Revista online | Uma ficção bem real
Henrique Brandão*, especial para a revista Política Democrática online (43ª edição: maio de 2022)
Medida Provisória é o primeiro longa dirigido por Lázaro Ramos, ator conhecido pelos filmes, novelas e séries da TV Globo em que atuou. O filme estreou nacionalmente em 14 de abril, ocupando 150 salas, um lançamento poderoso em se tratando de produção nacional.
Fez sucesso. Logo na primeira semana em cartaz, Medida Provisória bateu a marca de 100 mil espectadores e arrecadou mais de R$ 2 milhões. Na segunda, chegou a 237 mil espectadores. Um feito e tanto, que merece aplausos.
E como um filme que não se inscreve no perfil dos campeões de bilheteria do cinema nacional dos tempos atuais, marcado por comédias ligeiras e rasteiras e produções voltadas para o público infanto-juvenil, conseguiu esse excelente desempenho?
A resposta, me parece, está na abordagem de um tema crucial, que ganha ainda mais relevância nestes tempos de retrocesso explícito: o racismo estrutural, elemento nefasto, um dos alicerces sobre os quais nossa sociedade foi constituída.
O longa é uma adaptação de Namíbia, Não!, peça de Aldri Anunciação que Lázaro Ramos dirigiu para o teatro em 2011. Rodado em 2019, trata-se, em tese, de uma ficção que acontece em um futuro distópico. Na trama, o Congresso aprova uma medida provisória que obriga os cidadãos negros a migrar para a África, a fim de retornar suas origens.
O filme não tem sutilezas. Evidencia o confronto de duas situações distintas, marcadas pela história excludente da sociedade brasileira: de um lado, os pobres, em sua maioria negros; e, de outro, a elite privilegiada.
Medida Provisória não é um filme de ousadia estética e formal. Ao contrário, a narrativa é convencional, a linguagem é a com que nos acostumamos a ver todos os dias na TV, nas novelas e na maioria dos filmes dos canais de streaming.
Lázaro Ramos realiza um filme bem-feito, que conta com excelente fotografia, uma direção de arte competente e bela trilha sonora. O elenco ajuda muito. Taís Araújo, Seu Jorge e Alfred Enoch brilham.
Filmado em grande parte na região portuária do Rio, contrapõe os grandes prédios corporativos envidraçados, recém-construídos, às vielas com o casario da Pedra do Sol e adjacências – no que já foi conhecido, no início do século XX, como a “Pequena África”. É o cenário perfeito para o contraste que permeia a história.
Não é a primeira vez que os pretos são protagonistas no cinema nacional. Nem será a última, pois somos um país onde a presença do negro é decisiva para a formação do país.
Nesse sentido, me veio à lembrança Quilombo, filme de Cacá Diegues, de 1984. Nele, o diretor quis filmar uma alegoria de Palmares, o maior quilombo da história do Brasil, destruído em 1694. A mensagem de Cacá era a de que a comunidade quilombola era uma sociedade fraterna, onde os cidadãos viviam livres, em plena comunhão, em contraponto à tradição herdada de Portugal, repressiva e conservadora. Uma visão idílica, com certeza.
Toda obra artística reflete o espírito de sua época. Quando Quilombo foi lançado, vivia-se um período de avanço da democracia, com o povo nas ruas pedindo Diretas Já e a ditadura militar vivendo seus estertores. Dali a quatro anos seria promulgada a Constituição Cidadã. A situação permitia que se vislumbrasse um futuro melhor, e a obra de Cacá insinuava que, no alto da Serra da Barriga, em Alagoas, havia um modo de vida diferente sendo gestado.
Lázaro Ramos concebe seu filme em uma realidade bem diferente. As conquistas sociais inscritas na Constituição de 1988 sofreram retrocessos que se agravaram com o atual governo e sua base de apoio no Congresso. As forças reacionárias ascenderam com força, no Brasil e no mundo. O quilombo agora é chamado de “afrobunker”, e a mata virgem alagoana foi substituída pelo concreto das cidades. O momento é de resistência. A mensagem é clara ao final: “Em uma cultura de morte, a sobrevivência é desobediência civil.”
Em tempos sombrios, de ensaios golpistas, de negacionismos ideológicos, de atraso institucional, de conservadorismo oficial, Medida Provisória, uma ficção distópica, parece bem plausível. Não à toa, tem recebido aplausos ao fim das sessões, quando todos voltamos à realidade. E o grito de “Fora, Bolsonaro” toma o cinema. A ficção é mais real do que nunca.
Sobre o autor
*Henrique Brandão é jornalista.
** Este artigo foi produzido para publicação na revista Política Democrática online de maio de 2022 (43ª edição), editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.
*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na revista Política Democrática online são de exclusiva responsabilidade dos autores. Por isso, não reflete, necessariamente, as opiniões da publicação.
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Nas entrelinhas: Da Internacional ao 1º de Maio, os sinais estão trocados
Luiz Carlos Azedo / Nas Entrelinhas / Correio Braziliense
Quando o Partido Comunista Brasileiro (PCB) foi fundado, em 25 de março de 1922, Astrojildo Pereira e seus oito companheiros de origem anarquista não sabiam cantar A Internacional, como registrou em seu poema Ferreira Gullar. Desde então, apenas os mais empedernidos comunistas sabem a letra do hino composto em 18 de junho de 1888 por Pierre Degeyter — um operário anarquista de origem belga, residente na cidade francesa de Lille —, com base no poema do também anarquista Eugéne Pottier, operário francês membro da Comuna de Paris.
O hino se tornou conhecido na França e se espalhou pela Europa após o congresso do Partido Operário Francês, em 1896. A ideia original de Pottier era fazer uma paródia da Marselhesa, o hino da Revolução Francesa, mas Degeyter deu-lhe vida própria. C’est la lutte finale./Groupons-nous et demain/L’Internationale/Sera le genre humain, o refrão original, na tradução portuguesa ficou assim: “Bem unidos façamos, / Nesta luta final, / Uma terra sem amos /A Internacional”.
A versão em russo serviu como hino da antiga União Soviética de 1917 a 1941, quando foi criado o hino soviético por Stalin, mas A Internacional continuou sendo o hino da maioria dos partidos comunistas. Entretanto, alguns partidos socialistas e social-democratas também haviam adotado o hino, antes do racha da II Internacional, por ocasião da Primeira Guerra Mundial. Hoje, são raros os que o mantêm.
O Partido Socialista Brasileiro (PSB) não tem absolutamente nada a ver com essa história. A legenda foi refundada em 2 de julho de 1985, por Antônio Houaiss (presidente), Marcelo Cerqueira, Roberto Amaral, Evandro Lins e Silva, Jamil Haddad, Joel Silveira, Rubem Braga e Evaristo de Moraes Filho, à frente de um grupo de estudantes e intelectuais. Reivindicaram o legado da antiga Esquerda Democrática, que deu origem ao antigo PSB, em 1947, sob liderança de João Mangabeira, Hermes Lima, Antônio Cândido, Bruno de Mendonça Lima, Paulo Emílio Sales Gomes e José da Costa Pimenta.
Não se sabe de quem foi a ideia, mas em todos os congressos recentes do PSB — que ganhou musculatura após a entrada de Miguel Arraes, então governador de Pernambuco, em 1990 —, A Internacional é executada com pompa e circunstância. Quase ninguém sabe cantar o hino. No último congresso, não foi diferente, mas o contexto era inadequado, porque as estrelas da abertura do evento, na quinta-feira passada, eram o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e o ex-governador Geraldo Alckmin. O constrangimento de ambos era visível, sobretudo do segundo, que trocou o PSDB pelo PSB. Alguns, como Carlos Siqueira, presidente do PSB, cantaram o refrão com o punho direito erguido, quando a tradição é usar o punho esquerdo.
Narrativas
O estrago que A Internacional está fazendo nas redes sociais às imagens de Lula e Alckmin ainda não foi aferido, mas o meme faz a festa de ativistas bolsonaristas, com ajuda de robôs, é claro. Nada mais simbólico para corroborar a falsa tese de que Lula e Alckmin são comunistas enrustidos. A grande massa de eleitores não sabe nem do ocorrido, mas a extrema-direita tem o discurso na ponta da língua, ou do dedo, pois estamos falando de redes sociais. O PSB deu farta munição para Lula e Alckmin serem atacados pelos adversários, o que de resto já vinha acontecendo, em razão da aliança com o PT. Fatos como esse, numa campanha eleitoral radicalizada, alimentam a narrativa do bem contra o mal e da liberdade contra o comunismo, adotada pelo presidente Bolsonaro.
E o 1º de Maio? Não é comemorado apenas no Brasil. As manifestações ocorrem nas Américas, na Europa Ocidental, na Rússia, na Índia, na China e em muitos países da África. A data foi escolhida em homenagem aos trabalhadores dos Estados Unidos. Num sábado, 1º de maio de 1886, cerca de 300 mil manifestantes foram às ruas em Nova York, Chicago, Detroit e Milwaukee, entre outras cidades, para pedir a redução da carga horária máxima de trabalho para oito horas por dia. Àquela época, se trabalhava até 16 horas, seis dias na semana.
Em Chicago, os protestos duraram vários dias e foram muito reprimidos, o que resultou na morte de quatro trabalhadores e sete policiais, além de 130 pessoas feridas, em 4 de maio. Dos 2.500 manifestantes, 100 foram presos, sendo oito condenados à morte. Dois tiveram a pena convertida em prisão perpétua, um apareceu morto na cela e os sindicalistas Adolph Fischer, George Engel, Albert Parsons e August Spies foram enforcados. Em 1893, o governador John Altgeld concedeu perdão aos sobreviventes.
As manifestações convocadas por Bolsonaro para este domingo, portanto, não têm nada a ver com o 1º de Maio, data em que as centrais sindicais fazem grandes festas e manifestações nas principais cidades do país. São contra o Supremo Tribunal Federal (STF) e têm jeito de provocação golpista. Mais um sinal trocado na política brasileira.
Editorial revista online | O caminho do confronto
A condenação do deputado Daniel Silveira, por ampla maioria, no Supremo Tribunal Federal (STF), foi um sinal claro, dirigido em especial a todos os interessados na perturbação da ordem e no retrocesso institucional: a Corte está atenta, e ataques às instituições democráticas não serão por ela tolerados.
