Imagem : reprodução Horizontes Democráticos

As salsichas e as leis

Ricardo Marinho*, Horizontes Democráticos

Atribui-se a Otto von Bismarck (1815-1898), que foi Primeiro-Ministro da Prússia (1862-1890), Chanceler da Confederação da Alemanha do Norte (1867-1871) e Primeiro Chanceler do Reich Alemão (1871-1890), a famosa frase: “Os cidadãos não poderiam dormir tranquilos se soubessem como são feitas as salsichas e as leis.”

Otto von Bismarck (1815-1898)

Os amantes de expressões idiomáticas conhecem Bismarck como o criador de inúmeras imagens linguísticas de igual naipe. Algumas metáforas são vinculadas a ele (por exemplo “ferro e sangue”). Outras parecem ser efetivamente dele, conforme o texto e o contexto acabam por se encaixar. No entanto, muitas não podemos comprovar.

Um dos bons motes e mais conhecidos é essa atribuição que se encaixa bem em face a longeva distância (e talvez não totalmente imprecisa) de Bismarck em relação aos procedimentos legislativos parlamentares, para o arrepio de Max Weber (1864-1920). Mas, com um olhar para o mundo gastronômico, Bismarck teria dito mesmo essa frase à qual nos reportamos acima.

Existe até uma versão ainda mais dura dela em que se diz que as pessoas não deveriam estar presentes quando as leis e/ou salsichas são feitas, pois, do contrário elas poderiam ficar doentes – a pandemia nos mostrou isso. Ambas as formulações são apontadas e podem até ter vindo de Bismarck, mas a historiografia não pode comprovar.

Tendo em vista a distância historicamente condicionada, é compreensível a muitos de nós que tal frase acabe por ficar registrada como de Bismarck, e com a própria dinâmica do esquecimento o personagem histórico venha diminuindo lentamente ao longo do tempo e dando espaço a divulgação inapropriada de informações conforme “teorias” da conspiração e fake news.

A mídia tem observado recentemente, em nosso contexto – e em quase tudo diferente do século XIX de Bismarck –, que salsichas e outros alimentos à base de carne, independentemente do processo de origem, se tornaram rarefeitos na nossa mesa. Imaginemos, à propósito que mesmo a produção de tofu raramente ganharia prêmios estéticos por sua produção.

Mas essa breve digressão alimentar visa recuperar a frase para o nosso contexto de escassez proteica de origem animal mamífera (e não só) uma vez que seu principal objetivo é dizer que o processo de negociação política, pode ser cheio de misturas grosseiras e que a superfície lisa que mostra, por exemplo, o produto salsicha pode trazer em seu interior qualquer quantidade de vísceras, peles, sobras e cartilagens esmagadas.

A arte de vender salsichas consiste em esconder seu processo de produção aos olhos do público e mostrar apenas o resultado, sem sua gestação inapresentável.

Não é passível a recordação das gerações viventes a existência de uma época na política brasileira em que as misérias da máquina de fazer salsichas fossem tão visíveis publicamente. O governo e seus partidos não têm escrúpulos em mostrar aos leigos o que é esse lado duro da política e como eles o praticam secretamente.

Bolsonaro se reúne e negocia com o Centrão

A variedade de embutidos processados no atual governo é rica e de altíssimo escalão: seus ministros, a candidatura à Presidência da República, colaboradores e ex-colaboradores do chefe de Estado, senadores e ex-senadores, deputados e ex-deputados, um aglomerado de empresários, governadores que entregaram eleitoralmente seu estado, entre outras circunstâncias inconfessáveis.

A lista poderia ser muito ampliada porque não há modéstia no uso da máquina de salsicha, como ficou claro esses dias, na reta final da campanha do primeiro turno das eleições de 2022. Ao contrário, a máquina é usada para fins de visibilidade, como punição para alguns e como advertência para todos. A máquina de fazer salsichas é chamada a politização personalizada.

Não há nada de novo nisso, exceto pelo fato de que a quantidade importa. Algumas salsichas são uma mancha para qualquer governo. Mas quando as salsichas se tornam legião, o governo parece apenas uma delicatesse inapresentável. Que nós possamos pavimentar, pelo voto, a chegada da primavera que tanto almejamos!

Artigo publicado originalmente no portal Horizontes Democráticos

População foi às ruas para protestar contra a privatização da companhia Vale do Rio Doce, vendida

30 anos de privatizações: investimentos caem e dívida pública sobe

Vinicius Konchinski | Brasil de Fato

Há pouco mais de 30 anos, durante a gestão do então presidente Fernando Collor (hoje no PTB), o governo lançou um plano robusto de privatizações: Programa Nacional de Desestatização (PND), que existe até hoje.

Naquela época, com o país em processo de redemocratização e precisando crescer, a venda de grandes empresas públicas era apresentada como uma dupla solução: primeiro, levantaria dinheiro para pagamento da dívida nacional; depois, contribuiria com o crescimento dos investimentos no país já que setor privado aumentaria sua participação neles.

:: Sob Bolsonaro, estatais abandonam o social e lucram na crise ::

Passados todos esse anos e vendidas estatais estratégicas como a Vale do Rio Doce e a Telebras, é possível dizer que as privatizações não serviram a nenhum dos objetos propostos: a dívida pública brasileira é maior do que era quando o PND foi lançado, em 1990; já o investimento ficou menor do que há 30 anos.

Segundo dados oficiais compilados pelo Observatório de Política Fiscal da Fundação Getulio Vargas (FGV), em 1990, o Brasil investia 20,66% do seu Produto Interno Bruto (PIB). Só o governo federal investia 0,88% do total gerado pela economia brasileira num ano; estatais investiam 1,48%; já o setor privado investia 15,45%.

Desde de que as privatizações começaram, com a venda da Usiminas, em 1991, a taxa de investimento oscilou, mas nunca atingiu os 21%. Em 2013, durante o governo da então presidente Dilma Rousseff (PT), chegou a 20,91%. Desde então, caiu e fechou 2021 em 19,17%.

:: Bolsonaro usa privatizações para reconquistar apoio de ricos na campanha eleitoral ::

Quando o PND foi lançado, economistas liberais argumentavam que, ao vender suas empresas ao capital privado, o Estado "abriria espaço" para que o investimento privado crescesse e as modernizasse. Em 2021, no entanto, o setor privado investiu 17,11% do PIB nacional, percentual maior do que em 1990, mas insuficiente para elevar o nível de investimento total.

Entre 2010 e 2020, o investimento privado correspondeu a 14,77% do PIB, na média. A taxa é menor do que a registrada em 1990.

Já o investimentos das estatais que restaram caiu para 0,66% em 2021. Isso é menos da metade do de 30 anos atrás.

"Ao contrário do discurso neoliberal de que é necessário o esvaziamento do Estado para que então o setor privado possa avançar, o que se observou de maneira geral é que a privatização não implicou adicional de investimento produtivo", ratificou o economista e professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Marcio Pochmann.

Dívida aumentou

Segundo Pochmann, as privatizações das estatais sequer serviram para aumentar a capacidade de investimento do governo federal, que em 2021, ficou em 0,26% do PIB – cerca de um quarto do que era em 1990. Ele lembrou que existia essa previsão quando o PND foi lançado. As vendas arrecadariam recursos, que seriam usados para pagamento da dívida pública, e assim sobrariam fundos para construção escolas, hospitais, estradas, por exemplo.

