Míriam Leitão: O crime da desinformação
Ao tentar brigar com números da pandemia, tudo o que o governo conseguiu foi mais desgaste e exposição negativa
Quando os absurdos se tornam frequentes, o risco é perdermos a noção da gravidade. Sonegar informações de mortos e contaminados numa pandemia é crime. Tudo o que o governo Bolsonaro já fez nos últimos dias no Ministério da Saúde — tirar site do ar, divulgar números conflitantes, acusar governos estaduais de superfaturar a morte, desinformar deliberadamente — é abuso de autoridade. É também inútil. Os órgãos de imprensa anunciaram uma parceria inédita, e o Congresso, uma comissão mista especial de acompanhamento do coronavírus. No final do dia, o governo ensaiou um recuo, mas ainda deixou muitas dúvidas no ar. Divulgou dados incompletos, com menos mortes e casos em relação ao que foi apurado pelo consórcio dos jornais.
Democracia busca sempre maior transparência. Ditaduras escondem informações, brigam com os números, quebram termômetros, ameaçam quem informa, mudam metodologias para ver se conseguem fazer os dados corresponderem à versão que lhes convém. Numa pandemia, a falta de informação desorienta pessoas e administradores públicos e pode levar a decisões temerárias.
Numa crise, a comunicação confiável é uma arma poderosa na mão de governantes esclarecidos para ajudar na solução. É parte do tratamento. O Ministério de Saúde comandado por Luiz Henrique Mandetta entendeu isso. Aquelas entrevistas diárias ajudavam a esclarecer e informar. No início da pandemia, com tanto desconhecimento sobre o assunto, foi fundamental e sem dúvida salvou vidas por transmitir o senso de urgência e gravidade. No curto período Nelson Teich, a comunicação ficou mais opaca e o Ministério da Saúde se enfraqueceu. No interinato do general Pazuello, o Ministério da Saúde está sendo desmontado. A briga com os números é parte dessa conspiração.
A ideia que eles tentaram emplacar nos últimos dias no Ministério, de anunciar apenas as mortes confirmadas no dia, tinha vários defeitos. Primeiro e mais importante, deixaria alguns óbitos num limbo, dado que eles também tinham sumido com os dados consolidados. Segundo, interromperia o critério que vinha sendo usado e que era compreendido por todos já. Terceiro, eles mesmos se atrapalharam, como ficou claro na divulgação de dois números totalmente díspares anunciados para as mortes de domingo. Era de 1.382 e caiu para 525. Com manobras assim perde-se credibilidade. Ontem, eles avisaram que haverá novo site, prometeram divulgação de todos os números. O das mortes do dia, o das mortes consolidados no dia, e os dados gerais, acumulados. Tudo isso foi anunciado pelo secretário-executivo substituto, Élcio Franco. Ele ostentava uma caveira na lapela. Alguém deveria avisá-lo que, dadas as atuais circunstâncias, não deveria exibir tal medalha em uma entrevista no Ministério da Saúde.
O recuo de ontem pode não encerrar essa brincadeira trágica com as estatísticas. Foram dias atrasando deliberadamente a divulgação para tentar atingir — como explicou o presidente Bolsonaro — o Jornal Nacional. Tudo o que conseguiu com suas idas e vindas foi mais desgaste e exposição negativa. Há uma velha lei implacável: quem briga com os números acaba sempre perdendo.
É um espanto que o presidente consiga militares dispostos a incendiar o próprio currículo para seguir ordens estúpidas, como as que foram inspiradas em um notório e caricato áulico. O general Pazuello e seus coronéis, que militarizaram o Ministério da Saúde, fazem mal também à imagem da própria corporação à qual integram ou integraram. Sem traço de espinha dorsal se submetem a ordens esdrúxulas desprovidas de qualquer respaldo técnico. Quando a situação melhorar, quando chegar o dia em que vencermos o vírus, graças a quem agiu certo durante essa pandemia e graças sobretudo aos heróis da saúde, nós jornalistas seremos os primeiros a querer noticiar. E desta vez com alegria.
A confusão pode ser só sobre dados, mas não percamos a visão do todo. O que Bolsonaro tem feito durante esta pandemia é terrivelmente desumano. Desde o começo, negar a gravidade da doença, não ser solidário, derrubar ministros da Saúde, prescrever remédios como se médico fosse, atacar governadores e prefeitos, adiar a transferência de recursos para estados e municípios e impor a maquiagem do número de mortes. Bolsonaro sabota a saúde do povo brasileiro, estimula comportamentos temerários e perturba a ordem pública. Ele é o pior governante que poderíamos ter numa crise desta dimensão.
Míriam Leitão: Velho racismo à brasileira
O sentimento de indignação dos negros no Brasil não é cópia. É legítimo, tem raízes locais e números de exclusão e violência
O Brasil é racista. Sempre foi. O racismo é complexo, é durável, produz violência e exclusão. Para permanecer, ele nega a própria existência e diz que a sociedade aqui sempre foi diferente da dos Estados Unidos. Escrevi muitas vezes isso neste espaço no acalorado debate das cotas. Nos últimos anos, uma geração de estudiosos negros tem ajudado a ilustrar esse debate no Brasil com teses, artigos e livros. O sentimento de indignação de pessoas pretas e pardas no Brasil, com a estrutura que os exclui, não é cópia do que acontece nos Estados Unidos. É legítimo, tem razões locais profundas e números aterradores.
Paulo César Ramos ficou em dúvida no ensino médio entre ser soldador e estudar ciências sociais. Optou pelo que parecia mais difícil. Hoje é sociólogo e membro do Núcleo de Pesquisa e Formação em Raça, Gênero e Justiça Racial do Cebrap. Estuda violência policial e movimento negro.
Ao buscar as raízes do movimento negro, seu estudo o levou a 1978. Um comerciante da periferia de São Paulo, Robson Silveira da Luz, foi torturado e morto em uma delegacia do distrito de Goianases no estado. O caso ganhou muita repercussão e houve atos em São Paulo e no Rio que denunciaram o que sempre acontecia no Brasil.
— Houve atos nas escadarias do Teatro Municipal em 7 de julho de 1978, que é a fundação do Movimento Negro Unificado, a mais capilarizada organização. Esse era um dos casos que eu queria reconstituir no projeto de doutorado, mas descobri que havia vários casos emblemáticos. Tive que redirecionar a estratégia da pesquisa, reconstituí 10 casos, e decidi reconstruir o protesto negro contra a violência policial — conta. Esses atos fizeram parte da luta pela democracia.
O sociólogo Mário Medeiros da Silva, professor do Departamento de Sociologia da Unicamp, alerta de cara para que não se incorra no erro muito comum cometido nas comparações entre Estados Unidos e Brasil.
