Míriam Leitão: Aflição e orgulho
Um lado do país dá aflição; o outro, orgulho. Vivo a sensação de estar em um país partido, divorciado de si mesmo. Um lado apodrece e tem poder, o outro resiste com força espantosa. Os políticos afrontam diariamente os valores com suas decisões e falas. Mas eu visito escolas públicas que dão certo em locais improváveis, um hospital modelo em pleno desastre do Rio, funcionários públicos que defendem o patrimônio ambiental do país. Tudo é real.
É realidade um governo que conspira em medidas e decretos contra o meio ambiente. É realidade que dois funcionários do ICMbio, Enrique e Dolvane, navegam pelas curvas do Rio Negro em Anavilhanas com paixão e denodo. Confiam que vão ser efetivos em suas ações nos mais de 350 mil hectares do arquipélago fluvial da floresta alagada.
É verdade que recursos públicos são desviados ou mal geridos. E é real a Escola Maria Leite de Araújo, na zona rural de Brejo Santo. O prêmio recebido do governo do Ceará por ser escola Nota Dez foi investido em melhorias decididas depois de reunião com os pais. Uma das mães que entrevistei disse que a escola é como se fosse sua família. Nas horas que passei lá, vi uma cena inusitada: uma criança pulou o muro, mas para dentro da escola. Ele é do turno da manhã, não havia ainda começado o turno da tarde e o portão está fechado. Como mora perto, costuma pular para dentro. Gosta.
O Rio vive a sua mais grave crise em todas as áreas, o ex-governador Sérgio Cabral, preso, o ex-secretário de Saúde Sérgio Côrtes admite que recebeu vantagens indevidas. E foi no Rio que eu passei horas encorajadoras dentro do Instituto Estadual do Cérebro. Andei pelas UTIs que, por respeito aos pacientes, filmamos discretamente, mas pude ver de que classe social eram. Ali estava quem precisa do SUS. Tecnologia de ponta, médicos de excelência e a mesma paixão em todos os funcionários. Fui ao banheiro me vestir para entrar na sala de cirurgia e encontrei uma funcionária que me disse: “tenho orgulho de trabalhar aqui.” Não havia câmara ali, não era entrevista. Ela apenas quis dizer. A mesma paixão que se vê no diretor médico Paulo Niemeyer Filho.
Viajei com um time de profissionais de TV por 42 mil quilômetros, entre maio e outubro, pelo profundo do Brasil. Nessa busca do real da vida do país eu via o poder com ainda mais distanciamento. Era necessário ter um pé em cada realidade, porque o trabalho de acompanhar a conjuntura é incessante, e essa visão dupla mostrava mais profundamente a fratura. Em Brasília, conspira-se contra a apuração e a punição da corrupção que foi flagrada e exposta. No país, muita gente resiste à mais grave crise já vivida em tempos democráticos fazendo o melhor que consegue: produzindo, ensinando, estudando, curando, pesquisando, fiscalizando, plantando.
— Não teria graça só uma escola se destacar e as outras não — diz Gracinha, a diretora da Escola Maria Leite, sobre o compromisso de dar assistência pedagógica a escolas que não tiveram o mesmo desempenho da sua. Ela quer o sucesso compartilhado.
Ao começar a gravar a série História do Futuro, que está indo ao ar na Globonews, as decisões foram: não entrevistar autoridades, ficar longe do poder, não fugir dos problemas mas ir atrás das soluções que estão sendo tentadas. Ver o presente do futuro, os sinais atuais do que pode ser o futuro. O sucesso ensina, fomos visitá-lo.
O sucesso nunca é resultado da ação de uma pessoa só e não tem explicação única. O Ginásio Pernambucano tem algumas das estratégias para enfrentar o abandono e a evasão, problemas que ameaçam tanto os estudantes de ensino médio. Começa o ano letivo e os novos alunos são recebidos na sessão de acolhimento por ex-alunos da escola. Depois, entre as disciplinas, há o Projeto de Vida, na qual os estudantes vão aprender a sonhar e a traçar a estratégia para alcançar os sonhos. Há um esforço deliberado dos professores de infundir autoconfiança nos alunos. E são sete as horas de estudo. Aprendi muito numa roda de conversa com adolescentes. Tudo parece rápido na TV, mas passei horas, às vezes um dia inteiro, em cada realidade que mostro.
