar parte do poder, em 1963, Jango viria a convocar e vencer um plebiscito para a volta do presidencialismo, realizado em 6 de janeiro daquele ano.
As eleições presidenciais estavam convocadas para 1965. Os candidatos mais fortes eram Juscelino Kubitschek, do antigo PSD, que pretendia voltar ao poder, e Carlos Lacerda, o governador da antiga Guanabara, principal líder da UDN. Brizola não podia ser candidato, era cunhado do presidente da República. Prestes articulava a reeleição de Jango. A chave para isolar a UDN e evitar o golpe era recompor a aliança entre o PSD, o PTB e o antigo PCB, que havia sido vitoriosa em 1955. Mas a esquerda considerava isso um retrocesso, por causa da política de conciliação de Juscelino com os Estados Unidos. No auge da guerra fria, o desfecho da crise foi a destituição de Jango e a implantação do regime militar, que durou 20 anos. Juscelino e Lacerda apoiaram a destituição de Jango, mas acabaram tendo os direitos políticos cassados.
Perguntem ao ex-governador João Doria, candidato do PSDB: quem é o seu adversário principal? A mesma pergunta pode ser feita a Simone Tebet (MDB) ou a Ciro Gomes (PDT), que continuam na pista. Não quererão responder agora. Eduardo Leite e Sergio Moro, sem legenda para concorrer, também. O problema da terceira via não é somente chegar a um acordo em torno daquele que for mais competitivo. Se fosse, hoje, o candidato único seria Ciro Gomes, como poderia ser Moro, se não houvesse tropeçado na própria esperteza ao trocar o Podemos pela União Brasil.
A unificação da terceira via tem um polo centrípeto: a questão da democracia. Bolsonaro defende um projeto de “democracia restrita”, ou “iliberal”, como agora se diz. Contra esse projeto se batem todas as forças que defendem a nossa “democracia ampliada”, consagrada na Constituição de 1988. Mas isso é considerado assunto para o segundo turno. O xis da questão é polo centrífugo: quem é o adversário a ser deslocado no primeiro turno. Pela lógica das pesquisas, o segundo colocado, Bolsonaro, seria mais fácil de remover da disputa do que Lula, o primeiro. Entretanto, a terceira via desloca sua linha de tiro de Bolsonaro para Lula, que busca velhos aliados ao centro para inviabilizá-la de vez.
Palmares na França
Ivan Alves Filho, historiador
Movimento rebelde que eclodiu no extremo-sul de Pernambuco, Alagoas atual, no último quartel do século XVI e se desenrolou até às primeiras décadas do século XVIII, o Quilombo dos Palmares representou a nossa primeira luta de classes, apontando para o desmoronamento do mundo das tribos. Foi um Brasil às avessas, sem latifúndio e com trabalho livre. E uma sociedade multiétnica também. Foi, a meu juízo, o maior libelo contra a escravidão no mundo.
Eu me tornei historiador por causa de Palmares. Sob essa ótica, foi fundamental para mim a leitura do livro de Edison Carneiro, O Quilombo dos Palmares, quando tinha apenas 16 ou 17 anos. Quando tive de sair do Brasil, ainda muito jovem, há exatas cinco décadas eu me agarrei à experiência de Palmares para entender a formação da nacionalidade brasileira.
Em 1978, apresentei uma dissertação sobre a epopeia palmarina junto à Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais, de Paris. Dez anos depois, no Centenário da Abolição, publiquei Memorial dos Palmares no Brasil. E não parei mais de pesquisar sua extraordinária trajetória libertária. Memorial dos Palmares está hoje em sua quarta edição, tendo a última delas saído pela Fundação Astrojildo Pereira.
Agora, o tradutor francês Jérémy Millaud começou a traduzir a obra na França. Fico muito orgulhoso com isso. E estou me esforçando para viabilizar sua edição em francês, língua oficial de cerca de 50 países no mundo, muitos deles situados na África.
Imagem: reprodução/conhecimentocientifico.com