— A primeira coisa que a gente precisa observar e não cometer é o erro de cair no argumento de que há diferença gritante entre o Brasil e os EUA, a ideia de que lá os negros se rebelam e aqui são mais pacíficos. Há 42 anos o Movimento Negro se organizou. Mulheres negras se uniram, como as Mães de Acari, que tiveram filhos mortos pela violência policial. Há uma série de mobilizações, ações, coletivos que tiveram ganhos políticos, agora sob ataque, como a criação da Fundação Palmares. As ações afirmativas são conquistas do Movimento Negro.
Medeiros explica as semelhanças: Brasil e Estados Unidos são sociedades criadas na violência da escravidão, cujas marcas não se apagaram:
— São duas sociedades muito violentas. Tem um problema que a gente precisa enfrentar aqui que é a aparente indiferença e a falta de empatia com a morte de famílias negras. Uma família foi fuzilada com 80 tiros e isso não virou uma grande comoção pública. Temos tido casos de crianças negras que morrem de forma violenta até em casa. O garoto que caiu em Pernambuco. Falta empatia.
No Rio, a morte do menino João Pedro, de 14 anos, foi seguida de outros assassinatos de crianças da mesma forma. O menino Miguel, de 5 anos, em Recife, que morreu quando a patroa, Sarí Corte Real, o deixou no elevador e ainda apertou o nono andar:
— A vida negra no Brasil vale muito pouco. E as pessoas negras morrem duas vezes — diz Medeiros, lembrando o caso da vereadora Marielle, difamada após ser assassinada.
Paulo Ramos acha que este padrão se repete sempre. Uma pessoa negra é morta pela polícia e em seguida seus amigos e familiares precisam provar que ela era inocente. Se a pessoa teve passagem pela polícia, vira, segundo explica, uma espécie de autorização.
No Brasil as estatísticas mostram quem é o alvo principal da violência policial: jovens negros do sexo masculino. Pelo último Atlas da Violência, 75% dos assassinatos são de indivíduos negros. Enquanto a taxa de homicídios de brancos caiu de 37,5 por 100 mil habitantes para 30, entre 2000 e 2017. A de negros subiu de 57,7 para 82.
— Não conseguimos pensar em um projeto democrático de polícia, segurança e poder. Todas as instituições de repressão foram forjadas durante a ditadura — diz Paulo Ramos.
Os números da educação e do trabalho trazem as cicatrizes das inúmeras formas de exclusão das pessoas pretas e pardas no Brasil. Não ver o que salta aos olhos é uma das táticas do racismo à brasileira.
Míriam Leitão: Os desafios e a resistência
Índios fazem isolamento. O desmatamento pode causar novas pandemias. Há resistência contra o desmonte. As ideias de um debate
Os índios estão se afastando das aldeias e entrando mais profundamente na floresta para fazer o isolamento social. Foi o que o fotógrafo Sebastião Salgado contou. O desmatamento pode liberar outros vírus e bactérias que hoje vivem em equilíbrio no ecossistema da Amazônia, por isso, preservar a floresta é proteger a humanidade contra novas pandemias. Foi o que disse o cientista Paulo Artaxo, da USP. Temos o que celebrar na área ambiental: a resistência do ambientalismo, da comunidade científica, da sociedade brasileira. É o que pensa a ex-ministra Marina Silva.
Ontem, eu mediei um debate entre os três aqui no jornal, pelo dia do meio ambiente. Cada um de sua casa, como convém nos tempos atuais. De Paris, Sebastião Salgado está em contato direto com o solo da Amazônia. Ele disse que das comunidades indígenas saem as informações mais precisas do que ocorre na floresta. Perigos imensos rondam os povos indígenas.
— Na terra Yanomami há 22 mil garimpeiros, e eles podem levar a Covid-19, além da destruição ambiental. No Vale do Javari, onde vivem os isolados Korubo, há também os garimpeiros. É conhecido que os indígenas não têm as defesas imunológicas que nós temos. Na Amazônia há a maior riqueza cultural do planeta, mais de 300 tribos que falam quase 200 línguas, há 120 grupos que nunca foram contactados. Pode haver um genocídio — diz Salgado.
Paulo Artaxo disse que há paralelos entre as crises do clima, da perda de biodiversidade e a da Covid-19. Para todas elas a solução está na ciência:
— A extrema-direita não aceita a ciência, a não ser quando é do seu interesse. Essas três crises juntas podem ter efeitos devastadores. O desmatamento da Amazônia tem impacto climático, provoca perda de biodiversidade e cria desequilíbrio num ecossistema que evoluiu por milhões de anos onde há inúmeros patógenos, vírus e bactérias. Eles podem ser liberados, como aconteceu com o ebola na África.
Para enfrentar os três problemas juntos, Artaxo recomenda procurar o desmatamento zero e proteger as populações indígenas, que são os guardiões da floresta. As áreas mais preservadas da floresta são exatamente as terras indígenas.
Marina disse que a sociedade brasileira tem resistido aos constantes ataques ao meio ambiente nos últimos anos:
— Para não ficar apenas nas tristezas, diante do desmonte da governança ambiental por um ministro que conspira contra a sua própria pasta, é preciso lembrar que estava tudo pronto para aprovar a MP da grilagem e ela saiu de pauta, Salles tentou passar sua boiada e mudar a Lei da Mata Atlântica e teve que revogar seu ato. Por isso digo que é preciso celebrar, neste e em outros governos, os momentos em que a resistência venceu — disse a ex-ministra que, no seu tempo no Ministério do Meio Ambiente, criou um plano de combate ao desmatamento que foi mantido mesmo após a sua saída e reduziu em 83% a taxa anual de destruição da Amazônia.
Paulo Artaxo disse que sempre perguntam a ele, em seminários, quando o mundo voltará ao normal. Ele estranha a pergunta:
— Não é normal destruir 10 mil km2 de floresta amazônica por ano, não é normal emitir 48 gigatoneladas de CO2 por ano, não é normal ter sete milhões de carros em São Paulo criando transtornos e fazendo a população respirar o ar insalubre. O aumento da temperatura pode tornar o Nordeste inabitável em poucas décadas. Não existe lockdown para o clima. O normal seria buscar os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável.
Salgado diz que o desmonte que o governo Bolsonaro tem feito ameaça o estado brasileiro. A Funai, que já teve grandes antropólogos na direção, hoje é dirigida por um delegado de polícia. Há outros órgãos sob ataque:
— Temos que evitar a venezuelização do Brasil. Bolsonaro está empregando muitos militares, para dar a impressão de que o Exército está apoiando a extrema-direita, um grupo sectário, mas não está. O Exército é uma grande instituição que está na Amazônia protegendo nosso território e os povos indígenas.
Marina disse que atualmente grupos da sociedade civil estão se unindo, em movimentos como o Juntos, ou Somos 70%, para proteger a democracia. Ela acha que a pandemia mostrou que a nova economia é ainda mais necessária, e que a inclusão tem que ser também digital. Hoje, quem está excluído digitalmente não consegue estudar nem trabalhar.
