Míriam Leitão: Difícil proteção da economia

Não há espaço fiscal, mas o momento é de emergência e a equipe econômica terá que encontrar recursos para amenizar a crise

A arrecadação vai cair porque a atividade econômica está se enfraquecendo, a privatização da Eletrobras pode não acontecer — ou por não ser aprovada pelo Congresso, ou pela volatilidade dos preços das ações — os royalties de petróleo serão menores do que o previsto. O crescimento será mais baixo ainda do que a nova previsão feita pela equipe econômica. O déficit vai aumentar. É improvável que o governo consiga cortar despesas na mesma dimensão da perda de receitas. Por isso o déficit vai subir. A dúvida é sobre a dimensão do pacote de estímulo econômico para mitigar os efeitos do coronavírus.

O Ministério da Economia ainda não concluiu as projeções da redução da receita com a queda da expectativa de crescimento que fez esta semana. Reduziu de 2,3% para 2,1%. Terá que diminuir mais. A cada revisão precisará cortar a receita prevista e fazer o contingenciamento da despesa. Uma coisa se sabe nesta altura da pandemia: não poderá cortar em saúde, a maior despesa do orçamento. Pelo contrário, terá que elevar. As convicções fiscalistas da atual equipe econômica serão testadas.

Esta semana marca o momento importante em que a equipe econômica sai da negação. Até agora, a resposta do ministro Paulo Guedes era que enfrentaria a crise com as reformas que estão no Congresso e as que não consegue tirar da mesa do presidente. A administrativa foi esvaziada, e a tributária é muito tímida. Se as propostas fossem boas e amplas, elas produziriam avanços estruturais, mas o governo precisa ter medidas emergenciais para o atual momento de incerteza e eventuais inesperados. Portanto, aprovar reformas pode ser bom, mas não resolve problemas agudos.

Esses dias em que a bolsa teve quedas abissais e recuperações dramáticas levaram a crise da saúde para dentro da economia. Mesmo um governante irresponsável como o presidente Donald Trump, que negava a gravidade do problema até outro dia, estava ontem decretando emergência nacional. No Brasil, em que o presidente Jair Bolsonaro compartilha tanto com Trump, houve também a compreensão de que era preciso partir para algum tipo de programa de emergência para atenuar os efeitos econômicos da pandemia.

As primeiras medidas anunciadas foram poucas, mas boas. Suspender a prova de vida, evitando que o aposentado ou a pensionista tenha que ir a um local cheio de gente é sensato. É impressionante que isso não tivesse sido pensado antes. A segunda decisão, de antecipar o pagamento de metade do 13º, não eleva gastos e coloca já R$ 23 bilhões na economia. Há outras ideias sendo ventiladas, nem todas elas boas: estimular o endividamento através do consignado, inventar novos truques com o FGTS, a Caixa oferecer mais dinheiro para empréstimos.

A mais importante medida foi a mudança de atitude, da negação de que algo além das “reformas” precisasse ser feito à criação de um grupo que ficará dedicado no Ministério da Economia a pensar no assunto.

Alguns setores podem sucumbir, o mais vulnerável talvez seja a área da cultura. De um lado, os produtores culturais e artistas já enfrentavam um governo hostil e estatais que fazem escolhas ideológicas no patrocínio. De outro, passarão a viver a fuga do público e, em alguns casos, a proibição, como São Paulo e Rio de Janeiro, da abertura de cinemas e teatros por 15 dias.

Em momentos de emergência, em que a conjuntura muda completamente, a equipe econômica tem que mudar a abordagem, preservando o essencial da política econômica. Isso é que não se soube fazer na crise de 2008. No primeiro momento, o Banco Central agiu com precisão cirúrgica, garantindo liquidez. O BNDES ajudou a financiar fusões de empresas que sozinhas não sobreviveriam. O erro veio depois, quando não se soube o momento de parar as desonerações setoriais, que acabaram virando moeda de troca na eleição de 2010.

Em 2008, o país estava com superávit primário de 3,85% e dívida de 55% do PIB. Hoje o déficit é de 0,72% e a dívida, 76%. Os erros de depois da crise é que pioraram as contas públicas. Não há espaço fiscal, já que o país tem déficit, mas os avanços recentes com a reforma da Previdência e a queda dos juros reduziram a pressão de duas grandes despesas. Nesse caminho estreito o governo terá que encontrar respostas para evitar que a economia piore muito e ter recursos para proteger a vida dos brasileiros.


Míriam Leitão: O dia da queda de todas as fichas

Crise do coronavírus se espalha e afeta a bolsa e a economia. Desarticulação política do governo levou a aumento de R$ 20 bi em gastos

A Ásia terá vários países em recessão, na Europa, a Itália certamente afundará e talvez a Alemanha. Nos Estados Unidos, o cenário mais suave é de desaceleração forte, o pior cenário inclui uma crise de crédito porque as empresas americanas estão muito endividadas. Esse é o quadro econômico que está se formando com a dispersão do covid-19, segundo a visão do economista José Roberto Mendonça de Barros. No Brasil, o Congresso criou uma despesa obrigatória de R$ 20 bilhões por ano. O dinheiro é destinado aos mais pobres, mas na visão da equipe econômica isso derruba na prática o teto de gastos.

Tudo está acontecendo ao mesmo tempo no mundo. O vírus se espalhando, as bolsas despencando, as economias reduzindo o ritmo de crescimento. Sobre a China, Mendonça de Barros usa o dado do BNP Paribas, de queda do ritmo do PIB para 4,5%. O primeiro banco a rever fortemente o crescimento da China foi o BNP Paribas. O economista-chefe do banco no Brasil, Gustavo Arruda, disse que quando sua equipe conversou com o time da Ásia e viu a gravidade da situação, em 18 de fevereiro, ele reduziu a previsão de crescimento do Brasil para 1,5%.

— Dada a gravidade da situação era impossível que ficasse localizado na China. O Brasil é afetado de diversas formas. Pelo canal externo, pelos preços das commodities, mas também pelas importações de vários setores, como eletrônicos — disse Gustavo.

O Brasil seria afetado economicamente, mesmo que não houvesse complicações locais. E há. Na opinião de José Roberto Mendonça de Barros, da MB Associados, a economia que poderia segurar o mundo seria a americana. Mas ela também tem problemas.

— As empresas americanas estão muito alavancadas. A dívida corporativa está em 47% do PIB. Nesse quadro o risco de haver um problema de crédito é muito grande. Com a guerra de preços de petróleo, entre Arábia Saudita e Rússia, as empresas mais vulneráveis são as da indústria do shale oil. Essas estão correndo risco de vida. Os bancos regionais do Texas, por exemplo, podem ter problemas. É por isso que o Fed elevou a oferta de assistência de liquidez — disse Mendonça de Barros.

