Míriam Leitão: Bolsonaro renunciou

Não exerce mais a Presidência quem demonstra tal desprezo pela dor do país, e já não cabe mais a esperança de que ele entenda

O presidente Jair Bolsonaro renunciou à Presidência quando, diante de cinco mil brasileiros mortos, perguntou “e daí?” Não exerce a Presidência quem demonstra tal desprezo pelo seu próprio povo. Já não cabe mais esperança de que ele entenda como é desempenhar as “magnas funções”, para as quais foi eleito. Há suficientes palavras e atos ofensivos ao longo desta pandemia demonstrando que Bolsonaro jamais assumirá o papel que tantos líderes na história do mundo exerceram quando seus povos viveram tragédias. A nossa se desdobra em vários campos, na saúde, na economia, na vida social e pessoal. Mas Bolsonaro vive em seu mundinho como se a realidade não fosse essa fratura exposta.

Ontem foi um dia de derrota para o presidente Jair Bolsonaro, mas grande mesmo é a dor do país. No Brasil real contou-se de novo mais de 400 mortos num dia, e ainda ouvia-se o eco da voz de Bolsonaro escarnecendo —“lamento, mas e daí?” — quando se atravessou, na véspera, a marca de 5 mil mortos. No seu mundo, Bolsonaro ficou irritado porque não conseguiu nomear o amigo Alexandre Ramagem para a Polícia Federal. Na vida real, o país vive a aflição, o medo, a solidão, a falta de ar, a morte sem os rituais de despedidas, os enterros apressados, a longa espera nas filas por um direito, o risco cotidiano.

No seu mundo, Bolsonaro ficou bravo porque encontrou o limite do sistema de freios e contrapesos da democracia. O ministro Alexandre de Moraes mandou suspender a posse de Alexandre Ramagem numa peça em que deixou claro que não o fazia por qualquer idiossincrasia. Era um fato objetivo. Havia o risco de se ferir o princípio da impessoalidade e de haver desvio de função da Polícia Federal. Os indícios disso estavam na própria fala de Bolsonaro ao tentar desmentir seu ex-ministro da Justiça Sergio Moro. No final do dia, ele bateu na mesa e disse que recorrerá da decisão do ministro do STF. “Quem manda sou eu”, disse ele. E está à beira de criar um monstro jurídico. Não se pode recorrer da suspensão de um ato que ele mesmo revogou. Difícil a primeira tarefa do novo advogado-geral da União. Ele sabe que é impossível recorrer de uma causa sem objeto.

Mas pelo que se viu ontem nas posses, toda verdade pode ser distorcida para agradar o presidente. O novo ministro da Justiça, André Luiz Mendonça, foi muito elogiado porque teria sido uma escolha técnica. Elogios talvez prematuros. Seu discurso foi político e com o uso de símbolos religiosos. Chamou o presidente de “profeta”. Como teólogo, deve conhecer a advertência bíblica sobre os falsos profetas. Está logo no primeiro Evangelho. O de Mateus. Os frutos desse profeta do ministro André Mendonça já são bem conhecidos.

Até que ponto é possível suportar o ultraje? Foram tantos nesses 16 meses, foram tantos antes das eleições, que o maior risco é o país aceitar uma Presidência exercida dessa forma deletéria como se fosse natural. Bolsonaro sempre ofendeu grupos sociais, fez disso a sua marca particular, um marketing da agressão. Ele gosta de ofender os sentimentos e ferir valores.

Dos povos originários do Brasil veio uma lição ontem. Os Waimiri-Atroari querem a publicação imediata do seu direito de resposta nos sites da Presidência pelas inúmeras vezes em que foram atingidos por palavras discriminatórias. Após um pedido do Ministério Público Federal, a Justiça Federal do Amazonas determinou à União e à Funai que assegurem ao povo publicação de uma carta nos sites do Planalto. Eles estão reagindo aos “constantes discursos desumanizantes” e de crítica ao seu modo de vida nas falas frequentes de Jair Bolsonaro. Certa vez, ele chegou a dizer que o “índio está evoluindo, cada vez mais é ser humano igual a nós”.

Durante a pandemia tudo tem ficado mais claro. Ele não quer exercer a Presidência. Ele quer gritar “quem manda aqui sou eu”, quando encontra os limites da lei. Ele gosta do mandonismo, não do exercício dos deveres da Presidência. Ele fala aos arrancos, porque não se dedica a entender as questões de Estado sobre as quais tem que decidir. Ele diz “e daí?” porque de fato não está nem aí. É isso que faz de Bolsonaro um presidente que renunciou às suas funções, apesar de formalmente continuar no posto.


Míriam Leitão: Abertura do país antes da hora

Os estados começam a relaxar o isolamento, e o governo faz plano para depois da pandemia, mas o país ainda não venceu o vírus

O governo federal apresentou um programa de retomada da economia sem o Ministério da Economia. Lembrava uma mistura do PAC do período Dilma com os PNDs do regime militar, mas ainda em rascunho. É o Plano Pró-Brasil, com dois eixos, Ordem e Progresso, para quando a pandemia passar. Os estados começaram a anunciar a saída do distanciamento social. Alguns com mais planejamento, outros com menos, mas em todos os casos talvez seja cedo demais, porque o Brasil continua subindo o Everest. O coronavírus não nos deu trégua ainda.

O ministro Nelson Teich continua seu período de aprendizagem. Reclama das perguntas dizendo que só está no cargo há cinco dias. Mas ele não está inaugurando o Ministério da Saúde. A máquina está lá, e lá estão a memória e os dados que ele diz desconhecer. Quem aceita assumir no meio de uma emergência tem que saber o que fazer. O ministro Teich ainda pesquisa e divaga. Disse que se preocupa com a saúde dos hospitais privados se os enfermos de outras doenças não forem se tratar. “Os hospitais não vão sobreviver” e isso levaria, segundo ele, a outro problema, quando acabar a pandemia, “a não capacidade de atender à demanda reprimida do não covid”. Sobre o SUS ele faz apenas breves referências.

O ministro disse que em uma semana entrega diretrizes aos governadores sobre como abrir a economia. Chegará atrasado, porque os estados já estão fazendo seus próprios planejamentos. O governador João Dória apresentou ontem, com equipe completa, o seu Plano São Paulo. Tinha pelo menos as palavras certas, a obediência à ciência, a tomada de decisão no diálogo entre saúde e economia, e a criação de parâmetros para saber quando e por que abrir. Segundo a secretária de Desenvolvimento Humano, Patrícia Ellen, as atividades serão retomadas por fases, por regiões e por setores. Tudo será dividido em cores. Hoje o vermelho é dominante em todo o estado e o distanciamento continua até 10 de maio. Depois só abre dependendo de fatores como testagem e capacidade hospitalar. Não será ao mesmo tempo em todo o estado. “Em hipótese alguma será desordenada, com flexibilização aleatória ou desrespeitando a ciência.”

O governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, também começou a abrir a economia obedecendo a critérios e seguindo a testagem feita por universidades. Em entrevista à CBN, disse que os testes feitos pela Universidade de Pelotas mostraram que apenas 0,05% dos gaúchos foram infectados e isso não pode parar um estado com 495 municípios. Essa conta de percentual da população também foi feita em Brasília por Teich. O ministro disse que 2% da população teve contato com o vírus e que 70% podem vir a ter, que isso vai demorar muito e um país não pode ficar parado tanto tempo.

É preciso, claro, planejar a retomada como estão fazendo alguns governadores, e é necessário pensar em como reativar o crescimento após a pandemia, como está fazendo o governo federal. O problema é que, antes de qualquer plano, precisamos saber como vencer o Covid-19. O país ainda vive o enorme desafio do crescimento do número de infectados e de mortos pelo vírus. Em São Paulo, 73% dos leitos de UTI estão ocupados, Manaus está em colapso, o governador Hélder Barbalho, do Pará, disse à revista “Veja” que teme que Belém seja uma nova Manaus, o governador Camilo Santana disse à Globonews que ainda é hora de aumentar o rigor. O Ceará foi um dos primeiros estados a adotar medidas, inclusive teve que entrar na Justiça para fechar o aeroporto de Fortaleza para voos internacionais. Mesmo assim, é o terceiro estado com mais casos da doença.

– É bom ter um plano, mesmo que não seja lançado na data. São Paulo deve ter sido o primeiro local de infecção, mas os números de casos ainda estão em fase ascendente da curva e nas próximas duas semanas devem continuar assim – disse a economista Monica de Bolle, sobre o plano do governador João Dória.

O Plano Pró-Brasil, lançado pelo ministro-chefe da Casa Civil, general Braga Netto, ainda não é nada além de uma coleção de projetos de obras. O anúncio passou a impressão de que tudo está sendo feito sem a concordância da equipe econômica. Tem o cheiro daqueles velhos planos estatizantes. E a ideia do Ministério da Economia não era bem esta.


Míriam Leitão: Canais da saúde e da economia

O ministro da Saúde, Nelson Teich, na reunião com os governadores do Nordeste, repetiu algumas vezes que é preciso olhar “os modelos matemáticos” para “entender o problema”. Para os governadores que vivem o drama real e imediato da pressão no sistema de saúde, pareceu meio apavorante que o ministro queira tempo para saber como agir. Um dos participantes da reunião disse que “ou ele terá um choque de realidade e vai virar um novo Mandetta ou pode ser um desastre monumental. Em crises como esta não costuma haver meio termo.”

No meio desse conflito federativo, todos os governadores com quem eu falei elogiaram a disposição de Teich para o diálogo. Isso, que deveria ser rotina numa federação, a esta altura parece até uma concessão de tão obstruídos que estão os canais. Os governadores focaram na ampliação que vêm fazendo de suas vagas de UTI nas redes estaduais, relataram as dificuldades e pediram mais critério no repasse de recursos e insumos. Ao fim, ficaram de formalizar seus pedidos ao Ministério.
Há dois trilhos de ajuda aos estados e municípios, um de repasse para a saúde, e outro de socorro aos estados, que depende do Ministério da Economia. Depois da derrota na Câmara, o projeto virou uma fonte de briga, continua parado no Senado onde o governo tenta mudar tudo.

Na segunda-feira, numa transmissão direta com investidores, o ministro Paulo Guedes falou que pode ampliar o dinheiro para os estados se os governadores congelarem os salários dos servidores por dois anos. Isso é super-razoável, mas há três problemas: primeiro, em vez de contar para banqueiros e investidores, deveria estar falando com governadores; segundo, deveria dar o exemplo e fazer o mesmo no governo federal. O terceiro problema é a maneira como Guedes relata os eventos e apresenta os números:

– Os governadores vieram para uma conversa com o presidente, e tudo que eles pediram foi dado. Inclusive com algum aumento. Por isso que é injusta essa visão de que o presidente está perseguindo o governador A ou o governador B. É falso. É falso. É uma fakenews política. É um uso político contra o presidente, injusto, e contra nós também, injusto. Porque os governadores vieram aqui e saíram muito felizes. Foram atendidos. Voltaram uma semana depois pedindo algo que foi calculado em R$ 220 bilhões.

O presidente mal fala com os governadores, o ministro prefere falar com o mercado financeiro. A questão é que aumentar o FPE ajuda estados menores. Para o Rio Grande do Sul, o FPE representa 1,6% da receita. No Nordeste é grande, mas não cobre as despesas que eles estão tendo agora. Falei ontem com um governador que recebeu R$ 40 milhões para a saúde e já aumentou seus gastos em R$ 180 milhões. Para os estados maiores, será preciso compensar perdas de ICMS. Pode não ser a fórmula aprovada na Câmara, mas terá que acontecer, do contrário, os estados entrarão em colapso. Paulo Guedes disse, nessa fala aos investidores, que os governadores estavam tentando “transformar uma crise na saúde em uma farra eleitoral”.

Por palavras, omissões, erros, este governo está provocando uma baita crise federativa no meio de uma pandemia. Paulo Guedes lamenta que esta crise não tenha acontecido depois dos “oito anos de transição”.

– Alguém tem alguma dúvida que nós somos federalistas? Alguém tem alguma dúvida que nós enfrentaríamos muito melhor esta crise se o Brasil já fosse uma federação fortalecida? Imagine que os estados já tivessem, ao fim desses oito anos de transição, em que nós estamos descentralizando as receitas para estados e municípios, imagine que já tivesse terminado isso e então chegasse a crise da saúde. Não estava esse desespero, procurando respirador e máscara, porque todos teriam a condição de se defender.

O governo, que chegou falando em mais Brasil e menos Brasília, tem feito o contrário e na crise deixa critérios políticos contaminarem decisões que teriam que ser técnicas. O dinheiro dos contribuintes está concentrado em Brasília, e a União tem o monopólio de emissão de títulos e de moeda. Mas isso não pode ser entendido como uma propriedade de quem neste mandato ocupa o governo federal. É do país como um todo, e Brasília tem que socorrer os entes federados em uma crise. E isso é agora. E não após o tal período de oito anos, com o qual conta o ministro da Economia.