:: Eleições de 2022 devem definir privatização ou preservação de estatais ::

Os números, porém, mostram que não foi isso que aconteceu. Além do investimento federal nunca mais ter alcançado o patamar de 1990, a dívida brasileira aumentou de lá pra cá, apesar do dinheiro recebido com a venda das estatais. Em 1990, a dívida pública bruta era de 63% do PIB, de acordo com dados do Fundo Monetário Internacional (FMI). Ela fechou 2021 em 80,3%, segundo estatística do Banco Central (BC).

"O recurso que os governos arrecadam por conta da privatização serviram basicamente para atender o serviço da dívida pública [os juros]. Não serviu para ampliação de investimento ou gasto social", afirmou Pochmann.

Discurso equivocado

Simone Deos, que também é professora da Unicamp, disse os dados sobre investimentos e dívida são eloquentes para demonstrar a ineficiência das privatizações como solução para o crescimento e desenvolvimento. Para ela, é errado pensar que o investimento público "tira espaço" do privado.

:: Privatizações de aeroportos devem virar dívida para governo ::

Ela explicou que, na verdade, o que acontece é o contrário. Empresários só investem quando têm expectativa de lucro. Quando o setor público investe, a economia como um todo tende a crescer. Se isso acontece, é maior a chance do empresário lucrar. Maior também a chance de ele querer investir.

"O investimento público e investimento privado geralmente aumentam ao mesmo tempo", disse ela. "Não existe essa coisa de um expulsar o outro. Na verdade, o que deveria haver é uma complementaridade."

:: Privatização da Eletrobras ameaça centro de pesquisa ::

Daniel Negreiros Conceição, economista e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), disse que essas expectativas equivocadas não são meros erros. Para ele, há interesses no aumento das privatizações no Brasil. Esse interesse é de grandes empresários, os maiores beneficiados das vendas das estatais.

"Os capitalistas obviamente não querem enfrentar a concorrência estatal", disse Conceição. "Cada vez que você estatiza e começa a promover serviços públicos, você tira a oportunidade do setor privado fazer isso. Então o sonho do capitalista é a privatização."

Bolsonaro revive pauta

Segundo Conceição, esses capitalistas têm hoje influência sobre "extremistas liberais" que comandam a economia nacional durante o governo do presidente Jair Bolsonaro (PL). Por isso, neste governo, as privatizações voltaram à pauta econômica.

Durante a gestão Bolsonaro, o governo privatizou 36% das estatais brasileiras. Quando ele assumiu a Presidência, a União controlava 209 empresas. Hoje, são 133.

::Bolsonaro já privatizou um terço das estatais ::

A última privatização relevante realizada foi a venda do controle da Eletrobras, maior empresa de energia da América Latina. A operação também ocorreu porque, segundo o governo, isso possibilitaria o crescimento de investimentos da companhia.

A venda, aliás, ocorreu enquanto países como França e Alemanha discutem reestatizar empresas de energia para garantir sua soberania.

"O Brasil está na contramão. Parece surdo e cego ao que acontece no resto do mundo", reclamou Simone Deos.

Leia mais: Juca Abdalla, o banqueiro que lucra com a privatização da Eletrobras e administrará a Petrobras

Grandes privatizações desde 1990:

Governo Fernando Collor (1990 a 1992)
. Usiminas (siderúrgica)

Governo Itamar Franco (1992 a 1994)
. Companhia Siderúrgica Nacional
. Embraer (aviação)

 Governo Fernando Henrique Cardoso (1995 a 2002)
. Telebras (telefonia)
. Vale do Rio Doce (mineração)
. Bancos estaduais

Dilma Rousseff (2011 a 2016)
. Instituto de Resseguros do Brasil (seguradora)

Michel Temer (2016 a 2018)
. Distribuidoras de energia
. Linhas de transmissão

Jair Bolsonaro (2019 a 2022)
. Eletrobras (energia)
. BR Distribuidora (combustíveis)
. Transportadora Associada de Gás - TAG (combustíveis)
. Refinaria Landulpho Alves (combustíveis)

Edição: Thalita Pires

Matéria publicada originalmente no portal Brasil de Fato


Lula e Bolsonaro — Foto: Nelson Almeida/AFP e José Dias/Presidência da República

Nas entrelinhas: Confronto Lula versus Bolsonaro protagoniza semana épica

Luiz Carlos Azedo | Nas entrelinhas | Correio Braziliense

Os poemas épicos surgiram na Antiguidade, porém, entraram em decadência no século XVII, quando surgiram as narrativas em prosa, o romance. Dom Quixote, por exemplo, de Miguel de Cervantes, foi uma obra revolucionária porque representou a invenção do romance e, ao mesmo tempo, desnudou a realidade. Quando Miguel de Cervantes mandou Dom Quixote viajar, rasgou a cortina mágica, tecida de lendas, que estava suspensa diante do mundo.

A vida se abriu com a nudez cômica de sua prosa, destaca o escritor tcheco Milan Kundera (A Cortina, Companhia das Letras): “Assim como uma mulher que se maquia antes de sair apressada para o primeiro encontro, o mundo, quando corre em nossa direção, no momento que nascemos, já está maquiado, mascarado, pré-interpretado. E os conformistas não serão os únicos a ser enganados; os seres rebeldes, ávidos de se opor a tudo e a todos, não se dão conta do quanto também estão sendo obedientes, não se revoltarão a não ser contra o que interpretado (pré-interpretado) como digno de revolta.”

Ilíada e Odisseia, de Homero; Eneida, de Virgílio (70 a. C.-19 a. C.); e Os Lusíadas, de Luís Vaz de Camões (1524-1580), são exemplos de poemas épicos. Toda epopeia clássica começa com a revelação do herói e sua temática, invocando uma divindade inspiradora do autor, que narra os feitos heroicos do protagonista. Ou seja, a inspiração é o passado, mas este serve de reverência atemporal para a História, representa o processo civilizatório. Não à toa Virgílio buscou inspiração em Homero. Roma resgatava a cultura e os padrões estéticos da Grécia Antiga, numa narrativa plena de aventuras e heroísmo.

No poema épico, o herói reproduz as qualidades do seu povo, não apenas suas características individuais. Tem uma missão quase impossível a cumprir, o que destaca suas qualidades ao longo de uma narrativa, na qual suas dificuldades são extraordinárias. No modernismo, o poema Mensagem, de 1934, o poeta português Fernando Pessoa, com métrica e rima, resgata o heroísmo e a grandeza de Portugal no período dos Descobrimentos, numa crítica à decadência da elite de sua época.

Publicado oficialmente no México em 1950, e clandestinamente no Chile, no mesmo ano, “Canto Geral”, de Pablo Neruda, é outro poema épico. Escrito quando o poeta fugia do Chile para Argentina, pela cordilheira dos Andes, os versos denunciam as injustiças históricas que os países da América Latina sofreram ao longo dos séculos. Vilões e heróis são reclassificados a partir da sua perspectiva.

Escrito em Buenos Aires, em 1976, o Poema Sujo, de Ferreira Gullar, é outro exemplo de poema épico. Seus dois mil versos são uma espécie de ode à liberdade. O poeta já havia estado exilado em Moscou, em Santiago e em Lima. No Brasil, o regime militar implantado após o golpe de 1964 tinha autorização para enviar agentes dos serviços de segurança à Buenos Aires e capturar políticos oposicionistas. Temendo pela própria vida, Gullar trancou-se no apartamento onde morava, na Avenida Honório Pueryredon, em Buenos Aires, e escreveu o poema como se fosse um testamento, uma síntese do que pensava sobre a cultura e a vida.