Os cancelamentos de eventos públicos já estavam afetando em cadeia as empresas aéreas, os hotéis, o setor de serviços, e agora serão mais frequentes depois que a Organização Mundial da Saúde (OMS) decretou que o Covid-19 é uma pandemia global. E isso é parte da desaceleração do PIB mundial que está em curso. A economista Silva Matos, do Ibre/FGV, alerta que o setor de serviços é o que tem o maior peso no PIB. Por isso, essa crise deve levar a novas revisões do crescimento brasileiro. Ontem o governo recalculou para 2,1%. Ninguém acredita no mercado que fique nesse patamar.

Além de tudo isso, a conta das trapalhadas políticas de Bolsonaro chegou ontem. Um governo sem base parlamentar, de um presidente sem partido, que hostiliza e ameaça o Congresso, o que pode receber de volta? O Congresso derrubou ontem o veto do presidente a um projeto que quadruplica o valor da renda de quem pode receber o Benefício de Prestação Continuada (BPC). Pelas contas da equipe econômica, o gasto será de R$ 20 bilhões por ano. Hoje, só quem tem um quarto de salário mínimo de renda familiar é que pode requerer BPC. O projeto eleva para um salário mínimo.

— Isso representa um tiro de canhão no teto de gastos, porque é despesa obrigatória que nem pode ser contingenciada. É uma encrenca das grandes. Porque não sabemos de onde pode ser tirado um valor deste tamanho — comentou um integrante da equipe econômica.

Aliás, ontem, no Ministério da Economia, eles estavam trabalhando exatamente no cálculo do valor a ser contingenciado. É obrigatório congelar despesas quando se faz uma revisão para baixo do crescimento do PIB.

Do ponto de vista da saúde pública no mundo, a situação é de incerteza. Mendonça de Barros lembra que nos Estados Unidos não há uma rede pública de saúde e 30 milhões não têm plano. A economista Monica de Bolle, que mora lá, conta que a atitude do presidente Trump de negar a dimensão da crise e não aceitar o teste desenvolvido pela OMS com outros países atrasou a resposta do país em seis semanas. Aqui também o presidente Bolsonaro voltou a subestimar o risco do coronavírus. Contudo, a crise global, na economia e na saúde, continua se agravando.


Míriam Leitão: Choque econômico em três dimensões

Brasil sofre choques do coronavírus, da queda abrupta do petróleo e também sente a crise entre poderes criada pelo presidente

O dia de ontem marca bem essa era dos fatos inesperados em que vivemos. O cenário externo que já era grave piorou muito. A decisão da Arábia Saudita de aumentar a produção e reduzir os preços do petróleo provocou uma hecatombe em todos os mercados. No Brasil, começava mais uma semana de conflito entre governo e Congresso. O presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, avaliou que a crise pega o país “desorganizado” e alertou: “não podemos transferir nossas mazelas para a crise internacional”. O Ibovespa perdeu 12,1% no dia. Depois do fim do pregão a Itália restringiu a circulação de pessoas em todo o país, que é a oitava maior economia do mundo.

Era para ser mais uma semana tensa por razões nacionais, depois que o presidente Jair Bolsonaro convocou para a manifestação e provocou: “político que tem medo da rua não serve para ser político”. Em entrevista que me concedeu ontem na “GloboNews”, Rodrigo Maia não quis responder a essa declaração.

— Não posso ser comentarista da frase do presidente. Temos problemas mais graves, como um milhão e quinhentas mil crianças que abandonam as escolas. Por isso fomos eleitos. Temos que discutir o Fundeb, o combate à pobreza e à desigualdade.

Então a situação é essa. O país tem muito a fazer no médio e longo prazo, mas os atritos gerados pelo governo nos levam para uma pauta diversionista. Neste momento, três fios desencapados se encontraram. O coronavírus está parando a economia internacional. No Brasil, a tensão institucional se agravou com a convocação feita pelo presidente no fim de semana. E houve a queda abrupta dos preços do petróleo, desorganizando toda a economia mundial.

A decisão do ditador da Arábia Saudita, o príncipe Mohammad bin Salman, serve para mostrar seu poder sobre a economia internacional, é um ato de exibicionismo de quem acabara de mandar prender um tio e um primo em mais uma guerra interna na família real. Mas também fere a própria economia saudita e isso ficou claro na queda das ações da Saudi Aramco. A Arábia Saudita tem um petróleo barato, de baixo custo de extração, mas ao mesmo tempo o país se tornou dependente dos lucros do petróleo para manter o governo totalitário.

A decisão de MBS, como o príncipe ditador é conhecido, jogou sobre o mundo uma sucessão infindável de efeitos em cascata. No Brasil, se isso se mantiver, abre-se um rombo no orçamento. Parte dele prevê renda com leilões de concessão, que se tornam incertos. Governo federal e estados perderão receita se a queda for repassada — e terá que ser — para os preços finais.

Se os preços ficarem baixos por muito tempo, o shale (gás e óleo) dos EUA pode entrar em crise. E como as empresas dessa área operam muito alavancadas, isso se reflete nos bancos americanos. Alias, aqui a queda generalizada de valor das ações ontem levou as preocupações para os bancos, que tiveram fortes recuos. A Petrobras caiu 29,7%, o Bradesco perdeu 9,8%. O coronavírus afeta o varejo, as empresas aéreas, as de eventos, as que fornecem commodities à China. Por isso houve quedas ontem de 17% da Viavarejo, de 23,9% da Marfrig e de 25% da CSN.

Há duas crises internacionais graves. A do petróleo pode se reverter com o entendimento entre os produtores, Rússia e Arábia Saudita principalmente, sobre como reequilibrar o mercado. Mas há também uma crise interna. O país não cresceu no ano passado, a não ser míseros 1,1%, e o governo Bolsonaro está sempre jogando lenha no conflitos institucionais.

Nesse contexto entrevistei Rodrigo Maia sobre qual pode ser a resposta brasileira às crises. Ele refuta que o Congresso esteja atrasando a aprovação de reformas, e responde: “que reformas? Não posso aprovar o que não existe”. Mesmo assim garante que a tributária será aprovada este ano. Mas acha que é preciso olhar mais profundamente a estagnação brasileira.

— Por que a economia brasileira não cresce? Porque os investidores não retomaram a confiança no país.
Ele critica a forma como Bolsonaro se relaciona com a imprensa e os políticos.

— Ele tem uma forma que respeita pouco a liturgia do cargo e gera conflitos. E esses conflitos vão além do que deveria, gerando insegurança nos investidores.

