Míriam Leitão: A politização da economia

Guedes tem politizado o seu ministério ao se lançar contra adversários do presidente. Deveria ser o ponto de equilíbrio

O pior que pode acontecer no meio de uma crise é a politização do Ministério da Economia. E é o que está acontecendo na gestão de Paulo Guedes. Quando o ministro dispara sua retórica cheia de ofensas aos supostos adversários do presidente, ele está sendo parte do problema e não da solução. A demora na sanção do projeto de socorro aos estados decorre do fato de que o programa passou a ser parte do arsenal na briga contra o isolamento social. Não faz sentido usar isso na queda de braço com os governadores.

As suas frases de imagens fortes e sempre com sujeito indeterminado são feitas sob medida para fortalecer o presidente Jair Bolsonaro na guerra perigosa que ele trava com os estados. “Vamos nos aproveitar de um momento de gravidade, uma crise na saúde, e vamos subir em cadáveres para fazer palanque? Vamos subir em cadáveres para arrancar recursos do governo? ”, disparou ele na sexta-feira, no balanço dos 500 dias de governo.

Ele ajudaria se dissesse de quem está falando. Quem está transformando tudo em palanque, desde o início? Se ele olhasse para o presidente Jair Bolsonaro, acertaria a resposta. O dinheiro não é do governo federal, é dos contribuintes. A dívida, se for contraída, será em nome dos brasileiros. Este é o momento em que necessariamente teria que haver uma solidariedade entre a União e os entes federados que estão na frente de combate contra a pandemia. O Ministério da Economia nestes momentos de crise precisa ser um ponto de equilíbrio comprometido principalmente com seus princípios e pontos inegociáveis.

Há bons quadros técnicos no Ministério que seguem fazendo seu trabalho, mas o ministro tem dado sempre um tom político e exaltado nas suas intervenções públicas, replicando o estilo do chefe. E vamos convir que ninguém precisa pôr mais lenha nesta fogueira que é acesa diariamente por Jair Bolsonaro.

Na questão do congelamento do salário do funcionalismo, ele atirou para todos os lados — Congresso, estados, servidores — e esqueceu, pelo visto, que o grande problema veio do próprio governo. Guedes não conseguiu convencer Bolsonaro de que deveria propor a redução salarial dos servidores federais. Também não conseguiu fazer um projeto próprio de congelamento. Por isso, negociou para que fosse incluída a proibição dos reajustes dentro do projeto do senador Davi Alcolumbre. Mas, para seu desgosto, o próprio líder do governo, falando em nome do presidente, votou a favor de livrar uma lista grande de categorias. Em vez de se voltar contra essa contradição interna do governo, ele ataca. “É inaceitável que tentem saquear o gigante caído, que usem a desculpa da saúde para saquear o Brasil.” Ora, se tivesse unificado a linguagem do governo ele poderia pôr sempre a culpa em terceiros.

Quando foi aprovado o projeto na Câmara, em abril, o presidente Bolsonaro atacou diretamente o deputado Rodrigo Maia. O ministro fez coro. Bolsonaro disse que Maia estava “conduzindo o Brasil para o caos” e que o deputado queria tirá-lo do governo. O ministro poderia ter sido água nessa fervura. Se tivesse negociado antes a proposta da Câmara poderia, quem sabe, evitar a conta em aberto que dizia ser a proposta de compensação das perdas do ICMS e ISS. Guedes preferiu dizer que o modelo era “irresponsável”, um “cheque em branco”, e uma “farra fiscal” e passou a trabalhar para ignorar o projeto no Senado. Rodrigo Maia havia sido o grande aliado para a aprovação da reforma da Previdência. Mas a briga agradava bastante Bolsonaro, que naquele momento disparava contra o presidente da Câmara, até com o velho método de ter sempre um adversário na algibeira.

Há muito o que o Ministério da Economia possa fazer para ajudar a apaziguar o país no meio desta crise, se ele entender que não pode ser parte da artilharia lançada contra os supostos adversários políticos. Ele, como presidente do Confaz, conselho que reúne os secretários de fazenda dos estados, poderia, por exemplo, ajudar nessa interlocução federativa.

Quando, na teleconferência com empresários, pede a eles que usem o fato de serem “financiadores de campanha”, para pressionar o Congresso a apoiar o governo, ou quando participa da caravana do lobby industrial sobre o STF, o ministro vira parte da confusão. O Ministério da Economia precisa ser técnico e saber exatamente quais são seus objetivos na economia.


Míriam Leitão: Bolsonaro entre artigos e incisos

O presidente infringiu artigos da Constituição Federal e da lei do impeachment. Se ele não responder por isso, a democracia se enfraquece

O presidente Jair Bolsonaro cometeu crimes de responsabilidade. Vários. Ele tem ameaçado a federação, tem infringido o direito social à saúde, ameaça o livre exercício do Poder Legislativo e do Poder Judiciário. Tanto a lei que regulamenta o afastamento do presidente, a 1079/1950, quanto a Constituição Federal estabelecem o que são os crimes de responsabilidade. Impeachment é um julgamento político, e quem estiver na presidência precisa apenas de 172 votos para barrá-lo. O inquérito na PGR investiga se ele cometeu outros crimes. Até agora os depoimentos e contradições enfraqueceram a defesa do presidente. O procurador-geral da República, Augusto Aras, pode querer muito arquivar o inquérito, mas os indícios aumentam a cada dia.

Bolsonaro pode enfrentar um processo de impeachment no Congresso, se o deputado Rodrigo Maia der início. Há elementos para embasar um pedido de interrupção de mandato por crime de responsabilidade. O Congresso pode fazer isso ou não. É processo longo e penoso. Mas se não ocorrer, a explicação não estará em falta de crime, mas sim em algum insondável motivo que pertence aos desvãos da política.