Preocupante, contudo, para todas as forças democráticas do país, foi a reação imediata do presidente da República. Concedeu ao condenado a graça, sem esperar pelo término do processo, estendida, ao que parece indevidamente, a todas as consequências da penalidade, inclusive no que toca à elegibilidade para o pleito deste ano.
Caberá ao Supremo deliberar sobre a constitucionalidade da graça concedida, sopesando as diferentes razões jurídicas em jogo. Em termos políticos, contudo, parece claro que o caso foi utilizado como terreno para mais uma batalha entre o projeto autoritário defendido pelo presidente e a resistência a ele que o STF protagoniza, em cumprimento de sua função constitucional de defesa da Carta Magna.
O governo caminha decididamente no rumo do confronto. O deputado condenado por manifestações incompatíveis com o decoro parlamentar, por ameaças a integrantes de outro Poder, por apologia ao crime, no fundo, é apresentado como mártir nas redes sociais governistas. Manifestações populares são convocadas para 1° de maio em apoio ao presidente da República, contra a decisão da Corte. Deputados conservadores articulam pronunciamentos e atos coletivos no mesmo sentido. Tudo segue o caminho já conhecido, traçado pelo ensaio geral de golpe, ocorrido em 7 de setembro passado.
Por fim, para aumentar a temperatura política do momento, críticas de um membro do Supremo, dirigidas claramente aos atos do presidente, ao mesmo tempo em que elogiava a conduta em geral dos militares de respeito à Constituição, foram lidas como ofensa grave às Forças Armadas e respondidas de público como tal.
A finalidade última dessas manifestações é aparentar apoio, popular, institucional e militar ao projeto autoritário do governo. Afirmar, mesmo contra todas as evidências, que o caminho do retrocesso é anseio da população e conta com o apoio de parte dos mandatários, no Executivo e no Legislativo, assim como de parcelas da sociedade civil organizada.
Esse foi certamente o quadro em 1964, mas não é a situação atual. Mesmo assim, compete às forças democráticas o diálogo permanente, a articulação para a defesa conjunta das instituições, além da manifestação pública de repúdio às manobras golpistas do governo.
Nas entrelinhas: A longa angústia da terceira via na corrida presidencial
Luiz Carlos Azedo / Nas Entrelinhas / Correio Braziliense
A angústia se caracteriza por uma situação na qual a pessoa se sente ameaçada por algo que pode acontecer, o que leva à preocupação excessiva, causa irritabilidade e insegurança, provoca dor de cabeça e até dores musculares, além de alterações na frequência cardíaca. Na política, além desses sintomas, a angústia pode provocar uma sequência de atitudes equivocadas, atritos e desavenças que, muitas vezes, só colaboram para que a ameaça se concretize. É o que acontece com alguns protagonistas da terceira via, que continuam se digladiando, em vez de buscar o verdadeiro entendimento.
Uma das causas da angústia é óbvia: a polarização entre o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e o presidente Jair Bolsonaro (PL) está cada vez mais cristalizada, segundo as pesquisas de intenção de voto. Há três fatores principais. O primeiro: ambos têm uma base eleitoral muito resiliente, com identidade ideológica e organicidade. Lula em razão de um partido enraizado na sociedade; Bolsonaro devido à relação, por meio de redes sociais, com setores da sociedade com os quais se identifica, como militares, policiais, caminhoneiros, garimpeiros, ruralistas, atiradores etc.
O segundo fator são as realizações à frente do governo, o que força uma comparação entre a vida de antes e a de agora, em termos de renda, emprego, qualidade de vida e por aí vai. Lula deixou o governo em 2010, com o país crescendo a uma taxa de 7,5% e inflação de 5,9%; neste ano, o governo Bolsonaro projeta uma taxa de crescimento de 0,56% e uma taxa de inflação de 7,65%, segundo o último boletim Focus do Banco Central.
O terceiro é a rejeição dos dois candidatos, que se retroalimenta, na medida em que não surge uma candidatura mais robusta de terceira via. Pesquisa FSB, divulgada na segunda-feira, mostra que a rejeição ao ex-presidente Lula, em um mês, foi de 41% para 45%; o número de eleitores que não votariam de jeito nenhum em Bolsonaro oscilou de 57% para 55%. Cada um trabalha a rejeição do outro como um fator decisivo da eleição.
No campo da terceira via, o pré-candidato mais rejeitado é o ex-governador de São Paulo João Doria (PSDB). Em março, 57% disseram que não votariam no tucano de jeito nenhum. Agora, são 63%. O pedetista Ciro Gomes é rejeitado por 49% dos entrevistados. Em março, o ex-governador tinha 41%.
Nas intenções de voto Lula lidera com 41% contra 32% de Bolsonaro. Em março, o petista tinha 43% e o atual presidente marcava 29%. Na pesquisa espontânea, que sinaliza o voto mais cristalizado, Lula tem 38% e Bolsonaro, 30%. Ciro Gomes tem 4%, e os demais candidatos, somados, 4%. Os indecisos seriam apenas 16%, enquanto 10% não votariam. É ou não é uma razão para a angústia dos articuladores da terceira via?
Campanha
Outra razão é o calendário eleitoral. Teremos uma campanha muito curta. Entre 20 de julho e 5 de agosto serão realizadas as convenções partidárias para deliberar sobre coligações e escolher candidatas e candidatos à Presidência da República e aos governos de estado, bem como aos cargos de deputado federal, estadual e distrital. Legendas, federações e coligações têm até 15 de agosto para solicitar o registro de candidatura dos escolhidos.
Até lá, são pelo menos 90 dias de pré-campanha, na qual os possíveis candidatos articulam seus palanques e cuidam das chapas proporcionais e da estratégia de marketing, num cenário em que o diabo mora nos detalhes, ou seja, nas disputas regionais. Basta ver o impacto que o cenário eleitoral de São Paulo, o maior colégio eleitoral do país, no qual o candidato tucano Rodrigo Garcia tem apenas 6% de intenções de voto, está tendo na pré-campanha de Doria, um dos candidatos da chamada terceira via.
Os outros são Simone Tebet (MDB) e Luciano Bivar (União Brasil). Os três somados, hoje, têm o mesmo peso eleitoral de Ciro Gomes. Há uma expectativa de que se chegue a um acordo entre os partidos da terceira via em 18 de maio; a maior probabilidade, porém, é que isso não ocorra, porque ninguém acumulou força suficiente e o prazo de registro de candidatura, diante da fraqueza de todos, estimula um tempo maior de decantação.
A eleição para a Presidência parece um jogo de cartas marcadas, porém, não é; muita água vai rolar antes e após o início da campanha eleitoral, que só começa em 16 de agosto. O primeiro turno do pleito será no primeiro domingo de outubro, dia 2; o segundo, no dia 30 do mesmo mês. Façam suas apostas.
Revista online | Sherlock Holmes redivivo
André Amado*, especial para a revista Política Democrática online
Conheci Anthony Horowitz por dois vídeos. Foyle’s War, uma série que tem como cenário a Segunda Guerra, vista de uma pequena cidade do interior da Inglaterra, que tenta descrever e analisar como a população se posicionava quanto à eventualidade de uma invasão alemã, que se acreditava iminente. Até hoje, busco, sem êxito, a série na minha estante para rever, entre outros, o segundo capítulo, particularmente fascinante. O segundo vídeo, de apenas dois discos, Collision, centra-se num acidente de carro em uma estrada inglesa que envolve vários motoristas. A companhia de seguro, a quem caberá cobrir todas as despesas estimadas, decide promover investigação particularmente cuidada, no curso da qual se revelam perfis e histórias impactantes, confluindo tudo num desfecho surpreendente e, portanto, inesperado.
Essas credenciais de Horowitz já o recomendavam, quando em minha última visita à Barnes & Nobles, de West Harrison, NY, deparei com livros do autor. O primeiro bastava como tentação. O título era Moriarty, que todo leitor aficionado por história policial sabe tratar-se do Professor James Moriarty, terrível criminoso que Sherlock Homes persegue obstinadamente. Mais ainda, o mesmo leitor pode saber também que Conan Doyle fazia parte de um grupo de escritores que considerava os romances policiais como forma inferior de literatura (“low-brow litterature”) e aspirava a produzir obras de alto nível literário (“high-brow litterature”), razão por que decide se livrar da dupla, Holmes e Moriarty, afogando-os na cachoeira Reichenbach, em Meiringen, na Suíça, como resultado de um duelo malsucedido entre os dois, descrito em “O problema final”.
Moriarty tinha, portanto, motivos de sobra para atrair um leitor, como eu, interessado em verificar o que Horowitz se dispusera a explorar diante de pano de fundo tão terminativo, vale dizer, mortos, sem dúvida, os protagonistas centrais de toda essa história. Alguns chegaram a ouvir que, a despeito das veleidades literárias de Doyle, a reação dos fãs de Holmes fora tamanha que ele teve de ressuscitar pelo menos Sherlock Holmes em uma coleção de contos, “Casa vazia”, assinados por John Watson, o inseparável companheiro do célebre detetive inglês.
Assim mesmo, esse sopro adicional de vida a Sherlock não se qualificava como matéria literária capaz de entreter os leitores nas 320 páginas que restavam, depois dos referidos nas 30 páginas iniciais do livro. O que Horowitz ainda teria a dizer, então?
O pretexto narrativo para romantizar as relações entre Sherlock Holmes e Moriarty veio pela investigação que Frederick Chase, alto funcionário da firma americana Pinkerton Detective Agency, sediada em Nova York, se dispôs a conduzir na Europa, para elucidar a morte de Jonathan Pilgrin, enviado pelo dito escritório nova-iorquino de detetives, para se infiltrar nas gangues de Moriarty. Foi barbaramente assassinado, e Chase apostava ter dedo do bandido. Mas, tão logo chegou à Europa, a notícia da morte dupla de Holmes e Moriarty na cachoeira suíça desviou sua atenção, para se concentrar no paradeiro do bandido nova-iorquino. Não tardou a descobrir que, com a morte anunciada de Moriarty, um fora da lei inglês, chamado Clarence Devereux, se apropriara do espólio do americano – tampouco no universo do mundo do crime tampouco existe vácuo de poder – e estava levando a polícia inglesa à loucura. Chase tanto faz que chega a se associar a Athelmy Jones, detetive da Scotland Yard, para dar prosseguimento às investigações.