Durante o fim de semana, quando o petróleo estava caindo 30%, Maia fez pelo Twitter um pedido de entendimento entre os poderes. Ontem, na entrevista, voltou a falar que os poderes “devem conversar para achar uma solução”. Mesmo que o problema do petróleo se resolva, o que fica é um recado: esse é um mundo cheio de imprevistos.


Míriam Leitão: Imagine vencer a desigualdade

Para entender a desigualdade de gênero não basta olhar os dados, é preciso imaginar os sentimentos das mulheres discriminadas

Há vários estudos mostrando que existem vantagens econômicas em combater a desigualdade entre homens e mulheres em todas as áreas. No comando das empresas, por exemplo. Um estudo publicado na “Harvard Business Review” traz os resultados de uma pesquisa do Peterson Institute mostrando que há um aumento de 15% de lucratividade nas empresas que têm 30% de mulheres na diretoria em relação às que têm apenas homens. Mas o mais decisivo, quando o assunto é discriminação contra mulher, talvez não seja tangível.

Imagine um mundo em que nenhuma mulher seja morta pelo fato de ser mulher, em que jamais uma criança veja a sua mãe ser agredida, em que as meninas sejam estimuladas a pensar que seus sonhos não têm limites, em que não haja distribuição automática de papéis, em que os trabalhos da vida cotidiana sejam divididos harmoniosamente. Se você conseguiu pensar nesse mundo terá concluído que crianças terão menos traumas, mulheres, mais autoconfiança, a sociedade, mais igualdade e a economia, mais produtividade.

O estudo publicado na “Harvard Business Review” por Marcus Noland e Tyler Moran é de 2016, mas outros recentes confirmam o fenômeno. Eles fizeram uma pesquisa em 22 mil firmas globalmente. Em 60% delas, nenhum integrante do conselho de administração era mulher, em apenas metade delas havia algum integrante feminino na diretoria executiva e só 5% tinham mulher na presidência. Isso varia de país a país. A Noruega, de novo, na frente. O Japão, sempre atrás. O curioso é que os pesquisadores descobriram que não havia diferença na lucratividade se o CEO fosse homem ou mulher, mas diretorias e conselhos de administração com mais diversidade tinham melhor desempenho.

Imagine uma mulher que apanha do homem que um dia amou e escolheu para dividir a vida. Ela se encolhe e começa a considerar que é a culpada. Algo fez de errado. Se é dependente economicamente é ainda mais difícil reunir forças e ir numa delegacia denunciar o agressor. Imagine quantas palavras depreciativas ouviu enquanto apanhava e como isso sedimentou nela a dúvida sobre sua própria natureza. E mesmo que ela não tenha sofrido violência física, as agressões verbais a fizeram crer que é inferior.

“Existem notícias encorajadoras.” Assim começa um artigo postado por Roni Mermelshtine na Good&Co, uma empresa de orientação de carreira, com presença global, mas baseada na Califórnia. Uma dessas boas notícias é que pela primeira vez existe mulher no comando de uma empresa automobilística. Em setembro de 2018, uma mulher assumiu a presidência da General Motors, Mary Barra. Na empresa, a diretora financeira também é mulher. O problema é que nas 500 maiores da “Fortune” apenas 23 têm mulheres no comando. Segundo o texto desta semana, a diversidade de gênero é pífia no mundo inteiro. A pressão de investidores, as cotas, os grupos de defesa de direitos têm conseguido aumentar a presença de mulheres, mas ela é ainda muito baixa.

Imagine que você cresça ouvindo que não pode gostar de um determinado brinquedo porque ele é de homens, que você é fraca, que certas profissões são exclusivas para meninos. E, depois de crescer, dentro da empresa seja preterida nas promoções mesmo sendo mais qualificada, e, ao fim, seja constrangida por um chefe. Imagine que você more num país onde o presidente quando critica a imprensa escolhe as mulheres como alvo principal. E que em determinado dia faça um ataque claramente sexista a uma delas, iniciando uma onda de postagens machistas nas redes.

A McKinsey faz há cinco anos pesquisa sobre gênero e desigualdade nas empresas. Repete a mesma pesquisa a cada ano. Comparando 2015 com 2019 verificou que o percentual de mulheres no nível executivo aumentou de 17% para 21%. “Apesar de ser um passo na direção certa, a igualdade continua fora de alcance. Mulheres — e particularmente mulheres negras — estão sub-representadas em todos os níveis”, diz a última versão do estudo.

Imagine as meninas que estão crescendo hoje. E pense nos sonhos que elas podem sonhar. Imagine um mundo em que elas sejam protegidas de agressões e estimuladas em seus projetos, em que nas escolas e nos lares ninguém lhes diga “isso não é coisa de menina”. O futuro haverá de ser assim, mas o que temos diante de nós ainda é uma longa caminhada. Travessia.


Míriam Leitão: O perigo da ambiguidade

É espantoso que um governo com tantos generais tenha sido leniente com a atuação delinquente de servidores públicos armados

Entre as anomalias deste tempo está a ambiguidade com que o governo Bolsonaro tratou o motim da Polícia Militar no Ceará. O presidente, seus filhos e seus ministros, inclusive os generais — com raras exceções — não condenaram a ação criminosa dos policiais e usaram o evento para os seus objetivos políticos. O governador Camilo Santana (PT) se comportou de maneira firme e mesmo depois de tudo resolvido evitou as polêmicas, para focar no principal: este tipo de movimento é crime e passar mensagens dúbias em relação a ele é pôr em risco a ordem pública.

É espantoso que um governo que tem tantos oficiais generais tenha sido leniente com o comportamento delinquente de servidores públicos armados. Se há um valor que as Forças Armadas costumavam prezar é a hierarquia. Os amotinados a quebraram. Eles usaram as armas compradas com o dinheiro dos nossos impostos contra os cidadãos. Com balaclava no rosto, à moda de bandidos, ameaçaram comerciantes e aterrorizaram cidadãos.

O episódio em que ficou mais claro o apoio implícito do governo federal aos amotinados foi o discurso do coronel Aginaldo Oliveira, comandante da Força Nacional, num palanque, elogiando os amotinados. Eles seriam “gigantes” e “corajosos”. “Os senhores se agigantaram de uma forma que não tem tamanho”, disse ele. “Demonstraram isso ao longo de 10,11,12 dias que estão aqui dentro desse quartel, em busca de melhoria da classe, e vão conseguir. Os covardes nunca tentam, os fracos ficam pelo meio do caminho, só os fortes conseguem atingir seus objetivos”. Era um sinal para policiais de outros estados para fazer o mesmo em busca dos seus “objetivos”.