O artigo 9º da lei 1079 estabelece em seu inciso 7 que é crime contra a probidade da administração “proceder de modo incompatível com a dignidade, a honra e o decoro do cargo”. Decoro que ele quebrou inumeráveis vezes. No inciso 5, “infringir no provimento de cargos públicos, as normas legais”. O que está sendo revelado no inquérito da suspeita de interferência na Polícia Federal dá várias razões para se concluir que ele tentou ferir esse dispositivo da lei. O artigo 6º caracteriza os crimes contra o livre exercício dos poderes constitucionais. O primeiro inciso fala em “tentar dissolver o Congresso Nacional” ou “tentar impedir o funcionamento de qualquer das Câmaras”. O presidente Bolsonaro já participou de atos que explicitamente pedem o fechamento do Congresso, em faixas e palavras de ordem e nos motivos da convocação. Discursou dizendo que acreditava nos manifestantes e afirmou que as Forças Armadas estavam com eles, em clara ameaça ao país. No artigo 7º, a lei de 1950 define o crime contra o exercício dos direitos políticos, individuais e sociais. Nele, o inciso 9 indica: “violar patentemente qualquer direito e garantia individual.” Nesse ponto se enquadra a violação do direito à saúde, quando ele prega diariamente contra as medidas recomendadas por todas as autoridades sanitárias do mundo e todos os especialistas brasileiros em saúde pública.

No artigo 85 da Constituição Federal são considerados crimes de responsabilidade os atos do presidente que atentem contra: “a existência da União.” Bolsonaro foi do “aqueles governadores paraíba” até a conclamação dos empresários para jogar pesado contra os governadores porque “é guerra”. Isso atenta contra a União. “O livre exercício do Poder Legislativo e do Poder Judiciário”. Com as manifestações pedindo fechamento do Congresso e do Supremo, o que fez Bolsonaro? “O exercício dos direitos políticos, individuais e sociais”. Ele os fere insistentemente.

Mesmo se for arquivado, o inquérito na PGR pode fornecer elementos para sustentar um processo de impeachment. Interferir na polícia judiciária afeta o próprio livre exercício do Poder Judiciário.

A lei 1079/50 foi muitas vezes analisada durante o processo de impeachment da ex-presidente Dilma. Ela foi acusada pelo artigo 10, que define “os crimes contra a lei orçamentária”. A Constituição também, no artigo 85, fala dos crimes orçamentários. Depois que passa, fica na memória pouca coisa, o registro é de que ela errou no Plano Safra, baixou decretos de criação de despesa sem a prévia autorização do Congresso. Mas foi mais. As pedaladas são apenas a palavra que a crônica política criou. Dilma caiu porque arruinou a economia, criou uma recessão que perdurou por dois anos, fez uma escalada de desemprego, abriu um rombo nas contas públicas e usou os bancos públicos para pagar despesas orçamentárias. Ela fez gestão temerária na economia. Eu achava naquela época, acho agora.

Desconhecer os crimes muito mais graves cometidos pelo presidente Jair Bolsonaro é aceitar um perigo infinitamente maior. Não se trata de ameaça à economia. Agora é a democracia que corre riscos.


Míriam Leitão: Erros do general e do procurador

Divulgar o vídeo não é atentado à segurança nacional, como diz Heleno, nem causará instabilidade, como afirma Aras

O general Augusto Heleno diz que a divulgação do vídeo da reunião ministerial seria “quase um atentado à segurança nacional, um ato impatriótico”. O procurador-geral da República, Augusto Aras, usou argumentos políticos — em vez de teses jurídicas — para defender que não seja divulgada a íntegra da reunião. Segundo Aras, poderia provocar “instabilidade pública” e ser usada como “palanque eleitoral precoce para 2022”. O que provoca instabilidade é um presidente criando uma sucessão interminável de crises no meio de uma pandemia. O que ameaça a segurança nacional é colocar vidas em risco com prescrição de medicamentos não comprovados e o incentivo ao descumprimento da recomendação das autoridades médicas do mundo.

O general Heleno comete um erro velho, o de confundir interesses de um governo com os do país. Governo é passageiro, a Nação é permanente. Mentes autoritárias fazem essa confusão. Regimes fechados fazem essa fusão porque assim manipulam o sentimento de amor à pátria para encobrir seus erros. A democracia é diferente. Impropérios na boca do presidente, críticas à China feitas em reunião de governo, ministros bajuladores tentando agradar o chefe — um propõe a prisão dos ministros do STF, outra sugere a de governadores e prefeitos — esconder isso não é proteger a segurança nacional.

Segurança nacional é preservar vidas, e o presidente da República as coloca em risco quando insiste de forma obsessiva com seu plano de decretar a abertura imediata da economia. O mundo está perplexo diante do descaminho no qual o Brasil entrou. Embaixadas começam a receber a orientação de que devem reduzir seu pessoal no Brasil, porque o país está sendo considerado área de risco nesta pandemia, pela maneira insana com que o presidente está conduzindo a resposta à crise. Para Bolsonaro estar certo, o mundo teria que estar errado. A verdade é que ele é o alienista machadiano.

Ontem, Bolsonaro derrubou o segundo ministro da Saúde em menos de um mês, provocando a descontinuidade administrativa na área mais sensível no momento. Quanto tempo se perdeu com os ataques constantes do presidente ao trabalho do Ministério da Saúde? Isso sim é um atentado à segurança nacional. Isso sim provoca “instabilidade pública”.

Alguns perguntam no governo: e se houver crises com a China? Ora, quantas esta administração já criou à luz do dia e no palanque das redes virtuais? A China é o nosso maior parceiro comercial, mas já foi criticada pelo presidente, atacada pelo ministro das Relações Exteriores e ofendida pelo ministro da Educação. Os interesses permanentes do Brasil são de manter relações amistosas com todos os países, mas o que coloca isso em risco não é a divulgação do vídeo da reunião, mas um governo que tem uma política externa desastrada e se deixa guiar por preconceitos e desinformação.

Se o presidente da Caixa se exibiu para o chefe, a quem tenta tanto agradar, dizendo que tem 15 armas e as usaria para “matar ou morrer”, como informa Guilherme Amado, por que isso deve ser segredo? Se Bolsonaro exibiu sua coleção de palavrões dirigindo-a aos governadores do Rio e de São Paulo, por que, em nome da segurança nacional, isso deve ser escondido?

Era uma reunião interna do governo, argumenta-se. Ora, que se comportassem. Com tanta gente presente, as autoridades poderiam moderar-se minimamente. Se preferem esse tom para tratar das graves questões nacionais, são elas, as autoridades, que se amesquinharam. O risco da divulgação não é do país, mas deste governo.

A segurança nacional ficará mais resguardada se o país souber tudo o que houve nessa reunião ministerial e entender completamente o contexto em que o então ministro Sergio Moro se sentiu ameaçado de demissão caso não trocasse o diretor-geral da Polícia Federal.