Viver os dois lados da realidade brasileira é estar o tempo todo entre a aflição e o orgulho. Tem sido esse o meu cotidiano.
Fonte: http://blogs.oglobo.globo.com/miriam-leitao/post/aflicao-e-orgulho.html
Míriam Leitão: Atalhos no labirinto
Os sindicatos têm razão de tentar se mobilizar em manifestações porque um dos pontos principais da lei é o fim do imposto sindical. Sem o dinheiro fácil, eles terão que mostrar que são efetivos na defesa dos direitos da maioria dos trabalhadores de cada categoria e não donos de cartório. A reforma trabalhista que começa a valer hoje está a uma distância lunar da necessidade, mas tem qualidades.
A CLT foi escrita nos anos 1940 e recebeu ao longo das décadas um cipoal de normas. Nada do que se escreveu na labiríntica legislação do trabalho consegue proteger 40% dos trabalhadores brasileiros que permanecem na informalidade. Se fosse eficiente, ao longo da sua vida longeva, teria conseguido incluir todos os trabalhadores dentro do marco legal. Hoje, dos 90 milhões de brasileiros, 33 milhões têm carteira assinada. Há os funcionários públicos, os trabalhadores por contra própria e uma multidão sem direitos.
A reforma tem alguns pontos positivos e outros obscuros. Empresários do comércio acham que conseguirão agora organizar a um custo menor o trabalho formal nos fins de semana, principalmente em cidades turísticas. Empresas de turismo acham que o trabalho intermitente é perfeito para o setor que tem sazonalidades muito marcadas. O funcionário que quiser sair da empresa não precisa criar o conflito para receber indenização e FGTS porque agora há a demissão consensual, em que o trabalhador recebe parte das verbas rescisórias e 80% do FGTS. Acaba-se assim com os exóticos acordos em que um lado fingia que demitia e o outro lado tinha que devolver a verba rescisória de forma velada e ambos conspiravam para que o trabalhador tivesse acesso ao seu dinheiro no Fundo. Difícil explicar para um estrangeiro tamanha bizarrice.
No mundo, muitos países flexibilizaram e atualizaram suas legislações. Quem fez isso de forma mais inteligente tem menos desemprego. Quem mantém regras rígidas demais permanece com alta taxa de desocupação. As velhas leis não comportam os novos trabalhos, o coworking, o home office, o tempo colaborativo, o mundo digital, o trabalho por tarefa e não pelo expediente.
A nova lei brasileira não teve tanta ambição. Ela não preparou o mundo do trabalho para os novos tempos, apenas criou alguns pontos de flexibilidade. Nesse momento em que há 13 milhões de pessoas procurando emprego sem encontrar e outros milhões em desalento, a possibilidade de criar formas novas de contratar parece promissora.
Mas é preciso não esquecer em que país estamos. No Brasil, o mesmo ministro que quer criar a carteira de trabalho eletrônica que possa ser acessada pelo trabalhador do seu celular é aquele que assinou recentemente a portaria retrógrada sobre trabalho escravo. A mesma construção civil que se prepara para a contratação de empregados pelo trabalho intermitente é a que pediu que a portaria fosse editada.
A Justiça do Trabalho custa, segundo o “Valor” de ontem, usando dados de 2015, R$ 17 bilhões, e a maioria dos juízes abre a conversa com as partes litigantes propondo acordo. Parece louvável, mas o temor da parte que rejeita o acordo é ter um resultado desfavorável. E no fim, como lembra o economista José Márcio Camargo, se o trabalhador está reclamando direitos legítimos ele receberá apenas uma parte deles. Ou seja, a lei é rígida, mas a Justiça acaba flexibilizando os direitos.