Mitos e heróis
Teremos uma semana épica aqui no Brasil, na qual está se decidindo o nosso futuro, num embate entre o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e o presidente Jair Bolsonaro, que pode se decidir no primeiro turno em favor do primeiro ou nos levar a um segundo turno imprevisível, não do ponto de vista eleitoral, mas institucional. Será uma semana tensa, de muitas agressões e estresse emocional.

O mito de que o brasileiro é um “homem cordial” vem de um senso comum, desconstruído por Sérgio Buarque de Holanda, em Raízes do Brasil. A expressão cordial é um “tipo ideal” que não indica apenas bons modos e gentileza, vem da palavra latina “cordis”, que significa coração. Segundo Buarque, o brasileiro precisa viver nos outros. A cordialidade muitas vezes é mera aparência, “detém-se na parte exterior, epidérmica, do indivíduo, podendo mesmo servir, quando necessário, de peça de resistência.” A nossa história mostra o quanto a luta política pode ser cruel.

Lula e Bolsonaro são figuras mitológicas da política brasileira, Lula é o líder metalúrgico que chegou lá, passou o pão que o diabo amassou após deixar o poder e renasceu das cinzas, como fênix. Bolsonaro é o “mito” que desafiou o sistema, construiu uma carreira política na contramão, lançou-se à disputa pela Presidência com a cara e a coragem, sobreviveu ao atentado que o deixou entre a vida e a morte na reta final da campanha de 2018. Um tenta voltar ao poder, com o passivo dos escândalos de seu governo e um legado de realizações sociais; o outro, tenta a reeleição, com uma agenda conservadora e o fardo de um governo desastrado, da falta de empatia e das suas grosserias misóginas. Encarnam o papel de herói e anti-herói, simultaneamente, para uma sociedade dividida entre “nós” e “eles”.

Ulysses, o semideus grego da Ilíada de Homero tinha uma existência verdadeira, voltava para casa, tinha uma vida normal, até que a situação exigisse um gesto glorioso e individual. A filósofa judia alemã Hanna Arendt dizia que a disposição de pensar, agir e falar politicamente pode mudar o curso na história. O herói pode ser um indivíduo comum que se insere e se destaca no mundo por meio do discurso, se move quando os outros estão paralisados. Precisa fazer aquilo que outro poderia ter feito, mas não fez; ou melhor, o que deixaram de fazer. Lula e Bolsonaro estão ancorados no passado, têm projetos antagônicos, populistas, um é democrata, o outro é autoritário, mas vão decidir o futuro de todos nós.

https://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-confronto-lula-versus-bolsonaro-protagoniza-semana-epica/

Nas entrelinhas: Voto útil pode reduzir distância entre Lula e Bolsonaro

Luiz Carlos Azedo | Nas entrelinhas | Correio Braziliense

A campanha de voto útil deflagrada pelo PT para garantir a eleição do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva no primeiro turno é a estratégia adotada pelo petista na reta final de sua campanha. O objetivo é volatilizar a candidatura do ex-governador do Ceará Ciro Gomes (PDT) e, com isso, atrair os eleitores que lhe faltam para ter mais de 50% dos votos válidos em 2 de outubro. A expectativa de poder que o favoritismo de Lula oferece, ao contrário do que acontece com os demais candidatos de oposição, é um fator de atração de apoios de personalidades, intelectuais e políticos do chamado centro democrático, que estão aderindo publicamente à campanha do petista. Lula está mais próximo de uma vitória no primeiro turno.

No caso de Ciro, o voto útil já está implodindo o PDT. O tom agressivo da campanha, porém, provoca forte reação de Ciro Gomes, que passou a tratar Lula como adversário principal nas últimas semanas, por ter a sua sobrevivência como líder político nacional ameaçada pelo esvaziamento progressivo de sua candidatura. Na prática, essa reação de Ciro reforça a narrativa adotada por Bolsonaro para aumentar o índice de rejeição de Lula, focada, principalmente, nos escândalos do mensalão e da Petrobras, e pelas condenações em primeira e segunda instâncias nos processos da Operação Lava Jato, embora essas sentenças tenham sido anuladas pelo Supremo Tribunal Federal (STF).

Esse confronto no campo da oposição pode deixar muitas sequelas. O risco da estratégia é que a ofensiva não alcance seu objetivo e reduza, porém, a distância de Lula para o ex-presidente Jair Bolsonaro na votação de primeiro turno. Isso dependeria também do esvaziamento da candidatura de Simone Tebet (MDB), alvo de uma segunda frente da campanha do voto útil, operada pelo ex-governador Geraldo Alckmin, o vice de Lula, junto às lideranças históricas do PSDB. O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, pressionado por seus amigos e aliados mais próximos que aderiram a Lula nesta semana, ainda resiste a declarar apoio ao petista. Ontem, distribuiu nota na qual pedia voto para os candidatos de oposição a Bolsonaro, em defesa da democracia, sem aderir ao voto útil, mas não citou Simone, candidata que está oficialmente coligada com o PSDB e o Cidadania.

Com menos virulência do que Ciro, Simone Tebet também vem reagindo à campanha do voto útil. Em cards distribuído nas redes sociais, ela se coloca como única candidata em condições de derrotar Lula no segundo turno. É uma maneira de barrar o esvaziamento de sua candidatura por meio de um voto útil com sinal trocado, que levaria seus eleitores mais conservadores a desistirem de seu nome e derivar por gravidade para Bolsonaro, já que são antipetistas. É aí que mora o perigo de a campanha do voto útil reduzir a distância de Lula para Bolsonaro, sem garantir uma vitória no primeiro turno, reforçando a polarização eleitoral e, também, a radicalização política no segundo turno. Quanto menor a distância de Lula para Bolsonaro, maior o estresse previsível do ponto de vista institucional.

“Inimigo principal”

Numa campanha radicalizada, na qual os candidatos se tratam como adversários a serem liquidados, errar de “inimigo principal” pode ser fatal. Enquanto Bolsonaro concentra o fogo contra Lula, a oposição começa a se digladiar com muita agressividade na campanha. O normal seria que Ciro Gomes estivesse lutando para tomar o lugar de Bolsonaro, o segundo colocado, e não escalasse o confronto com Lula. A mesma coisa acontece com os petistas que estão intensificando os ataques ao candidato do PDT e, agora, contra Simone Tebet, que votou em Bolsonaro no segundo turno de 2018, mas vem fazendo uma firme campanha contra ele nestas eleições. Efeitos colaterais podem frustrar o esforço de Lula para vencer a eleição no primeiro turno nesta reta final e complicar muito a sua vida no segundo turno.

Bolsonaro errou muito na campanha até agora, mas passou a ouvir mais o seu marqueteiro, Duda Lima, responsável pelos programas de televisão, durante as gravações, segundo informa sua assessoria de imprensa, a propósito da coluna de ontem, quando afirmei o contrário. O caminho crítico para Bolsonaro chegar ao segundo turno é reduzir a vantagem de Lula entre os eleitores de mais baixa renda e entre as mulheres, o que ainda parece impossível. Para isso, ontem, o governo anunciou que vai comprar alimentos produzidos por pequenos agricultores e distribuí-los entre os mais pobres, uma tentativa de neutralizar o principal fator de desgaste de Bolsonaro junto aos eleitores que recebem até dois salários mínimos: o preço dos alimentos.