Os argumentos do procurador-geral são desprovidos de lógica jurídica. Não lhe cabe preocupar-se com prejuízos eleitorais ao presidente. A atitude de defensor do governo é tão forte em Aras que ele assumiu o papel dos estrategistas eleitorais do presidente. E, ademais, quem vive empoleirado num palanque eleitoral precoce é Bolsonaro.

A decisão caberá ao ministro Celso de Mello, mas até agora os pareceres que recebeu não o ajudam a decidir.


Míriam Leitão: Um dia na vida de Bolsonaro

Em reunião com empresários, Bolsonaro tenta atraí-los contra Dória. “É guerra.” Depois ataca Maia. Ele, o suposto gestor da crise

Basta um dia. Um dia é o suficiente para saber que o presidente Jair Bolsonaro é incapaz de gerir a crise dramática que o país vive. De manhã, ele vociferou contra os governadores, logo ao sair do Palácio. Depois, numa teleconferência, aos brados, convocou os empresários a atacarem o governador de São Paulo por manter o isolamento social. “É guerra”, ele diz. Acusou o presidente da Câmara de querer “afundar a economia para ferrar o governo”. O ministro da Economia, Paulo Guedes, reforçou o chefe e pediu que os empresários, “financiadores de campanha dos políticos”, os pressionem. Por fim, baixou uma estranha Medida Provisória que isenta de culpa os agentes públicos nesta pandemia.

– Vai morrer? Lamento, lamento. Mas vai morrer muito, mas muito mais se a economia continuar sendo destroçada por essas medidas (dos governadores) – disse ele logo de manhã.

O lamento dele não tem lamento. Não fala a palavra como quem a sente, o tom é aquele de sempre, voz alterada, como um capitão corrigindo recrutas. Sinceramente é difícil entender – psicólogos devem ser capazes de diagnosticar – uma fala assim sempre colérica. Não há um momento em que o presidente Jair Bolsonaro tenha um tom natural. Ele sempre lança as palavras como quem está atacando o interlocutor:

– O Brasil está quebrando. Vamos ser fadados a ser um país de miseráveis, como tem países da África subsaariana, temos que ter coragem de enfrentar o vírus – disse ainda na fala da manhã, em que avisou aos repórteres que só falaria se houvesse perguntas pertinentes.

E enfrentar o vírus para ele é o quê? É decretar a abertura de tudo, o funcionamento de tudo, mesmo que isso signifique o aumento exponencial do número de mortos e infectados. Certa vez ele disse, num desses brados matinais, que era preciso enfrentar o vírus como “um homem”:

– Um apelo que faço aos governadores, revejam essas políticas, eu estou disposto a conversar. Vamos preservar vidas? Vamos, mas, desta forma, o preço lá na frente será de centenas de mais vidas que vamos perder com essas medidas absurdas.

Era falso que ele estivesse disposto a conversar. Logo depois estava fazendo um violento ataque ao governador João Dória. Reunido em teleconferência com 500 empresários, Bolsonaro disse que eles tinham que pressionar governadores, como Dória. Segundo a sua delirante versão, os governadores estão “tentando quebrar a economia, para atingir o governo”.

– Os senhores, com todo o respeito, têm que chamar o governador e jogar pesado, jogar pesado, porque a questão é séria, é guerra – disse Bolsonaro aos empresários.

Voltou a criticar o Supremo por ter decidido que os estados podem decidir as medidas de proteção que acham mais adequadas:

– O supremo decidiu que cada governador é dono do seu estado.

O ministro da Economia mimou o chefe. Disse que invadiram suas prerrogativas, mas ele aceitou. E depois fez aos empresários um pedido. Dado que eles são financiadores de campanha, que pressionassem os parlamentares para forçar o apoio ao governo.

– Os senhores têm acesso ao presidente da Câmara e ao presidente do Senado. Trabalhem esse acesso para nos apoiar – disse Guedes.

Não houve propostas para o enfrentamento da crise, nem disposição para ouvir todos aqueles empresários que representam setores diferentes. Não houve na reunião nada que lembrasse, nem de longe, o comportamento adequado de um presidente no meio de uma crise.

Ao contrário, ele buscou o conflito. Como sempre. Acusou o presidente da Câmara, sem pronunciar o nome de Rodrigo Maia, por estar querendo “afundar a economia para ferrar o governo”.

Horas depois, ele abraçou Rodrigo Maia, recusando o cotovelo oferecido pelo deputado nos corredores do Palácio. O jogo de cena foi feito para ser filmado e divulgado. Maia contracenou porque quis. Assim, Bolsonaro pareceria um homem de diálogo, afinal, amanheceu falando que estava disposto a receber governadores e terminou abraçando Rodrigo Maia. No meio do caminho disparou artilharia em todos eles.

Na transmissão que faz às quintas-feiras, voltou com a mesma ideia fixa, de que tudo tem que voltar a funcionar. O presidente dedicou seu dia a confrontar governadores, o presidente da Câmara, e tentar fazer um conluio com os empresários para entrarem em sua guerra federativa. Nesse dia, morreram 844 brasileiros de Covid-19.


Míriam Leitão: Bolsonaro é risco ao investimento

Bolsonaro alimenta a fuga de capitais do Brasil, pela capacidade inesgotável de produzir crises. Real é a moeda que mais perde valor

O presidente Jair Bolsonaro eleva o risco de investir no Brasil. A crise da saúde, as turbulências diárias que ele cria, os ataques às instituições democráticas, tudo tem sido colocado na balança pelo investidor estrangeiro, que sairá desta crise com uma desconfiança ainda maior sobre a economia brasileira. O real é a moeda que mais se desvaloriza este ano e ontem o dólar bateu novo recorde nominal. O grau de investimento ficou mais distante, com a perspectiva negativa na nota de crédito do governo pela agência Fitch. O risco-país saiu de 100 para 350 pontos de dezembro para cá. O que diferencia o Brasil de outros emergentes é a capacidade do presidente Jair Bolsonaro de produzir crises políticas constantes.

O dólar disparou 47% este ano, em relação ao real, saindo de R$ 4,01 no dia 31 de dezembro para R$ 5,90 no fechamento de ontem. Na média, explica a economista-chefe do banco Ourinvest, Fernanda Consorte, a valorização sobre as moedas de países exportadores de commodities está em torno de 15%. Ou seja, há um fator de risco que diferencia o Brasil de outros emergentes.
— Tem a recessão da pandemia, que é comum a todos. A queda dos juros, também, porque o BC brasileiro reduziu a Selic, mas outros países também baixaram. O que só existe no Brasil é o componente político. É a queda de braço do executivo com o Congresso, do governo federal com estados e municípios. A demissão do Mandetta, agora do Sergio Moro — explica Consorte.