Míriam Leitão: Economia e o meio ambiente
Mercados fechados, investidores retraídos e perda de patrimônio, esse é resultado da política ambiental do governo Bolsonaro
O meio ambiente e a economia andam tão juntos que hoje deveria ser também o dia da economia. A reconstrução que se viverá pós-pandemia seria mais eficiente, mais pujante, mais atualizada se o objetivo fosse o de fazer a transição para uma outra forma de se produzir com baixa emissão. Nos últimos dias, para mostrar como os dois temas estão juntos, o parlamento holandês decidiu rejeitar o acordo União Europeia-Mercosul e um grupo de deputados americanos mandou uma carta para o USTR, escritório comercial da Casa Branca, avisando que não é possível sequer começar a negociar um acordo comercial com o Brasil porque a imagem do país, no governo Bolsonaro, está ligada à destruição ambiental e ao desmonte das leis de proteção.
Ricardo Salles faz um papel totalmente avesso ao que deveria fazer como ministro do Meio Ambiente. Foi nomeado como se fosse um cavalo de troia. Sua função é desmontar por dentro o Ministério e ele tem se aplicado em executá-la. Nunca tinha ido à Amazônia quando virou ministro e hoje, um ano e seis meses depois de nomeado, sua maior preocupação é com o seu carro blindado. Ontem, teve que dar marcha à ré e revogar o despacho com o qual ele pretendeu revogar a Lei da Mata Atlântica.
Ele sabia que sua canetada era tão grosseira que acabaria perdendo na ação civil pública que estava na Justiça impetrada pela SOS Mata Atlântica, Associação dos Procuradores do Meio Ambiente e pelo MPF. Por isso, revogou o despacho no qual orientava o Ibama a não seguir a Lei da Mata Atlântica e aplicar no bioma as regras do Código Florestal. A Lei é mais protetiva que o Código, entre outras razões porque esse é um bioma muito ameaçado e o ordenamento foi resultado de duas décadas de negociação no Congresso. Com uma canetada ele tentou desmontar esse arcabouço legal. Exatamente como contou na reunião ministerial que era a oportunidade do momento. Argumenta, em sua defesa, que sempre foi a favor da “desburocratização”. Ora, isso não é desburocratizar, é infringir a lei. Disse que irá agora ao STF para saber se o que vale é o Código ou a Lei. A SOS Mata Atlântica avisou ontem que irá até o Supremo também para defender a integridade da Lei.
A carta dos deputados americanos que integram o Committee on Ways and Means, uma espécie de comissão de revisão orçamentária e tributária, foi dirigida a Robert Lighthizer, do USTR, que, recentemente, após uma conversa telefônica com Ernesto Araújo, falou em “intensificar a parceria econômica” entre os Estados Unidos e o Brasil. Os deputados dizem que fazem “fortes objeções a esse acordo”. Nos parágrafos seguintes eles explicam, em resumo, que o governo Bolsonaro tem feito um desmonte da legislação ambiental no país. Que na campanha disse que faria isso, e após eleito está indo da retórica aos atos. Disseram que não é crível que o Brasil adote os padrões de proteção ambiental e trabalhista exigidos por acordos comerciais, como o que os Estados Unidos têm com o México e o Canadá.
É um comitê dirigido por um democrata, mas isso não atenua o fato de que até nos Estados Unidos, país ao qual a diplomacia brasileira escolheu para ser caudatário, não é possível fazer acordo, diante do imenso retrocesso que o Brasil vive na área ambiental. O único passo que havia sido dado na diplomacia comercial de Bolsonaro, o acordo União Europeia-Mercosul, pode dar para trás exatamente pelo aumento do desmatamento.
Salles criticou, em entrevista ontem, os que, segundo ele, “jogam pedra no Brasil”. Ou seja, ele faz aquela confusão comum em mentes autoritárias entre os atos de uma administração e os interesses do país. Um governo que tem o projeto de reduzir proteção ambiental, que estimula o aumento do desmatamento, provocará prejuízos à nação que vão além do comércio. Vai destruir patrimônio natural, com o impacto em perda de solo e água. Vai provocar o fechamento de mercados, e o país deixará de ser visto como um bom local para investimentos. Hoje, todos os grandes fundos têm regras de compliance com exigências ambientais.
Neste Dia do Meio Ambiente o que há a comemorar é a persistência da sociedade civil em conter as investidas do governo Bolsonaro. O recuo de ontem foi em relação à medida que Salles baixou quando pensava que estava todo mundo distraído —“porque a imprensa só fala de Covid” — para tentar passar a boiada. Não passou.
Míriam Leitão: Poucas boas novas no mar da crise
Há algumas notícias favoráveis, e fatos positivos, como a mobilização de pessoas e firmas, mas o governo Bolsonaro aposta na crise
A energia solar ultrapassou a soma da potência instalada das usinas nuclear e a carvão. As indústrias farmacêuticas e de alimentos conseguiram se manter em abril e fechar o mês com produção maior do que março. O dólar, que estava em R$ 5,93 em 14 de maio, chegou ontem a R$ 5,05, queda de 14,8% pela taxa Ptax. É possível encontrar algumas boas novas, mas o avanço do coronavírus continua matando brasileiros, os prefeitos e governadores começam a liberar atividades, alguns com mais cautela, outros de forma impensada, e os infectologistas avisam que ainda é cedo demais.
No mar da nossa crise não há apenas o coronavírus. O governo em si é um problema. Diariamente o presidente cria um estresse com alguém ou alguma instituição. Se fossem só implicâncias, seria possível tolerar, ainda que o normal seria que o executivo fizesse seu papel de coordenar o país para a superação da pandemia. O governo Bolsonaro falhou flagrantemente. Além disso, trouxe de volta para a vida nacional fantasmas exorcizados há décadas. O país se pôs a discutir o significado de um artigo da Constituição, promulgada há 32 anos. O Ministério da Defesa soltou notas sequenciais para dizer que as Forças Armadas são democráticas. Brasileiros se juntam em manifestos pelo Estado de Direito. Como se fosse pouco o nosso padecimento, o governo Bolsonaro levanta o espectro do autoritarismo.
Na economia, ontem foi um dia de comemorações. Há uma interpretação de que o retorno das atividades na Europa está ocorrendo de forma mais rápida do que o imaginado. Ontem, em um seminário online da Febraban, o ex-presidente do Banco Central Ilan Goldfajn, presidente do conselho do Credit Suisse, explicou o clima positivo no mercado como resultado de eventos externos. “Em vários dos países observamos quedas dos casos, contágio e óbitos”. Esclareceu, contudo, que não subscrevia totalmente esse otimismo.