(Com Alvaro Gribel, de São Paulo)


Míriam Leitão: Difícil previsão no meio do nevoeiro

O que é uma recessão global de 3%? Ninguém sabe ao certo, porque não há precedente recente. Por isso o FMI foi buscar paralelo em 1929. Da mesma forma que desde que há estatísticas do PIB do Brasil não há o registro de uma queda de 5,3% em um ano, número previsto pelo Fundo para a economia brasileira para 2020. Hoje há muitos números pessimistas e é difícil saber qual é o mais realista. Faltam certezas mínimas para se fazer qualquer projeção. Mas não há dúvida de que estão mais certos os que projetam uma queda forte.

“Há uma extrema incerteza sobre a previsão de crescimento global”, diz o FMI. Para fazer qualquer cálculo é preciso saber antes quantos dias trabalhados deixarão de acontecer, quanto tempo durará a paralisação de atividades ou as medidas de distanciamento social. O mundo está diante de um enorme desconhecido. Não conhece o inimigo, não sabe como vencê-lo e pode apenas supor seus efeitos na economia.

Há pelo menos uma vertente de projeções que considera a recuperação em V, ou seja, a economia cai agora fortemente, mas se recupera de maneira vigorosa em 2021. O FMI acha isso. No cenário básico, que assume a hipótese de que a pandemia vai arrefecer no segundo semestre e as medidas de contenção vão sendo gradualmente reduzidas, a economia global cresceria então 5,8% no ano que vem. Outros economistas e centros de estudos acham que o mais provável é uma volta mais lenta. Até porque há riscos de ressurgência, até que se encontre vacina que neutralize o vírus. Nesse nevoeiro, em que há tantos fatores desconhecidos, é difícil qualquer projeção.

A queda prevista pelo FMI para as economias avançadas é de 6,1%, enquanto os países emergentes, puxados pela China e Índia, terão retração mais branda, de 1%. “É uma recessão profunda. Uma recessão que envolve questões de solvência e desemprego subindo e isso deixará cicatrizes”, diz a economista-chefe do FMI, Gita Gopinath. No Brasil, pode significar, segundo cálculos da Fundação Getúlio Vargas, uma volta de dez anos. O país, que teve recessão em 2015 e 2016, e nos anos seguintes se recuperou muito lentamente, voltará ao PIB de 2010.

A mudança de cenário é brusca como nunca foi. O relatório do FMI de janeiro previa crescimento de 3% na economia do mundo e agora haverá uma queda de 3,3%, tirando 6,3 pontos do que poderia ter sido. Para se ter uma ideia da dimensão das perdas, o resultado negativo do PIB global em 2009, em decorrência da crise financeira que estourou em 2008, foi de 0,1%. Os Estados Unidos, que estavam com pleno emprego antes do coronavírus - uma taxa de desemprego de apenas 3,7% - deve ir para 10,4%, mesmo percentual da Europa.

Nem o relatório nem a economista-chefe do FMI concluem, diante desse desastroso cenário, que se deve retomar a atividade econômica a qualquer custo. Disse que não existe esse “trade-off”, como se diz no jargão econômico, entre salvar vidas e salvar a economia.

O governo brasileiro ainda mantém uma estimativa deslocada da realidade. Crescimento zero. Já está muito distante da mediana do mercado financeiro de -1,96%, e que está em queda há nove semanas consecutivas, desde antes do coronavírus no país. A projeção mais pessimista do Boletim Focus aponta retração de 6%. Quando o governo brasileiro revisar o seu número, terá que mudar as estimativas de receita, déficit e endividamento público.

Dos Estados Unidos, onde mora e dá aulas na Universidade Johns Hopkins, a economista Monica de Bolle foi uma das primeiras a alertar para o tamanho da crise que chegaria ao Brasil. Desde o início de março Monica já projetava recessão no país. No dia 10, criticada por vários analistas, ela escreveu “lembrem do dia de hoje quando o pessoal do mercado começar a temer a recessão”. No dia 20, refez o cálculo para -6%. Por isso, foi enfática em defender que o governo fosse rápido na adoção de medidas de estímulo e de proteção social, quando o mantra na equipe e no mercado ainda era de que a melhor resposta seria a aprovação das reformas. Essa demora em entender a mudança radical de ambiente econômico explica como até hoje o governo erra. A burocracia atrapalha a ajuda aos pobres, a luta política retarda as transferências para os estados.

Com Alvaro Gribel (de São Paulo)


Míriam Leitão: A luta política na ajuda aos estados

A luta política atrasou dias a ajuda aos estados. Prevenir abusos fiscais futuros é legítimo, mas a prioridade é salvar vidas

A briga entre o Ministério da Economia e a Câmara dos Deputados atravessou o fim de semana e tomou o dia inteiro de ontem. Como já havia tomado a sexta-feira. O governo acabou derrotado, porque não entendeu a urgência de uma decisão como essa. O debate é sobre quanto e de que forma o Tesouro vai ajudar os estados. A Câmara fugiu de uma polêmica, mas abriu outra. Há argumentos bons de lado a lado, e há a insanidade da luta política em plena pandemia. O governo federal tem que socorrer estados e municípios e, claro, deve ter mecanismos para evitar o descontrole. Mas a urgência da hora exige que a ajuda chegue o mais cedo possível.

O projeto que foi a voto não tinha o mais controverso, que era o pedido de aval para empréstimos que a equipe econômica chamou de cheque em branco. Segundo o deputado Pedro Paulo (DEM-RJ), foi a própria equipe que havia proposto isso. De qualquer forma, o projeto desistiu do endividamento mas ampliou a compensação de arrecadação de ICMS e ISS para seis meses e a chamou de “seguro”. A palavra causou arrepios na área econômica. Por seis meses o governo federal cobrirá toda a queda de arrecadação de ICMS e ISS em relação aos valores nominais do ano passado. A equipe econômica acha que os estados e as cidades maiores serão beneficiados porque são os que têm uma parcela maior da sua receita dependendo desses dois impostos, ICMS e ISS.

– Se for assim, o governo federal terá que transferir mais para estados mais ricos. Melhor fazer isso per capita: transfere a mesma coisa por pessoa. Estados mais populosos vão receber mais – explicou um dos técnicos do governo.

A Câmara justifica dizendo que o projeto do governo já aprovado garantiu as parcelas do Fundo de Participação dos Estados e o Fundo de Participação dos Municípios, FPE e FPM, que são receitas mais importantes para os estados mais pobres. E que agora é sim momento de ajudar mais os estados maiores que são os que neste momento têm o maior número de infectados e mortos pelo novo coronavírus.