Em geral, essa é a avaliação feita entre os economistas, a de que o presidente em si, com sua inesgotável capacidade de criar conflitos, até dentro de sua própria administração, é um ponto desfavorável num momento em que há um nítido movimento de aversão ao risco. Com tantas incertezas, o capital corre para título americano, ouro, moedas fortes e sai de mercados emergentes. Para fugir do Brasil há uma razão a mais: o presidente faz uma direção temerária do país em meio a uma pandemia e uma recessão. Houve muita saída de capital externo, principalmente da bolsa, desde o começo do governo, quando ficou claro que ele continuava apostando na polarização extrema. Esse movimento se acentua este ano. No pregão da segunda-feira, saíram R$ 711 milhões, maio já está negativo em R$ 4 bilhões e no ano a saída é de R$ 73 bilhões. A bolsa subiu no ano passado, mas impulsionada basicamente por investidores locais.

Para haver a volta do investimento, só se ocorresse o cenário de retomada da agenda de reformas, com mais protagonismo dos presidentes da Câmara e do Senado, como no ano passado. Outro cenário seria o início de um processo de impedimento do presidente Jair Bolsonaro, que traria instabilidade no curto prazo, mas que poderia desanuviar o ambiente à frente.

— Alguma coisa vai ter que mudar depois da pandemia. Do contrário, não haverá investimento externo. A saída mais extrema, que seria o impeachment, balançaria as estruturas no curto prazo, mas o país passou por isso recentemente e deu certo. Talvez o mercado se acalme porque não será um evento novo — disse Consorte.

A agência Fitch, que na última semana colocou a nota da dívida soberana sob viés negativo, chamou de “volátil” a relação do Executivo com o Congresso e afirmou que esses “constantes atritos” reduziram a previsibilidade econômica e as perspectivas de reformas. A dívida bruta do governo vai disparar com os gastos emergenciais para lidar com a crise, e isso significa que o esforço fiscal terá que ser maior do que o projetado no início do governo Bolsonaro. As denúncias de interferência na Polícia Federal, feitas pelo ex-ministro Sergio Moro, “contaminaram” ainda mais o ambiente político, na visão da Fitch.

A imprensa internacional tem feito corrosivos comentários sobre a presidência de Jair Bolsonaro. O jornal “Washington Post”, em editorial, apontou Bolsonaro como o pior gestor da pandemia. A revista “Economist” chegou a falar em “insanidade” do presidente brasileiro. Uma das mais renomadas revistas científicas do mundo, a “Lancet”, escreveu que Bolsonaro é uma ameaça ao combate à Covid-19. O “Financial Times”, em editorial, falou que Bolsonaro está em processo de autodestruição. Toda essa exposição negativa do presidente brasileiro afeta a escolha do local para se investir. O risco Bolsonaro pesa sobre o próprio Brasil.


Míriam Leitão: Uma acusação que avança

As respostas sem sentido de Bolsonaro diante das suspeitas de interferência na PF só aumentam os indícios em torno dele

Todos os indícios mostram que o presidente da República tentou, diversas vezes, inclusive constrangendo publicamente o então ministro da Justiça, interferir na Polícia Federal para que ela servisse aos seus propósitos. O presidente deu várias respostas, todas contraditórias, para tentar se defender dessa acusação que ganha contornos cada vez mais sólidos. O procurador-geral da República, Augusto Aras, tem o poder de arquivar esse inquérito que ele mesmo pediu para abrir, mas quanto mais transparente for cada etapa da investigação mais difícil será dizer que nada de errado aconteceu.

Ontem, ao fim da sessão de exibição do vídeo para procuradores, policiais federais, PGR, o ex-ministro Sergio Moro e o advogado-geral da União, houve duas versões. Quem assistiu disse a jornalistas que era uma prova definitiva da interferência na Polícia Federal, e o presidente , em entrevista mambembe, de cima da rampa no Planalto, negou:

– A preocupação, desde a facada, foi com a segurança minha e da minha família. Em Juiz de Fora, o Adélio cercou meu filho, no vídeo, no meu entender, talvez quisesse assassiná-lo ali. A segurança da minha família é uma coisa, não estou preocupado com a Polícia Federal, a Polícia Federal nunca investigou ninguém da minha família.

É natural que depois de passar pelo que ele passou em Juiz de Fora ele se preocupasse mais com a proteção da família. Nada disso tem a ver com o ministro da Justiça. Bastava falar com o ministro que comanda o Gabinete de Segurança Institucional (GSI), general Augusto Heleno, das suas apreensões. Certamente a segurança seria reforçada para a tranquilidade do presidente.

Mas todo o conflito foi com o então ministro da Justiça, toda a pressão foi para tirar o diretor-geral da Polícia Federal Maurício Valeixo, porque queria outro com quem ele tivesse mais “afinidade”, e o fim último era trocar o superintendente no Rio de Janeiro. Não faz sentido, se a preocupação era a segurança da família.

Dentro do governo argumentam em favor do presidente certas minúcias. Aí é que está. Esse tipo de argumentação de detalhes só mostra a posição de fragilidade em que já se encontra o governo. O argumento de que Valeixo disse que nunca ocorreu interferência enquanto ele estava lá só confirma que Moro e Valeixo foram impedimentos para que Bolsonaro realizasse seu projeto e por isso eles precisaram ser removidos.

Não fica de pé o argumento que Bolsonaro usou ontem de que não falou em “Polícia Federal” durante a reunião. Nem precisava. Se a bronca era sobre Moro, que era o chefe hierárquico da Polícia Federal, de que outro órgão ele estaria falando? E os fatos que se seguiram à reunião do dia 22 mostraram que era isso mesmo que ele queria que acontecesse, tirar um diretor sem qualquer motivo aparente, mesmo que para isso precisasse derrubar um ministro, para assim nomear seu amigo Alexandre Ramagem. E trocar o superintendente do Rio.

Todos os outros argumentos que Bolsonaro usou ontem são sem sentido, como o de que ele poderia destruir a fita. Não poderia. Seria obstrução de Justiça, destruição de prova. Ele estaria muito mais encrencado ainda.