Segue-se daí uma história policial, como se tivesse sido escrita pelo próprio Sherlock Holmes, de quem o inspetor britânico é leitor voraz. A trama é muito bem construída, os personagens são críveis e convincentes, os mistérios se acumulam e, de repente, vem o desfecho, que não há maneira de eu adiantar. Seria uma maldade, o spoiler do ano, ou do século. Quem quiser conferir que o faça. Não vai se arrepender. Se for admirador de Sherlock Holmes, então...
Saiba mais sobre a autor
*André Amado é escritor, pesquisador e embaixador aposentado.
** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática online de abril de 2022 (42ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.
*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores. Por isso, não reflete, necessariamente, as opiniões da publicação.
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Nas entrelinhas: O caso Silveira e o devido processo legal
Luiz Carlos Azedo / Nas Entrelinhas / Correio Braziliense
Como todos sabem, os tempos da política são diferentes no Executivo, no Legislativo e no Judiciário. Lidar com isso é ciência e arte. O presidente Jair Bolsonaro foi rápido como o ponteiro dos segundos ao perdoar o deputado Daniel Silveira (PTB-RJ), condenado a oito anos e nove meses de prisão pelo Supremo Tribunal Federal, livrando-o da cadeia, das multas e da cassação de mandato, cuja sentença fora aprovada por acachapante maioria de 10 a 1. O artigo 734 do Código de Processo Penal confere ao presidente da República o poder de conceder esse perdão, “espontaneamente”. A cúpula do Congresso acompanha o imbróglio com um olho na opinião pública e o outro na execução das emendas ao Orçamento, no ritmo do ponteiro dos minutos.
Protegido por Bolsonaro, Silveira tripudia do Supremo, que o obrigou a usar tornozeleira eletrônica: o aparelho está descarregado desde 17 de abril e, a rigor, ninguém monitora o parlamentar. No Congresso, deputados bolsonaristas se mobilizam para aprovar uma lei que anistia os crimes de fake news, reduz o poder de cassação de mandatos do Supremo e possibilita processar os integrantes da Corte. Bolsonaro bate no peito e diz que o perdão (graça) concedido a Silveira será cumprido custe o que custar. O conjunto dessa obra seria a transformação do nosso Estado democrático de direito num regime iliberal. É mais ou menos isso que os partidários de Bolsonaro desejam. Já se mobilizam para uma manifestação pela “liberdade de expressão” no próximo 1º de Maio. O ato é contra o Supremo e está sendo apoiado pelo presidente da República, cuja reeleição está em risco.
O tempo do Supremo é lento como o ponteiro das horas. O Art. 5º da Constituição de 1988 estabelece que “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”, que garante a todos o direito a um processo com todas as etapas previstas em lei, dotado de todas as garantias constitucionais. Da mesma forma como protege os réus, faz com que os processos cheguem a um ponto final, nem que seja a prescrição prevista em lei. É considerado o mais importante dos princípios constitucionais, do qual derivam todos os demais.
O conceito remonta à Magna Carta de João Sem Terra, de 1215, e ao Statute of Westminster of Theo Liberties of London, a Lei Inglesa de 1354, de Eduardo III. O princípio law of the land ou seja, direito da terra, garantia aos cidadãos um justo processo legal. Esse princípio foi consagrado pela Constituição norte-americana e incorporado ao nosso ordenamento jurídico. Garante o interesse público, coíbe o abuso de poder e regula todo o processo criminal, garantindo os direitos de citação, ampla defesa, defesa oral, apresentação de provas, opção de recorrer a um defensor legalmente habilitado (advogado), contraditório, sentença fundamentada etc. Consagra a legalidade e, também, a legitimidade da jurisdição, entendida como “poder, função e atividade”. A jurisdição foi o calcanhar de Aquiles da Lava-Jato.
Temperatura
O devido processo legal garante ao deputado Daniel Silveira amplo direito de defesa. Por isso, seu julgamento ainda não foi concluído pelo Supremo, que precisa respeitar os ritos e prazos do direito de defesa. É aí que o presidente Jair Bolsonaro pôs a carroça à frente dos bois. Ao conceder o perdão, se antecipou à conclusão do julgamento, como bem assinalou o ex-presidente Michel Temer, além de abrir espaço para a contestação de sua decisão, que extrapolou o que seria sua competência: perdoar a pena de prisão; seus efeitos secundários, não.
O presidente da República não está nem um pouco preocupado com filigranas jurídicas, seu objetivo é proteger seus aliados e desmoralizar o Supremo. O problema é que o devido processo legal, nesse caso, passou a funcionar a favor do Supremo, que pode jogar com o tempo para construir uma decisão robusta, com base na Constituição, que frustre a intenção de Bolsonaro.
O Judiciário é uma engrenagem complexa. Ontem, a Justiça Federal do Rio de janeiro deu um prazo de 72 horas para a União explicar a graça dada a Silveira. O juiz Carlos Ferreira de Aguiar, da 12ª Vara Federal do Rio, atendeu ao pedido dos advogados André Luiz Cardoso e Rodolfo Prado, do Distrito Federal, que querem a suspensão do decreto. Na mesma ação, a Advocacia-Geral da União (AGU) alega que o juiz não tem legitimidade para analisar o caso, pois o tema está em tramitação no Supremo.
O caso Silveira será relatado pela ministra Rosa Weber, a quem caberá oferecer uma solução jurídica para a questão. Deu dez dias de prazo para o presidente Bolsonaro explicar sua decisão. Sem dúvida, há uma crise institucional instalada, que opõe Bolsonaro ao Supremo, porém, o tempo pode esvaziá-la. Apesar daqueles que querem pôr fogo no circo, é difícil manter a temperatura de ignição. O rito do devido processo legal vai baixar a temperatura.
Revista online | Política fiscal para a expansão energética
Julia de Medeiros Braga*, especial para a revista Política Democrática online
No Plano Decenal de Expansão de Energia (PDE) 2030, a Empresa de Pesquisa Energética (EPE) projeta que a demanda por eletricidade passe a superar a oferta em 2026, mostrando a necessidade de inserção de novos recursos. Para lidar com as incertezas hidrológicas, o PDE 2031 incorporou critérios mais rígidos, mostrando a possibilidade de violação já em 2024 e indicando aumento do requisito de potência energética no sistema.
Há uma tendência de eletrificação do consumo de energia ao longo do horizonte decenal, o que significa, porém, a perda de importância das fontes fósseis, pelo contrário. O que se observa é aumento da geração termelétrica a gás natural para compensar as variações das afluências das bacias hidrográficas. E essa tendência tende a continuar: o PDE 2031 estima crescimento da demanda termelétrica por gás natural de 6% ao ano no período de 2021 a 2031.
A maior participação relativa das fontes renováveis (eólica, fotovoltaica e biomassa) não diminui a necessidade de expressivo aumento da geração de termelétricas movidas a gás natural. Isso acontece mesmo na estratégia de expansão ótima sob a perspectiva puramente de mercado. Dado um cenário de crescimento do PIB de 3% ao ano, é necessária a expansão de 43 GW, dos quais 22,6 GW são atendidos pelas termelétricas.
Assim, a Petrobras ganha ainda mais protagonismo no sistema energético nacional, devido não só à extração de petróleo, mas também do gás natural que é retirado no mesmo processo de extração do óleo. O pré-sal possibilitou ao Brasil ganhar parcela de mercado no comércio mundial, e a transição energética não é um entrave a essa tendência. A EPE estima uma continuidade do crescimento da demanda mundial por petróleo na próxima década. Com isso, a produção brasileira de petróleo pode passar dos atuais 3 milhões de barris/dia para 5,2 milhões em 2031. A guerra na Ucrânia e o estremecimento das relações históricas diplomáticas dos EUA com a Arábia Saudita e os Emirados Árabes abrem janela de oportunidades para o Brasil aumentar ainda mais seu market share nas exportações mundiais de petróleo.
Isso tudo precisará contar com fontes de financiamento e realização de obras por parte do poder público, das estatais e das empresas privadas. Daí porque o debate acerca da política fiscal apropriada para permitir esse desenvolvimento se faz fundamental.
Uma sugestão de medida tributária adequada a esse contexto é a taxação sobre as exportações (ou sobre o direito de exportar) de produtos primários (commodities) cujos preços são determinados nos mercados internacionais. Este tributo teria a vantagem de reduzir o preço requisitado pelos produtores para atender o mercado interno. Apesar de levar a uma taxa de lucro menor, esta ainda seria elevada em situações de preços mundiais altos e não teria por que reduzir o volume exportado.
O desenho ideal dessa alíquota é variar de acordo com o preço da commodity (já convertido em reais brasileiros), podendo ser isenta caso o preço fique abaixo de certo limiar. Em anos como o de 2021, com a disparada dos preços nos mercados internacionais adicionada da desvalorização cambial, os lucros dos exportadores de commodities ficam extraordinariamente altos, o que justificaria a adoção de uma alíquota mais alta.
No caso da Petrobrás, a regra de equiparação do preço importado deve considerar o preço já líquido dessa alíquota tributária variável. Isso torna a regra de preço mais flexível, por não prejudicar o equilíbrio econômico-financeiro da empresa em tempos de preços baixos, mas que não joga todo o ônus ao consumidor final em tempos de preços altos. O pré-sal possibilita à Petrobras continuar se valendo de uma enorme vantagem absoluta de custos mesmo com esse imposto. Outro efeito benéfico é o incentivo para as empresas investirem em ampliação de refino para processar o óleo e exportar (ou reduzir as importações de) seus derivados.
Além dessa tributação, o Estado deve atuar numa política de expansão dos investimentos e financiamento públicos direcionados ao setor de energia. A EPE aponta a necessidade de (1) resolver o gargalo de infraestrutura do gás natural, com rotas de escoamento, unidades de processamento e gasodutos de transporte; (2) modernização de Usinas Hidrelétricas; (3) investimentos em tecnologias de armazenamento de energia; (4) a exploração do grande potencial de urânio para a energia nuclear, além da promoção de biocombustíveis e das outras fontes renováveis; e (5) investimentos em transmissão, para ampliar a capacidade de interligação entre os subsistemas sudeste e sul e também com o sistema norte e nordeste, que concentra a expansão das fontes renováveis. Essas interligações permitem otimizar as complementaridades sazonais e geram ganhos de eficiência ao sistema, sobretudo em épocas de alta incerteza devido aos episódios climáticos extremos.
Saiba mais sobre a autora
*Julia de Medeiros Braga é economista e professora da Universidade Federal Fluminense (UFF)
** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática online de abril de 2022 (42ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.