A nova lei criou atalhos no labirinto da CLT mas não simplificou a lei porque isso seria uma batalha muito maior do que é possível ser travada num governo curto e impopular. Ela abre possibilidades de que parte da informalidade possa ser absorvida no mercado formal através dos novos tipos de contrato. A nova lei certamente provocará muita confusão porque tem pontos não regulamentados e porque há juízes dizendo que simplesmente não vão levá-la em consideração.
No Brasil, há sindicatos com representatividade e outros de fachada, controlados por grupos, às vezes familiares, por décadas. Mas uns e outros não precisavam fazer esforço algum de sindicalização porque todo trabalhador formal era obrigado a pagar o imposto. A partir de hoje só os primeiros terão condição de sobreviver. Mas no Congresso algumas centrais tramam para que o pagamento compulsório seja recriado.
Míriam Leitão: Os entregadores
Os sete homens fizeram discursos sequenciais em que a palavra mais repetida foi “entrega”. Disseram que vão entregar o que foi prometido por administrações anteriores em exatos 7.439 projetos. Apesar do esforço do governo para construir, com o anúncio de ontem, uma agenda positiva, o que teve destaque foi a ordem de despejo que Aécio entregou a Tasso.
O governo não tem tempo nem dinheiro para entregar o que prometeu nos discursos de ontem do presidente e de seis ministros, mas pelo menos fez uma proposta cuja filosofia é interessante: a de completar obras paradas que se espalham pelo país. Os ministros apresentaram uma coleção de projetos iniciados, alguns há 13 anos, como disse o ministro Bruno Araújo, das Cidades, e disse que o governo vai completá-los. Não iniciar novas obras, mas terminar as antigas.
Isso tem o poder de atrair políticos pelo Brasil afora. Em cada uma dessas obras paralisadas há um grupo de pessoas interessadas. Quem viaja pelo Brasil vê pontes suspensas no ar, duplicações de estradas perigosas que ficaram pelo caminho, puxadinhos de aeroportos mal escondidos atrás de tapumes. Completar o que foi começado é, na maioria dos casos, uma boa ideia. Difícil é combinar isso com a realidade fiscal, administrativa e de governança da administração Temer em seus últimos 13 meses e 20 dias.
O primeiro objetivo que o governo tinha com o anúncio do programa Avançar ele não conseguiu: era o de ocupar com boas notícias, de recomeço de obras, e de investimento, o noticiário do dia. Quem saltou para as manchetes dos portais foi o aliado senador Aécio Neves, pelo golpe dado contra o senador Tasso Jereissati. Com um gesto apenas, Aécio entregou vários recados: que o PSDB não é um partido, é um feudo com dono; que a impunidade subiu-lhe à cabeça; que a proposta de renovação do partido e a autocrítica foram enterradas; que o afastamento do senador, quando ele entrou em apuros por receber dinheiro de um empresário investigado, era puro teatro. Ele era o verdadeiro presidente da tucanolândia, tanto que teve força para destituir o seu suposto substituto e nomear outro para o lugar. Se o partido precisava de mais um sinal de decrepitude, ele foi entregue ontem pelo senador que deveria estar ocupado em explicar as entregas de dinheiro de Joesley Batista feitas através do primo.
O palco montado pelo governo ontem era para dizer em resumo o que o presidente Temer disse: que a crise acabou e que agora o país vai retomar o crescimento. Na narrativa do presidente, seu governo enfrentou um problema há cinco meses, que ele denunciou desde o começo dizendo que era “assim, assim e assado” e que agora “o assado” está aparecendo. Quem assimilou o sentido dessa mensagem ficou assim com impressão de que ele quis dizer que conspiraram contra ele, mas ele descobriu tudo antes. A verdade como se sabe é que ele teve uma conversa de teor indefensável com o empresário Joesley Batista, numa noite do Jaburu, e que se livrou das denúncias com todas as entregas que fez aos grupos de interesse da base do governo.