A maneira absurda e criminosa com que Bolsonaro está agindo durante esta crise, que só no dia de ontem matou 881 pessoas, já é motivo suficiente para o afastamento do presidente. Ele não conseguiu entender até este momento, diante de 12.400 mortos, que riscos os brasileiros correm diariamente. Ainda ameaça quem não cumprir seus decretos desprovidos de razão, como o da liberação de academias e salões, e defende a tese de que não precisa ouvir o Ministério da Saúde.

No meio desta pandemia que nos sangra, com uma crise econômica brutal, o país é exaurido em suas forças pelos problemas criados pelo presidente. Tanto a demissão de Mandetta quanto a de Moro foram crises que ele inventou para tumultuar ainda mais a situação do país.

A soma dos indícios que já se acumulam em torno dele mostra que Bolsonaro gastará os próximos meses se defendendo, na PGR ou no Congresso. Suas únicas saídas são a de Aras preparar uma pizza ou de o centrão evitar seu naufrágio. Nesse último caso, nada sobrará da política econômica com a qual o ministro Paulo Guedes defendeu sua eleição junto aos agentes econômicos.


José Casado: Falta governo na pandemia

País desconhece a realidade sanitária nas cidades, de pessoal, leitos e equipamentos na rede hospitalar

Falta governo na saúde. A evidência está na devastação provocada pelo vírus em menos de vinte semanas.

Em dezembro, quando a China confirmava a disseminação, 11 estados brasileiros fechavam 17 hospitais e 30 postos do SUS. Faltou dinheiro, alegaram aos repórteres André de Souza, Marlen Couto e Sérgio Roxo.

Jair Bolsonaro repetia Dilma Rousseff, que presidiu a desativação de 11,5 mil leitos hospitalares — um a cada duas horas —, nos primeiros dois anos e meio. A redução da rede e as greves aumentaram a fila do SUS, única opção para três em cada quatro brasileiros. A imprevidência fez nascer outra fila, a das aposentadorias.

Antes do carnaval, no 28 de janeiro, deputados cobraram um plano federal para a Covid-19. Fez-se silêncio no Palácio do Planalto e na Esplanada dos Ministérios. A prioridade era o corte linear nos gastos.

Quando a “gripezinha” ameaçou o SUS de colapso, em abril, houve uma miríade de promessas: 2 mil novos leitos de UTI, 40 mil respiradores, 44 milhões de testes para Covid-19, entre outras coisas. Até sexta haviam sido entregues 400 leitos de UTI (20% do prometido), 487 respiradores (1,2% ) e, com sorte, maio acaba com 2 milhões de testes (4,5%).

Com menos 17 hospitais no país, o governo resolveu erguer 48 unidades de campanha ao custo de R$ 10 milhões cada. Bolsonaro posou para imagens num deles (220 leitos), em Águas Lindas (GO). Está pronto há semanas, mas continua fechado, assim como o de Boa Vista (88 leitos).

O desgoverno na saúde levou a um apagão de informações. O país sabe o ritmo da inflação a cada dia, mas desconhece a realidade sanitária nas cidades, de pessoal, leitos e equipamentos na rede hospitalar.

Com fila de mais de mil doentes, o Rio vive a agonia da anarquia na pandemia. Possui oito instituições federais de saúde em extrema precariedade. Elas consomem R$ 3,5 bilhões por ano, o equivalente ao custo anual da rede de 66 hospitais estaduais.


Míriam Leitão: O mal avança nas sombras

Riscos ao meio ambiente e aos direitos indígenas aumentam enquanto o país está concentrado na luta contra a pandemia do novo coronavírus

Na calada desta nossa noite em que a dor da pandemia se soma às ameaças do presidente Jair Bolsonaro à democracia, outras áreas correm extremo perigo. Em abril, o desmatamento na Amazônia foi de 406 km2, 64% a mais do que no ano passado, segundo o Deter. Nos quatro primeiros meses, a alta foi de 55,5%. Portarias, MPs, instruções normativas dão forma ao projeto de perdoar grileiros e enfraquecer órgãos ambientais. Terras indígenas são ameaçadas e seus líderes correm riscos. O governo conta com as atenções do país concentradas na crise da saúde para avançar com o projeto de reduzir direitos indígenas e legitimar o ataque ao meio ambiente.

Em mais uma GLO na Amazônia, os militares estão sendo escalados para conter o que tem sido estimulado pelo próprio governo. A operação das Forças Armadas cria uma situação difícil. O Ibama, que já é cerceado, passa a ser subordinado aos militares. Seus quadros técnicos terão que seguir ordens de oficiais que não têm a mesma qualificação e experiência no combate ao desmatamento. Isso num momento em que os servidores que cumprem a lei na fiscalização são punidos. Os que destroem equipamentos, que é a arma mais poderosa para combater o crime, são exonerados.

O ministro Ricardo Salles, enfraquecido, mudou de tática. Agora, trabalha em silêncio. No dia 6 de abril, um despacho do Ministério do Meio Ambiente criou uma ameaça direta à Mata Atlântica. O ato administrativo recomenda ao Ibama e ICMBio que esqueçam a Lei da Mata Atlântica e se guiem pelo Código Florestal, que tem regras mais brandas. Isso na prática cancela multas, desobriga o proprietário de recuperar áreas de proteção permanente e reconhece as propriedades rurais instaladas em áreas de proteção ambiental antes de 2008.

A Lei da Mata Atlântica foi uma conquista de duas décadas de luta no Congresso. Nesse bioma moram 150 milhões de brasileiros e os remanescentes de mata têm sido protegidos principalmente por particulares. Quem preserva ou se esforçou nos últimos anos para cumprir a lei se sente tolo. O que dá certo no Brasil é ser ilegal e esperar pela anistia. O Ministério Público Federal, a SOS Mata Atlântica e a Associação Brasileira dos Membros do Ministério Público do Meio Ambiente entraram com uma Ação Civil Pública contra o despacho de Salles.

A Amazônia é ameaçada diretamente pela MP da Grilagem. A MP 910, em vigor desde dezembro, está para ser votada com várias aberrações. Na primeira versão do projeto, permitia-se regularizar terra ocupada até dezembro de 2018. Na versão mais recente, quem tiver invadido terra até 2014 pode ter título de propriedade. Áreas de até 15 módulos fiscais podem ser regularizadas sem vistoria de campo. Em alguns lugares isso significa até 2.500 hectares. A luta está sendo para reduzir o tamanho da terra que pode ser legalizada sem o poder público conferir. E por fim, a MP estabelece que multa ou qualquer irregularidade não impedem o processo de legalização. Só será impedida a emissão de título de propriedade quando o processo estiver transitado em julgado.