*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores. Por isso, não reflete, necessariamente, as opiniões da publicação.
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25 de Abril: Um dia com história em Portugal... e em Itália. Do 'Bella Ciao' à 'Grândola, Vila Morena'
Correio da Manhã*
Foi a 25 de Abril de 1974 que a 'Revolução dos Cravos' acabou com a ditadura do Estado Novo em Portugal. Mas nem só por terras lusas este dia é comemorado como o da libertação de regimes ditatoriais. Corria o ano de 1945 quando, em Itália, o povo italiano colocou um ponto final na ocupação nazi no seu território.
O 25 de Abril é uma das datas mais importantes e mais comemoradas no calendário italiano desde então. Nos movimentos de libertação participaram cerca de 300 mil pessoas. Há investigadores que dizem que este número está nivelado por baixo.
Em Portugal, a 'Grândola, Vila Morena' de Zeca Afonso foi o hino da libertação do Estado Novo. Em Itália, Bella Ciao - popularizado nos últimos anos com a série 'La Casa de Papel' - foi o hino da Resistência Italiana - os partigianos - contra o fascismo de Benito Mussolini e das tropas nazis durante a Segunda Guerra Mundial.
Bella Ciao é uma música cuja origem é desconhecida, historiadores defendem que terá tido origem no final do século XIX. sabe-se apenas que foi baseada em algumas composições antigas, tanto a nível de letra como musical.
Foi no dia 25 de Abril de 1945, há 75 anos atrás, que os partigianos - resistência italiana - anunciaram pela rádio, acompanhada do hino da liberdade, o Bella Ciao, a tomada de poder e a pena de morte para todos os fascistas. Foi a partir dessa data que foram recuperados os últimos territórios que ainda eram ocupados por tropas fascistas ou nazis em Itália. Em menos de uma semana, todas as cidades italianas foram libertadas. Benito Mussolini, líder do Partido Nacional Fascista em Itália, acabou por ser detido e executado, a 28 de maio de 1945.
*Texto publicado originalmente no Correio da Manhã
O centenário do PCB 2022 e a questão democrática no Brasil
Antônio Fernando de Araújo Sá* | Observatório da Democracia
Dentro do Ciclo de Debates (2022) do Observatório da Democracia (UFS), a organização, pelo Grupo de Pesquisa História Popular do Nordeste (UFS/CNPq), de mesa redonda sobre o centenário do Partido Comunista Brasileiro (PCB) e a questão democrática, serve de ponto de partida para se pensar as batalhas memoriais e políticas no Brasil contemporâneo, especialmente após as transformações advindas da crise do socialismo real, no final da década de 1980. Foram convidados professores e militantes, com perfis diferenciados, para discutir as comemorações do Partido Comunista Brasileiro, nesse ano: Osvaldo Maciel, professor/pesquisador na Universidade Federal de Alagoas, do Rio de Janeiro, Ivan Alves Filho, historiador, e o militante político sergipano Marcélio Bomfim.
Em um momento em que o discurso político da extrema direita tem associado o nazismo como ideologia de esquerda e o colocado no mesmo patamar do comunismo, pensamos ser oportuno discutir os limites da democracia no Brasil ao longo de um século de existência do PCB, que passou praticamente sua vida política na clandestinidade. Por outro lado, a mesa destacou a contribuição para o debate historiográfico por parte de intelectuais vinculados ao partido, bem como na edição de periódicos, livros e jornais, além da presença no cinema, teatro, literatura e artes visuais.
Dois momentos do processo de desestalinização no século XX incidiram na reescrita da história do PCB, como no caso do relatório de Nikita Kruschev apresentado no XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética, em 1956, e no quadro da glasnost e da perestroika, com o governo Gorbachev. As disputas memoriais nesses dois momentos significaram conflitos que resultaram em cisões políticas internas e revisões na historiografia (POLLAK, 1989: p. 4-5).
Para o historiador Michel Pollak,
Toda organização política, por exemplo - sindicato. partido etc. -, veicula seu próprio passado e a imagem que ela forjou para si mesma. Ela não pode mudar de direção e de imagem brutalmente não ser sob risco de tensões difíceis de dominar, de cisões e mesmo de seu desaparecimento, se os aderentes não puderem mais se reconhecer na nova imagem, nas novas interpretações de seu passado individual e no de sua organização. O que está em jogo na memória é também o sentido da identidade individual e do grupo (POLLAK, 1989: p. 10).
No Brasil, nesses dois momentos de desestalinização, rupturas políticas resultaram, em um primeiro momento, na constituição do Partido Comunista do Brasil (PC do B), no início dos anos 1960, e, no segundo, na extinção do PCB, por parte dos setores ligados a Roberto Freire, que, em 1992, fundaram o Partido Popular Socialista (PPS), que depois se transformou no Cidadania, em 2019. Mas, apesar de minoritário à época, um grupo convocou uma Conferência Extraordinário de Reorganização do partido, conseguindo posteriormente resgatar a sigla (SECCO, 2022).
Todos esses agrupamentos políticos vão disputar e defender o passado comunista, com diferentes versões e visões sobre a estratégia e a tática do partido para a definição de um programa socialista e em torno da democracia interna. Não podemos esquecer ainda de setores próximos ao trotskismo, que também disputam essa tradição política no Brasil.
A construção da memória do PCB refundado pode ser identificada em escritos de intelectuais e militantes a ele vinculados, que defendem o projeto político revolucionário na conjuntura atual. Para Ivan Pinheiro, “não se tratava apenas de preservar o partido, como se fosse uma peça de museu, mas de mudar radicalmente sua política e seu caráter, no processo que chamamos de Reconstrução Revolucionária” (PINHEIRO, 25/01/2022. Endereço eletrônico: https://pcb.org.br/portal2/28341. Acesso em 03/04/2022).
Osvaldo Maciel, inspirando-se no pensador comunista Antônio Gramsci, colocou que escrever a história política de um partido não apenas se está realizando um trabalho historiográfico, mas se está contando a história de um país, por meio de um ponto de vista monográfico.
Marcélio Bomfim estabeleceu uma revisão de sua trajetória histórica, de modo crítico, identificando equívocos e acertos, inclusive adotou uma postura autocrítica de ter participado da construção do Partido Popular Socialista (PPS) como vereador do município de Aracaju (SE). Para ele, no tempo presente, há a necessidade do fortalecimento para a reconstrução do PCB em uma perspectiva revolucionária, reivindicando este agrupamento político como “legítimo herdeiro do movimento”, em continuidade à política oficial do PCB. Nesse sentido, “resgatar a história do PCB é recuperar a memória de um Brasil insurgente, que, no combate permanente às imposições do modo de produção capitalista e do imperialismo, comprova que só pode fazer futuro quem tem lastro no passado” (https://pcb.org.br/portal2/28298. Acesso em 03/04/2022).
Já o historiador Ivan Alves Filho, em Os Nove de 22: O PCB na vida brasileira (2021), pela Fundação Astrogildo Pereira, estabeleceu uma linha genealógica que remonta aos nove militantes que fundaram o partido, passando pelas suas transformações políticas que resultaram no PPS e, depois, no Cidadania. Para o autor, “Não se trata de retornar ao passado, (...) mas de imaginar que determinados elementos desse passado possam se incorporar ao presente, humanizando mais a vida”. Na proposta de interligar o passado e o presente, Alves Filho afirmava não ser possível escrever a história do Brasil do século XX sem o PCB e, mesmo com todas as divisões e dos equívocos cometidos, “ainda tem muito a nos ensinar, conforme Roberto Freire, Francisco Inácio de Almeida e Cristóvão Buarque têm apontado. Que o seu legado continue a influir na vida brasileira pelos próximos cem anos” (ALVES FILHO, 2021: p. 257 e 268).
Apesar do transformismo de ex-comunistas, como Roberto Freire, vemos que o Cidadania, como um partido “de centro com um programa neoliberal ‘progressista’ que manteve a Fundação Astrojildo Pereira”, tem insistido em “disputar a memória pecebista” (SECCO, 2022).
Por outro lado, o Partido Comunista do Brasil (PC do B) também disputa essa memória, construindo uma narrativa que tem como marco fundador a reunião dos dias 25, 26 e 27 de março de 1922, na cidade de Niterói (RJ). Os documentos “Cinquenta anos de luta” (1972) e de “PCdoB: 90 anos em defesa do Brasil, da democracia e do socialismo” (2012), aprovados pelo Comitê Central, conformaram a base do documento lido por Renato Rebelo “PCdoB: um século de lutas em defesa do Brasil, da democracia e do socialismo”, aprovado por unanimidade, na reunião da Comissão Política Nacional do partido, no dia 18 de março de 2022. Esses documentos reiteram um acerto de contas contra as posições reformistas e revisionistas de Prestes à frente do PCB, no período de 1956 a 1962, especialmente a Declaração de Março de 1958 e a luta política no 5º Congresso do Partido (1960), quando houve o afastamento do Comitê Central de lideranças como João Amazonas, Maurício Grabois e Diógenes Arruda (https://pcdob.org.br/noticias/pcdob-um-seculo-em-defesa-do-brasil-da-democracia-e-do-socialismo/. Acesso em 03/04/2022).
A presença dos trotskistas no centenário do PCB foi rememorada, por Michel Goulart da Silva, pela participação de João Pimenta, delegado no congresso do PCB em 1922, como “um dos fundadores da primeira organização trotskista no Brasil”, além da adesão ao partido de nomes “centrais do trotskismo, como Lívio Xavier e Mario Pedrosa”, por volta de 1924 e 1925”. Entretanto, a tônica é de crítica à trajetória do PCB, que motivou a ruptura dos trotskistas, “devido às debilidades da direção do partido, ao oportunismo de parte de sua direção e à influência da burocracia stalinista”. O articulista comentou a disputa dessa memória, por parte do atual PCB, do PCdoB e dos grupos herdeiros do prestismo, não estabeleceu “um balanço sério sobre os crimes e as traições de Stalin e dos burocratas que o apoiaram e sobre a degeneração teórica e política que representou o stalinismo” (SILVA, 25/03/2022. Endereço eletrônico: https://www.marxismo.org.br/o-centenario-do-pcb-e-o-lugar-dos-trotskistas/#_ftnref2 Consultado em 02/04/2022).