O mais impressionante não foi o que o coronel disse, mas o silêncio dos seus superiores. Um eloquente silêncio como o do ministro da Justiça, Sérgio Moro. Semanas antes, Moro fora padrinho no casamento do coronel com a deputada Carla Zambelli (PSL-SP) e, no discurso da cerimônia, usou para definir a noiva uma palavra considerada elogiosa: “caveira.” No caso do Ceará, Moro escondeu-se no silêncio. Em outros momentos foi loquaz.

No Twitter ele politizou o caso afirmando que “a crise no Ceará só foi resolvida pela ação do governo federal, Forças Armadas e Força Nacional que protegeram a população e garantiram a segurança”. É falso. O governador Camilo Santana foi bem mais equilibrado. Ele reconheceu, em entrevista à Central Globonews, o papel do governo federal, mas afirmou que o governo estadual foi fundamental para debelar a crise e criar os parâmetros para além das fronteiras do Ceará. Santana mandou uma Proposta de Emenda à Constituição do estado proibindo a concessão de anistia a policiais amotinados. Ela já foi aprovada com um adendo feito pelos parlamentares: a própria assembleia fica proibida de analisar aumentos de salários por seis meses após um motim. Se o governador cedesse, o problema se espalharia por outros estados. A tibieza do governo federal tem um motivo conhecido: Bolsonaro fez sua carreira política apoiando motins de policiais. Ele próprio saiu do Exército num caso de insubordinação.

O senador Cid Gomes (PDT-CE) tentou entrar com uma retroescavadeira em um quartel de amotinados. O governo aproveitou esse ataque de insensatez para fazer política. O governador Camilo Santana, por sua vez, não quis criticar o senador porque ele é seu aliado. Disse que ele estava demonstrando indignação. Há muitas formas de demonstrar esse sentimento. Essa não é uma delas. Mas o fato é que hoje Cid Gomes carrega duas balas no corpo. O deputado Eduardo Bolsonaro protocolou denúncia na Procuradoria-Geral da República contra Cid Gomes por “tentativa de homicídio” e “dano ao patrimônio público”. Não houve a mesma preocupação de criticar os amotinados ou quem atirou contra o senador, nem por parte do deputado, nem por parte de integrantes da cúpula do governo.

Moro conseguiu a proeza de dar um nó num princípio jurídico. Afirmou que a “paralisação” era ilegal, mas os policiais não podiam ser tratados como criminosos. Para o ex-juiz, descumprir a lei deixou de ser crime. Aliás, é a lei maior, a própria Constituição, que proíbe greve de militares. Por isso, a definição correta não é a palavra “paralisação” que o ministro usou, mas motim.


Míriam Leitão: A resposta contra a crise e o vírus

Governo não dará estímulo fiscal. Estagnação do PIB e risco externo serão enfrentados com reformas, que estão paradas no próprio governo

O presidente Jair Bolsonaro mudou vários pontos da reforma administrativa, mas tem adiado insistentemente o seu envio ao Congresso. Ela e a proposta de reforma tributária estão paradas no governo. O problema é que diante do baixo crescimento do ano passado e dos riscos de desaceleração forte da economia internacional, por causa do coronavírus, a agenda de reformas é a resposta que a equipe econômica gostaria de dar para manter um clima positivo na economia do país.

Na semana que vem, a projeção de crescimento oficial será revista de 2,4% para 2%. As previsões de várias instituições do mercado financeiro são de crescimento menor e há várias delas refazendo os cálculos para baixo. A explicação dada dentro do Ministério da Economia é que apesar de ter sido apenas 1,1% de alta do PIB, no último trimestre o país cresceu 1,7% em comparação ao mesmo trimestre do ano anterior. E que a composição do PIB mudou, há muito mais presença do PIB privado que do governo.

O governo não pensa em adotar qualquer estímulo fiscal, ao contrário de alguns países que estão anunciando expansão de gastos. A avaliação feita no governo é que a economia brasileira tem uma “dinâmica própria” e, portanto, será menos atingida. E que é possível estimular o crescimento através das reformas. A crise internacional decorrente do coronavírus já atingiu o país, na verdade. Estão em queda todas as projeções de alta do PIB e já houve um forte impacto no câmbio. Para se ter uma ideia, a cotação de R$ 4,65 de ontem representa uma alta de 16% desde 30 de dezembro, quando estava em R$ 4,00.

Se a resposta que será dada pelo país à crise é a aceleração das reformas, é preciso que elas andem. Para isso, precisam ser enviadas. A proposta de reforma administrativa já foi alterada, mas ainda permanece no gabinete do presidente. Um dos pontos principais seria a desindexação dos salários do funcionalismo. O presidente Bolsonaro vetou esse dispositivo sob o argumento de que a reforma da Previdência já havia feito várias alterações de regras para os servidores e que, por enquanto, não haveria qualquer mudança nesse sentido. Do ponto de vista econômico isso era fundamental, na visão dos formuladores. O argumento levado ao presidente foi que a inflação está caindo, portanto, esse seria o melhor momento para dar mais um passo no processo de desindexação. Não o convenceram. “Mais pra frente”, ele disse. Outro ponto que o presidente tirou da reforma foi a proibição de que servidores, de atividades típicas de Estado, tenham filiação partidária. A reforma também não atingirá os atuais funcionários. Portanto, o ganho fiscal num primeiro momento será pequeno, mas a tese é a de que se criará um funcionalismo público “britânico” no futuro. De qualquer maneira, até agora o presidente mantém esse projeto em sua mesa. A expectativa é a de que ele envie na próxima semana. “Estamos trabalhando para isso”, afirma um economista do governo.

A reforma tributária foi formulada em etapas, como já disse aqui. E a primeira fase a ser enviada é a de união do PIS-Cofins, que deve ir para o Congresso em uma ou duas semanas. O problema é como esse pedaço de reforma se encaixará na proposta que está tramitando. Na avaliação que se faz no governo, a emenda 45, que tramita na Câmara, inspirada em ideias do economista Bernard Appy, aumentaria muito a taxação sobre o comércio.

A avaliação de empresários e consultores é a de que os efeitos da reforma tributária devem demorar a chegar na atividade real. Antes, o que se espera é um período de paralisia e até de aumento de custos, porque dois modelos tributários estarão vigorando paralelamente: o atual e o novo, que precisa ser entendido e regulamentado.

São muitos os conflitos de interesse e eles podem ocorrer dentro de um mesmo setor. A Abinee, por exemplo, explica que o segmento elétrico é intensivo em mão de obra. Por isso, pode ser mais propenso a aceitar um imposto de transações financeiras, desde que a folha de pagamento seja desonerada. Já as empresas do ramo eletrônico pensam o contrário, pois são mais dependentes de investimentos e se preocupam mais com os custos de capital.

Para que dê certo o plano de responder à crise dando mais ritmo às reformas será preciso duas preliminares: que os projetos sejam enviados e que exista mais diálogo com o Congresso.