A questão indígena sempre foi tratada com desprezo pelo governo Bolsonaro. Na gestão Sérgio Moro, a Funai foi aparelhada com a nomeação de pessoas totalmente estrangeiras à causa indígena. Nada indica que haverá mudança agora. O Ministério devolveu à Funai 17 processos de demarcação de terras indígenas, alguns já prontos para a homologação. Uma portaria recente da Funai reduziu os poderes do próprio órgão para conter o avanço da grilagem em terras indígenas. Há lideranças sob ameaça, e os criminosos aproveitam a confusão da Covid-19 para praticar seus crimes. No dia 17 de abril foi morto um jovem líder, de 34 anos, Ari Uru-eu-wau-wau, em Rondônia. Ele passou meses sendo ameaçado por grileiros. Ari tinha como foco do seu trabalho denunciar extração ilegal de madeira, ou seja, ele protegia o patrimônio público. Seu corpo foi encontrado na beira da estrada, com sinais de que havia sido arrastado depois de morto. Tinha sangramento na boca e na nuca decorrente de pancada forte na cabeça e a causa da morte foi sangramento agudo. Era pai de dois meninos, de 10 e 14 anos. Nas sombras da pandemia e do ataque de Bolsonaro às instituições, outros perigos rondam o país.


Míriam Leitão: A pequena chance da cartilha Guedes

Bolsonaro seguirá a cartilha de Bolsonaro. Paulo Guedes deveria fixar seus pontos “valeixo”, para demarcar terreno de até onde aceitará ceder

Quando distribui cargos ao centrão, o presidente está voltando ao seu leito natural. Ele foi de nove partidos, todos fisiológicos, antes de chegar à Presidência com o discurso de combate à corrupção. Nenhuma surpresa que ele agora esteja com seu balcão de negócios ativo. O discurso contra a “velha política” sempre foi para inglês ver. A grande dúvida é quais as concessões que serão pedidas ao Ministério da Economia no projeto de blindagem do mandato de Jair Bolsonaro. Terá Paulo Guedes também o seu ponto “valeixo”, ou seja, uma questão que considere inegociável?

O presidente Jair Bolsonaro tem pressionado a Receita Federal para perdoar dívidas tributárias das igrejas evangélicas, chegando inclusive a reunir em seu gabinete o secretário José Tostes, da Receita, com o deputado David Soares (DEM-SP), filho de R.R.Soares, um dos pastores que sustentam o bolsonarismo, e cobrar uma solução, segundo informou o “Estado de S. Paulo”. A igreja dos Soares deve R$ 144 milhões ao fisco. Na equipe econômica o que se diz é que o perdão de dívidas só pode ser concedido através de lei. Não pode ser um acerto entre amigos, como quer o presidente. Os débitos das igrejas são antigos, aliás, nada a ver com a pandemia.

Guedes pode achar que isso não é intromissão, mas qualquer ministro da Economia preocupado com os cofres públicos acharia. Há muitos outros fios desencapados na economia. Esta semana, o ministro conseguiu encapar um: os aumentos futuros do funcionalismo.

Ele queria uma redução de jornada e de salário como aconteceu com o setor privado, ainda que em percentual bem menor. Mas não conseguiu. Não teve força nem para propor o congelamento de salários do funcionalismo federal, então negociou com o senador Davi Alcolumbre para que no projeto de socorro aos estados constasse a suspensão dos reajustes para os servidores estaduais, municipais e, na onda, fosse incluído o funcionalismo federal.

Quando a ideia surgiu no projeto da Câmara, o primeiro telefonema que o relator recebeu foi de um ministro militar, o segundo, de um militar ministro. Pedindo para se excluir as Forças Armadas. Aliás, no dia 5 de maio, o Diário Oficial da União trouxe uma portaria normativa do Ministério da Defesa instituindo a Comissão Permanente de Remuneração dos Militares. Ela terá a prerrogativa de se reunir com o Ministério da Economia para discutir aumentos, vai se reunir sempre antes de se mandar a LDO e o projeto do orçamento. E se propõe, entre outras coisas, a “tornar as carreiras das Forças Armadas competitivas frente a outras alternativas, sejam elas públicas ou privadas” e “prover segurança econômica aos membros da carreira militar, quando do ingresso na inatividade”.

A frase “eu sigo a cartilha de Paulo Guedes” dita pelo presidente terá vida curta. Na noite anterior, o presidente estava instruindo o líder do governo a defender a retirada de categorias da proibição de aumento. Depois, prometeu ao ministro que vai vetar o que defendera.

A verdade é que Bolsonaro seguirá a cartilha Bolsonaro, principalmente agora que está às voltas com ameaças concretas ao seu mandato. Dado a delírios persecutórios, o presidente está vendo concretizarem-se os seus temores. Já mostrou que lutará pelo mandato entregando todos os anéis que carregou nos dedos da mão que prometia praticar uma nova política. O Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (DNOCS) é um clássico do é dando que se recebe. Já foi entregue aos partidos. Mas a lista do centrão é grande e inclui até diretorias de bancos estatais.

Mesmo que Paulo Guedes ache tudo isso normal, há o passo seguinte. Quem nomeia quer defender as políticas do seu grupo de interesse. Os lobbies costumam ter um endereço: o caixa do Tesouro. Na melhor das hipóteses, Guedes passará o tempo jogando na defesa para evitar saques aos cofres públicos. É muito difícil nesse ambiente que o Ministério da Economia consiga tocar algum projeto de reformas estruturantes no pós-pandemia.

O que o ministro da Economia deveria fazer agora é demarcar o terreno com os seus “valeixos”, pontos inegociáveis, concessões que se forem exigidas ele não aceitará. Não adiantará acusar Rodrigo Maia, ou brigar com Rogério Marinho na reunião ministerial. O risco ao seu projeto virá do próprio presidente, Jair Bolsonaro.