A construção da memória do centenário do PCB demonstra, de modo cabal, que a cada vez que há “uma reorganização interna, a cada reorientação ideológica importante reescrevera-se a história do partido e a história geral. Tais momentos não ocorrem à toa, são objeto de investimentos extremamente custosos em termos políticos e em termos de coerência, de unidade, e portanto de identidade da organização” (POLLAK, 1992: p. 206).
Vemos que, desde a década de 1980, a crise do modelo clássico de comemoração, marcado pela soberania impessoal e afirmativa da Nação, da República, do Estado, resultou em batalhas memoriais em partidos, sindicatos e associações que assumiram a organização das comemorações, evidenciando todos os conflitos internos e as contestações inevitáveis, como aqui demonstrado, mas que também representam um processo de democratização e laicização dos eventos comemorativos (NORA, 1997: p. 4688).
Apesar do revival do comunismo, em parte puxado pela renovação do PCB e a tentativa de ampliação da ação em sindicatos e movimentos sociais, em parte como fenômeno das redes sociais com youtubers e outras personalidades, fica a pergunta se a preocupação obsessiva em torno da memória nessas comemorações do centenário do PCB, por setores da esquerda comunista, não seria um “prêmio de consolo” frente à sua fragilidade política na história do Brasil contemporâneo?
[1] O debate O Centenário do PCB (2022) e a questão democrática no Brasil foi realizado, no dia 4 de abril de 2022, pelo Grupo de Pesquisa História Popular do Nordeste (UFS) e Observatório da Democracia (UFS), no Canal YouTube do Departamento de História (UFS). Agradeço o apoio ao evento e a leitura crítica do texto do Chefe deste Departamento, Prof. Dr. Carlos Malaquias.
REFERÊNCIAS
ALVES FILHO, Ivan. Os nove de 22. Brasília: Fundação Astrojildo Pereira, 2021.
NORA, Pierre. L’ ére de la commémoration. In: NORA, Pierre (dir.). Les Lieux de Mémoire (Les Frances). v. 3. Paris: Gallimard, 1997.
PARTIDO COMUNISTA DO BRASIL. PCdoB: Um século em defesa do Brasil, da democracia e do socialismo. https://pcdob.org.br/noticias/pcdob-um-seculo-em-defesa-do-brasil-da-democracia-e-do-socialismo/. Acesso em 03/04/2022.
PARTIDO COMUNISTA BRASILEIRO. 2022: o ano do Centenário do PCB. Endereço eletrônico: https://pcb.org.br/portal2/28298. Acesso em 03/04/2022.
PINHEIRO, Ivan. O dia em que o PCB não morreu: 25 de janeiro de 1992: 30 anos do “racha”. 25/01/2022. Endereço eletrônico: https://pcb.org.br/portal2/28341. Acesso em 03/04/2022.
POLLAK, Michael. Memória e Identidade Social. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, v. 5, n. 10, 1992. Endereço eletrônico: https://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/reh/article/view/1941/1080
POLLAK, Michael. Memória, Esquecimento, Silêncio. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, vol. 2, n. 3, 1989. Endereço eletrônico: https://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/reh/article/view/2278/1417
SECCO, Lincoln. O centenário do PCB. A Terra é Redonda. 26/3/2022. Endereço eletrônico: https://aterraeredonda.com.br/o-centenario-do-pcb/ . Acesso em 03/04/2022.
SILVA, Michel Goulart da. O centenário do PCB e o lugar dos trotskistas. 25/03/2022. Endereço eletrônico: https://www.marxismo.org.br/o-centenario-do-pcb-e-o-lugar-dos-trotskistas/#_ftnref2 Consultado em 02/04/2022.
Prof. Dr. Antônio Fernando de Araújo Sá
Departamento de História
Universidade Federal de Sergipe
*Publicado originalmente no Observatório da Democracia
Revista online | 50 anos de alguns discos maravilhosos
Henrique Brandão*, especial para a revista Política Democrática online
Nada menos moderno do que a ideia de que existe uma “fórmula modernista” de se fazer arte. O grande legado da Semana de 22, que acaba de completar 100 anos, foi justamente romper com os parâmetros do que a academia reconheceu como “arte”. Para os modernistas, e isso é moderno, a arte não está nos cânones festejados nos salões. Muito pelo contrário. O verso poderia ser livre; a pintura, exprimir subjetividade; a música, expressar os sons das festas populares; o cinema, mostrar a realidade; a fotografia, captar o espontâneo das ruas; a dança, inovar nos movimentos.
Na área musical, por exemplo, basta prestar atenção à bossa nova, à geração dos festivais da MPB e ao pessoal do tropicalismo, para perceber que suas obras trazem vários elementos do modernismo.
Isso pode ser visto – e ouvido – nos discos que, coincidentemente, foram lançados em 1972, ano em que se comemorou o cinquentenário da Semana de 22. Foi uma safra excepcional.
Entre os muitos lançamentos estão: Transa, de Caetano Veloso; Expresso 2222, de Gilberto Gil; e Clube de Esquina, de Milton Nascimento. Pouco antes, em dezembro de 1971, Chico Buarque lançou Construção. Esses quatro discos são belos exemplares de modernidade.
Caetano e Gil, já em 1968, fizeram parte do tropicalismo. Naquele ano, lançaram Tropicália, um disco-manifesto. Desde a capa, com foto cheia de simbolismos, fica evidente a iconoclastia da proposta.
Em 1969, Caetano e Gil, perseguidos pela ditadura, se exilaram em Londres. Só retornaram ao Brasil em 1972, quando os respectivos discos foram lançados.
Transa, para muitos críticos e fãs, é o melhor disco de Caetano. Gravado em Londres, cantado em inglês e português, com direção musical de Macalé, o disco traz, em quase todas as músicas, citações e referências a poemas e obras musicais de diversos autores, como Gregório de Matos (1636-1996), Dorival Caymmi (1914-2008), Carlos Lira e Vinicius de Moraes, Baden Powel (1937-2000) e Edu Lobo, além de trechos de canções do folclore e pontos de capoeira, numa postura avant la lettre do que seria a música dos anos 2000, com o uso do sample e do mashup. Tudo costurado pelo talento de Caetano.
Expresso 2222, de Gilberto Gil, é um marco na carreira do compositor baiano. Várias faixas se tornaram clássicos, como a que dá nome ao disco, e a confessional Back in Bahia, espécie de “Canção do Exílio” moderna, de pegada roqueira, composta quase 100 anos depois que Gonçalves Dias concebeu seus famosos versos românticos (1873).
Se o amigo Caetano misturou suas referências dentro das próprias músicas, Gil preferiu gravar, com toque autoral, músicas do seu universo nordestino, como O canto da Ema (Ayres Viana, Alventino Cavalcanti e João do Vale) e Chiclete com Banana (Gordurinha e Almira Castilho), que acabou tornando-se o carro-chefe do disco.
Pouco depois dos baianos tropicalistas, foi a vez de Chico Buarque partir para o exílio. Em vez de Londres, epicentro da onda psicodélica na Europa, Chico migrou para a Itália. Retornou ao Brasil em março de 1970, desembarcando no aeroporto carregando uma bandeira do Fluminense.
Se Caetano e Gil foram artífices da Tropicália, sob a inspiração de Oswald de Andrade, Chico já tinha desde garoto, por meio do pai, Sérgio Buarque, ensaísta formado sob os eflúvios modernistas, um vínculo permanente com o modernismo.
Em Construção, Chico Buarque bebeu na fonte da poesia moderna. Os versos, sempre terminados em proparoxítonas, sugerem imagens de força cinematográfica. Chamam a atenção, no disco, os arranjos de Rogério Duprat, tropicalista de primeira grandeza que, a exemplo do que fez no Tropicália com Miserere Nobis e Coração Vagabundo, aboliu o intervalo entre as faixas de Deus lhe pague e Construção. A orquestração casa à perfeição com a bela e complexa letra de Chico, acrescentando dramaticidade à saga do personagem que morre na “contramão atrapalhando o tráfego”.
Em 1971, Milton Nascimento, Lô Borges e uma turma de amigos mineiros, por sua vez, alugaram uma casa em Mar Azul, Piratininga, balneário situado em Niterói (RJ). Nos dias em que ficaram por lá, compuseram a maioria das músicas do álbum duplo Clube de Esquina.
O disco é uma síntese do pop dos Beatles, da música sacra do barroco mineiro, dos tambores africanos, da bossa nova, importante na formação dos que participaram do álbum, e do jazz, que todos ouviam atentamente. Todas essas referências se encontraram à beira-mar e gestaram um disco singular, de sonoridade moderna e universal.
Viva os 50 anos desses discos maravilhosos.
Saiba mais sobre o autor
*Henrique Brandão é jornalista e escritor
** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática online de abril de 2022 (42ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.
*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores. Por isso, não reflete, necessariamente, as opiniões da publicação.
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O que a mídia pensa: Editoriais / Opiniões
Editoriais
O Estado de S. Paulo
Imunidade parlamentar não inclui agredir a democracia e o livre funcionamento das instituições republicanas, reafirmam PGR e STF. A condenação do bolsonarista é pedagógica
Ao condenar o deputado federal Daniel Silveira (PTB-RJ) a oito anos e nove meses de reclusão, pelos crimes de ameaça ao Estado Democrático de Direito e coação no curso do processo, o Supremo Tribunal Federal (STF) foi pedagógico. Não existe liberdade de expressão para atacar a democracia. Não existe imunidade parlamentar para impedir o livre funcionamento das instituições republicanas.
Por 10 votos contra 1, o plenário do STF entendeu que a conduta de Daniel Silveira foi criminosa, isto é, que se enquadra naquelas hipóteses em que, ao atingir bens essenciais de uma sociedade, a lei prevê a imposição de uma pena. Os oito anos e nove meses de prisão não são desproporcionais, mas estrita aplicação da legislação a que todos os cidadãos estão sujeitos.
No processo, nada houve de perseguição política. Foi apenas o Estado, por meio de suas instituições, cumprindo seu papel de impedir que condutas consideradas criminosas pela lei fiquem impunes. Ao contrário do que os bolsonaristas dizem, não foi o Supremo que, num rompante autoritário, investigou, denunciou e puniu Daniel Silveira. A acusação contra o deputado bolsonarista não foi apresentada pelo ministro Alexandre de Moraes, e sim pela Procuradoria-Geral da República (PGR). Foi ela quem primeiro entendeu que a atuação de Daniel Silveira havia sido criminosa.