O ministro da Economia, Paulo Guedes, por sua vez, explicou que não gosta da ideia de um seguro, porque isso geraria, na visão dele, um incentivo ao “descuido” das arrecadações municipais e estaduais. Como toda a perda iria para a União, os estados e os municípios nada perdem concedendo incentivos fiscais, e os gestores seriam menos preocupados em arrecadar. Guedes acha que o projeto estimula menos arrecadação.

O presidente da Câmara, Rodrigo Maia, explicou que se a arrecadação melhorar mais rapidamente, em quatro meses, por exemplo, o governo federal deixaria de repassar os recursos.

– O ministro Paulo Guedes havia dito que os recursos para a saúde eram ilimitados. O governo federal pode emitir dívida. Não é para manter a estrutura de saúde do ano passado, tem que ampliar, ampliar leitos de UTI, vai precisar de recursos extras. Na hora que São Paulo, Rio, Belo Horizonte fazem um hospital de campanha, precisam de recursos extraordinários. E o que estamos tratando aqui é apenas a recomposição nominal do ano passado.

Para evitar esse ambiente crispado entre Maia e Guedes, o assunto foi entregue ao ministro da Secretaria de Governo, Luiz Eduardo Ramos, que fez uma reunião com líderes sobre o assunto e não convidou Maia. Ele disse que não deveria ter sido convidado mesmo, mas rebateu a crítica que recebeu da equipe econômica:

– O governo disse que o empréstimo era pauta bomba, tiramos o empréstimo. O desrespeito à Câmara foi muito grande, mas ficamos tranquilos e equilibrados. Vamos reafirmar a nossa responsabilidade e manter no texto o que é fundamental. Quando a arrecadação melhorar, não precisa repassar esses recursos.

A proposta foi aprovada ontem na Câmara por 431 votos a favor e apenas 70 contrários da bancada governista. A grande questão que fica é que ela passará pelo Senado e depois irá para o governo ser implementada. Seja qual for o resultado da tramitação, se esse clima de luta política continuar o país perderá. Não há mais tempo para esse tipo de disputa, o ambiente de cooperação é a única forma de enfrentar esta crise. É preciso sim prevenir abusos fiscais futuros, mas se esse for o objetivo principal o país correrá o risco maior, o de perder tempo e vidas humanas no presente.


Míriam Leitão: A economia no conflito político

Ministério da Economia e Câmara dos Deputados se desentendem até na matemática, em ambiente político envenenado

A guerra é política, mas as armas lançadas foram números. Uma divergência de mais de R$ 80 bilhões. A Câmara dos Deputados e o Ministério da Economia discordam sobre qual é o custo do programa de ajuda aos estados e municípios que está para ser votado na segunda-feira. O governo chama de “pauta bomba”, Rodrigo Maia nega e lembra, com razão, sua adesão à pauta fiscalista. Ele acha que há objetivo político de atacar o centro, enfraquecendo os governadores do Sudeste, principalmente.

O ambiente está envenenado faz tempo. A crise do coronavírus não permitiu a superação. Nem poderia, porque o próprio presidente Jair Bolsonaro passa o tempo todo atirando contra os governadores. Nunca soube liderar a federação. Prefere chefiar uma facção que tem cada vez menos apoio.

A origem do debate é o que fazer com o Plano Mansueto. Ele foi pensado como um projeto de ajuste dos estados com maior desequilíbrio fiscal, mas agora a situação é totalmente outra. Ele não inclui todos os estados, apenas os que estavam em pior situação, e traz uma lógica do ajuste fiscal, mas este é um momento de expansão de gastos para salvar vidas. O projeto deveria já ter sido votado há muito tempo e ficou parado no Congresso. Agora o momento é de criar estradas para a ida de recursos federais para as unidades da federação.

O projeto do deputado Pedro Paulo (DEM-RJ) propõe que sejam suspensas as dívidas dos entes federados com a Caixa e o BNDES. Isso custa R$ 9 bilhões. Propõe que o governo federal recomponha três meses de ICMS, que está caindo em torno de 30%. O custo seria de R$ 36 bi. Que a União compense também as perdas do ISS, que daria R$ 5 bi. Além disso, e aí veio a confusão, permite que estados elevem seu endividamento em até 8% da Receita Corrente Líquida, com aval do Tesouro. O custo para o Tesouro seria de R$ 50 bilhões caso todos dessem calote na dívida. Tudo somado daria R$ 100 bi, nessa hipótese extrema dos empréstimos não serem pagos.

O Ministério da Economia acha que já concedeu bastante quando propôs a recomposição das perdas do Fundo de Participação de Estados e o dos Municípios. O problema é que o FPE e o FPM beneficiam principalmente estados mais pobres e cidades menores. Portanto, para São Paulo, Rio, Minas, Rio Grande do Sul o fundo é pouco importante. Receita fundamental é o ICMS. De fato, sem uma ajuda na perda de receita do ICMS e do ISS não se socorre os maiores estados e as maiores cidades, justamente onde estão acontecendo o maior número de casos da Covid-19.

O governo federal em sua conta sobre esse projeto registra o custo da suspensão do pagamento da dívida dos estados e municípios ao Tesouro, mas quem tem determinado essa interrupção de pagamento dos juros é uma liminar do ministro Alexandre de Moraes. E não tinha mesmo cabimento, os estados e as cidades, com seus cofres desidratados, arranjarem dinheiro para pagar a dívida. Como os maiores estados já conseguiram, é óbvio que todos terão. A guerra de números teve até a divulgação de uma tabela atribuída ao Ministério da Economia com um erro de conta.

O governo federal tem sim que ajudar os estados e municípios que veem minguar seus cofres em momento de elevação de gastos para enfrentar a pandemia. Os impostos são centralizados, a União é a única que não precisa pedir licença para se endividar e pode imprimir moeda. Logo, é o governo central que faz o papel principal. Não é favor da administração Bolsonaro. O dinheiro é do contribuinte e a dívida é contraída em nosso nome.

Mas é preciso evitar o contrabando para o projeto de medidas oportunistas e é fundamental saber a hora de retirar os benefícios. Essa foi a lição de 2008, como já escrevi aqui. O Plano de Sustentação de Investimento, uma das ferramentas para enfrentar a crise de 2008, custou R$ 40 bilhões no primeiro ano, e R$ 400 bilhões nos anos seguintes quando não era mais necessário.