Míriam Leitão: Erros e fatos que explicam o pibinho

Ano de 2019 poderia ter sido de recuperação no PIB, mas o governo Bolsonaro perdeu tempo com falsos problemas e criou desgastes evitáveis

O primeiro ano do governo Bolsonaro foi decepcionante também do ponto de vista da economia. A previsão do PIB em janeiro era 2,5% e terminou em 1,1%. Houve fatores externos e tormentos internos na essência desse número. Mas o mais relevante agora é que 2020 não será igual ao ano que passou, porque o coronavírus criou uma nova dinâmica nas economias mundial e brasileira. Os economistas olham para 2019 como sendo um passado remoto, porque o presente concentra a atenção e é intensamente incerto.

O PIB per capita cresceu apenas 0,3%. O último trimestre, que se esperava fosse ganhar fôlego após a aprovação da reforma da Previdência, cresceu 0,5%. No ano, houve dados um pouco melhores no consumo das famílias (1,8%) e na construção (1,6%). O consumo foi estimulado pela liberação dos recursos do FGTS, mas isso não tem muita duração. O resultado da construção é decorrente da forte queda de juros ao longo dos últimos anos e que tem efeito cumulativo. É uma boa notícia, principalmente quando se pensa no contexto de cinco anos consecutivos de queda e de um encolhimento do setor em 30%. Porém, o último trimestre da construção foi decepcionante, queda de 2,5%. O crescimento brasileiro tem sido anêmico e não se sustenta.

É contrafactual tentar saber o que seria esse PIB se o governo não tivesse criado tanto ruído, mas certamente dá para imaginar que uma nova administração sempre consegue aproveitar a lua de mel, as expectativas positivas, e injetar ânimo na economia. O presidente Bolsonaro permaneceu em palanque e aprofundando as fraturas de uma eleição polarizada. Criou sucessivos ruídos com o Congresso. Deu sinais assustadores nas áreas ambiental e de direitos humanos.

A reforma da Previdência foi outro momento desperdiçado. A votação chegou a bom termo principalmente pela ação de lideranças políticas como o deputado Rodrigo Maia. Mas, uma vez aprovada, o ganho era principalmente do governo, que poderia aproveitar a onda e fortalecer a confiança. Mas, de novo, o presidente produziu uma sucessão de conflitos e debateu temas que dispersaram a atenção e deixaram o investidor assustado.

Os resultados vieram dentro do esperado, não houve maiores surpresas. A decepção ocorreu ao longo do ano, que dissolveu o otimismo de setores empresariais e de quase todo o mercado financeiro. Houve fatores externos, como a queda do crescimento do comércio mundial pela disputa entre China e Estados Unidos. A tragédia de Brumadinho atingiu fortemente a indústria extrativa mineral. Mas o ano passado poderia ter sido de retomada. E não foi. A conta está com o presidente Jair Bolsonaro. Ele herdou uma crise. Mas a economia patinou porque o governo gastou tempo e energia do país com falsos problemas e desgastes evitáveis.

Normalmente os economistas olham o passado para projetar o futuro. Desta vez, não é possível. Em 2020 o mundo entrou em outro clima por causa do surto de coronavírus, que afeta direta e fortemente as cadeias globais de comércio. O Brasil, mais fechado, tem um impacto menor, mas mesmo assim já começou a temporada de revisões para baixo das projeções do crescimento.

O Banco Central deve reduzir mais os juros, na visão de economistas que acompanham o cotidiano da política monetária. Além disso, o câmbio pode ajudar na exportação, mas tudo agora na economia aqui e no mundo depende da capacidade de resposta dos países ao desafio epidemiológico. Haverá consequências sobre as cadeias produtivas que dependem de insumos chineses, aqui, como em todas as economias do mundo. E o país vai se ressentir da queda de demanda por commodities.

O problema em 2020 é principalmente externo. O Palácio do Planalto ajudaria se não atrapalhasse. Quando o pânico com o vírus ceder, o clima interno terá mais peso. Se ele continuar sendo de confrontos entre executivo e legislativo, como foi agora na crise do Orçamento, de manipulação da opinião pública contra os governadores, como foi no caso do imposto sobre combustíveis, de aumento do desmatamento, como ocorreu no ano passado, e de reformas engavetadas, o ano pode repetir o mesmo resultado pífio de 2019. Sobre o vírus, tudo o que se pode fazer é reagir bem aos desafios sanitários. Sobre o governo, é esperar que em algum momento ele aprenda como se comportar.


Míriam Leitão: Crises misturadas afetam a confiança

Mercado reage com pânico ao coronavírus, projeções do PIB caem, e governo mina a confiança em conflitos com o Congresso

As crises se misturaram formando um cenário mais difícil. A economia mundial mergulhou num grau enorme de incerteza com o avanço do coronavírus, no Brasil um conflito institucional provocado pelo próprio presidente Jair Bolsonaro torna nebuloso o cenário de tramitação de reformas, alguns estados começaram a tomar decisões que agravam o rombo fiscal, as projeções de crescimento do PIB estão sendo revistas para baixo. Nesta semana, mais do que em qualquer outra, o mercado mundial reagiu com pânico ao coronavírus. Isso ficou refletido no número de Wall Street, com uma queda de 12% em uma semana.

Uma onda no mercado financeiro pode refluir com a mesma facilidade com que se forma, por isso o mais relevante é o que acontece na economia real. Mas os fatos concretos provocados pela epidemia de doença respiratória já têm reflexo na economia global. Este primeiro trimestre terá um crescimento muito menor do que o que havia sido projetado globalmente. Muito deixou de ser produzido e consumido porque os trabalhadores, e consumidores, ficaram fechados em casa.

A Secretaria do Tesouro vai rever a projeção de crescimento do PIB. Quando isso acontece nos bancos e consultorias é apenas um número alterado. Este mês, o Bank of America já fez dois cortes nas projeções de crescimento do Brasil. Primeiro, de 2,4% para 2,2%. Ontem caiu para 1,9%. O impacto do coronavírus é só um dos fatores que levaram à queda das estimativas. Os indicadores mais fracos do que o esperado no quarto trimestre, com retração da indústria, do comércio e dos serviços fizeram a economia brasileira começar o ano num ritmo um pouco menor do que se esperava. E aí veio a grande onda do coronavírus. Quando é a Secretaria do Tesouro que reduz a previsão de crescimento, isso tem consequência concreta. Em seguida, o governo precisa reestimar as receitas e, portanto, as despesas que estão previstas no Orçamento e em seguida ele faz o contingenciamento.