É sintomático que o bolsonarismo, tão afeito ao punitivismo – sua retórica é sempre de aumento da pena –, tenha se mobilizado, de forma tão intensa, pela impunidade de Daniel Silveira. Não era apenas que “um dos nossos” estava sendo julgado por sua conduta tresloucada. Foi a própria tática política do bolsonarismo, de agressão contra as instituições, que estava no banco dos réus. Daí a importância do julgamento de quarta-feira passada: o Estado Democrático de Direito, por meio de suas instituições, reconheceu que a política também está sujeita a regras e a limites. Não é um vale-tudo, não é um mundo sem lei.
A atividade parlamentar dispõe de prerrogativas constitucionais. Como é próprio de um regime democrático, “os deputados e senadores são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos” (art. 53 da Constituição). No entanto, ameaçar e agredir não é uma opinião: é crime. E não cabe usar a imunidade parlamentar como “escudo protetivo para a prática de atividades ilícitas”, lembrou Alexandre de Moraes.
Eis a confusão que o bolsonarismo deseja instaurar. Para seus atos, almeja irrestrita impunidade. Tudo estaria dentro de um amplíssimo conceito de liberdade, para fazer e dizer o que bem entender, num cenário de completa irresponsabilidade. Para os outros, a liberdade seria inteiramente diferente, muito mais limitada. A mera crítica ao presidente da República já foi motivo para que o governo Bolsonaro solicitasse a instauração de inquérito policial contra opositores. É tudo uma grande incoerência. O mesmo deputado bolsonarista que gostaria que seus crimes estivessem protegidos pela imunidade parlamentar defende a edição de um novo AI-5, justamente o ato da ditadura que suspendeu importantes garantias constitucionais.
Há liberdade no País e, precisamente para que possa continuar havendo liberdade, é preciso ter lei. “A liberdade de expressão existe para a manifestação de opiniões contrárias, para opiniões jocosas, para sátiras, para opiniões inclusive errôneas, mas não para imputações criminosas, para discurso de ódio, para atentados contra o Estado de Direito e a democracia”, afirmou Moraes.
Além de pedagógico sobre os limites da liberdade, esse processo judicial põe por terra uma falácia bastante difundida entre bolsonaristas. O que se tem no País hoje não é uma disputa entre STF e Jair Bolsonaro, como se o Supremo perseguisse politicamente o bolsonarismo. O Congresso autorizou a prisão preventiva de Daniel Silveira. A PGR denunciou o deputado. Até o ministro André Mendonça votou por sua condenação. Não é perseguição política, é aplicação da lei. E quem está isolado é o bolsonarismo, não o STF.
N. da R. – Com este texto já na página, Bolsonaro anunciou o indulto do deputado, mostrando uma vez mais a falta de pudor do bolsonarismo em usar o poder para acobertar os crimes dos amigos.
Bom para os partidos, ruim para o País
O Estado de S. Paulo
Inapetência de grandes legendas pela Presidência decorre de um arranjo que dá ao Legislativo acesso inaudito ao Orçamento sem a devida responsabilização
Diante dos olhos de todos, grandes partidos políticos, como PSDB, MDB e União Brasil, têm demonstrado, diariamente, enorme dificuldade para indicar pré-candidatos à Presidência da República que mostrem ser alternativas viáveis aos dois primeiros colocados nas pesquisas de intenção de voto: o ex-presidente Lula da Silva (PT) e o incumbente, Jair Bolsonaro (PL). A seis meses da eleição, o cenário de disputas fratricidas, traições e sabotagens internas no seio do chamado centro democrático sobressalta todos aqueles que receiam ver o País entregue a um dos dois projetos populistas iliberais ora em destaque. E está-se falando de muita gente. A depender do instituto de pesquisa, algo entre 25% e 30% do eleitorado afirma não querer votar nem em Lula nem em Bolsonaro.
Em um regime presidencialista, é natural supor que a chegada ao topo do Poder Executivo federal seja o objetivo maior dos partidos políticos, o gran finale de uma trajetória marcada pela construção de uma identidade ideológica e programática, pela ampliação da presença nacional das legendas e, enfim, pela elaboração de um projeto de governo que represente as ideias e os valores de segmentos significativos da sociedade. Evidentemente, nenhum partido político, seja grande ou pequeno, está obrigado a lançar candidatura própria à Presidência da República a cada quatro anos. Mas há muito tempo não se via no Brasil tamanha inapetência das grandes legendas – que são grandes justamente por serem as que bem trilharam aquela trajetória – para lançar uma candidatura competitiva ao Palácio do Planalto. Há uma razão muito evidente para isso: o Congresso jamais teve tanto acesso a recursos do Orçamento da União como tem agora. E sem prestar contas do que faz com tanto dinheiro.
Desde a aprovação das chamadas emendas impositivas, tanto as individuais como as de bancada, no governo da ex-presidente Dilma Rousseff (PT), o Congresso vem ampliando a fatia do Orçamento da União sob seu controle. Nas democracias representativas, é esperado que deputados e senadores tenham algum grau de participação na destinação final dos recursos públicos, mas o que se vê aqui não tem paralelo no mundo. O Estadão teve acesso a um estudo elaborado pelo economista Marcos Mendes (Insper) para o Instituto Millenium que revela que a captura de recursos públicos por meio de emendas parlamentares no País é até 20 vezes maior do que nas nações que integram a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), instituição da qual o Brasil deseja fazer parte.
De acordo com o estudo, as emendas parlamentares representam 24% das despesas dos Ministérios e dos investimentos previstos para este ano. A título de comparação, nos Estados Unidos apenas 2,4% da despesa total vem das emendas parlamentares. “O que o Brasil faz é uma aberração que acaba comprometendo muito a própria democracia”, disse ao Estadão a diretora executiva do Instituto Millenium, Marina Helena Santos.
A “aberração” se materializa na quantidade absurda de emendas individuais e de bancada que são apresentadas ao Orçamento da União. Aberrantes são as emendas de relator, base do “orçamento secreto”. Indecentes são os valores bilionários dos fundos públicos que despejam dinheiro fácil nas contas dos partidos, como o Fundo Partidário e o Fundo Eleitoral. Como o quinhão desses fundos que cabe a cada legenda está relacionado ao tamanho de suas bancadas, os caciques partidários têm cada vez menos estímulos para investir em campanhas para a Presidência. Optam pelas eleições proporcionais, sobretudo para a Câmara dos Deputados. Ademais, o atual arranjo representa o melhor dos mundos para as legendas: muito dinheiro e nenhuma responsabilização por seu uso ou pela falta de projetos majoritários para o País.
Enquanto isso, parcela expressiva dos eleitores segue sem representação política, à mercê de dois projetos de poder rigorosamente personalistas. É este, por enquanto o resultado da bagunça interna e do descaso com o País de partidos políticos outrora dignos de sua inscrição na história nacional.
A inflação agora preocupa todos
O Estado de S. Paulo
Alta intensa e persistente dos preços agora é percebida por praticamente toda a população
A inflação está se acelerando desde o início do ano passado, e a cada mês afeta mais o orçamento das famílias, mas a percepção das pessoas de que os preços de bens rotineiramente comprados por elas estavam subindo não era muito nítida. Agora é. O impacto da inflação foi sentido por 95% da população, de acordo com pesquisa patrocinada pela Confederação Nacional da Indústria (CNI) e realizada pelo Instituto FSB Pesquisa. Em novembro do ano passado, 73% dos brasileiros diziam ter sentido o aumento médio dos preços.
O indicador subiu 22 pontos de porcentagem em seis meses. Nesse período, o ritmo da inflação não se alterou muito. Em novembro, a alta acumulada de 12 meses foi de 10,7%. Em março de 2022, com alta de 1,62%, a maior para o mês desde o lançamento do Plano Real, em 1994, o acumulado de 12 meses alcançou 11,30%, apenas 0,6 ponto maior do que o resultado de novembro.
Por isso, talvez mais do que a aceleração, é a persistência da inflação em nível alto que tem feito mais pessoas perceberem seu impacto. Essa percepção afeta decisões importantes, inclusive no plano político, pois a inflação pode ter peso expressivo, se não decisivo, na escolha do candidato à Presidência da República.
A expectativa das pessoas consultadas é de que não haverá melhora no curto prazo. Em novembro, 54% dos entrevistados consideravam que os preços aumentariam nos seis meses seguintes. Na pesquisa mais recente, o porcentual passou para 66%.
Esse sentimento combinado de que os preços sobem muito e continuarão subindo nos próximos meses, mais intenso na pesquisa recente do que na anterior, deveria afetar também de maneira mais intensa sua programação financeira, mas, curiosamente, não foi isso que se constatou. Em novembro, 74% dos entrevistados disseram que tinham feito algum corte nos gastos familiares nos seis meses anteriores; em abril, 64% disseram ter reduzido alguma despesa.
A avaliação do impacto do aumento dos preços sobre a situação financeira, de sua parte, não mostrou variação expressiva entre uma pesquisa e outra. Em novembro, 75% dos entrevistados diziam que suas finanças tinham sido afetadas pela inflação; o índice passou para 76% em abril. Mas aumentou (de 45% para 54%) a parcela dos que afirmaram ter tido suas finanças muito afetadas pelo aumento dos preços.
Itens de despesas que mais pesam nos orçamentos das famílias de baixa renda estão entre os mais citados entre os que ficaram mais caros nos últimos meses. Dos entrevistados, 59% mencionaram o aumento da conta de luz; seguem-se, pelo número de citações, gás de cozinha, arroz e feijão, conta de água, combustível, frutas e verduras, carne vermelha e remédios.
Por isso, a percepção de que os preços aumentaram muito é mais intensa nas famílias com renda de até um salário mínimo (90%) do que nas com renda maior do que cinco salários mínimos (83%). Da mesma forma, é maior no Nordeste (93%) do que no Sul (76%). Mas, qualquer que seja a faixa de renda ou a região, a inflação é um mal cuja percepção é generalizada.
Tortura, mancha que não se apaga da história nacional
Valor Econômico
A lei da anistia conteve os democratas, mas o revanchismo parece vir hoje dos radicais de direita, estimulados pelo Planalto
O golpe militar de 1964 abriu um período nefasto da história republicana, com a destruição da democracia, a perseguição política, torturas e assassinatos. Ainda sob a ditadura, em 1979, uma lei de anistia assegurou impunidade a torturadores e aos responsáveis pelos órgãos de repressão que os comandavam. Prevaleceu até hoje a solução contemporizadora, fruto do jogo tenso das forças políticas da época, até que chegou à Presidência o capitão reformado Jair Bolsonaro (“mau capitão”, segundo o ditador Ernesto Geisel), que vê no regime militar a época de ouro que gostaria de reviver. Não está sozinho nesse desejo.