Na reta final da campanha, os estados de São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro serão decisivos para Bolsonaro garantir o segundo turno. No Rio de Janeiro, a reeleição do governador Cláudio Castro (PL) no primeiro turno ainda está no telhado, mas a distância de Marcelo Freixo (PSB) favorece Bolsonaro e complica para Lula. Em São Paulo, onde o petista Fernando Haddad é favorito, a estagnação da candidatura de Tarcísio Freitas (Republicanos) e o crescimento de Rodrigo Garcia (PSDB) preocupam Bolsonaro, que pretende intensificar sua campanha no estado. Em Minas, os ataques do governador Romeu Zema (Novo) ao ex-governador petista Fernando Pimentel acenderam um alerta vermelho na campanha de Lula, que apoia o ex-prefeito de Belo Horizonte Alexandre Kalil (PSD). Zema deve vencer no primeiro turno, mas ninguém sabe o que fará depois de eleito, se houver segundo turno entre Lula e Bolsonaro.

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Desembargador determina retirada de reportagens do UOL sobre imóveis comprados em dinheiro vivo pela família Bolsonaro

Por Márcio Falcão, TV Globo

O desembargador Demétrius Gomes Cavalcanti, do Tribunal de Justiça do Distrito Federal (TJDFT), determinou a retirada do ar de reportagens do portal UOL, que tratavam da compra de 51 imóveis em dinheiro vivo pela família do presidente Jair Bolsonaro (PL) (veja mais abaixo). A decisão é liminar, está em segredo de Justiça, e atende a um pedido do senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ).

Na decisão, o magistrado entendeu que as reportagens, escritas pela jornalista Juliana Dal Piva, se basearam em uma investigação anulada pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ). O UOL afirma que já cumpriu a decisão, mas a classificou como "censura" e disse que vai recorrer.

As reportagens consideravam o patrimônio do presidente, dos três filhos mais velhos, da mãe, de cinco irmãos e duas ex-mulheres, no Distrito Federal e nos estados do Rio de Janeiro e São Paulo. Segundo o texto, são 107 imóveis, dos quais 51 foram comprados com dinheiro vivo. Em valores corrigidos pela inflação, o montante equivale hoje a quase R$ 26 milhões, de acordo com a reportagem.

Na decisão, o desembargador Demétrius Gomes Cavalcanti afirma que, mesmo que a jornalista e o portal, "tenham dito que se ampararam em pesquisa a documentos fidedignos (escrituras públicas de compra e venda de imóveis), para averiguar quais e quantas propriedades foram adquiridas, com dinheiro em espécie, pela família B., desde os anos 1990, atrelou-se a esses fatos a conclusão ou, ao menos, a suposição, de que o capital utilizado para a compra dos imóveis seria proveniente de prática ilícita, consistente nas denominadas 'rachadinhas'".

Ainda de acordo com o magistrado, "alguns dos negócios entabulados" foram citados na investigação que apurava um suposto esquema de "rachadinha" no gabinete do senador. A investigação foi anulada pelo STJ em novembro do ano passado, porque os ministros entenderam que a condução da apuração foi feita por um juiz incompetente.

Ao determinar a retirada das reportagens, o desembargador Demétrius Gomes Cavalcanti diz que "tais matérias foram veiculadas quando já se tinha conhecimento da anulação da investigação, em 30/08/2022 e 09/09/2022, o que reflete tenham os Requeridos excedido o direito de livre informar".

"A uma, porque obtiveram algumas informações sigilosas contidas em investigação criminal anulada e, a duas, porque vincularam fatos (compra de imóveis com dinheiro em espécie), cuja divulgação lhes é legítima, a suposições (o dinheiro teria proveniência ilícita) não submetidas ao crivo do Poder Judiciário, ao menos, até o momento", afirma.

*Matéria publicada originalmente no G1.


Roberto Freire fala sobre radicalização provocada por Lula e Bolsonaro (Foto: Reprodução/Internet)

Roberto Freire pede empenho da militância e lideranças na reta final da campanha eleitoral

Cidadania23*

Na reta final da campanha eleitoral de 2 de outubro, o presidente nacional do Cidadania, Roberto Freire, reforçou em mensagem de vídeo (veja abaixo) às lideranças e a militância do partido nos estados e municípios a importância do empenho e voto na candidatura a presidente de Simone Tebet, e nos candidatos da legenda a deputado estadual e distrital, em especial aos que pleiteiam se eleger deputado federal.

“Isso eu diria a vocês que é muito importante, inclusive para aqueles que nos municípios brasileiros e nos estados exercem mandatos eletivos pelo Cidadania. Isso é fruto de participação, de trabalho, de posições políticas e também de recursos. E os recursos são criados nas eleições nacionais para deputado federal. Essa é a nossa responsabilidade nesta eleição”, afirmou.

É o resultado do pleito para a Câmara dos Deputados que vai determinar, nos próximos quatros anos, o percentual de participação do Cidadania nos fundos partidário e eleitoral.

“Se integrem na campanha [dos nossos candidatos] porque em 2024 evidentemente teremos melhores campanhas nos seus municípios, nas suas prefeituras, mandatos de vereadores para um crescimento ainda maior do nosso Cidadania”, pediu Freire, ao conclamar a unificação do partido no trabalho da conquista do voto para o fortalecimento do partido.

https://www.youtube.com/watch?v=jL2Wub8jU9g&t=3s

*Texto publicado originalmente no portal Cidadania23.


Presidente Jair Bolsonaro | Foto: ettore chiereguini/ Shutterstock

Nas entrelinhas: O “melhor país do mundo” não é o de Bolsonaro

Luiz Carlos Azedo | Nas entrelinhas | Correio Braziliense

O presidente Jair Bolsonaro discursou, ontem, na abertura da Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), em Nova York, nos Estados Unidos, como é de praxe no cerimonial do órgão, desde a sua criação no imediato pós-II Guerra Mundial, embora não exista nada escrito que o Brasil deva ter essa honraria no seu regimento. Descreveu um país que não é exatamente aquele no qual estamos vivendo, com o claro propósito de aproveitar a oportunidade para se apresentar aos eleitores como um estadista reconhecido internacionalmente e, ao mundo, como um governante generoso e bem-sucedido. A abertura, porém, foi esvaziada pela ausência do presidente dos EUA, Joe Biden, que mudou a agenda e só falará hoje.

O discurso de Bolsonaro foi mais um gesto para se apropriar do nosso sentimento de brasilidade, da mesma forma como fez com a bandeira brasileira e as comemorações do Bicentenário da Independência, no 7 de Setembro, que descreveu no discurso como “a maior demonstração cívica da História do país”. Descendente de italianos, Bolsonaro é um “oriundi” traduzido, no conceito antropológico do termo, como acontece com a maioria dos brasileiros descendentes de europeus, que não renegam a cultura de seus povos de origem nem assumem uma condição “chauvinista”, colocando-a acima da nossa cultura popular.

A dificuldade de Bolsonaro está em não compreender plenamente o conceito de “brasilidade”, a qualidade de quem é brasileiro, que está profundamente associado à nossa diversidade étnica e cultural. O “ser brasileiro” não é uma invenção das antigas elites escravocratas nem das escolas militares, mas uma construção multidimensional, por meio da arte, da dança, dos ritos, da música, da culinária, dos símbolos e, principalmente, da nossa literatura, que fez a crítica dos nossos hábitos e costumes, papel hoje exercido pela nossa teledramaturgia. Num país continental, não poderia ser diferente.