O argumento usado por Aécio para defenestrar Tasso do posto de presidente do PSDB poderia até ser cômico se estivéssemos em momento de achar graça na política. Disse que Tasso precisava sair do cargo para disputar com seu concorrente em igualdade de condições a presidência do partido. Ou seja, quem está no cargo tem vantagens. E isso dito no partido que inventou a reeleição.
No cenário traçado pelo ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, o governo vai entregar um crescimento de 3% ao fim do ano que vem. Há sinais de melhora da economia, sem dúvida, mas dificilmente isso entregará ao governo a melhora da popularidade. Também há poucas chances de o programa de ontem, de reapresentar um cozido de obras inacabadas, entregar a agenda positiva que o governo quer.
Esse governo permanecerá sob o sinal da crise até o final, tentando, com nomeações como a desta semana para a Polícia Federal, entregar um salvo conduto para os seus integrantes ou aliados fiéis. O problema é que a encomenda desejada talvez não chegue a tempo.
Míriam Leitão: Desfazer o nó
O Tribunal de Contas da União é que definirá que tipo de solução o Banco Central pode aprovar em relação à Caixa Econômica (CEF). Ela precisa de capital para se enquadrar nas resoluções de Basileia. A direção executiva da CEF havia sugerido soluções que não agradaram ao BC e ao Tesouro. Agora se discute uma ideia que terá que ser aprovada pelo Conselho do FGTS, e, depois, pelo TCU.
A proposta é transformar R$ 10 bilhões da dívida do FGTS em capital, tornando o Fundo dono de uma parte do banco. Sendo capital, pode ser mais bem remunerado, mas ao mesmo tempo há mais riscos, afinal pode ter que absorver perdas inesperadas. Por isso terá que ser aprovado pelo credor, no caso o Conselho do FGTS, mas precisa ainda de que o TCU considere que a solução se enquadra nas regras existentes.
Essa consulta informal ao TCU tem se tornado rotina no governo, exatamente para evitar que se crie novos problemas como as pedaladas ou soluções criativas inventadas pelo governo passado e que até hoje estão tendo desdobramentos.
A Caixa já está fora de enquadramento de Basileia, que estabelece parâmetros para a solidez dos bancos, e agora terá ainda que devolver recursos que recebeu do Tesouro de forma pouco usual. Como explicou o “Valor” ontem, as transferências do Tesouro para outros bancos públicos, além do BNDES, no valor total de R$ 39 bilhões, podem ter que ser devolvidas. Não foram declaradas como capitalização, para não impactar as contas do Tesouro, e por isso as operações foram feitas através do que eles chamaram de instrumentos híbridos de capital e dívida. Segundo o jornal, o parecer técnico do TCU é pela devolução desse dinheiro, estabelecendo-se um prazo para haver um cronograma. Falta apenas a discussão em plenário.
A Caixa fica assim numa situação complexa. Tem necessidade de mais capital pelos desequilíbrios provocados pelos erros de gestões passadas. Foi nos governos Lula e Dilma que a Caixa comprou um banco quebrado, o Panamericano, teve que investir em projetos que não deram retorno, como a Sete Brasil, e financiar projetos de empresas hoje envolvidas em investigação de corrupção. Em alguns casos, emprestou com capital próprio, em outros, fez as operações com recursos do FI- FGTS. Acabou sendo so- corrida por recursos transferidos pelo Tesouro mas que não eram oficialmente capitalização. Agora ela tem dois problemas para resolver: cumprir os parâmetros internacionais de solidez bancária e devolver o que recebeu por estas vias criativas.
Pedalar foi fácil, mas tem sido difícil desfazer os nós deixados nas contas públicas. O governo passado criou no Ministério da Fazenda uma usina de criaturas contábeis. Algumas delas foram descobertas. Os empréstimos camuflados dos bancos públicos ao governo, através do pagamento de despesas orçamentárias, levaram ao impeachment da presidente Dilma. Outras operações têm sido desfeitas lentamente, como as transferências do Tesouro aos bancos públicos através desses “instrumentos híbridos de capital e dívida”. O BNDES está devolvendo os recursos. Se o TCU decidir pela devolução também, isso será mais um problema para os bancos, principalmente a Caixa.