— Estamos no Brasil, não saímos ainda. Não debelamos o aumento dos casos. Tem planos de retorno, mas não fizemos o dever de casa. Estamos pagando o custo de sustentar esse período difícil. E isso num país com dívida alta e espaço fiscal pequeno — disse Ilan, lembrando que também não houve melhora aqui nos “conflitos institucionais”.
Para Ilan, quem decide a recuperação da economia é o vírus, e a capacidade do Brasil de debelar esse vírus mortal:
— É isso que vai permitir sair com tranquilidade para consumir, passear, e o produtor voltar a produzir.
A produção industrial de abril teve um tombo de 18,8% em relação a março, a pior queda em 18 anos, no início da série. Foi até considerado positivo, por incrível que pareça. Primeiro, porque havia uma dispersão enorme de previsões, todas piores, que iam de 20% a 45%. A queda foi menor do que a mediana das projeções, que estava em 32%. Segundo, porque houve setores que conseguiram ter resultado positivo, como a indústria alimentícia, que teve alta de 3,3%, e a indústria farmacêutica, com 6,6% positivo.
Como se viu na divulgação do PIB, o agronegócio continua forte, aumentando as exportações. E, ao contrário do que pensa Ricardo Salles, não é aproveitando a distração da imprensa para passar a boiada. O agro que exporta sabe que tem que seguir as normas ambientais e sanitárias se quiser continuar no mercado internacional.
Um levantamento da Associação Brasileira de Energia Solar Fotovoltaica (Absolar) mostrou que a potência total instalada da fonte — se forem somadas as grandes usinas solares e os pequenos sistemas instalados em residências, comércio, indústrias, produtores rurais e prédios públicos — chegou a 5.764 MW. Se forem somadas as usinas mais poluentes, as que usam carvão, com as usinas nucleares, chega-se a 5.587 MW. No meio da crise que atingiu violentamente o setor de energia, o sol brilha.
O Brasil poderia estar pegando as poucas boas novas e implantando um plano de retomada, com segurança e, quando fosse possível, das atividades da economia. Poderia aproveitar a onda de solidariedade das empresas e a mobilização das pessoas para construir o impulso necessário para a superação.
Mas o país, machucado pela pandemia e abalado pela crise econômica, tem que revisitar batalhas que já venceu, defender valores que já consagrou, rediscutir o que está pactuado há três décadas. O governo abriu o baú dos horrores para lembrar que tudo sempre pode piorar. Que mesmo a democracia não está garantida.
Míriam Leitão: Comércio externo após a pandemia
Pandemia elevará a disputa no comércio internacional. Brasil pode ser afetado pela piora da imagem e os atritos com os chineses
A disputa por mercados será mais intensa no comércio externo após a pandemia, e o Brasil está mal posicionado nesse novo cenário. O país depende da China para manter as exportações de commodities, mas abriu várias frentes de atritos com os chineses. A instabilidade política aumentou a oscilação do dólar, o que dificulta a venda de manufaturados. A desastrosa gestão da crise na saúde afetou a imagem do país, isso pode prejudicar o comércio e certamente reduzirá a intenção de investimentos.
A forte queda da produção industrial em abril cria o ambiente para os pedidos de sempre da indústria. O erro a não cometer é elevar o protecionismo e os subsídios para o setor. Mas é exatamente isso que a indústria já está pedindo.
Até o momento, as exportações brasileiras de produtos industrializados despencaram 23,2% de janeiro a maio, mas a venda de produtos básicos cresceu 8,8% e garantiu o nosso saldo comercial. A OMC estima que o comércio mundial vai cair 32% este ano em volume, mas o Brasil, em maio, conseguiu aumentar as exportações em 2,8% em toneladas. Segundo a pesquisadora associada do Ibre/FGV Lia Valls, isso acontece pelos embarques principalmente de soja e de outros produtos agropecuários para a China.
— O Brasil está mais dependente da China. Em abril, os chineses foram 37% das nossas exportações. Se eles conseguirem implementar um programa grande de testagem (do coronavírus), podem ampliar obras em infraestrutura, o que nos ajuda também com o minério de ferro, além das commodities agrícolas. Não faz sentido brigar com eles — explicou Valls. Em maio, a exportação para a China chegou a 40%.
O presidente da AEB, José Augusto de Castro, diz que o setor industrial mundial vive uma crise intensa pela retração da demanda provocada pelo coronavírus. Isso significa que haverá produtos manufaturados sobrando nas principais economias, e o Brasil terá extrema dificuldade de abrir novos mercados. A alta do dólar, que bateu em R$ 5,90 e poderia aumentar a competitividade, se transformou, na verdade, em instabilidade. O câmbio já voltou para a casa de R$ 5,20.
— Enquanto não estabilizar o dólar, não adianta para o exportador. Além disso, vejo com muita preocupação o combate do Brasil à pandemia, porque afeta a nossa imagem e, em ambiente de maior competição, isso pode significar a perda de um mercado. Com a Argentina, há pouco diálogo entre os dois governos. É cada um por si. E eles são nossos principais compradores de produtos industriais — diz Castro.
O Ministério das Relações Exteriores vive em um universo paralelo. No setor empresarial, ninguém acredita que de lá sairão soluções que abram portas para os produtos brasileiros. Já na Secretaria de Comércio Exterior, saiu Marcos Troyjo, para o banco do Brics, e entrou Roberto Fendt, que foi secretário-executivo do Conselho Empresarial Brasil-China. Por um lado, ele pode melhorar a relação com os chineses, por outro, haverá troca de cadeiras em plena crise.
O consultor Welber Barral, ex-secretário de Comércio Exterior, teme que esteja havendo antecipação de compra de produtos agropecuários brasileiros. Ele diz que em abril aumentou muito a compra de frango do Oriente Médio, por temor de que a pandemia provoque paralisação em fábricas, como aconteceu nos Estados Unidos. Ele também avalia que é um risco para o comércio externo se o Brasil ficar com a imagem de estar sendo displicente no combate à doença.
— Por enquanto, as commodities estão indo bem, mas há muitos países fazendo estoques de alimentos. Carne para o Oriente Médio disparou nos últimos dois meses, muito acima da média de consumo daquela região. Eles têm medo de que em algum momento o Brasil não consiga produzir — disse.
Em abril, mês em que a pandemia acelerou no Brasil, a participação dos manufaturados nas nossas exportações caiu para 22%, a mais baixa desde os anos 70. As exportações totais para Argentina despencaram 51% em maio e para os Estados Unidos recuaram 43%. Já para a China houve crescimento de 35%. Se o Brasil não conseguir entender as alterações no xadrez do comércio internacional, terá ainda mais dificuldade para retomar o crescimento.
O risco neste momento é recriar as velhas fórmulas de subsídio e proteção à indústria. Esse caminho a gente conhece. A conta fica alta para o contribuinte e para o consumidor.