Quando um brasileiro acredita que somos “o melhor país do mundo”, não está se referindo a um governo ou à conjuntura, mas aos vínculos culturais mais profundos, tecidos ao longo de gerações. Iniciado após a Independência, em 1822, o processo de constituição da identidade nacional somente consolidou-se a partir da década de 1930, após Getúlio Vargas chegar ao poder. Está ligado à constituição de um Estado nacional moderno e à língua portuguesa, falada em todo o território nacional. Daí a importância da nossa literatura, hoje tão desprezada. As obras de José de Alencar, autor de O Guarani, por exemplo, foram fundamentais para associar nossa identidade às belezas naturais do território e à presença indígena na formação da nação brasileira.

Na contramão

Os Sermões, de Padre Vieira; Inocência, de Visconde de Taunay; O Cortiço, de Aluísio de Azevedo; Dom Casmurro, de Machado de Assis; Macunaíma, de Mário de Andrade; Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa; Triste fim de Policarpo Quaresma, de Lima Barreto; Reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato; Vidas Secas, de Graciliano Ramos; Jubiabá e Gabriela, cravo e canela, de Jorge Amado; Navalha na Carne, de Plínio Marcos, por exemplo, construíram um mosaico cultural cujo influência na música, na dramaturgia e nas artes plásticas perdura hoje. Artistas como Tarsila do Amaral, Chiquinha Gonzaga e Ivone Lara, Cartola e Paulinho da Viola, Chico Buarque e Tom Jobim, Caetano e Gil, Cazuza e Renato Russo, cada qual à sua época, foram intérpretes desse sentimento profundo de brasilidade.

O “melhor país do mundo” está no imaginário popular, não estava no discurso que Bolsonaro fez ontem na ONU, onde afirmou que 80% da Floresta Amazônica permanecem intocados: “Dois terços de todo o território brasileiro permanecem com vegetação nativa, que se encontra exatamente como estava quando o Brasil foi descoberto, em 1500”. No mesmo dia, o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) revelou que o número de queimadas registradas na Amazônia, até ontem, já superou o total registrado em todo o ano de 2021. Em nove meses incompletos (261 dias), foram 76.587 focos de incêndio na região. No ano passado inteiro, foram 75.090.

Bolsonaro é o principal responsável pelo aumento do desmatamento da Amazônia, ao desmantelar órgãos como o Ibama e o Instituto Chico Mendes, além de estimular garimpeiros, pecuaristas e madeireiros a avançar floresta a dentro. A Amazônia Legal, com 59% do território brasileiro, ocupa nove estados: Acre, Amapá, Amazonas, Mato Grosso, Pará, Rondônia, Roraima, Tocantins e uma parte do Maranhão. Na semana passada, por causa das queimadas, a fuligem e o cheiro das queimadas foram sentidos de São Paulo ao Rio Grande do Sul. A política ambiental de Bolsonaro está na contramão da política ambiental preconizada pela ONU e, hoje, é um dos principais fatores do nosso isolamento internacional.

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Nas entrelinhas: O custo-benefício do funeral de Elizabeth II para Bolsonaro

Luiz Carlos Azedo | Nas entrelinhas | Correio Braziliense

As pesquisas irão dizer se valeu a pena a participação do presidente Jair Bolsonaro (PL) e da primeira-dama Michele no funeral da rainha Elizabeth II, que ganhou conotação de ação eleitoral oportunista. A rigor, seria um gesto de grande cortesia, ainda mais porque é um rito de passagem no qual o rei Charles III, simultaneamente, foi consagrado como seu sucessor.

Mas haveria a desculpa da campanha eleitoral para não ir, que seria perfeitamente aceitável. O brasileiro não é uma estrela ascendente da política internacional, principalmente no Ocidente, nem foi um convidado de honra da família.

A morte de Elizabeth II era uma notícia previsível, mas foi inesperada. Ela parecia eterna, principalmente depois de milhares de memes nas redes sociais exaltando sua longevidade. Entretanto, a morte sempre é um fato com grande poder de irradiação e repercussão, apesar da sua previsibilidade, porque só se morre uma vez.

O falecimento concentra e realça todos os acontecimentos de uma vida, emoldurado ainda mais pela longa duração dos funerais, acompanhado em tempo real pela mídia internacional durante 10 dias. Elizabeth II reinou por 70 anos, encabeçando uma monarquia que soube administrar a decadência do Império Britânico e, aliada aos Estados Unidos, manteve sua influência internacional após a descolonização.

A vida de Elizabeth II serve de paradigma para as cortes europeias, com as quais mantinha fortes laços familiares, e atravessou todas as crises internacionais do pós-II Guerra Mundial. Não havia a menor dúvida de que seu funeral seria um grande evento midiático, quando nada porque resgatou um ritual fúnebre sofisticado, que não se via desde a morte de seu pai, o rei George VI, em 1952, reiterando o fascínio exercido pela aristocracia junto ao povo britânico.

Entretanto, Bolsonaro pisou na bola ao se manifestar a apoiadores da sacada da embaixada do Brasil em Londres. Seria apenas mais um chefe de Estado a prestigiar o funeral, cujo cerimonial deu muito mais importância à família real britânica e à realeza europeia do que aos políticos representantes dos regimes republicanos, fantasmas que rondam o rei Charles III e seus descendentes.

A repercussão negativa do encontro de Bolsonaro com seus apoiadores junto à mídia internacional reverberou no Brasil. O efeito é exatamente o contrário do que o presidente esperava ao viajar para o Reino Unido.

Questionado pela imprensa, como de hábito Bolsonaro reagiu irritado: “Você acha que eu vim aqui fazer política? Pelo amor de Deus, não vou te responder. Não tem uma pergunta decente? Compara o Brasil com o resto do mundo”, disse.

Mas misturou a morte de Elizabeth II com a política e as eleições no Brasil: “Todo mundo vai ter um julgamento final. O julgamento vai ser pelas suas ações e omissões. Todo aquele que trabalhou contra o próximo ou que se omitiu, na hora em que poderia ajudar, segundo as escrituras, para quem acredita, vai ter o seu veredito. E lá não tem gente — como alguns do Supremo, já vão falar que eu estou criticando o Supremo — para ‘descondenar’ uma pessoa e torná-la elegível”, acrescentou.

Espírito da coisa

Antes, ao conversar com apoiadores, Bolsonaro também havia atacado o petista Luiz Inácio Lula da Silva, seu principal adversário, que lidera as pesquisas de intenções de voto: “Como está a Europa perto do Brasil? Existe ameaça de fome aqui? Prateleira vazia, aumento de preço… Por que a insistência em querer botar um ladrão de volta na Presidência? Alguém acha que é uma maravilha ser presidente? Botar um ladrão, com aquela quadrilha toda, na Presidência”.

Numa crônica intitulada Semiótica dos Ritos Fúnebres, publicada no livro Banalogias (Objetiva), o filósofo carioca Francisco Bosco tece considerações muito interessantes sobre a morte e os velórios. Segundo ele, qualquer cadáver encerra em si toda a dinâmica do sublime: não é “ser” nem “ente”, nem “sujeito” nem “objeto”. Bosco explica: “O cadáver já não é vida, mas tampouco é a morte em sua condição de certeza encoberta ou fatalidade abstrata. O cadáver é a morte viva. Ora, a morte viva, diante de nós vivos, é precisamente a experiência do sublime”.