Agora é a hora de salvar vidas, ampliar a rede de proteção social e mitigar a queda econômica. Depois, será preciso retomar os parâmetros fiscais. O risco é que sejam incluídas nos projetos emergenciais permissões que durem além da crise. Esse é o coração do debate econômico. Mas como o presidente exacerbou o conflito federativo no meio da pandemia, tudo vira um embate político.


Míriam Leitão: O que sobrará da ideia inicial

As ideias liberais foram deixadas de lado, agora o governo tenta sustentar a versão que teve a agilidade na resposta à crise, o que não teve

Ao fim desta pandemia, pouca coisa vai sobrar da agenda com a qual o ministro Paulo Guedes chegou ao governo. As reformas foram engavetadas, o plano Mansueto foi deixado de lado por outro que socorre os estados na emergência, a empresa que está para ser privatizada ajudou a fazer o caminho para o pagamento do auxílio emergencial, a proposta de zerar o déficit público se transformará no maior déficit da nossa história.

Ontem, o governo, de um lado, a Câmara e os governadores, de outro, brigavam em torno de quanto transferir aos estados e municípios neste momento. O chamado Plano Mansueto era uma excelente ideia para um outro mundo, e certamente voltará a ser. Ele induz os estados e municípios a se ajustarem e buscarem notas de crédito melhores e os incentiva com recursos e avais conforme a nota alcançada. Mas como falar em ajuste num momento em que despencam as arrecadações de ICMS e ISS? Agora, a Câmara decidiu aprovar projeto que facilita as transferências para a sustentação da receita dos estados e municípios e suspende a cobrança das dívidas com o Tesouro.

O deputado Rodrigo Maia explicou ontem que, se deixasse o Plano Mansueto, ele seria desvirtuado, porque estavam sendo incluídas emendas com propostas de gastos de longo prazo:

– O Plano Mansueto é correto, vai ter que ser enfrentado, mas neste momento todos os estados vivem a mesma angústia, que é a necessidade de receitas para enfrentar a crise.

A pandemia mudou completamente tudo no mundo, mas o fato é que o projeto do governo já não ia bem. O que houve de privatização foi a venda de participações ou blocos de ações feita por algumas empresas e bancos públicos. A abertura da economia também teve pouco avanço. O projeto liberal patinou no primeiro ano de governo. Agora, devido às circunstâncias, ele tem que ser deixado de lado, e economistas preparados para fazer um programa têm que fazer o inverso.

A versão do governo, dita em várias entrevistas, é que o país estava decolando quando foi abatido pela crise. Não é verdade. O primeiro trimestre já não vinha dando bons sinais de recuperação da economia. O comércio caiu 1,4% em janeiro e subiu menos em fevereiro, 1,2%. O setor de serviços vinha de duas quedas no final do ano passado, subiu apenas 0,4% em janeiro e voltou a cair 1% em fevereiro. Na indústria, as duas altas dos meses de janeiro e fevereiro não recuperaram as perdas de novembro e dezembro. Olhando apenas para fevereiro, último mês antes da pandemia, o Ibre/FGV projetou alta de apenas 0,1% no seu Índice de Atividade Econômica (IAE).

Na entrevista concedida ontem pela área econômica foi dito que eles estavam se preparando desde dezembro para esta crise. Isso está bem distante dos fatos. A verdade é que até o começo de março o governo continuava defendendo apenas a aprovação das reformas. Perguntei a um integrante graduado da equipe econômica, no dia 5 de março, que resposta seria dada à crise do coronavírus e ouvi que havia apenas três infectados e que o Brasil era uma economia fechada que seria menos impactada. Naquele mesmo dia, o número subiria para oito. E ontem já havia 800 mortos.

Ontem, em entrevista coletiva, o secretário Adolfo Sachida sustentava que o Brasil fora o mais rápido a responder, do ponto de vista da economia, e o secretário Waldery afirmou que é o segundo emergente que mais está gastando, atrás apenas do Chile. Isso não é um campeonato de despesa. O que é preciso é fazer o dinheiro realmente chegar. Nesta quinta-feira é que começará de fato a acontecer o pagamento da primeira parte do auxílio emergencial. Anunciar medidas não é o mesmo que realizá-las. É preciso reduzir o tempo dedicado à reescrever a história para se empenhar mais em garantir a execução das medidas.

O banco BNP Paribas estima que o deficit primário este ano poderá chegar a 7,3% do PIB, com uma combinação de aumento de gastos e queda de arrecadação. Ao final desta crise, a dívida bruta poderá alcançar um patamar recorde, de 90% do PIB. Já o UBS tem números menos piores. O deficit este ano pode ir a 7%, com endividamento de 86% no ano que vem. Mas ele acredita que até em 2021 o governo teria um forte deficit primário, de 4% do PIB.

A conta será salgada. O mais importante agora é implantar o que vem sendo anunciado. E no momento seguinte preparar o plano da reconstrução da economia e dos parâmetros fiscais, para o dia em que este pesadelo passar.


Míriam Leitão: A necessidade de mudar o mundo

Carta aberta de líderes globais fortalece o multilateralismo e pede ação conjunta do G20 para lidar com o coronavírus em países pobres

O senso de urgência em relação à pandemia teve um avanço no mundo ontem. A carta assinada por 165 personalidades globais, que pede ação imediata e conjunta ao G20 e um apoio bilionário aos países mais frágeis, fortalece a ideia do multilateralismo que estava abandonada. Elas querem ajuda aos países em desenvolvimento e apoio à Organização Mundial de Saúde (OMC). O risco de não agir é a volta, em novas ondas, da mesma pandemia. Nesse cenário, a recessão econômica se transforma em depressão. A iniciativa é do ex-primeiro-ministro britânico Gordon Brown e tem entre os signatários 92 ex-presidentes ou ex-primeiros-ministros.

Entre eles estão Tony Blair, da Inglaterra, Gro Brundtland, da Noruega, Fernando Henrique Cardoso, do Brasil, Óscar Arias, da Costa Rica, Felipe González, da Espanha, Ban Ki-moon, da ONU, José Manoel de Barros, de Portugal, entre inúmeros outros. Eles alertam para os riscos que recaem sobre todos os países, especialmente os mais vulneráveis.

Todos os sistemas de saúde, mesmo os mais sofisticados e mais bem financiados, estão se vergando sob a pressão do vírus, dizem os líderes. A carta aberta alerta que, se nada for feito em tempo, em cidades e comunidades frágeis da África, Ásia e América Latina que não têm acesso a estruturas de suprimentos e médicos adequados e onde o distanciamento social não é possível - até mesmo lavar as mãos é difícil - a Covid-19 persistirá e reemergirá para atingir o resto do mundo em novas rodadas da pandemia que prolongará a crise global.