A falta de liquidez da Caixa poderá atrasar a recuperação do mercado imobiliário porque o banco financia cerca de 70% das operações do setor no país. O limite para financiamento de imóveis usados foi reduzido para 50%, e dos imóveis novos, para 80% do total. Além disso, linhas mais baratas, como a pró-cotista FGTS, foram suspensas este ano. Até o financiamento do Minha Casa, Minha Vida, voltado para baixa renda, foi atingido.
De um lado, a não devolução dos recursos terá impacto sobre a dívida bruta, que saltou de 52% para 76% do PIB desde 2011. Mesmo com a queda da Selic, o déficit nominal do governo foi de 8,75% do PIB em 12 meses até setembro. Ou seja, se o Tesouro puder reduzir a sua dívida com a devolução dos recursos dos bancos públicos, o gasto com juros será menor. Mas, por outro lado, restringir o poder de financiamento da Caixa irá dificultar a retomada da construção civil, que é um dos setores que mais geram empregos na economia.
As pedaladas criaram dilemas que ainda não foram resolvidos.
Míriam Leitão: Retomada e eleição
O sistema financeiro teve que absorver R$ 200 bilhões de perdas das empresas com a recessão e a Lava-Jato. O crédito às famílias já voltou. No ano que vem, o país passará por momentos de muita volatilidade cambial, mas o BC reduziu de US$ 115 bilhões para US$ 24 bi sua posição nos swaps cambiais e tem enorme volume de reservas. Assim a economia se prepara para a eleição mais difícil desde a redemocratização.
A recuperação da economia será lenta pela natureza da crise. Foi uma recessão de alavancagem, como dizem os economistas. Houve um aumento grande do endividamento das famílias na época do boom, pelos estímulos dados pelo governo. Para quitar as dívidas, o consumo despencou. Neste caso, o padrão é a volta lenta ao nível de atividade. As famílias brasileiras tiveram que fazer o ajuste em situação difícil: a renda caiu, e mesmo assim as dívidas foram reduzidas. Após a desalavancagem, elas voltaram lentamente a aumentar o consumo e a tomar crédito. Há cinco meses cresce o crédito para as famílias. Em relação às companhias, voltará mais devagar, mas pode se normalizar nos próximos dois meses.
Na origem da crise, houve também o endividamento das empresas. Elas foram abatidas pela queda do PIB e enfrentaram ainda o problema do envolvimento das grandes companhias nos casos de corrupção. Grupos empresariais foram à lona, pediram recuperação judicial, acumularam passivos com as multas ou acordos de leniência, e tiveram que enxugar atividades e ativos para continuar operando. Tudo isso provocou, por reflexo, um abalo numa série incalculável de firmas pelo Brasil afora. Alguns economistas temiam que a crise das investigadas da Lava-Jato fosse provocar uma onda de inadimplência e quebras sucessivas de empresas. Uma crise sistêmica. Tudo foi grave, mas a economia conseguiu digerir esse volume colossal de dívidas não pagas.
Na avaliação de quem acompanha com minúcias o que se passa no sistema financeiro, o pior passou e a situação do crédito ao mundo corporativo começa a dar sinais de normalização. Na semana passada a FGV, através do Comitê de Datação dos Ciclos Econômicos, anunciou oficialmente que a recessão, que havia começado em meados de 2014, terminou no fim de 2016. Mas essa recuperação será diferente das outras por estes dois fatores: a recessão teve na sua origem o excesso de alavancagem e houve o fator complicador de empresas estarem envolvidas em escabrosos casos de corrupção. Todas as grandes empreiteiras e a maior empresa de alimentos do país foram apanhadas em atividades criminosas. Além disso, a maior empresa do país, a Petrobras, foi abalada diretamente. Tem sido uma crise tripla: econômica, corporativa e política.