O dólar teve alta forte no Brasil e, apesar de a inflação estar baixa, alguns itens certamente serão muito impactados, como sempre acontece. O economista Nathan Blanche, da Tendências Consultoria, acredita que três eventos empurram o câmbio: a saída do capital especulativo do país, o pagamento da dívida externa por parte de empresas brasileiras que aproveitam os juros baixos aqui. Esses dois primeiros fatos são reflexo de uma boa notícia que tem sido a queda da Selic. O problema é a terceira causa: os últimos eventos — a desaceleração da economia e a demora nas reformas — reativam o risco fiscal na opinião dele. Esse risco vinha caindo, mas segundo Nathan, voltou a subir:

— A Previdência foi aprovada, mas não houve ainda a virada. A dívida bruta caiu, mas se o país crescer menos do que o esperado pode haver menos arrecadação. Não está havendo grandes privatizações e as reformas fiscais não estão ocorrendo. E ainda há estados, como Minas Gerais, dando aumentos salariais. Tudo isso pressiona o câmbio.

O dólar sobe porque há fatores estruturais — alguns positivos — no Brasil. E foi isso que o ministro Paulo Guedes tentou dizer naquela sua fala atrapalhada. Mas agora sobe porque há incerteza externa com o assustador avanço de uma doença nova que está parando hubs de produção. E sobe também porque no Brasil crises são criadas pelos próprio presidente Jair Bolsonaro.

Este é o pior momento para o governo entrar nesse parafuso de conflitos criados e de paralisias decisórias. A reforma tributária continua à deriva no Congresso, sem que o Ministério da Economia consiga dizer qual é o seu projeto, a reforma administrativa segue na mesa presidencial há mais de dois meses, e as emendas constitucionais já enviadas permanecem paradas. Ou seja, não há nada de relevante acontecendo que alimente a expectativa de melhora no cenário brasileiro. O conflito institucional mina o resto de confiança.

Tudo isso está acontecendo diante de um pano de fundo cada vez mais complexo na economia internacional. O dólar já subiu 10% no ano, e a bolsa caiu 10%. Mas movimentos no mercado se formam e se desfazem. O problema é que a economia está indo para mais um ano de frustração de nível de crescimento, o mundo está mergulhado na incerteza, e o presidente inventa crises e ameaça as instituições. O risco maior é quando as crises se misturam.


Míriam Leitão: Dia de susto no meio do carnaval

Casos de coronavírus na Itália e na Coreia do Sul derrubam as bolsas e aumentam risco de desaceleração da economia mundial

O mercado financeiro global vai entendendo por espasmos o impacto da crise do coronavírus na economia, o que deveria estar claro desde o início, porque a China é o país mais inserido na globalização. Segunda-feira de carnaval foi um destes dias de compreensão do grau de risco em que todos os países estão. No mar das quedas abruptas de ontem, as cotações de produtos que exportamos e as ações de empresas brasileiras foram afetadas. Desta vez, o susto veio da Itália, com cidades isoladas e o carnaval de Veneza suspenso, e do aumento de casos na Coreia do Sul e no Irã.

A China é o hub global. O mundo quase todo importa de lá ou vende para o país. Ela produz milhões de peças para todo o tipo de indústria, eletrônica, digital. O Japão não produz sem a China. A Coreia do Sul proclamou alerta máximo e pôs sete mil soldados em quarentena. Diante dos 43 casos no Irã, com 12 mortes, Turquia, Jordânia, Paquistão e Afeganistão fecharam as fronteiras ou restringiram as viagens com destino ou origem no país. O turismo, a indústria de aviação, a farmacêutica, tudo depende da potência asiática, é o que alertam observadores que acompanham de forma mais atenta a economia chinesa.

A Itália atingida, com 10 cidades isoladas, coloca em questão a política das fronteiras abertas na qual a Europa se assenta. Investidores ontem alertavam sobre a proximidade da região com a zona industrial alemã. O país faz parte de um continente que dissolveu as fronteiras. Bruxelas está emitindo sinais de que é preciso agir, mas evitar o pânico. Produtos que são importantes para a exportação brasileira, como minério de ferro, caíram e derrubaram as ações de grandes mineradoras internacionais. BHP, Rio Tinto e Vale caíram 7% nos mercados internacionais.

Bancos brasileiros caíram 5%. Petrobras, 6%. Tudo isso lá fora, já que a bolsa brasileira só reabre na próxima quarta. A segunda-feira começou mostrando que enquanto nos países mais devotos da folia a população se diverte, o mundo vivia um momento de queda nos preços dos ativos. O mercado de ações no mundo todo despencou, e os investidores correram para as proteções de sempre, o ouro e os títulos do Tesouro americano. A Ásia teve queda forte e foi seguida pela Europa, enquanto o futuro do S&P já apontou que seguiria a mesma tendência. Assim começou a segunda-feira. Ao fim do dia, ficou claro que a parada do Mardi-gras seria muito bem-vinda para que todos pudessem tentar refletir sobre a real dimensão dos acontecimentos.

Aqui neste espaço, alerta-se desde o começo que este é um evento sem precedentes, porque na última pandemia, a do Sars, o mundo era menos conectado e a China era menos importante para as cadeias globais de suprimento. Então, estamos no terreno das incertezas no qual a volatilidade é a regra.

O mercado financeiro oscila entre dois polos. Ou subestima os riscos ou tem picos de pânico. Quando o mais racional seria ter análises mais profundas sobre o grau de conexão entre as cadeias globais de produção.

Na China, há algumas boas notícias. A província de Guangdong, cuja capital Guangzhou fica a uns 500 quilômetros do centro da crise, baixou o nível de gravidade. A partir desta segunda-feira puderam ser abertos restaurantes, bares, fast foods. As escolas, inclusive as estrangeiras, voltaram a funcionar no dia 16.

Apesar das muitas críticas feitas ao governo chinês, diplomatas que vivem lá dentro do país reportam que é impressionante a rapidez com que a sociedade respondeu ao problema. No começo, e instantaneamente, todos os locais públicos, hotéis, shoppings, estações de metrô passaram a ter sempre pessoas medindo a temperatura de todo mundo. Uma semana depois, os termômetros foram substituídos por câmeras infravermelhas capazes de identificar, em uma multidão, quem tem temperatura acima de 37,3 graus. Agora, todo cidadão tem um código e a cada lugar que entra, shopping, metrô, ônibus tem que registrar o seu código. Se por acaso ele aparecer com sintomas, será possível rapidamente refazer seus passos. A tecnologia na qual a China investiu para ser vencedora no mundo globalizado e digital, e para controlar sua vasta população num regime autoritário, está sendo usada, desta vez, para criar a cordão de proteção sanitária.

Ainda não está claro o quanto o mundo será atingido, mas qualquer avaliação que subestime os riscos não é aconselhável. O fato é que o mundo ainda não sabe. E esse é o terreno mais pantanoso para a economia.