O velório seria uma experiência do sublime. A fila dos pêsames, uma espécie de rito de compensação coletiva pela perda. “Oferece-se, em primeiro lugar, a própria dor, como para fazer surgir uma fraternidade, a comunidade dos irmanados pela perda. Chorar a perda do morto é também homenageá-lo: elogio que se dirige aos imediatamente próximos do morto como uma compensação”, explica Bosco. Parece que Bolsonaro não entendeu o espírito da coisa no funeral de Elizabeth II.

Politicamente, o pior não é isso. Bolsonaro tem uma relação esquisita com a morte. Já deu inúmeras provas disso. Durante a pandemia de covid-19, que ontem registrou 685 mil mortos, não demonstrou a menor empatia com os familiares das vítimas, nem mesmo durante a crise nos hospitais de Manaus, quando dezenas de pessoas morreram por falta de oxigênio e foram enterradas em cova rasa. Daí a dúvida sobre o custo-benefício eleitoral de sua ida aos funerais de Elizabeth II..

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Luiz Carlos Prestes Filho. Foto: Divulgação

A classe dominante do Brasil

Por Luiz Carlos Prestes Filho

Para descrever o Brasil colônia (1500-1822) apresento uma síntese das “Cartas Chilenas”, escritas pelo inconfidente, jurista e poeta, Tomáz Antonio Gonzaga. Ele registrou na sua obra o seguinte sobre a situação do Brasil, no final do século XVIII:  “Prática de enriquecimento ilícito e de prevaricação; alto custo e ineficiência da justiça; prática de suborno; proteção oficiosa ao contrabando; corrupção na venda de despachos e patentes militares; deficiência de abastecimento e alto custo de vida; prática da usura; precariedade das condições de higiene dos estabelecimentos comerciais e hospitalares; e, finalmente, mendicância”.

Nestas palavras, a justificativa do porque era necessário o Brasil conquistar sua independência de Portugal. Formulação que ia contra a visão da elite que detinha o poder nas mãos em nossa terra.

Passados 30 anos após o massacre, promovido pela coroa portuguesa, contra os participantes da Inconfidência Mineira, destacado movimento que visava a independência do Brasil, José Bonifácio resgata essa visão de Gonzaga. Mas se distancia do propósito republicano. Defende a substituição do regime monárquico colonial português por um regime monárquico brasileiro. Sendo que representantes da família real portuguesa agora seriam os imperadores do Brasil.

Nesse contexto, devemos ressaltar que, em toda a América Latina, somente o Brasil, ao conquistar a independência, se transformou num império. Vejam que ironia do destino! O neto da Rainha, Dona Maria I, aquela que assinou a condenação de Tiradentes à forca e ao esquartejamento, e de todos os participantes da Inconfidência Mineira ao degredo, Dom Pedro I, passa a ser o Libertador. Foi ele quem oficializou a ruptura com Portugal.

José Bonifácio, como os inconfidentes, idealizou um Brasil sem escravos e afirmava que os índios deveriam ter direito à terra. De certa maneira, combatia as práticas de suborno e outras imoralidades levantadas por Tomaz Antônio Gonzaga. Apresentou algumas teses que aprendeu durante a Revolução Francesa, dos tempos quando morava na França. Mas o Império do Brasil fez valer o poder dos fazendeiros escravocratas e corruptos. Apesar de fazer usos do ideário da Inconfidência Mineira, a elite brasileira fez tudo para manter a mesma estrutura social, política e econômica. Mudou sem mudar.

Um detalhe curioso. Atualmente, assistimos, entre os eventos de comemoração dos 200 anos da independência, a visita do coração de Dom Pedro I ao Brasil. Evento impossível de realizar com o coração de Tiradentes, até porque deste grande herói nada restou, nem mesmo um fio de cabelo. Todos seus bens foram confiscados e destruídos. Seu corpo, exposto nas estradas dilacerado, foi consumido pelo tempo. Sua cabeça, fixada na praça central de Ouro Preto, foi roubada e desaparecida.

Vejam que paralelo interessante podemos traçar para com o escrito acima com a história da luta contra a escravidão. Esta foi o objetivo de vida dos seguintes brasileiros: Luís Gama, André Rebouças, Maria Tomásia Figueira Lima, Dragão do Mar e Maria Firmina Reis. Como não citar, também, o nome de um dos mais importantes poetas do país, Castro Alves, que com seu “Navio Negreiro”, publicado em 1869, trouxe forte emoção para aquele movimento. Como não lembrar do nome de Cipriano Barata que, no ano de 1835, apoiou valentemente a revolta dos escravos malês na Bahia, como antes participara ativamente da chamada Conjuração dos Alfaiates, também, na Bahia!

Cipriano passaria mais de dez anos nas masmorras coloniais e imperiais.

Mas, não foram estes líderes incontestes que ganharam destaque na História do Brasil quando veio a abolição da escravidão. Foi a filha do Imperador do Brasil, Dom Pedro II: a Princesa Isabel. Ela foi a redentora, que assinou a Lei Aurea, em 1888!

Outra vez, a elite política, social e econômica se apropriou de bandeiras contra as quais lutou dezenas de anos, e se apresentou como protagonista de um processo social que impedia de prosperar.

Interessante que, após a derrubada da monarquia, após a proclamação da República, em 1889, os fazendeiros entraram com processos judiciais contra o novo governo exigindo recompensa ou ressarcimento financeiro pela perda de patrimônio que sofreram, por conta a Abolição da Escravidão. O primeiro governo republicano queimou os arquivos de propriedade de africanos escravizados, de compra e venda de escravos, para que estes processos judiciais fossem interrompidos nos Tribunais de Justiça.

Da História moderna trago aqui o exemplo do Movimento Tenentista, que agitou o Brasil na década de 1920. Imaginem que Getúlio Vargas que, em 1924, apoiou o envio de tropas para defender o governo do presidente Artur Bernardes contra o qual lutava a Coluna Prestes (1924-1927), discursou na Câmara dos Deputados, criticando os revolucionários. Afirmava que já tinha passado a “época dos motins de quartéis e das empreitadas caudilhescas, venham de onde vierem”…

Porém, passados poucos anos, com a participação de líderes militares da própria Coluna Prestes, com exceção de Luiz Carlos Prestes, que aderiu ao marxismo-leninismo, Vargas adotou as bandeiras tenentistas e passou a ser o líder da vitoriosa Revolução de 1930 e, em seguida, foi governar o Brasil e realizar as reformas sociais, políticas e econômicas durante 15 anos.  Até 1945.

Para terminar, apresento mais um exemplo. Foram os partidos de esquerda, os movimentos populares e sindicais, que defenderam a emenda constitucional para a volta de eleições diretas para presidente do Brasil. A Campanha das Diretas Já tomou as ruas e praças de todo o país entre os anos de 1983-1984. Quando a mesma foi aprovada, o primeiro presidente eleito, com financiamento e apoio aberto de estruturas que tinham antigos vínculos com o regime civil-militar que chegara ao poder com o golpe de 1964, foi Fernando Collor de Mello, presidente que não teve nenhum protagonismo na Campanha das Diretas Já e que representava aquelas estruturas que se opunham à democracia no Brasil.

Portanto, entendo que, neste momento, quando comemoramos os 200 anos da Independência do Brasil, temos que homenagear os inconfidentes, os líderes abolicionistas, os líderes do movimento tenentista e os democratas, socialistas e comunistas brasileiros que foram os verdadeiros protagonistas de nossa História.

Não podemos continuar a homenagear Dom Pedro I que, repito, é o neto da Rainha Dona Maria I, que assinou a sentença de enforcamento e esquartejamento daquele que lançou a semente de nossa independência.