Eles fazem pedidos específicos para determinadas áreas: US$ 8 bilhões para acelerar o esforço global de vacinas, US$ 35 bilhões para apoiar os sistemas de saúde e fabricação de ventiladores e kits de testes e sistemas de proteção para profissionais da área médica. Outros US$ 150 bilhões para os países em desenvolvimento combaterem as crises de saúde e econômica, e para evitar a ressurgência da doença e o aprofundamento da recessão. E a suspensão da dívida externa dos países pobres.

Um ponto importante da carta aberta dos 165 ex-governantes de vários países do mundo e líderes da área econômica é o alerta de que, em vez de cada país disputar a atual capacidade de produção de equipamentos, que se apoie a Organização Mundial de Saúde e ajam de forma coordenada para elevar a oferta desses equipamentos. Segundo eles, quase 30% dos países não têm capacidade nacional de resposta. Isso pode levar a um milhão e duzentas mil mortes na Ásia e África. Propõem também a convocação de uma “conferência global do comprometimento” do G20.

A carta detalha a destinação de parte dos recursos. A OMS precisa urgentemente de US$ 1 bilhão. Outros US$ 3 bilhões serão destinados à pesquisa e ao desenvolvimento de vacinas. Os esforços de P&D estão sendo coordenados pela Coalizão para Inovações para Prontidão em Epidemias. As vacinas, uma vez desenvolvidas, deverão ser distribuídas de forma equitativa para os países mais pobres e isso vai requerer, para compra e distribuição, US$ 7,4 bilhões que devem ser integralmente financiados.

Aqui no Brasil, o governo começou finalmente ontem a entregar algumas ações que vinham sendo anunciadas nos últimos dias. Houve a apresentação do calendário e da logística para o pagamento do auxílio emergencial aos mais necessitados. O secretário do Tesouro, Mansueto Almeida, anunciou que os recursos foram transferidos ontem para o BNDES, para que sejam emprestados a pequenas e médias empresas e elas consigam pagar os salários. No Congresso, o deputado Rodrigo Maia lembrou o quanto o mundo mudou. O plano Mansueto, que era para ajustar as contas dos estados, não deve ser votado agora. Os estados perderam já 30% de arrecadação do ICMS. O mais importante, alerta, é que seja votado um projeto que faça os recursos chegarem mais rapidamente na ponta.

A fórmula para tirar do papel o auxílio emergencial foi resultado do esforço conjunto da máquina pública. Poucos meses atrás, a Dataprev foi colocada no programa de privatização. Nas reviravoltas que o mundo tem dado, ontem a Dataprev estava jogando um papel central para resolver o dilema de como levar o dinheiro até os pobres.

Na carta dos líderes globais, o que eles lembram é que o mundo é um só. Caso os países pobres sejam abandonados à sua própria sorte, a doença voltará em novas ondas. O planeta precisa resgatar velhos conceitos.


Míriam Leitão: Dinheiro não chega nas empresas

Dinheiro para financiar a folha de pagamento das empresas não chega na ponta pelas exigências e demoras do próprio governo

O crédito para pequenas e médias empresas, anunciado como parte do pacote de ajuda há dez dias, estava parado ontem à tarde em dois obstáculos: havia uma exigência de que só empresas sem débito previdenciário poderiam receber, e isso eliminaria um terço delas. E o Tesouro não havia ainda transferido o dinheiro para o BNDES. Os bancos ofereceram então antecipar os recursos, com a garantia de que eles realmente chegarão.

A informação que me foi dada ontem por um executivo de banco mostra a crônica incapacidade do governo de pôr em prática as medidas tomadas. O auxílio emergencial aos informais foi anunciado há quase três semanas, no valor de R$ 200, e só hoje será anunciado o calendário de pagamento, de R$ 600, após aprovação no Congresso, sendo que o governo começará pelo mais fácil que são os beneficiários do Bolsa Família, política pública que existe há 16 anos.

Na verdade, o governo tem anunciado muita coisa e parece que todos aqueles bilhões apresentados estão indo para a economia, mas não. Entre o anúncio e a realização há muitos obstáculos. Esse foi, inclusive, o tema central da conversa de empresários do comércio com o ministro Paulo Guedes. A ideia do socorro às empresas através de um crédito para pagar a folha foi proposta pelos próprios bancos ao governo há três semanas. O presidente do Banco Central, Roberto Campos, gostou da proposta, mas disse aos banqueiros que eles teriam que ter skin in the game, ou seja, teriam que correr risco também. A proposta inicial era de que os bancos entrassem com 20%, os bancos disseram que entrariam com 10%, e acabaram fechando em 15%. O resto vai ser do Tesouro. Mas só que o dinheiro tem que chegar ao BNDES, que vai operacionalizar essa linha. Serão R$ 20 bilhões por mês.

– Nós dissemos que não precisa o dinheiro chegar agora, que tiramos do nosso caixa, depois eles nos repassam. Mas precisamos saber que repassarão, porque são 36 meses para pagar. O BNDES parece que demora umas três semanas, mas nós podemos fazer amanhã. O que a gente não pode é ficar sem a certeza de que o dinheiro vai ser repassado em algum momento – relatou o dirigente de um grande banco.

Só que agora apareceu essa nova dificuldade: as empresas com débito previdenciário não podem receber. Mas como levantar certidão de cada empresa? Os bancos sugerem que seja autodeclaração e que quem não tiver sido fiel à realidade depois seja punido. Isso para agilizar, porque se todo mundo for tirar certidão negativa de débito previdenciário pode demorar ainda mais.

A economia real tem tentando encontrar os caminhos mais rapidamente para superar a crise. O economista-chefe da Acrefi, Nicolas Tingas, diz que o momento é de emergência e explica que o setor financeiro está tendo que se adaptar rapidamente. Ele contou que está sendo reinventada a maneira de formalizar um refinanciamento, sem que o cliente tenha que ir pessoalmente na agência.

– Estamos em uma emergência, mas o circuito não estava preparado para os detalhes. Há regras de compliance que precisam ser adaptadas. A operação funcionava de outra forma. Algumas financeiras já estão utilizando contrato verbal, fazendo gravação de voz para tentar formalizar isso, ou por meio de contratos eletrônicos. Estão todos trabalhando sete dias por semana, porque o momento exige rapidez – explicou.