Míriam Leitão: Sem medo do impedimento

Jair Bolsonaro nunca foi contra a corrupção e nunca foi um democrata. Mas usou a bandeira que estava em alta e foi eleito dentro das regras da democracia. Os que acreditaram que ele era o melhor antídoto contra a corrupção escolheram o autoengano. Os que apostaram que ele respeitaria as instituições têm provas diárias de que erraram. A elite financeira que o abraçou, os mais escolarizados que foram para a rua por ele, o juiz-símbolo que o avalizou não podem mostrar surpresa. Na escala de valores de certos liberais, mais importante é a promessa de liberdade econômica do que a proteção dos direitos civis. Isso ficou claro na ditadura de Pinochet, quando o Chile enterrava seus mortos e os jovens de Chicago comemoravam o trabalho que faziam na economia.

A pior complicação é agora. Bolsonaro foi eleito na democracia, mas não a respeita e conspira contra ela diariamente. A crueldade extrema do presidente é escalar a tensão institucional quando o país atônito tenta se concentrar no que fazer diante da pandemia que ceifa milhares de vidas. Vivemos uma conjuntura em que o presidente da República torna muito maior o peso que recai sobre nós. Já não basta viver o que vivemos — fechados em casa, assustados, enlutados, hospitalizados — ainda é preciso tolerar um governante infernizando o cotidiano.

Bolsonaro disse que por pouco não houve uma crise institucional. E falou avisando que pode retornar ao confronto e passando a ideia de que só não descumpriu a ordem judicial porque decidiu dar uma segunda chance. O ataque que ele fez ao ministro Alexandre de Moraes foi explícito e ofensivo. O presidente deu um ultimato à Justiça. Depois, na transmissão da noite, disse que tinha feito apenas um desabafo sem ofender ninguém. As instituições brasileiras têm aceitado o desdito diante dos piores ditos. Assim, ele fica sempre impune. Para seus apoiadores ele aparece como vítima, aquele que não consegue governar porque o Supremo não deixa, o Congresso chantageia, a mídia persegue. Apresenta-se como aquele que luta contra “o sistema”. Tudo levando à conclusão de que para bem governar o presidente precisa de super poderes, de um AI-5, como pediram os manifestantes que ele apoiou. Essa é a única ideia na qual Bolsonaro acredita. Fortalecer o “quem manda sou eu”.

Bolsonaro conspira contra a democracia à luz do dia, diante de todos. Alguns líderes políticos pedem paciência, como se ele fosse apenas uma pessoa de maus modos. Não. Ele tem maus propósitos. As Forças Armadas aceitam compartilhar o poder e passam a viver na ambiguidade. Nos 30 anos de democracia, os militares fizeram uma trincheira: defenderiam o período autoritário como necessário. Protegido o passado, eles se dispunham a cumprir suas funções dentro dos marcos democráticos. A atual geração de oficiais generais aceitou o risco de misturar-se ao governo Bolsonaro. O presidente usa a ideia de que as Forças Armadas estão ao seu lado. Alguns fazem críticas ao presidente. Mas só intramuros. Os generais que trabalham diretamente com ele ficam satisfeitos quando conseguem evitar um ato tresloucado. Em seguida ele comete outro. Os militares se confortam com a tese de que seria pior se não estivessem lá. Não notam o que estão avalizando. Garantem que não aceitarão uma “aventura”. Não percebem que estão viabilizando a aventura.

A questão é como proteger a democracia brasileira nessa armadilha na qual o país está. Não há outro caminho que não seja o impedimento. O presidente precisa ser impedido através das leis que regem esse processo, que sempre foi e sempre será traumático, mas já foi usado por muito menos do que o que tem feito Jair Bolsonaro. Nem o Judiciário, nem o Congresso podem ter medo nesse momento. Bolsonaro já cometeu inúmeros crimes de responsabilidade. A lista é longa e os juristas e políticos a conhecem. A ideia de que “não há clima” é muito confortável para todos os que querem eximir-se das responsabilidades que têm.

Se ele não tivesse afrontado as leis tantas vezes, e estivesse apenas atormentando o país com crises diárias no meio de uma pandemia já seria motivo suficiente para se pensar no impeachment. Bolsonaro é um governante que escolheu agravar todas as crises quando o país trava uma luta de vida ou morte.

(COM MARCELO LOUREIRO)


Míriam Leitão: Para evitar uma briga federativa

Projeto do Senado ainda não pacificou o conflito em torno da ajuda aos estados, e o risco é aprofundar ainda mais a crise federativa

A proposta do senador Davi Alcolumbre não pacificou ainda a briga sobre a ajuda federal aos estados e pode ter criado a receita para aprofundar a crise federativa. Desde que foi divulgada, na quinta-feira, tem alimentado os cálculos dos estados, que montam tabelas para saber quanto ganharão ou deixarão de receber. A grande crítica feita é que a fórmula ficou confusa, o que é o caminho para que haja briga entre os estados e entre os municípios. O Senado como a casa da federação não pode fomentar esse conflito.

Governadores e secretários de Fazenda começaram a trocar mensagens com deputados logo na quinta-feira mostrando os defeitos da proposta. Nos R$ 10 bilhões de transferência direta para a Saúde, usando o critério de taxa de incidência, o maior volume foi para o Amapá, estado do senador. A ideia de dividir os R$ 50 bilhões em partes iguais para estados e municípios, passa por cima do fato de que o ICMS arrecada R$ 480 bilhões por ano, e o ISS arrecada R$73 bilhões. Não faria sentido, dizemos críticos da proposta, que a compensação seja do mesmo tamanho para perdas de dimensões diferentes. Olhando-se as fatias para cada estado pelo cálculo per capita — que o Ministério da Economia queria — há um desequilíbrio completo, alguns estados superam R$ 300 por habitante, outros R$ 80.

Contas são feitas e refeitas, mas o temor é que elas alimentem mais desentendimentos, com estados beneficiados pelos critérios defendendo a proposta, e os que se acham prejudicados ficando ressentidos com os outros. Cidades e estados brigando entre si. Câmara e Senado em disputa de queda de braço. Alcolumbre quis evitar exatamente esse cenário quando chamou a relatoria para si no meio da briga entre o ministro Paulo Guedes e o presidente da Câmara Rodrigo Maia. Ele achava que, ao ser ele mesmo o relator, ficaria mais confortável para o presidente da Câmara conduzir a votação do projeto.

A briga foi resultado da falta de diálogo do atual momento. A área econômica não gostou da proposta da Câmara dizendo que era um cheque em branco, porque ela propunha a recomposição de toda receita perdida. Estados e municípios teriam a garantia de que receberiam do governo federal o suficiente para cobrir toda a perda de arrecadação com esses dois impostos. A equipe econômica achou que assim se comprometeria com uma despesa sem valor definido, preocupação que faz todo o sentido, mas a solução poderia ter sido negociada.