Temos que homenagear quem derramou seu sangue, quem entregou sua vida pela nossa liberdade. Pouco importa neste momento assinaturas e carimbos, realeza e burocracias, denominações e datas oficiosas. Esta atitude nos ajudará a dar mais substância à democracia.

Pela primeira vez na História, nosso país vive um ciclo democrático com partidos políticos legalizados e eleições livres. Ao longo de 100 anos da República, isto nunca aconteceu. Desde a proclamação da República, em 1889 até 1989, nunca vivemos um ciclo democrático de 30 anos.

           Está dito.                                

 (Ouro Preto, MG, 06 de setembro de 2022).

Artigo publicado no portal Socialismo Criativo


Foto:Unsplash/Pyae Sone Htun

Em Dia Internacional da Democracia, ONU destaca liberdade de imprensa

ONU News

Jovens realizam protesto pró-democrático em Mianmar

Foto:Unsplash/Pyae Sone Htun . Jovens realizam protesto pró-democrático em Mianmar

Assuntos da ONU

Cerca de 85% dos habitantes do planeta foram impactados por restrições à mídia nos últimos cinco anos; evento para celebração da data associa tema a metas globais e soluções em prol da paz, justiça e melhores instituições.

As Nações Unidas apelam à união de forças para garantir a liberdade e proteger os direitos de todos na celebração do Dia Internacional da Democracia, neste 15 de setembro. Em mensagem de vídeo, o secretário-geral da ONU, António Guterres, ressalta que a data é marcada por revezes em todo o mundo.

O chefe da ONU disse que o espaço cívico está diminuindo. Ele indica que a desconfiança e a desinformação estão crescendo, enquanto a polarização mina as instituições democráticas.

https://www.youtube.com/watch?v=mAp1L9XeN_I&t=35s

Declínio da liberdade de imprensa

Este ano, a data destaca a importância da liberdade de mídia para a democracia, a paz e o cumprimento dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável.

De acordo com a Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura, Unesco, cerca de 85% da população mundial sofreu os efeitos do declínio da liberdade de imprensa em seu país nos últimos cinco anos.

Para o chefe da ONU, o momento atual é de soar o alarme, de reafirmar que democracia, o desenvolvimento e os direitos humanos são interdependentes e se reforçam mutuamente.  António Guterres fala ainda de um momento para defender os princípios democráticos de igualdade, inclusão e solidariedade.

O secretário-geral reconhece a atuação, e pede que as pessoas de ajuntem aos que se esforçam para garantir o Estado de direito e promover a plena participação na tomada de decisões.

Com base no tema deste ano, a mensagem ressalta que uma mídia livre, independente e pluralista, é uma pedra angular das sociedades democráticas.Pandemia afetou a liberdade de imprensa em todo o mundo

ONU/Manuel Elias. Pandemia afetou a liberdade de imprensa em todo o mundo

Agressão

O líder das Nações Unidas mencionou tentativas de silenciar os jornalistas que “se estão tornando mais descaradas a cada dia”. Ele citou atos que vão desde agressão verbal à vigilância online, incluindo assédio legal, principalmente contra mulheres jornalistas.

Segundo ele, os profissionais de comunicação enfrentam censura, detenção, violência física e até assassinatos, e muitas vezes com impunidade.

A mensagem considera tais ações como “vias sombrias que de forma inevitável levam à instabilidade, injustiça e ações ainda piores”.

Para o secretário-geral, sem uma imprensa livre, a democracia não pode sobreviver e sem liberdade de expressão, não há liberdade.

As celebrações culminam com uma mesa redonda na ONU, ressaltado a liberdade de imprensa, as metas globais e soluções para o alcance do Objetivo de Desenvolvimento Sustentável 16 com metas sobre Paz, Justiça e Instituições Eficazes.

Matéria publicada originalmente no portal das Nações Unidas


Nas entrelinhas: Lula assume narrativa do voto útil na reta de chegada

Luiz Carlos Azedo | Nas entrelinhas | Correio Braziliense

“Eu nunca fiz eleição para ganhar no 2° turno. Eu, que tenho 46%, tenho que acreditar que é possível, nos próximos dias, conquistar a porcentagem que falta, sem desprezo a ninguém”, postou o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), ontem, no seu Twitter oficial, Lula 13. Iniciou, assim, uma arrancada de 20 dias, cujo objetivo é volatilizar nas próximas semanas as candidaturas de Ciro Gomes (PDT) e Simone Tebet (MDB). Com isso, pretende transformar uma ameaça, o risco de perder para o presidente Jair Bolsonaro (PL) no segundo turno, na oportunidade de vencer no primeiro turno. Na pesquisa Ipec/TV Globo de segunda-feira, Lula aparece com 51% de votos válidos, o que significa a chance de vitória no primeiro turno.

Na postagem, Lula foi elegante. Vencer no primeiro turno seria um feito inédito. Em 2022, a disputa contra José Serra (PSDB-SP) foi para o segundo turno; em 2006, contra o ex-tucano Geraldo Alckmin (PSB), que hoje é seu vice, também. As vitórias de Dilma Rousseff em 2010, no auge de seu prestígio como presidente, e em 2014, também foram para o segundo turno. Ou seja, não existe precedente de os candidatos do PT vencerem a eleição de roldão. Dessa vez, porém, Lula está animado. Bolsonaro não consegue baixar a sua rejeição, a avaliação de seu governo continua ruim, a distância entre ambos no eleitorado feminino permanece abissal. A fala mansa do presidente da República nos últimos dias mostra que a estratégia bolsonarista de confrontação ideológica esgotou-se no 7 de Setembro.

Bolsonaro se manteve nos 31% da semana passada, segundo o Ipec, mas a aprovação do governo oscilou negativamente de 25% para 23%, enquanto a reprovação variou de 43% para 45%. A rejeição ao modo de governar de Bolsonaro oscilou para cima, de 57% para 59%. Lula sentiu o cheiro de animal ferido na floresta e foi à caça. Dos votos de Bolsonaro? Não, resolveu partir pra cima dos eleitores de Ciro Gomes, que estacionou nos 7%. A mesma pesquisa revelou que 52% dos eleitores do pedetista ainda podem de mudar de voto. Lula é sutil no voto útil, mas sua militância nas redes sociais é uma escolada patrulha ideológica, que partiu para cima dos setores de esquerda refratários ao voto em Lula no primeiro turno.

O acordo com Marina Silva (Rede), candidata a deputada federal por São Paulo, em grande estilo, com o compromisso de levar adiante o programa da sua ex-ministra do Meio Ambiente, com quem Lula estava rompido, é considerado como uma sinalização de que chegou a hora de concentrar as forças para derrotar Bolsonaro no primeiro turno e não dar nenhum espaço para contestação do resultado eleitoral. Meia narrativa é de que Bolsonaro representa uma ameaça fascista e, para barrá-la, como ensina a velha tradição de esquerda, o melhor instrumento é uma “frente ampla”. Ocorre que não existe essa frente, o que está se propondo é a unidade de esquerda. A outra metade da narrativa é o argumento de que as forças que apoiam Simone Tebet querem levar a eleição ao segundo turno para barganhar seu apoio e forçar o ex-presidente Lula a assumir um programa liberal, mantendo o teto de gastos, a reforma trabalhista, a autonomia do Banco Central etc, o que afastaria qualquer possibilidade de acordo de cúpula com essas forças no segundo turno.