O que os bancos garantem é que mesmo com essas dificuldades eles rolaram por 60 dias todos os empréstimos que os tomadores pediram. Já as empresas reclamam que os juros subiram. Um grande banqueiro diz que um dos maiores trabalhos para evitar o agravamento da crise foi o de dar liquidez aos fundos.

– Houve um movimento extraordinário de preços e nenhum fundo fechou. Por quê? O BC abriu linhas de compulsório e pediu que a gente desse liquidez aos fundos e nós fizemos isso. Compramos papéis deles. Eles compraram papéis de dois ou três anos mas deram resgate em 30 dias. Havia um descasamento entre prazos de resgate e prazos dos ativos.

Claro que eles mantêm em caixa de 10% a 15%. É suficiente em tempos de paz, mas não de guerra. Esta crise estourou todos os nossos cenários de estresse. De longe. Aí todo mundo buscou liquidez. Os fundos foram obrigados a vender papéis, mas ninguém queria comprar, não tinha preço. Os bancos então deram liquidez comprando esses papéis. É como enterrar cano, ninguém vê, mas tem efeitos concretos na economia.


Míriam Leitão: Tesouro Nacional tenta limitar o uso do dinheiro do contribuinte

 

O secretário do Tesouro deu um recado importante. Mansueto Almeida sabe que tem que ampliar o gasto. Mas ele alerta para o limite do setor público. Em entrevista ao “Estado de S. Paulo”, ele disse que a “pandemia não pode virar uma farra fiscal.” A iniciativa privada também tem um papel a desempenhar na recuperação da economia.

O secretário não joga na retranca. Ele foi a primeira pessoa da equipe econômica a ter noção do tamanho da crise, e de que seria preciso mudar a meta fiscal e aumentar o gasto. Mansueto tenta separar o oportunismo do gasto excessivo e focar nas despesas necessárias. Não pode faltar dinheiro para a Saúde, ele lembra na entrevista.

O Tesouro participa agora de operações que não faria em situações normais. Uma delas foi a articulação para a chamada Fopas, aquele financiamento para a folha de pagamentos de pequenas e médias empresas. Por dois meses, o Tesouro vai emprestar R$ 36 bilhões dos R$ 40 bi do programa, o restante será complementado pelos bancos. Em tempos normais, o Tesouro não faria isso.

Mansueto lembra que o Tesouro vai deixar de receber recursos como se planejava. O adiamento do PIS/Pasep, Cofins e contribuição patronal pagos pelas empresas tiram R$ 100 bi dos cofres públicos nesse momento. E não se sabe se as empresas, logo depois da crise, serão capazes de pagar o imposto atrasado. É possível que haja um tempo de carência para a volta desse recurso. Haverá queda dos royalties de petróleo, que diminuíram com a queda do barril. Com a queda na atividade, o Tesouro vai perder essa e outras receitas.

Mansueto tem noção do papel das instituições e da democracia, com respeito pelo Congresso e pela Justiça. As intervenções dele são sempre para contribuir com o diálogo. Semana passada, o presidente do BB disse que os governadores gastam com o dinheiro alheio. As repórteres Adriana Fernandes e Idiana Tomazelli perguntaram na entrevista para o “Estadão”. Mansueto disse que não sabia exatamente o que foi dito, mas disse que não há recursos de A ou de B, o que existe é o dinheiro do contribuinte. O secretário tem a noção clara, que o presidente do BB não tem, de que qualquer gasto do governo é feito com dinheiro do contribuinte ou é financiado com emissão de dívida em nome do pagador de imposto.

Mansueto se preocupa como será feita a recuperação da economia. O Tesouro não é um cofre sem fundo. A questão é até que ponto o Tesouro, por exemplo, pode usar o dinheiro para dar aval a empresas privadas. Nessa crise, os bancos tiveram aumento grande da liquidez, mas não querem emprestar, ou emprestam com juros maiores porque o risco cresceu. Há agora um movimento para que o Tesouro garanta essas operações do setor privado.

Tem que haver um limite. É preciso que o setor privado, e não apenas o setor público, faça movimentos para ativar a economia. Esse é o recado do secretário do Tesouro no início dessa semana.


Míriam Leitão: O presidente perde poderes

Presidente causa perturbação em meio à grave crise. Ainda assim, Congresso, Justiça, médicos, imprensa, prefeitos e governadores buscam uma saída

O presidente Bolsonaro está perdido em seu labirinto e isso ele mostra explicitamente nos atos do dia a dia. A última semana foi um bom exemplo. No domingo, ele foi às ruas estimular as pessoas a desobedecerem às orientações das autoridades de saúde. Na terça-feira, o conselho de governo, em longa reunião, conseguiu polir o pronunciamento que ele faria à noite. Amanheceu na quarta disposto a derrubar a obra dos seus conselheiros e postou vídeo falso que dizia haver desabastecimento na Ceasa de Minas. Na quinta, ele falou em demitir o ministro da Saúde, cujo trabalho tem alta aprovação popular. Várias vezes atacou governadores e, claro, culpou a imprensa. O presidente é um elemento perturbador no meio de uma crise devastadora.

Desde o início desta crise, Bolsonaro piorou. No episódio em que ele estimulou manifestações contra o Congresso, no domingo, 15 de março, o presidente foi aconselhado por várias pessoas do governo a não fazer isso, principalmente porque o surto do coronavírus estava entrando numa espiral. A uma das pessoas mais fiéis a ele no governo, e que sugeriu que ele desmobilizasse o ato, Bolsonaro deu uma resposta que revela bem o delírio persecutório em que vive mergulhado:

– Eu só tenho as ruas, a mídia quer me derrubar, o Rodrigo quer me derrubar, o Dória quer me derrubar. Eu não posso dizer para as ruas: vão pra casa. Eu preciso das ruas. Eu não estou estimulando, mas eles estão lá e eu abraço eles.

O Brasil estava entrando em período de grande padecimento e o que ocupava a cabeça do presidente era a ideia fixa de que todos são contra ele. E nem vê que as ruas estão se esvaziando. Ninguém é dono da rua, porque ela muda de lado.

Bolsonaro se perde em brigas laterais ou conflitos que ele mesmo inventa. Naquele primeiro pronunciamento em que disse que o Covid-19 era uma gripezinha, ele foi muito aconselhado dentro do Palácio a mudar o tom. Preferiu ouvir o grupo da milícia digital que tem sua sede dentro do próprio Palácio. Ele não apenas falou o que quis como continuou nas declarações rápidas demonstrando até a falta de empatia humana, ao tratar com desprezo as mortes ocorridas e por acontecer em decorrência da pandemia.