Míriam Leitão: Bolsonaro usa recursos e símbolos
Bolsonaro usa recursos públicos, símbolos das Forças Armadas e o cargo para estimular protesto antidemocrático e fazer campanha fora de hora
O presidente Jair Bolsonaro tem usado recursos públicos e símbolos militares para fazer campanha política. A eleição é só em 2022, mas ele jamais saiu do palanque. A ida a manifestações não é um ato da administração do país, é de um candidato. A armadilha em que o Brasil está é que ele, como presidente, pode requisitar helicópteros para fazer seus deslocamentos, mas teria que ser para o exercício do cargo. Evidentemente ele quer usar isso como símbolo de força e poder para estimular seus apoiadores, tanto que nesse domingo usou não um dos veículos da Presidência, mas da Aeronáutica.
Ele usa esses símbolos deliberadamente. Não é necessário helicóptero entre o Alvorada e o Planalto, pouco mais de quatro quilômetros distantes um do outro, cerca de cinco minutos de carro. Mas ele quis fazer sobrevoos exibicionistas. A bordo, levou o ministro da Defesa, o general Fernando Azevedo, presença absolutamente inconveniente neste momento em que o país está diante de velhos fantasmas de rupturas institucionais que este governo reavivou. O general Azevedo tem dado sinais muito ruins.
A propósito da coluna de domingo, em que o historiador José Murilo de Carvalho disse que “os erros (do governo Bolsonaro) terão a cor verde-oliva”, um oficial general me disse o seguinte: “A imagem das Forças Armadas (do verde-oliva, mas não exclusivamente) foi afetada? Sim. Indelevelmente? Não.” Ele acha que a geração que chegou aos comandos agora aprendeu a conviver com a suposta “dubiedade” do artigo 142 da Constituição. “E saiu-se bem quando confrontada com os antagonismos naturais ocorridos no amadurecimento da democracia brasileira.” É verdade. Saiu-se bem. Até agora.
Os militares que estão no governo costumam minimizar as ameaças que o presidente tem feito às instituições falando em “arroubos” e “figuras de retórica”, ou então que “ele é assim mesmo”. Tomado ao pé da letra, significa que não se deve levar a sério o presidente da República. Para o vice-presidente Hamilton Mourão, na entrevista ao “Valor”, as ameaças que fez na semana passada — de não respeitar ordens judiciais — foram “um desabafo”. A nota do general Heleno, uma “retórica inflamada dos dois lados”.
Cada ato do presidente é filmado e divulgado para a sua rede social. Quem filma? Um servidor público. O helicóptero usado gasta combustível. Onde será debitado? No cartão corporativo secreto da Presidência. Toda a segurança tem que ser reforçada em torno dele no seu contato com os manifestantes. Quem paga todo esse aparato? O contribuinte. Domingo, ele montou cavalo da Polícia Militar. Queria passar a informação de que também as PMs estão ao seu lado.
As manifestações das quais o presidente participa fazem defesa de crimes. Pedem fechamento do Congresso e do Supremo e intervenção militar. A presença dele significa apoio. Os atos estão sendo investigados pela Procuradoria-Geral da República. Em resumo, Bolsonaro usa dinheiro público, símbolos das Forças Armadas e da Polícia Militar, o poder da Presidência para estimular manifestações contra a democracia, manter sua militância estimulada e fazer campanha eleitoral fora do seu tempo.
Os contra o presidente foram para a rua também no domingo. Não é aconselhável aglomeração, mas o presidente tem ido há sete semanas em atos que o reforçam. A resposta viria. Era previsível que haveria confronto. O temor que está no ar é o de que a Polícia Militar, diante de grupos em conflito, não tenha neutralidade. O deputado federal, ex-PM do Rio, Daniel Silveira (PSL-RJ), vice-líder do governo, postou uma mensagem com ameaça explícita. Depois de xingar os manifestantes contra o governo, ele disse que “tem muito policial armado, e um de vocês vai achar o de vocês. Na hora que vocês vierem, e tomar um no meio da testa ou no meio do peito e cair o primeiro…”
Na entrevista ao “Valor”, o vice-presidente Hamilton Mourão disse: “deixa o cara governar”. Bolsonaro não tem governado porque não quer. Ninguém o impede, a não ser ele mesmo. Poderia ter somado as forças políticas na luta contra o inimigo comum, o coronavírus. Mas politizou e escalou. Criou conflitos com governadores, ministros do Supremo, o presidente da Câmara e com seus ministros. Já tirou três nesta pandemia. Ele não quer governar, ele quer o conflito, a agitação e a propaganda. E o faz com dinheiro público.
Míriam Leitão: ‘Os erros terão cor verde-oliva’
Historiador José Murilo de Carvalho vê risco crescente de ruptura no Brasil e avalia que as Forças Armadas já estão atreladas aos erros do presidente
A democracia corre riscos no Brasil? Essa foi a pergunta que fiz para o historiador e escritor José Murilo de Carvalho. Ele respondeu: “Corre.” Era difícil imaginar uma resposta assim tão direta, tempos atrás. “Até o início do ano, o risco era pequeno, mas está crescendo, embora, por enquanto, em ritmo menor do que o coronavírus.” Autor do clássico “Forças Armadas e Política no Brasil”, que acaba de ser relançado, José Murilo acha que dificilmente Marinha e Aeronáutica apoiariam qualquer ruptura da ordem.
Ele não está falando, nem se pensa, em um golpe como o de 1964, que aconteceu em outro contexto histórico, mas acha que o artigo 142 da Constituição tem um “caminho aberto para interpretações conflitantes”. Dos muitos sinais dos últimos dias dados por militares que estão no governo, ele acha que o mais grave foi o episódio do general Augusto Heleno, até porque foi respaldado pelo ministro da Defesa:
— A posição do general Heleno é sem dúvida a que mais preocupa, por deixar a entender uma ameaça de intervenção. Pode, em parte, ser atribuída a seu temperamento, mas a nota que distribuiu no dia 22 de maio é ameaçadora. Pode ser interpretada como referência ao que a Constituição diz sobre o papel das Forças Armadas como garantidoras dos poderes constitucionais, isto é, como superpoder, como corte supremíssima.
A Constituição, explica, diz que as Forças Armadas estão sujeitas à autoridade do presidente da República e acrescenta que elas se destinam “à garantia dos poderes constitucionais”.
— Há aí uma enorme dificuldade: como estar sujeitas a um poder e, ao mesmo tempo, garantir os três? É caminho aberto para interpretações conflitantes e dá margem a declarações ameaçadoras como a do general Heleno. Ele faria a mesma ameaça se fosse para defender o Congresso e o STF contra os ataques do chefe do Executivo? — pergunta o professor.
Ele lembra que na história recente esse é o segundo episódio que tem o Supremo como alvo:
— É irônico. O general Villas Boas fez ameaça na véspera do julgamento de Lula no Supremo. Agora, o general Heleno ameaça o mesmo Supremo por, supostamente, perseguir o presidente.