Volatilidade

Bolsonaro sentiu o golpe da pesquisa Ipec. Havia ampla expectativa de parte do comando de sua campanha de que as grandes mobilizações do 7 de Setembro seriam uma arrancada para a vitória, mas não foi isso que ocorreu. O brado presidencial de que era “imbrochável” roubou toda a narrativa patriótica. O ato revelou mais capacidade de mobilização dos bolsonaristas do que de persuasão dos eleitores indefinidos. Os ataques a Lula com base nas denúncias de corrupção no seu governo também não estão aumentando a rejeição do petista como se imaginava; outras bandeiras bolsonaristas se esvaziaram com a chegada de Bolsonaro ao poder. No fundo, o mau desempenho do governo, principalmente nas áreas sociais, como educação, saúde, habitação, virou uma mala sem alça que seus aliados precisam carregar.

Nas próximas semanas, o ambiente eleitoral se tornará mais volátil, porque a maioria dos eleitores começará a consolidar ou mudar o voto. A possibilidade de uma vitória de Lula no primeiro turno é real, mas nem de longe está consolidada. O que as pesquisas estão mostrando até agora é que o cenário de segundo turno é o mais provável, com Lula e Bolsonaro. Essa polarização pode desidratar Ciro Gomes, nas próximas semanas, em favor do petista; mas esse seria o caso de Simone Tebet? Se sua candidatura do MDB for volatilizada, para onde irão os seus votos?

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Imagem: divulgação/ Horizontes Democráticos

A disjuntiva Gramsciana

Alberto Aggio | Horizontes Democráticos

Em 2017 relembramos os 80 anos da morte de Antonio Gramsci, líder político comunista, reconhecido como um dos mais importantes pensadores da Itália. Depois da derrota do fascismo e do fim da 2.ª Guerra, suas ideias ajudaram a fertilizar o terreno que redundaria na construção da moderna República Italiana. Encarcerado por Mussolini em 1926, Gramsci não pôde ver essa tarefa realizada. Sem ter nunca publicado um livro, a difusão do seu pensamento se deve a seus editores, depois do resgate das notas que escreveu na prisão. Desse resgate resultaram as diversas edições dos famosos Cadernos do Cárcere, editados no Brasil desde a década de 1960.

Bastante conhecido no Brasil, o texto gramsciano presta-se a infindáveis polêmicas em torno da interpretação e dos usos dos seus conceitos. Muitos o veem como um ameaçador seguidor de Marx e Lenin, um revolucionário comunista sem mais. Outros o admiram por sua capacidade de perceber as mudanças de sua época, anunciando os traços da complexidade social que viria a se edificar com mais vigor bem depois de sua morte.

O pertencimento de Gramsci ao marxismo e ao comunismo é patente, ainda que ele seja reconhecido como um formulador original e considerado um “clássico da política”. Inicialmente, foi visto como um “pensador da cultura nacional-popular” e um “teórico da revolução nos países avançados”, de cuja obra se extraíram os conceitos que o tornaram um autor assimilado em grande escala. Recentemente, a partir de uma “historicização integral” da sua trajetória, visando a apanhar simultaneamente vida e pensamento (Giuseppe Vacca), aliada à recepção e ao tratamento de fontes inéditas ou até ignoradas, vem emergindo uma nova inserção de Gramsci na política do século 20. Essa perspectiva analítica tem permitido a superação dos diversos impasses e bloqueios que marcaram por longos anos os estudos gramscianos.

Mesmo na prisão, Gramsci continuou sendo um homem de ação. Tudo o que escreveu, das reflexões anotadas nos cadernos à correspondência com familiares e amigos, indica que ele permaneceu atuando como um dirigente político. Nessa condição, procurou fazer chegar à direção do Partido Comunista Italiano (PCI) suas avaliações do cenário italiano e mundial, bem como seus questionamentos a respeito de algumas orientações do PCI que lhe pareciam equivocadas. É desse comprometimento que emergem os termos de uma “teoria nova”, hoje reconhecida no mundo da política e dos intelectuais.

Com Giuseppe Vacca, em 2012, quando saiu a versão em português de Vida e pensamento de Antonio Gramsci, 1926-1937.

Nos Cadernos do Cárcere foi se sedimentando um novo pensamento, com o qual Gramsci imaginava poder mudar as orientações do movimento comunista. Do texto de Gramsci se pode apreender uma superação clara do bolchevismo, notadamente em relação à concepção do Estado, à análise da situação mundial, à teoria das crises e à doutrina da guerra como parte intrínseca da revolução.

Não foi por acaso que dessas reflexões emergiu a proposta de luta pela convocação de uma Assembleia Constituinte. Isso implicava deslocar o PCI da preparação da revolução proletária para a conquista da Constituinte. Em outras palavras, estrategicamente a luta pela democracia deixava de ser pensada apenas como fase de transição para o socialismo e assumia autonomia plena. No mundo do comunismo da década de 1930 tratava-se de um ato de ruptura. Assim, o ponto de chegada dos Cadernos foi a elaboração de uma nova visão da política como luta pela hegemonia, o que, em termos objetivos, representaria a adoção de um programa reformista de combate ao fascismo e, com ele, a reconstrução da nação italiana.

Essa nova teoria, dramaticamente elaborada no interior das prisões fascistas, resultava do enfrentamento dos impasses que o atormentavam como dirigente político: a derrota para o fascismo e a perda de propulsão do movimento comunista soviético, bloqueado pelo “estatalismo” e pelo autoritarismo. Os conceitos de Gramsci, tais como “hegemonia”, “guerra de posições”, “revolução passiva”, “transformismo” e “americanismo”, entre outros, evidenciam uma linguagem própria, não mais bolchevique ou leninista, de quem, mesmo na prisão, pensava de maneira inovadora os desafios que estavam postos diante da construção política da modernidade no Ocidente.

Em meio às lutas pela democracia, diversas gerações de intelectuais brasileiros que se aproximaram do pensamento de Gramsci buscaram uma tradução dos seus conceitos para nossas circunstâncias. Da década de 1970 para cá, parecia haver consenso na assimilação dos conceitos do pensador sardo, mas a realidade não confirmou essa tese.

Hoje há uma disjuntiva explícita: de um lado, o Gramsci da “política democrática”, ou seja, da política-hegemonia, enquanto “hegemonia civil”, não mais “proletária” ou “socialista”; de outro, o Gramsci da “política revolucionária”. Na primeira “leitura”, a revolução não é mais o centro da elaboração política e a perspectiva se deslocou no sentido de exercitar o conceito de revolução passiva até seus limites, isto é, acionar permanente e intransigentemente a política democrática visando a inverter a longa “revolução passiva à brasileira” (Werneck Vianna), de marca autoritária e excludente, e dar-lhe novo direcionamento.

Aqui estamos diante de uma tradução do Gramsci que se descolou da sua originária demarcação revolucionária e se distanciou de um marxismo que ainda tem como referência uma época histórica de revoluções. É isso que lhe dá o viço ainda hoje. Inversamente, o “outro” Gramsci permanece prisioneiro de uma representação construída a partir de um duplo sentido: representação de classe, como o fora anteriormente, numa perspectiva revolucionária, e, noutro sentido, como representação da conservação e difusão de um imaginário revolucionário do qual se querem resguardar os signos e significados de uma época revolucionária terminada há décadas.

(Originalmente publicado em Estado de São Paulo, em 20 de maio de 2017; https://opiniao.estadao.com.br/noticias/geral,a-disjuntiva-gramsciana,70001797715)