O pronunciamento da última terça-feira parecia uma mudança de rumo, mas o que houve de bom naquela fala foi enxertado pelos seus ministros. O objetivo de ir à TV que ele revelou à sua claque na porta do Palácio era disseminar a tese falsa de que o diretor-geral da Organização Mundial da Saúde (OMS) defendia a volta ao trabalho. Corrigido no mesmo dia por Tedros Adhanon, e contido no conselho de governo, Bolsonaro mesmo assim usou indevidamente as declarações do secretário-geral da OMC.

Seu comportamento irresponsável diante da crise o deixa isolado e o torna periférico no seu próprio governo. Ele se consome de ciúmes dos subordinados que brilham. Mas até as decisões que toma para impor limites no seu ministério, como mudar o formato do briefing diário da saúde, está tendo efeito bumerangue. A cada dia se vê ministros indo lá e afirmando o oposto do que o presidente diz. O ministro Eduardo Ramos na sexta-feira agradeceu à imprensa e ao Congresso e disse que tem falado com os estados, o ministro Mandetta várias vezes reforçou a orientação dos governadores, a ministra da Agricultura desmentiu que houvesse risco de desabastecimento.

O Congresso, os economistas, a imprensa, os médicos, os infectologistas, os governadores e os prefeitos empurraram o executivo na direção certa do distanciamento social, da ampliação da rede de proteção social aos mais vulneráveis, do aumento dos gastos com saúde. E agora a sociedade cobra prazos de execução das medidas, principalmente no socorro a quem mais precisa. As ameaças do presidente de determinar a volta ao trabalho estão sendo contidas pelas alertas da Justiça. Se baixar a ordem de volta à atividade, o Supremo impedirá. E isso com base no direito à saúde consagrado na Constituição e no princípio de que saúde pública é atribuição compartilhada entre União, estados e municípios. O país vai se governando. Ao presidente, resta o teatro na porta do Alvorada para uma claque cada vez mais reduzida e os robôs controlados pelo filho 02.

O bonito da democracia é isso: ela encontra seu caminho, mesmo nas piores situações como a que vivemos.


Míriam Leitão: Economia revolvida

Economias de todo o mundo estão sendo reviradas pela crise. No Brasil, a falta de um líder provoca ruídos e aumenta a desconfiança

A economia virou uma grande mesa de negociação entre as partes dos contratos. Lojistas de shoppings fechados há 10 dias negociam com os administradores o não pagamento de taxas, inquilinos avisam aos proprietários que é preciso reduzir aluguéis, lobbies vão a Brasília e entram indevidamente em Medidas Provisórias que tratam de questões urgentes, devedores avisam que não pagarão suas contas, e bancos elevam juros em tempos de maior liquidez. E o dólar só sobe, alterando custos. Economistas de bancos e consultorias refazem cada vez para pior o número do PIB de 2020, o ano que não se sabe como vai terminar.

Glauco Humai, presidente da Abrasce, que representa os shoppings centers, vive uma situação inédita. Os 577 shoppings estão 100% fechados, todos os do Brasil. Ele nem defende a reabertura, porque em contato com os administradores em outros países ouviu que mesmo após a normalização as pessoas não vão. Estão receosas. O consumo de certos itens despenca, de outros, dispara. Combustíveis caíram 60%. Vestuários tiveram recuo de 90% pelo cartão de crédito. Já a compra de alimentos e de remédios cresceu. A BRF viu as vendas para restaurantes despencar e para supermercados crescer. Humai se preocupa é com os projetos estranhos que começam a ser pendurados nas propostas que tramitam em regime de urgência no Congresso:

– Há uma certa descoordenação na condução desta crise, o que leva a um vácuo de poder. E por isso há um sem número de projetos esdrúxulos sendo apresentados: ninguém pode cobrar taxa, não pode cobrar empréstimos, coisas do tipo. Então os esforços para a crise se desviam para combater projetos desnecessários junto ao Congresso e assembleias. Estão dissipando forças que deveriam ser concentradas no enfrentamento da crise da saúde.

Não é aconselhável o estímulo a uma onda de calote, mas ao mesmo tempo os contratos precisam ser revistos de parte a parte no setor privado, usando o bom senso.

– Está complicado, estamos fazendo todo o esforço do mundo para ajudar o lojista, estamos muito sensíveis, principalmente o pequeno e médio lojista. Ele não tem fundo, não tem fluxo de caixa, acesso à crédito porque está dificultado. Nós do setor estamos tomando medidas para ajudar o lojista nesses 30 ou 60 dias de crise mais aguda. Uma coisa é dar isenção do pagamento do fundo de promoção, outra é reduzir o condomínio. Mas têm taxas públicas, como IPTU, que estamos pedindo às prefeituras para adiarem – explicou Humai.

No mundo inteiro as economias estão de pernas para o ar. A Bloomberg Consumer Confort Index, uma pesquisa do sentimento econômico nos Estados Unidos em âmbito nacional, mostrou que nas últimas duas semanas houve a mais forte queda em 34 anos que os dados são coletados. Por isso a discussão sobre o PIB é o que acontecerá depois desse túnel. A recuperação será rápida, em V, como dizem alguns economistas, ou passará por um período de estagnação antes de começar a subir, ou seja, em U?

O economista Vitor Vidal, da consultoria LCA, diz que há indicadores se deteriorando em velocidade nunca vista. A alta do dólar, que ontem bateu novo recorde nominal, em R$ 5,32, tem pressionado o custo do setor industrial e mexido no balanço das companhias, mesmo aquelas que tem baixo nível de endividamento em moeda estrangeira. Os bancos, por sua vez, encarecem os empréstimos, e a taxa dos títulos do governo disparou no último mês. O risco-país voltou para a casa dos 300 pontos, depois de rodar abaixo de 100 pontos no início do ano.

– É muito importante que o país consiga visualizar uma data para se começar a normalização, independentemente de quando isso vá acontecer. Trump falou em 30 de abril e as bolsas subiram. Isso dá alguma previsibilidade. Um lado positivo desta crise é que ela não deve ser tão prolongada quanto a recessão de 2015 e 2016. Por isso, as medidas do governo são tão importantes e precisam ser executadas rapidamente – explicou.

Uma parte do ajuste à conjuntura tem que ser feito através de negociações privadas, mas em momento tão conturbado, com toda a economia sendo revirada, é preciso haver um ponto fixo, uma liderança, uma sensação de que o governo sabe para onde ir e comanda o país. E isso não temos no momento.