Esses riscos extemporâneos que aparecem no país lembram uma máquina do tempo que nos tenha levado para mais de meio século atrás. Até porque quem presta atenção nas falas bolsonaristas fica com a impressão que ainda estamos naquele mundo. Para um bolsonarista raiz, qualquer pessoa que discorde do presidente é um “comunista”. O professor trata de pôr o passado onde ele deve ficar, no passado.
— Certamente nada como em 1964. Não temos um dos principais condicionantes de então, a Guerra Fria. O comunismo era na época uma realidade no mundo, com adesões no Brasil, inclusive nas Forças Armadas. Hoje é conto de carochinha. A esquerda, se podemos chamar o PT de esquerda, está desarvorada. Grupos civis armados, como os de Brizola em 1964, hoje despontam entre os apoiadores radicais do presidente. Seria curioso se, para garantir a lei e a ordem, e de acordo com a Constituição, o Supremo convocasse as Forças Armadas para combatê-los.
Se por “ruptura” o deputado Eduardo Bolsonaro está falando em endurecimento do regime, como aconteceu em alguns países como a Hungria, por exemplo, isso teria o apoio dos militares?
— Minha aposta é que não. Marinha e Aeronáutica dificilmente apoiariam tal decisão. São forças mais profissionalizadas. Mesmo o Exército hesitaria. O artigo do general Santos Cruz deve representar a posição da maioria do oficialato. O mais crucial é a posição dos generais que permanecem no governo.
O historiador lembra que no início a presença dos generais não significava que o governo fosse militar:
— Mas a constante alegação do presidente de ter apoio militar está deixando esses generais em posição delicada. Eles são corresponsáveis pelas trapalhadas do governo e agora não haverá mais como evitar que a imagem das Forças seja afetada. Os erros terão cor verde-oliva.
Essa situação de temer pela estabilidade democrática foi criada pela retórica belicosa do presidente nesses 17 meses de governo. A saída seria, segundo ele, “o impedimento”, mas acha que ele está protegido pela pandemia:
— Com a quarentena não há rua, sem a rua não há impedimento.
O país se vê às voltas com velhos fantasmas que o governo Bolsonaro mesmo retirou do armário.
Míriam Leitão: Com que forças conta Bolsonaro?
Presidente atacou de novo as instituições dentro do seu projeto autoritário. Limites têm sido colocados, e ele os testa diariamente
O Brasil está em situação grave. Os militares do gabinete e o ministro da Defesa acham que o presidente Jair Bolsonaro tem razão e só fazem reparos ao tom. Acreditam que, sim, o Supremo Tribunal Federal (STF) está exorbitando de suas funções. Não está, mas a opinião dos militares dos quais se cercou o reforça, e ele então decide escalar e assim fortalece sua militância. Por outro lado, na reforma da Previdência foi feito um grande agrado às polícias militares, com a extensão aos PMs do benefício dado às Forças Armadas: a manutenção da integralidade e da paridade. Isso aumentou o apoio das PMs ao presidente. Bolsonaro ontem fez ameaças ao Supremo e ao ministro Celso de Mello. Quem vai impor limites? Perguntei isso a uma alta autoridade, e ouvi que as instituições já estão impondo limites.
Na visão dessa autoridade, o que os ministros Celso de Mello e Alexandre de Moraes estão fazendo é impondo limites. O plenário do STF tem feito isso também. Câmara e Senado, quando mudam propostas ou rejeitam projetos, estão avisando ao presidente quais são as fronteiras entre os poderes.
— As instituições estão fazendo um risco no chão — disse essa autoridade.
A já tradicional gritaria matinal foi, ontem, mais estridente. Cada palavra foi bem estudada. E a entonação. Quando ele elevou a voz para dizer “Acabou, porra!” estava enviando mensagem à militância. Tudo o que faz ou diz é gravado para ser usado em campanhas ou no seu projeto autoritário. Para esse uso foi gravada a reunião ministerial. O filho 03 foi de novo escalado para ameaçar a democracia. A fala do deputado Eduardo é de que não é uma questão de “se” mas de “quando” acontecerá a “ruptura”. Foi dita na noite da quarta-feira para acalmar a militância de extrema-direita assustada com a operação de busca e apreensão do inquérito das fake news. O projeto de Bolsonaro é este mesmo: a ruptura. Adianta pouco as negativas de que não haverá golpe militar porque as democracias morrem de outra maneira.
O Supremo Tribunal Federal está em duas encrencas. O tribunal aprovou o fim da condução coercitiva do investigado (ADPFs 395 e 444). E se Abraham Weintraub não atender à ordem do ministro Alexandre de Moraes? A segunda encrenca é o início polêmico desse inquérito. Foi aberto de ofício, o ministro Alexandre de Moraes foi nomeado sem sorteio e tropeçou no início com a censura à revista “Crusoé”. Ao longo do tempo, contudo, o processo ganhou relevância política, não porque mirou a direita, mas porque está investigando indícios de crime.
Os próprios militares que estão no governo não defendem o que um deles definiu para outro alto integrante do poder como “milícia digital”. Mas o presidente colocou toda a força da presidência para defender exatamente essa milícia digital, investigada pelo Supremo. “Com dor no coração ouvi aqueles que tiveram a sua casa violada,” disse o presidente. “Essa mídia social me trouxe à presidência.”
Bolsonaro está deliberadamente fazendo uma confusão entre liberdade de expressão e o crime de divulgar fake news, caluniar, difamar, organizar-se para atacar através de robôs, contratar empresas de disparos em período eleitoral, financiar manifestações antidemocráticas. É isso que está sendo investigado. O grande desafio da democracia é criar antídotos contra esses ataques às instituições. O Congresso também prepara uma lei dura para evitar o uso criminoso das mídias sociais. As próprias plataformas estão estabelecendo normas. Não é ameaça à liberdade de expressão. O presidente sabe disso.
Ele está claramente querendo intimidar o Judiciário. Por efeito bumerangue, conseguiu aumentar a união dentro da Corte, como se viu no curto e claro discurso do ministro Luiz Fux, avalizado por Dias Toffoli, em defesa de Celso de Mello. Bolsonaro acredita que neutralizou o Ministério Público com a nomeação de Augusto Aras, a quem ofereceu ontem publicamente o cargo de ministro no STF. Acredita que consegue o apoio das Forças Armadas, pelas vantagens que deu aos oficiais, e que tem o respaldo das PMs, pelo ganho dado aos policiais militares.
Durante a tarde, enquanto Bolsonaro conversava com o presidente do Senado, Davi Alcolumbre, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, mandou o recado:
– É bom dialogar, mas é bom ficar claro que nós vamos continuar reafirmando que a nossa democracia é o valor mais importante do nosso país e as instituições precisam ser respeitadas.