O episódio da revelação de fitas gravadas no Supremo Tribunal Militar entre 1975 e 1985 pela jornalista Miriam Leitão, de “O Globo” - torturada quando grávida -, comprovou mais uma vez que houve uso da violência contra presos indefesos e que o tribunal militar tinha conhecimento delas. Torturas estão descritas em áudios do almirante Júlio de Sá Bierrenbach, o general Rodrigo Octávio, os ministros Amarilio Salgado e Waldemar Torres da Costa, brigadeiro Faber Cintra e outros.
Parte de compilação realizada pelo historiador e pesquisador da Universidade Federal do Rio de Janeiro Carlos Fico, as fitas vieram à tona para desmentir insinuações hediondas de Eduardo Bolsonaro, filho do presidente, sobre o que ocorreu nos porões da ditadura com Miriam. Mais do que documentar fatos bárbaros e adicionar detalhes cruéis, os áudios reavivaram ou revelaram os piores instintos de militares com posições de poder na República. O vice-presidente Hamilton Mourão, questionado sobre a necessidade de apurar os fatos descritos, sorriu e disse: “Apurar o quê? Os caras já morreram tudo, pô”. Para ele, isso faz parte de um passado no qual “houve excesso de parte a parte”.
Pior fez o presidente do Supremo Tribunal Militar, general Luís Carlos Gomes Mattos, que qualificou documentos históricos da Corte que preside de “notícia tendenciosa” e entrou no túnel do tempo para afirmar que sua divulgação era uma conspiração para atingir as Forças Armadas. “Não estragou a Páscoa de ninguém”, completou. Para o general, “só varrem de um lado, não varrem o outro”.
Como deputado, e depois presidente da República, Jair Bolsonaro não se cansa de louvar os trabalhos do torturador Carlos Brilhante Ustra, a quem dedicou, inclusive, seu voto pelo impeachment de Dilma Rousseff. Eleito, Bolsonaro buscou para a chefia do Gabinete de Segurança Institucional o general Augusto Heleno, ajudante de ordem do general Silvio Frota, expoente da linha dura do regime militar, botinado por Geisel por tentar torpedear o processo de abertura política controlada.
O ministro da Defesa, Walter Braga Netto, cotado para vice na chapa de Bolsonaro para a reeleição, qualificou o golpe de 31 de março como “um marco histórico da evolução política brasileira” em ordem do dia alusiva à data. Seu legado, segundo Braga, foi de “paz, de liberdade e de democracia”.
O imaginário bolsonarista é habitado por fardas e demonstrações de força e poder contra inimigos, entre eles, frequentemente, a democracia. Eduardo Bolsonaro disse, por exemplo, em vídeo gravado em julho de 2018: “Cara, se quiser fechar o STF, sabe o que você faz? Você não manda nem um jipe. Manda um soldado e um cabo. Não é querer desmerecer o soldado e o cabo, não”.
Bolsonaro atraiu ao seu redor a ala radical das Forças Armadas, que justifica o rompimento da ordem legal sob alegações ideológicas diversas, que usualmente não guardam relação com a realidade. Há outra ala, legalista, que respeita a Constituição, que também se abriga na cúpula militar. Ela vê o despreparo e a incompetência de Bolsonaro como um desserviço aos fins últimos do corpo armado do Estado.
Ao colocar milhares de militares na administração pública, Bolsonaro deu visibilidade a casos gritantes de inadequação para o cargo em um momento trágico da vida nacional, como foi a passagem do general Eduardo Pazuello pelo Ministério da Saúde. Ex-militares ou militares da reserva estiveram envolvidos em escândalos de corrupção no caso das vacinas, desmoralizando a imagem que o Exército tem perante a população.
Mais importante, com sua gritaria sobre a possibilidade de fraude nas eleições, Bolsonaro busca arregimentar adeptos para seus sonhos radicais. A lei da anistia conteve os democratas, mas o revanchismo parece vir hoje dos radicais de direita, estimulados pelo Planalto.
Brasil não consegue sair da série B da economia mundial
O Globo
Para os brasileiros, o último Panorama Econômico Global com as projeções do Fundo Monetário Internacional (FMI) para a economia mundial traz dois recados. Primeiro, o PIB do Brasil deverá crescer neste ano raquítico 0,8%, e em 2023 apenas 1,4%. Segundo, esse é um crescimento ainda mais medíocre quando comparado ao dos demais países emergentes.
É verdade que a guerra na Ucrânia freou a recuperação mundial depois dos piores momentos da pandemia. A previsão é de inflação alta e de desaceleração no crescimento global (de 6,1% em 2021 para 3,6% em 2022 e 2023). Mas o que está ruim ainda pode piorar. No rol das incertezas estão a ampliação do conflito armado na Europa e a desaceleração maior na China em razão do fracasso na estratégia de Covid-19 zero.
Nesse ambiente conturbado, o melhor que o governo federal poderia fazer é exatamente o contrário do que tem feito. Seria o tempo de preparar o país para o vendaval que se avizinha. Não na visão do presidente Jair Bolsonaro. Ele dá repetidas provas de não se importar com o estado da economia depois das eleições de outubro. Faria bem se moderasse o ímpeto gastador e parasse de corroer o arcabouço fiscal que garante a gestão sensata da dívida pública.
Não é um acaso que as estimativas de crescimento do PIB brasileiro em 2022 e 2023 sejam desproporcionalmente menores que as da Índia (8,2% e 6,9%) ou da China (4,4% e 5,1%). Os números para a América Latina (2,5% e 2,5%) e para o México (2% e 2,5%) não chegam às alturas, mas são bem mais respeitáveis que os brasileiros.
Desgraçadamente, isso não é novidade. Com ou sem guerra, com muita ou pouca incerteza, o desempenho do Brasil tem sido sofrível com regularidade espantosa. Não há consolo ao olhar para outros lugares. Desde 2014, o Brasil registra desempenho pior que as médias global e dos países emergentes e em desenvolvimento. Só crescemos mais que o México em dois anos.
O debate aqui é prejudicado por uma miopia crônica. Segundo uma visão deturpada, nossas vantagens comparativas em bens primários são um limitador ao desenvolvimento industrial. Na verdade, como diz o economista Samuel Pessôa, faltam evidências convincentes de que a valorização do câmbio provocada pela venda de commodities seja grande empecilho à competitividade da indústria. Os maiores problemas são outros, a começar pelo ambiente protegido. Em vez de maldição, o setor primário, aberto para o mundo, tem sido a salvação.
Reformar as leis que condenam o Brasil ao atraso deveria ser a prioridade do próximo governo. Mas nenhum dos líderes nas pesquisas de opinião parece ter muita noção do momento histórico. Bolsonaro se tornou refém de demandas corporativas e de interesses os mais variados. E o ambiente internacional atual em nada se parece com o que o ex-presidente Lula encontrou durante seus dois mandatos. O discurso prisioneiro dos interesses locais, da agenda do funcionalismo e da ideia de um Estado indutor do crescimento já foi testado antes e não deu certo. Insistir nesses erros equivalerá a continuar vendo a corrida global dos últimos lugares, com desemprego alto e renda baixa.
PF precisa levar até o fim as investigações contra Jair Renan
O Globo
Já ficou claro que o bolsonarismo se manifesta em pelo menos duas variantes, para usar o termo em voga. A primeira poderia ser chamada de “ideológica” ou “intelectual”. São os bolsonaristas que se acreditam em guerra contra a esquerda, o “marxismo cultural”, o “politicamente correto” ou qualquer outra fabulação da extrema direita. A segunda variante tem um caráter mais material. É um bolsonarismo, por assim dizer, de resultados, mais voltado para negócios. É o bolsonarismo das rachadinhas do Queiroz, dos pastores pedindo propina no MEC, das negociatas no Ministério da Saúde, das estrepolias com o Centrão.
Os filhos Zero Dois (Carlos) e Zero Três (Eduardo) do presidente Jair Bolsonaro são expoentes da primeira variante. O primeiro está vinculado à campanha vitoriosa de 2018 e à desinformação nas redes sociais. O segundo, discípulo do finado guru Olavo de Carvalho, articula alianças estratégicas com a extrema direita global. O filho Zero Um (Flávio), protagonista do escândalo das rachadinhas, pode ser considerado um espécime da segunda variante. A ela também parece pertencer o Zero Quatro (o caçula Jair Renan), envolvido agora numa história rocambolesca de tráfico de influência, em que é acusado de abrir a porta do governo a empresários, em troca de mimos para seu escritório no estádio Mané Garrincha, em Brasília.
Num depoimento de quatro horas à Polícia Federal, Jair Renan negou irregularidades. Os indícios, porém, são comprometedores. Em 2020, ele se reuniu no Espírito Santo com empresários interessados em negócios com o governo. Dois meses depois, as portas do Ministério do Desenvolvimento se abriram a um deles, numa reunião com a presença do Zero Quatro, de sua arquiteta e do personal trainer com quem se associou em vários negócios.
Mensagens obtidas pela PF revelam que esses dois últimos buscavam patrocínio para pagar obras no escritório do Zero Quatro, identificadas como “bolsa móveis e bolsa reforma”. “Já já sai na mídia. Filho de presidente pede Bolsa Móveis”, dizia uma delas. Uma das patrocinadoras do projeto recebeu R$ 25,4 milhões em contratos para fornecer poltronas, cadeiras e mesas ao governo. De acordo com Jair Renan, as doações que recebeu das empresas seriam pagas na forma da veiculação de publicidade nas redes sociais.
É até possível que não haja ligação entre os contratos com o governo e a proximidade do filho do presidente. Mas casos do tipo sempre deixam uma mancha. Todo presidente da República precisa zelar pela imagem de seus parentes, que muitas vezes usam essa relação familiar para catapultar negócios. Bolsonaro não é o único a enfrentar o problema. Várias denúncias atingiram filhos do então presidente Luiz Inácio Lula da Silva. O mexicano Andrés Manuel López Obrador está às voltas com acusações cabeludas envolvendo seu filho mais velho. Em todos os casos, cabe às autoridades apurar tudo. A PF deve levar as investigações até o fim. E Bolsonaro, como todo bom pai, não deveria passar a mão na cabeça de seus filhos — de qualquer variante.