O ministro Paulo Guedes escalou acusando o projeto de ser farra eleitoral e pauta bomba. O ambiente ficou ainda mais envenenado com as acusações do próprio presidente a Rodrigo Maia. O governo fora flagrantemente derrotado na Câmara na votação por 431 votos a 70, um resultado que além do mais mostrava sua fragilidade política. Parlamentares ouviram de integrantes do governo que o presidente dera ordem de que não houvesse transferência para São Paulo e Rio de Janeiro. Não sendo possível cumprir tal determinação, o que se tentou foi encontrar saídas que reduzissem a transferência.

O caminho escolhido foi o ministro Paulo Guedes falar diretamente com Alcolumbre e construir uma proposta alternativa. O projeto da Câmara foi deixado de lado. O senador tentou achar um caminho do meio. Nem a fórmula da Câmara — compensação da perda da arrecadação —nem a da Economia, que queria a divisão do dinheiro pelo critério per capita. O senador criou uma fórmula que mistura tamanho da arrecadação, com a quota-parte do Fundo de Participação, e mais o critério per capita. O resultado ficou confuso. Além disso, argumentam os críticos do projeto, esse não deveria ser o momento nem o instrumento de política distributiva. Essa é a hora de atender à emergência sanitária.

Alcolumbre marcou para hoje a primeira votação do projeto, querendo fazer o segundo turno na terça-feira. Depois o projeto volta para a Câmara. Nesse meio tempo ele tenta dialogar com os deputados, principalmente Rodrigo Maia, as adaptações ao projeto para que o texto seja aprovado.

Há uma guerra de números que, por vezes, chega a absurdos com valores que parecem sem lógica e fora da ordem de grandeza. O melhor caminho seria todos se acalmarem para melhorar o diálogo com o Congresso. Os estados e as cidades estão precisando do dinheiro o mais urgentemente possível. Essa é uma calamidade.


Míriam Leitão: Sem bússola no olho do furacão

Desemprego pode ser maior, todos os indicadores do IBGE estão ameaçados por impasse que a direção não consegue resolver

Hoje é dia do trabalho e só se viu até agora a ponta do iceberg do que poderá vir a ser o desemprego no Brasil. O país navega sem qualquer visibilidade no meio de uma tempestade. O mercado de trabalho já está em forte deterioração, e a economia corre o risco concreto de ficar sem indicadores para orientar as políticas públicas em qualquer área. O Caged não está sendo divulgado desde dezembro, e o IBGE dificilmente conseguirá trazer o retrato do desemprego ou dos outros índices econômicos.

A ex-presidente do IBGE Wasmália Bivar acha que a direção do Instituto deveria estar se mobilizando, falando com a sociedade brasileira para superar o impasse que se formou:

– É preciso ir ao Supremo, Congresso, trazer a OAB, fazer seminário virtual, falar com a imprensa, enfim, explicar a todos a necessidade de ter acesso a dados que permitam ao IBGE construir uma nova forma de trabalho.

A pandemia fez com que, em todo o mundo, houvesse a suspensão das pesquisas domiciliares. Wasmália acha que o IBGE está corretíssimo em ter também suspendido para proteger as famílias e a equipe de trabalho. O problema é que em seguida o governo baixou a MP determinando que o instituto tivesse acesso aos dados individuais que teriam que ser fornecidos pelas companhias telefônicas. Por ser uma MP, e pela maneira como foi feita, produziu uma onda de reação. Partidos diferentes, a OAB e outras instituições procuraram o STF, e a ministra Rosa Weber suspendeu o repasse de dados das telefônicas.

– A questão toda foi a forma, uma MP, e que ainda deixou muitas lacunas porque não mostra direito a necessidade dos dados. Era preciso ser explicado para que fosse entendido por todos os usuários do IBGE. Uma MP pedindo acesso a informações individualizadas de todos os brasileiros, de todas empresas, provocou uma reação compreensível, mas era possível ser explicado. O que me surpreende é que vejo os dias passarem e nada ser feito – alerta Wasmália.

Ontem o IBGE divulgou que a taxa de desemprego no trimestre encerrado em março ficou em 12,2%, um aumento de 1,2 milhão de pessoas desempregadas em relação ao trimestre terminado em dezembro. Todo mundo sabia que aumentaria, mas o fato é que houve uma queda em relação ao ano passado. Alguém acha que em março de 2019 o país estava pior? No meio do mês já havia muita paralisação, e a última semana de coleta já teve que ser feita via telefone.

O dado deve estar subestimado, de acordo com o economista Cosmo Donato, da LCA Consultores.

– A redução da população ocupada foi muito mais forte do que o esperado. Com as medidas de isolamento as pessoas ficaram em casa e pararam de procurar emprego. Dessa forma saíram da estatística de desemprego, mascarando o número – explicou.

Os dados mostram o aumento de 1,2 milhão de desempregados na comparação com o último trimestre, e ao mesmo tempo uma queda de 2,3 milhões na população ocupada.

Segundo Donato, o desemprego teria saltado para 13,2% caso a força de trabalho tivesse mantido o mesmo ritmo de crescimento anterior. A falta de indicadores confiáveis será um dos grandes problemas nesta crise. A Pnad é uma pesquisa feita por amostra de domicílio e dificilmente conseguirá ser feita por telefone. O repórter Bruno Villas Boas, do jornal “Valor Econômico”, escreveu sobre isso esta semana.

– As pesquisas do IBGE como um todo, não só as domiciliares, porque as empresas também estão fechadas, não dá para fazer pesquisa de comércio com tudo fechado. O mundo inteiro enfrenta o problema, mas os países buscaram alternativas, e a maioria tem registros administrativos que nós não temos – disse Wasmália Bivar.

O outro termômetro do mercado de trabalho é o Caged, que mede o mercado formal. Mas o indicador não é divulgado desde dezembro. O governo fez uma mudança de método de envio dos formulários, que passou a ser eletrônico, mas as empresas não aderiram a tempo. Com isso, os dados de janeiro e fevereiro foram postergados. Em março, veio a crise do coronavírus, e, com o trabalho remoto, as informações também não foram encaminhadas ao Ministério da Economia.

No meio de uma crise econômica da proporção da que estamos vivendo, o pior que pode acontecer é não ter indicadores. É como navegar sem bússola no meio de uma tempestade.