Míriam Leitão: Cuidar do legado, regar a semente

Quase dois anos após a morte de Marielle Franco, instituto trabalha para cuidar do seu legado, cobrar justiça e preparar mulheres para a inclusão política

Pedra do Sal é um marco do coração do Rio, por onde passou muita história do país e da escravidão. Durante o mês de março haverá um espaço por lá chamado “Casa de Marielle”. É o primeiro passo do instituto que leva o nome da vereadora assassinada há quase dois anos. Durante todo o mês, haverá atividades, principalmente no dia 14. A diretora do Instituto Marielle Franco, Anielle, tem planos de que ele possa “cuidar do legado, regar a semente e batalhar por memória e justiça” desse crime ainda sem resposta.

Anielle foi jogadora de vôlei profissional, morou 12 anos nos Estados Unidos e voltou com o mestrado em inglês e jornalismo pela Universidade da Carolina do Norte. Sua maior incentivadora era a irmã, cinco anos mais velha.

— Eu pensei várias vezes em desistir, porque era muito tempo longe da família. Mari dizia: fica que eu estou ralando para você estar aí. Um dia você vai voltar e ver o quanto foi importante. Hoje quando vejo o tamanho que a Mari se tornou e eu penso que posso ir aos Estados Unidos fazer uma palestra sobre ela em inglês. Nunca consegui fazer isso sem me emocionar — diz Anielle, lembrando que a irmã queria muito que ela aprendesse inglês.

A saudade vem sempre no meio de muita batalha. Tem sido assim há quase 24 meses. Nunca foi possível descansar. Perguntei o que ela sentia ao ver que uma nota do Planalto reuniu Marielle e o miliciano Adriano Nóbrega. Um trecho dizia que “os brasileiros honestos querem saber os nomes dos mandantes das mortes de Marielle e do capitão Adriano”. Anielle chorou:

— É difícil para mim, como irmã, pessoa criada com ela, perceber que ainda tentam colocar Marielle no mesmo patamar de uma pessoa como Adriano. Parêntesis sobre ele: nenhum ser humano merece ser morto. Mas minha irmã foi vítima de um feminicídio político.

A nota foi emitida pelo Planalto, no meio da briga do presidente Jair Bolsonaro com o governador Rui Costa, da Bahia. Falava também em Celso Daniel, mas o nome da vereadora assassinada junto ao do miliciano, foi, de fato, um despropósito.

A entrevista foi na Câmara dos Vereadores, onde Marielle exercia seu mandato e onde foi velada. Anielle lembrou que se preocupou em colocar uma faixa na cabeça da irmã que escondesse a marca dos tiros. Até hoje o crime não foi esclarecido e o assunto está sempre no meio da disputa política. A família prefere que a investigação não seja federalizada. O crime permanece impune e as redes de ódio têm na vereadora morta um dos seus alvos:

— O exemplo de mulher que eu tenho é ela. E me dói muito quando tenho que defender a índole e o caráter da minha irmã, porque ela era uma pessoa muito honesta, uma pessoa que não abaixava a cabeça, uma parceira que tentava fazer tudo muito certinho e iria muito longe. Tinha um potencial incrível e perceberam isso.

O instituto tem muitos planos e o que fez até agora foi através de financiamento coletivo. Um dos projetos é o das “escolas marielles”, de preparação de meninas e mulheres negras para a participação política. Anielle repete sempre que gostaria de que toda essa defesa do legado fosse suprapartidário, porque, mesmo sabendo que ela era uma vereadora do PSOL, quer que eleitores de outros partidos entendam e ajudem a divulgar a mensagem que ela deixou:

— Este é só o ano da estruturação do Instituto, mas temos muitos planos e o mês de março será de luta e de alegria, porque ela fazia política com muito afeto. Tenho muitos sonhos e me emociono. Sonho com o dia em que vou poder falar do legado da Mari sem ter que explicar que ela era uma política de esquerda ou de direita. Quero ver o instituto fortalecendo a vida de muitas meninas da Maré. Porque nós somos exceção à regra e quero passar para as meninas o sentimento de que é possível. Eu sonho com o instituto fazendo um trabalho do tamanho de Martin Luther King. Ultrapassar barreiras, olhar no olho de quem falou mal dela, espalhou fake news e dizer: tá vendo, enquanto vocês disseminam o ódio, a gente trabalha por um mundo melhor. Quero que as pessoas entendam que direitos humanos não é defender bandido, é defender o direito de ir e vir, de entrar e sair — como minha irmã estava saindo do trabalho — e não ser assassinada com quatro tiros na cabeça. Eu tenho muitos sonhos. Quero que o Brasil e o mundo tenham a dimensão do tamanho da Marielle. Ela é gigante.


Míriam Leitão: Policiais criam nó para o governo

Greve de policiais do Ceará e reajustes em Minas mostram contradição do governo e deixam a equipe econômica contra a parede

O movimento dos policiais nos estados é um grande nó fiscal, político e de segurança para o governo. Greve de policial é crime, mas o governo não a condena porque essa sempre foi uma de suas bases eleitorais. O presidente culpou apenas o senador Cid Gomes pelo dramático evento no Ceará, e os filhos do presidente falaram que os policiais atiraram “em legítima defesa”, o que é um sinal claro de cumplicidade. Os amotinados são agentes públicos armados, por isso a proibição da greve. Na área econômica, o conflito ocorrerá no caso do Distrito Federal. O governo federal terá que enviar um PLN autorizando o reajuste já prometido pelo governador. Quando fizer isso, será difícil ser rigoroso com os outros estados.

O fato de Minas Gerais, que está em situação calamitosa há muitos anos, ter dado aumento de 41% fortaleceu todos os outros protestos. No Ceará, o governo estadual havia oferecido 13%, no Espírito Santo, 30%. Nos dois casos, o argumento é que se Minas, que é o pior estado em termos fiscais, pode dar um reajuste no patamar dos 40% os outros também podem. No Espírito Santo, a tese dos policiais é que o estado tem a melhor nota em termos de contas públicas, e Minas, a pior, portanto o reajuste não pode ser menor do que o dos mineiros. Esse foi o precedente de risco que o governo de Romeu Zema (NOVO) detonou.

Minas deixou de pagar ao Tesouro Nacional e aos credores privados, por força de liminares na Justiça. No governo Fernando Pimentel, o estado suspendeu o repasse das participações do ICMS aos municípios, o que é ilegal. Zema prometeu regularizar os atrasados em 2020, mas não conseguirá. Está negociando a entrada no Regime de Recuperação Fiscal, que exigirá um ajuste de R$ 140 bilhões em seis anos, R$ 50 bilhões a mais do que foi pedido ao Rio de Janeiro. Mesmo assim, o governo concedeu o aumento de salário aos policiais de 41%. A Assembleia piorou tudo estendendo o reajuste a 70% dos servidores. No resto do país, Minas produziu um efeito cascata. Foi o gatilho, na visão da área econômica, e fortaleceu os outros movimentos de policiais nos estados.