Bolsonaro tentará ignorar recados e passar por cima dos limites.
Míriam Leitão: Tortuosas falas do time econômico
Equipe econômica mostrou aderência aos valores distorcidos e aos maus modos do governo. Não é uma ilha de racionalidade no meio desta crise
A equipe econômica se saiu muito mal na reunião ministerial. O ministro Paulo Guedes colocou a economia a reboque do projeto da reeleição, e os presidentes do Banco do Brasil, Caixa e BNDES fizeram triste figura. Rubem Novaes, totalmente fora do rumo, disse que o pico da pandemia já havia passado, Pedro Guimarães deu um show de servilismo, Gustavo Montezano disse duas vezes que subscrevia as palavras de Ricardo Salles, que havia proposto solapar as leis, aproveitando o foco da imprensa na Covid-19. Roberto Campos mostrou que se sente à vontade em reuniões de governo, que nada têm a ver com o papel do Banco Central.
O mercado ontem comemorou com alta na bolsa e queda do dólar porque avaliou que não houve nada demais na reunião. A visão míope e imediatista dos operadores já é conhecida. Ontem o “Financial Times” trouxe na primeira página uma matéria corrosiva sobre o presidente Jair Bolsonaro e os destinos do Brasil. O “FT” é formador de opinião no mundo dos grandes investidores. Na reunião, a equipe econômica mostrou aderência aos valores distorcidos e aos maus modos do governo. Não é uma ilha de racionalidade. E não sabe como tirar o país da crise.
A reunião era para discutir o plano econômico pós-pandemia, que havia provocado ruídos. Paulo Guedes disse que via nele “as digitais” de Rogério Marinho, que em resposta pediu o abandono dos dogmas. O presidente Jair Bolsonaro passou a palavra a Guedes, logo após a apresentação do ministro Braga Netto, dizendo que ele era “o ministro mais importante nessa missão aí”. Mas não arbitrou o conflito que ficou latente entre Guedes e Marinho. Até porque Bolsonaro foi para lá com uma agenda própria, que não era o plano ali discutido, nem a pandemia do coronavírus.
Na primeira fala de Guedes já houve uma parte suprimida, mas da qual se depreende que ele também entrou na teoria da conspiração que culpa a China pela pandemia. “A China (parte excluída) deveria financiar o Plano Marshall.” Sua rejeição ao modelo estatista — que está embutido no Pró-Brasil — poderia ter sido ótima. Mas o argumento que ele usou foi que aquilo iria “destruir a candidatura do presidente, que vai ser reeleito se seguirmos o plano das reformas estruturantes.” E mais adiante Paulo Guedes volta a falar. “Vamos fazer todo o discurso da desigualdade, vamos gastar mais, precisamos eleger o presidente.” Quando a ministra da Agricultura disse que os juros para a produção agrícola eram de 9%, Paulo Guedes então dissertou sobre a natureza do Banco do Brasil — nem tatu nem cobra — e seu destino: “Tem que vender essa porra.”
Apesar da retórica crua, ele nunca encontrou apoio do presidente. Bolsonaro prometeu para depois da reeleição. “Em 2023.” Mas a verdade é que ele não deixou Guedes avançar na agenda liberal. E naquela fala o ministro mostrou que tem uma preocupante visão dos bancos estatais:
— O senhor já notou que o BNDE e a Caixa são nossos, públicos, a gente faz o que quer.
Não faz não. Foi isso que quebrou a Caixa em outros governos. Mas a Caixa tem sido tratada como parte do aparato bolsonarista. Para exibir sua sabujice, Pedro Guimarães prometeu tomar um litro de cloroquina, disse que tinha 15 armas e chamou home office de “frescurada”. Soltou vários palavrões, à moda do chefe. E superou o “nunca antes”, do lulismo, disse que o auxílio emergencial — que é temporário e provocou o tormento das enormes filas — é “o maior programa de inclusão de pessoas da história da humanidade”.
Rubem Novaes disse que falaria como “pessoa que olha os números” e mostrou que confunde oscilação com tendência:
— O tal pico, o tal famoso pico, que gerava tantas preocupações, a minha sensação é de que esse pico já passou.
O presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, defendeu algumas ideias sensatas, mas desafinou quando disse que “a mídia joga medo”, e por isso “a classe mais alta tem mais medo do que a classe baixa, porque tem mais acesso à informação, e informação enviesada”. Se o projeto era um Banco Central independente, na atual gestão ele está perdendo a independência que tinha.
A visão de conjunto da reunião desmonta a ilusão de uma equipe econômica técnica. Ela é política, perdeu seu foco, não tem projeto. Guedes chegou a dizer que “o alerta aí do Weintraub é válido”. Explicou que falava dos “valores”. Que valores?
Míriam Leitão: Ideia de Bolsonaro é inconstitucional
O que pensam sobre as falas de Bolsonaro um ministro do Supremo, um procurador do MPF e um general de alto escalão
A proposta do presidente Jair Bolsonaro de armar a população, na radicalidade que ele defendeu na reunião, se posta em prática, permitiria a formação de grupos armados, milícias, como há na Venezuela, e até uma guerra civil. O mais impressionante era que os oficiais, inclusive um integrante do Alto Comando, na ativa, estivessem vendo isso sem reagir. É inconstitucional a proposta do presidente. O Estado tem o monopólio da força, e ele é garantido pelas Forças Armadas. Bolsonaro quer que pessoas armadas saiam de casa para desrespeitar leis e determinações das autoridades.
Um ministro do Supremo com quem eu conversei ontem considera que essa é a parte mais relevante da reunião, não apenas por ser claramente inconstitucional, mas porque já há precedentes:
— Tem aquele fato anterior de revogação das portarias que permitiam a rastreabilidade de armas, balas e munições de uso exclusivo do Exército. Eles substituíram inclusive o responsável pelas portarias. Se você flexibiliza a rastreabilidade você beneficia os milicianos e grupos marginais. Essa é uma questão que precisa ser olhada com atenção. Já há uma ação do PDT no Supremo.
A Procuradoria-Geral da República (PGR) tinha que tomar alguma providência, na opinião desse ministro.
Um general que eu ouvi acredita que as instituições impedirão que o presidente execute esse seu projeto armamentista. Disse que o presidente não tem o poder de armar a população, porque a legislação não permite, e ele não teria o apoio necessário no Congresso para mudar a lei. O militar acha que o Brasil não tem essa cultura, a não ser “grupos restritos e os marginais”.
— Assim, quando ouço esses arroubos vejo apenas como uma figura de retórica — disse o general, que tem posição de destaque no governo.