Desastres no MEC
Folha de S. Paulo
Com 5ª nomeação para a pasta, Bolsonaro patrocina gestão ruinosa da educação
O presidente Jair Bolsonaro (PL) nomeou Victor Godoy Veiga como seu novo ministro da Educação. É o quinto indicado ao MEC em 40 meses. A rotatividade, contudo, constitui o menor dos problemas da pasta cuja importância estratégica esteve sistematicamente rebaixada nesta administração.
Godoy Veiga não é mais que um burocrata. Formou-se em engenharia de redes de comunicação de dados pela Universidade de Brasília (UnB) em 2003 e só tem cursos de especialização na Escola Superior de Guerra e na Escola Superior do Ministério Público —nenhum deles relacionado com educação.
Ocupava a secretaria-executiva do MEC, após 16 anos como auditor na Controladoria-Geral da União (CGU). Fora indicado pelo antecessor Milton Ribeiro, que deixou o ministério no escândalo da intermediação de verbas por pastores.
Parece haver mais automatismo que ironia na escolha do especialista em propinas de órgão de fiscalização do governo para suceder um investigado. Bolsonaro repete indicações recentes de subalternos inexpressivos para o primeiro escalão, e até Ribeiro os desvios notórios no MEC eram ideológicos, não de dinheiro público.
A sucessão de desastres começou com Ricardo Vélez Rodríguez, filósofo e teólogo indicado ao MEC por Olavo de Carvalho, falecido guru da direita tresloucada. Vélez ficou 99 dias no cargo, tempo suficiente só para reconhecer-se sua nulidade.
Quando não parecia possível relegar o MEC a nível mais inferior, Bolsonaro nomeou Abraham Weintraub, economista da Unifesp. Seguiram-se 14 meses de destempero por um ideólogo tosco, cujo feito mais famoso foi vociferar em reunião ministerial que "colocaria todos esses vagabundos na cadeia, começando no STF".
O passo seguinte na degradação, em 2020, se deu com o professor de finanças Carlos Alberto Decotelli —que nem chegou a tomar posse, renunciando pouco depois de nomeado, após descobrirem-se um doutorado fictício e sinais de plágio na sua tese de mestrado.
Em comum entre Vélez, Weintraub e Ribeiro encontra-se a inoperância na missão de recuperar o ensino público no país. O que já era problemático, em termos de aprendizado e proficiência, caminha para revelar-se uma tragédia sob o golpe triplo da conturbação pandêmica, da incompetência e do aparelhamento sob Bolsonaro.
Isso sem falar, claro, nos indícios de corrupção e mau uso do dinheiro público por operadores do centrão que proliferam na pasta.
Chegou-se no Brasil ao ponto em que o melhor que se pode dizer do novo ministro da Educação está em não ser, aparentemente, um militante ideológico ou religioso. É muito pouco, pouco demais.
Covid acima de zero
Folha de S. Paulo
China se debate para manter controle rígido do vírus, afetando a economia global
Berço da pandemia do Sars-CoV-2, a China passou os dois primeiros anos da pandemia sendo admirada pela eficácia de seu programa de combate à disseminação do vírus que já matou mais de 6,2 milhões de pessoas no mundo inteiro.
Aplicando uma política rígida de lockdowns em grandes áreas urbanas, Pequim logrou registrar apenas cerca de 4.700 mortes oficiais na porção continental do país, com meras 3 vítimas para cada milhão de habitante —um milésimo do observado no Brasil ou nos EUA.
Tal brilho sempre foi alvo de contestação devido à opacidade típica de estatísticas em uma ditadura comunista, mas especialistas concordam que os chineses conseguiram um sucesso sanitário único.
Ato contínuo, o feito virou peça de propaganda do regime ante a suposta ineficiência das democracias liberais em lidar com o vírus.
Foi assim até agora. A abordagem conhecida como Covid zero começou a ser colocada à prova com a emergência da variante ômicron, que varreu o globo neste ano.
Em Hong Kong, região semiautônoma que não integra os números chineses da peste, houve uma explosão de casos que evidenciou dois problemas graves: o relaxamento da cobertura vacinal entre os mais idosos e o fato de que os imunizantes do país, de tecnologia mais tradicional, são menos eficazes contra a nova cepa.
De forma inédita, duas megacidades, Xangai (26 milhões de habitantes) e Shenzhen (17 milhões) foram fechadas. Tão inaudito quanto isso, moradores passaram a furar o bloqueio da internet para protestar contra as regras draconianas e a vida numa distopia onde cães-robôs vigiam as ruas.
Como ensinou Sun Tzu no clássico chinês "A Arte da Guerra" (séc. 5º a.C.), se o inimigo deixa uma porta aberta, urge precipitar-se sobre ela. Foi o que o vírus fez.
Com isso, a produção industrial chinesa, engatinhando para fora da crise, entrou em alerta. A imagem de centenas de navios à espera de atracagem no porto de Xangai insinua o dano a cadeias logísticas mundiais, já bastante castigadas.
Em um mundo que lida com uma guerra europeia com potencial caótico para a área de energia, é mais do que uma má notícia.
Na fútil competição geopolítica, o Ocidente não apresenta números melhores, e a volta dos surtos assombra a Europa e os Estados Unidos. Mas são Xi Jinping e sua inflexível política sanitária que estão agora no holofote.
Fonte: Democracia Política e novo Reformismo
Nas entrelinhas: Perdão de Bolsonaro a Silveira confronta o Supremo
Luiz Carlos Azedo / Nas Entrelinhas / Correio Braziliense
Ao conceder perdão ao deputado federal Daniel Silveira (PTB-RJ), condenado na quarta-feira a oito anos e nove meses de prisão pelo Supremo Tribunal Federal, o presidente Jair Bolsonaro confrontou a Corte como nunca, instalando uma crise entre os Poderes da República, de consequências ainda imprevisíveis. Com base no artigo 734 do Código de Processo Penal, segundo o qual o presidente da República pode conceder “espontaneamente” a graça presidencial, em edição extraordinária do Diário Oficial, Bolsonaro livrou o deputado valentão da prisão, das multas e da cassação de mandato, sentença aprovada na quarta-feira, por acachapante maioria de 10 a 1.
A alternativa que se coloca para os ministros do Supremo é anular a decisão de Bolsonaro, para não serem desmoralizados e ficarem expostos a toda sorte de ataques. O presidente da República exorbitou no decreto, segundo juristas, porque poderia perdoar a pena de prisão, que é de natureza criminal, mas não as multas e a cassação de mandato, que extrapolam o escopo do instituto da graça individual (perdão). Como sabe disso, Bolsonaro tem plena consciência de que escalou uma crise institucional.
Os ministros do Supremo reagiram à medida com incredulidade, não esperavam que o presidente da República fosse além das críticas à Corte. Havia um estresse entre os Poderes desde o começo da semana, em razão do julgamento, mas os recursos apresentados pela defesa de Silveira e a necessidade de uma decisão do Supremo sobre a cassação automática ou não do mandato do parlamentar, pleiteada pelo presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), criavam um campo de modulação da sentença e de negociação entre os Poderes. Bolsonaro chutou o pau da barraca.
Segundo a Constituição, a graça poderá ser provocada por petição do condenado, de qualquer pessoa do povo, do Conselho Penitenciário, ou do Ministério Público, ressalvada, entretanto, ao Presidente da República, a faculdade de concedê-la espontaneamente. Juristas afirmam que o alcance do perdão, segundo a Súmula 631 do STJ, extingue os efeitos primários da condenação, mas não os efeitos penais e extrapenais secundários.
O deputado Daniel Silveira foi condenado a 8 anos e 9 meses de prisão, além da perda de mandato e de seus direitos políticos, por incitar atos de violência contra instituições democráticas e ameaçar ministros do Supremo, principalmente Alexandre de Moraes, relator do seu processo e desafeto do presidente Bolsonaro. No mesmo dia do julgamento, o presidente da Câmara solicitou que o Supremo concluísse o julgamento de um caso que trata desse assunto, mas não é diretamente ligado ao deputado Daniel Silveira: o julgamento do deputado Paulo Feijó (PR-RJ), que teve o mandato cassado. À época, era presidente da Câmara Rodrigo Maia, então no DEM, que questionou o STF dizendo que cabia à Casa a palavra final sobre seu mandato.
A decisão da Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) condenou o deputado federal Paulo Feijó (PR), a 12 anos, 6 meses e 6 dias de reclusão em regime inicial fechado, além do pagamento de mais 374 dias-multa pelos crimes de corrupção passiva e lavagem de dinheiro. O relatório da ministra Rosa Weber determinava a perda do mandato parlamentar e sua interdição para exercício de cargo ou função pública de qualquer natureza e de diretor, membro de conselho de administração ou de gerência das pessoas jurídicas citadas na lei de combate à lavagem de dinheiro, pelo dobro da pena privativa de liberdade aplicada.
Linha de fronteira
À época, por unanimidade, os ministros decidiram pela perda do mandato de Feijó com base no artigo 55, inciso III, da Constituição Federal, que prevê essa punição ao parlamentar que, em cada sessão legislativa, faltar a um terço das sessões ordinárias, exceto se estiver de licença ou em missão autorizada pelo Legislativo. Os ministros entenderam que, neste caso, em vez de ser submetida ao Plenário, a perda de mandato deve ser automaticamente declarada pela Mesa Diretora da Câmara dos Deputados.
Então presidente da Casa, Maia recorreu da decisão, mas seu recurso não chegou a transitar em julgado porque o mandato acabou. A Advocacia-Geral da União naquela ocasião havia se manifestado pela prerrogativa exclusiva do Parlamento para decidir sobre a perda de mandato de congressista condenado criminalmente, no âmbito da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 511, que discute se cabe ao Legislativo ou ao Judiciário a última palavra nessas situações. Lira quer que a Corte conclua o julgamento sobre a questão.
Ainda há divergências entre os ministros do Supremo sobre a perda do mandato ser automática ou depender também de votação na Câmara. Uma ala defende a perda imediata; outra, não. Antes do recesso, o Supremo deveria tomar uma posição sobre essa questão, mas agora terá que agir mais rápido e tratar diretamente do caso Silveira, que estressa as relações entre os Poderes, mas é paradigmático em razão dos frequentes ataques do presidente Bolsonaro ao Supremo Tribunal Federal (STF).