Mas a própria equipe econômica agora está contra a parede com o caso do Distrito Federal. O governador Ibaneis Rocha (MDB) prometeu um aumento de 37%, mas para isso ser concretizado o governo federal terá de enviar um projeto de lei ao Congresso, porque é quem paga as despesas de saúde, educação e segurança do DF. Em 2001, foi criado um fundo para essa despesa e é de lá que sairão os recursos. Contudo, será um péssimo sinal fiscal. A pressão sobre a equipe está muito grande.

Na área política, essa crise bate no âmago das contradições do governo Bolsonaro. As forças de segurança sempre foram a grande alavanca do presidente e dos seus filhos. Por isso é que o senador Flávio Bolsonaro (sem partido-RJ) e o deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) cometeram a irresponsabilidade de chamar de legítima defesa policiais amotinados atirarem contra Cid Gomes. O ato do senador licenciado foi mesmo tresloucado, invadir um quartel sobre um retroescavadeira, mas isso não justifica a reação do governo, que não condena os que praticaram o crime.

Na aprovação da operação de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) para o Ceará, Bolsonaro fez declarações que aumentaram o grau de ambiguidade, dizendo que estava enviando “os meninos para a uma missão que se aproxima de uma guerra” e pediu mais uma vez o excludente de ilicitude. O presidente não condenou o motim, mas acha que as tropas estão quase indo para a guerra. Difícil entender a confusão criada pelo chefe do executivo e a sua incapacidade de abandonar o papel de presidente do sindicato de policiais e militares.

Os reajustes terão um impacto forte nas despesas dos estados e são um péssimo sinal para um país em que todo o setor público precisa ajustar suas contas. A fala atravessada do presidente e de sua família estimula um movimento que é ilegal. As muitas anistias que já foram concedidas no passado informam aos policiais que essa lei — a que proíbe greve de quem porta uma arma dada pela sociedade — não é para valer. Principalmente no governo do presidente que sempre estimulou esses protestos. Esse é um nó difícil de desatar.


Míriam Leitão: Na origem da crise, a falta da coalizão

Crise das emendas nasce da falta de diálogo entre governo e legislativo, com articulação eficiente e base de maioria estável

A crise das emendas, que teve o episódio do descontrole do general Augusto Heleno, nasceu das falhas na articulação política e da falta de coalizão no Congresso. Foi combinado com deputados e senadores que parte das despesas dos ministérios integraria a lista de emendas parlamentares, mas isso criou a situação surreal de ministros terem que pedir ao relator do Orçamento para efetuar gastos já previstos. Na área econômica, não se sabe quem fez esse acordo e permitiu que R$ 15 bilhões dos recursos de vários ministérios tivessem que ser liberados pelo parlamento.

As emendas parlamentares de R$ 16 bilhões seriam impositivas mesmo, e estava tudo certo sobre isso. Eles quiseram aumentar o valor. O governo negociou que outros R$ 15 bilhões seriam oficialmente emendas, mas eram despesas previstas do Ministério. Começou o ano e vários ministérios tiveram dificuldade na execução do Orçamento. Veio o veto do presidente, mas sem base organizada, sem coalizão, o risco de derrubar o veto é sempre alto.

O presidente não tem base para evitar que derrubem o seu veto, os ministros estão com despesas já previstas que precisam da aprovação do relator do Orçamento, Domingos Neto (PSD-CE). Com algumas áreas, como no Ministério da Educação, o diálogo com o Congresso não existe. As despesas de janeiro serão baixas não por mérito do ajuste, mas por causa desse nó cego. Tudo isso nasce exatamente da falta de diálogo institucional entre o governo e o legislativo, através de uma articulação eficiente e da formação de uma maioria estável.

O governo Bolsonaro vende para a população a falsa ideia de que não fez o toma lá, dá cá e que a sua é uma administração virtuosa e não aceita pressão dos políticos. É mentira. Houve sim o loteamento anárquico. Nacos da administração foram distribuídos por alas. A fundamentalista, a evangélica, a olavista, os militares, os ruralistas, os defensores das armas, os filhos, os amigos. O mérito, no sentido da qualificação, passou longe, do contrário não haveria um ministro como Abraham Weintraub. Os cargos de outros escalões foram negociados de forma dissimulada a diversos grupos de parlamentares, mas não se construiu uma coalizão formal. Por fim o presidente rachou o seu próprio partido.

O ex-chefe da Casa Civil Onyx Lorenzoni, apesar de ser pessoa do Congresso, atrapalhava mais do que ajudava. Depois, o presidente chamou os militares para um trabalho distante do seu treinamento. Alguns se esforçam e têm espírito democrático, como o general Eduardo Ramos, mas nem sempre avançam neste terreno minado que virou a relação entre o Executivo e o Legislativo. A equipe econômica ouve os pedidos de socorro dos ministros que não conseguem gastar o que está no Orçamento ou enfrentam dificuldades inesperadas.

Uma delas bateu no Ministério da Ciência e Tecnologia. O ministro Marcos Pontes achou que estaria a salvo de problemas se conseguisse que todo o seu orçamento fosse obrigatório e livre do contingenciamento. Pressionou internamente e conseguiu. Agora, ele está com dinheiro que ficou do ano anterior, mas não pode liberar para gastos não obrigatórios. O orçamento brasileiro tem muitas armadilhas.

O diálogo era a única saída. Mas o comportamento do presidente Bolsonaro, com sua “falta de compostura e noção da dignidade do cargo”, como bem definiu o senador Tasso Jereissati (PSDB-CE), contaminou o governo. O general Augusto Heleno é um reflexo. Piorou com o tempo, como disse o deputado Rodrigo Maia. Suas postagens com xingamentos, acusações a jornalistas e a instituições já haviam provado que ele não seria o moderador. A fala captada esta semana mostra que ele acha que o governo está sendo chantageado pelo Congresso e em reunião interna comprovou sua face autoritária ao propor manifestações contra o Congresso.

Quem tenta entender a razão de toda essa briga descobre esse acordo sem pé nem cabeça na execução do orçamento. E ele nasce da falta do que é básico em um sistema multipartidário. Quem não tem maioria negocia a formação de uma coalizão. É elementar na política. Isso só será corrupção dependendo da moeda para obter o apoio. Bolsonaro exerceu seu mandato de deputado aos gritos. Quer governar aos gritos. Não será possível.