O presidente estava naquela reunião estimulando, na minha opinião, um conflito armado dentro do país, a desobediência armada às ordens das autoridades estaduais. Isso pode ser o começo de algo muito perigoso. Na Venezuela, o coronel Hugo Chávez fez exatamente isso para se perpetuar no poder. Armou grupos, os círculos bolivarianos, inicialmente com o argumento de defender a “revolução” que ele dizia representar, depois outros grupos paramilitares foram sendo formados. Hoje, há mais “soldados” nesse exército paralelo do que no oficial. Por outro lado, o chavismo fez uma simbiose com as Forças Armadas, militarizando o governo e dividindo o poder com os oficiais.
Em seguida, enfraqueceu as instituições, como Congresso e Judiciário, e perseguiu a imprensa. O Brasil, no governo Bolsonaro, faz um ensaio claro na mesma direção do chavismo que demoliu a Venezuela. Naquela reunião do dia 22 de abril, o país redescobre, graças à decisão do ministro Celso de Mello, do que é feito o governo. Lá se viu de tudo, desde ministros pedindo prisões de autoridades, ameaças do presidente a quem falasse com a imprensa, até o estímulo à reação armada contra a ordem das autoridades.
Isso causou espanto em integrantes de outros poderes, mas é crescente a impressão de que o procurador-geral da República, Augusto Aras, tentará arquivar o inquérito que investiga se houve tentativa de interferência na Polícia Federal. Entre os meus interlocutores, tenho ouvido que o fato ficou disperso entre as muitas falas do presidente. Um procurador do alto escalão do MPF, no entanto, me disse ontem que é evidente que houve crime naquela reunião. O ponto do ex-ministro Sergio Moro estaria provado naquela fala, recheada de palavrões, em que ele diz que vai trocar sim “o pessoal da segurança nossa” no Rio. Ninguém honestamente pode confundir com a segurança pessoal, pelo contexto, e porque ele fala em proteger filhos e amigos. “Se não puder trocar, troca o chefe dele. Não pode trocar o chefe dele? Troca o ministro e ponto final.” E ele de fato trocou o diretor da PF no dia seguinte para mudar o superintendente no Rio. Ponto final. Era isso que ele queria. Se Aras não quiser ver, é porque não quer fazer seu papel institucional. Perguntei ao procurador que eu ouvi que crime estaria caracterizado nessa fala. “Advocacia administrativa, pelo menos.”
É diante deste fato que o país está: o presidente cometeu crime e faz ameaças à Constituição numa reunião ministerial. Ignorar isso é flertar com o abismo.
Míriam Leitão: A dor coletiva e o desamparo
Visitar os que sofrem em uma tragédia não é um ato simbólico, é parte de bem governar. Bolsonaro negou ao país esse gesto
Um chefe de Estado demonstra sentimento quando o seu povo sofre, vai aos locais onde a tragédia acontece, conversa com atingidos e os conforta. Um governante mantém uma atitude de seriedade quando o país é alvejado por alguma catástrofe. Tem palavras de encorajamento para os que estão na frente da batalha socorrendo os enfermos. O que parece ser apenas protocolo faz parte do conjunto de obrigações da pessoa pública. Isso não resolve o problema, mas impacta muito mais do que se imagina a tomada de decisões. Só tem chance de acertar o líder que entende a dimensão da dor coletiva.
A comunicação de quem governa não pode ser tocada por um miliciano digital. Tem que ter sobriedade e propósito. Não pode ser uma corrida por likes e lacrações. É a expressão do próprio Estado e por isso tem que ser dirigida por pessoas que evitem os ruídos e as agressões, as omissões e os conflitos. Mas nada substitui a palavra do líder, se ela for sincera e tiver relação com os atos praticados.
Ir até o local onde se sofre é a norma de conduta mais elementar que um governante tem que seguir. Não estar presente simboliza desprezo pelos governados. Normalmente, os que visitam o povo em seu sofrimento entendem a urgência da tomada de decisão. A pessoa pública conseguirá dialogar apenas com alguns e ver somente uma fração do que acontece, mas algumas histórias costumam falar por muitas e por isso, ao sair do seu casulo, onde os áulicos lhe dizem que está tudo certo, o governante precisará ter ouvidos para ouvir e aproveitar a chance de ver com os próprios olhos.
O Brasil se acostumou à dor sem consolo. Aceita que o presidente faça piada quando a pandemia mata mais de mil pessoas num mesmo dia. Na piada rimada do presidente — quem é de direita toma cloroquina, quem é de esquerda, tubaína — não há apenas mau gosto. Há perversidade. Na terça-feira em que ele fez a blague houve 1.179 mortes por coronavírus no país. Bolsonaro parece querer exibir a indiferença, como se tivesse orgulho dela.
De vez em quando alguém tenta entender o tamanho do acontecido calculando quanto as mortes representariam em quedas de avião — e vários aviões caem diariamente no Brasil— ou usando métricas de outros desastres, para ter uma dimensão da realidade. Isso é importante para que não se fique anestesiado diante da repetição diária dos eventos. Há gente atrás de cada número, como nos lembra o projeto “Inumeráveis”.
São inumeráveis as dores que atingem as famílias, inumeráveis as aflições de quem teme ser o próximo ou que o mal ameace as pessoas queridas. Inumeráveis as noites mal dormidas no Brasil nestes meses difíceis. Inumeráveis as horas de angústia de quem luta por um leito em hospital. Contudo, seguimos usando números para contar as vítimas de cada dia, e assim dimensionar o sofrimento do país. Cada pessoa é única para os seus. E depois que o registro da perda deixar de ser notícia, a família atingida passará anos carregando as cicatrizes.
O ser humano foi dotado da virtude da empatia. Isso é natural. O sofrimento não precisa ser pessoal, para que cada um o sinta de certa forma e consiga se imaginar na pele do outro. Isso nos fez gregários. Assim nasceram as sociedades, os povos se organizaram, os países foram constituídos. Nessa ideia se inspiram as religiões. A cristã vai além de pedir que entendamos o sofrimento do semelhante. Avisa que é preciso amar o próximo.
O presidente do Brasil nos revela até que ponto pode chegar a insensibilidade ao sofrimento. Se o “E daí?” foi um tapa na cara do país, a piada da cloroquina/tubaína, seguida da gargalhada, no dia dos mil mortos, foi inqualificável. O dicionário da língua portuguesa parece gasto. As palavras andam fracas demais para qualificar o comportamento adotado por Jair Bolsonaro diante da dor dos brasileiros.
Quando tudo isso passar — e tudo isso passará — nós olharemos para trás e não acreditaremos que fomos capazes de tolerar esse tempo extremo. Veremos com espanto o pesadelo coletivo que atravessamos sem o amparo de palavras de conforto de quem o país escolheu para o posto mais alto da administração. Os erros de gestão terão levado muitas pessoas à morte, mas nem poderemos saber que vidas seriam poupadas. Muitos serão os filhos do talvez. Haverá, então, a batalha das versões e é apenas nela que pensa Jair Bolsonaro.