Agora está começando a recuperação. A ideia de que o PIB está subindo porque caiu é uma explicação simplista. Houve acertos na condução da política econômica e muito esforço privado para esse resultado. Os dados têm oscilado, mas a tendência está clara em todos eles: o Brasil recomeça a crescer. Porém, será uma recuperação diferente das outras. Nas duas grandes recessões anteriores, dos anos 1980 e 1990, a alta foi forte. Desta vez, será bem mais difícil.
Uma das razões é a incerteza política. Muitas empresas que têm planos de investir vão esperar um ano antes de realizar os projetos porque dependem do que ocorrerá na eleição do ano que vem. Os bancos estão com liquidez e capacidade de financiar o investimento, mas não haverá demanda porque o grau de incerteza nesta eleição é maior do que nas anteriores. O crédito vai parar de cair em breve, mas as grandes operações devem ficar em suspenso por enquanto.
O ritmo do crescimento no ano que vem será modesto, mas os economistas começam a ter previsões mais otimistas. O governo mandou ao Congresso, embutida no Orçamento, a projeção do PIB de 2%. O Banco Central divulgou seu cenário com uma taxa de 2,2%. Alguns economistas apostam em 2,5% ou até 3%. O país começa a deixar para trás a mais prolongada recessão da sua história, mas será uma saída lenta e sujeita às turbulências políticas dos tempos atuais.
Míriam Leitão: O presidenciável
O ministro Henrique Meirelles sempre sonhou com a Presidência desde que se candidatou em 2002 a deputado. Eleito, pelo PSDB, ele não exerceu um dia de mandato porque foi convidado pelo ex-presidente Lula para a presidência do Banco Central. O presidenciável Meirelles atrapalha o ministro da Fazenda de forma até imediata, porque pode prejudicar a aprovação das medidas para limitar o déficit.
O déficit do ano que vem tem chances de ficar nos R$ 159 bilhões, mas para isso é preciso que sejam aprovadas as medidas que foram enviadas esta semana pelo governo ao Congresso. São políticas que encontrarão a barreira da pressão dos funcionários públicos e da pouca boa vontade dos parlamentares de comprarem essa briga em época em que já se vive um clima de pré-campanha. Se Meirelles for visto como um competidor para os partidos que pensam em lançar candidatos próprios, mesmo da base, haverá menos interesse ainda em aprovar essas medidas.
Os deputados terão que brigar com as muitas categorias de servidores em nome de uma causa abstrata demais: evitar que o déficit supere R$ 159 bilhões. Não é em nome do equilíbrio fiscal, é algo bem menos concreto. Como explicar isso para o eleitor? Agora, um ingrediente a mais se soma ao problema: o fato de que no comando dessas propostas, e da política econômica, está um ministro que diz que sabe que é presidenciável.
O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso foi ministro da Fazenda de um presidente que havia assumido depois de um impeachment, em época de crise econômica, e, com uma boa equipe, montou um plano de saída da crise. A partir dessa base se candidatou e se elegeu. Parece semelhante e não é. O Plano Real criou uma situação que não se repete. As muitas diferenças de estilo, de biografia dos presidentes aos quais serviram, da conjuntura econômica, tornam as situações incomparáveis.
Meirelles enfrentará agora o bombardeio de que é alvo todo candidato, principalmente quando está no governo. Ele tem uma complicação a mais que é a de ter trabalhado para o grupo J&F durante o período em que ficou fora do governo. O perfil publicado pela revista “Piauí”, e escrito pela jornalista Malu Gaspar, coloca mais uma vez essa questão em foco. E ela permanecerá numa corrida presidencial porque precisa ser entendida. Em quatro anos, segundo a reportagem, citando o BuzzFeed Brasil, ele ganhou R$ 217 milhões nas consultorias às empresas privadas. Como se sabe o que ele ganhou em algumas delas, como a Lazard, a KKR, a conclusão é de que ele teria recebido R$ 180 milhões da J&F, holding da JBS. Ele não confirmou nem desmentiu, mas disse à jornalista que é “um valor até pequeno”.
Esse e outros valores serão discutidos. O exato trabalho que executou no grupo encrencado com a Lava-Jato também será analisado com lupa. Isso porque ele admitiu ser presidenciável. Depois soltou uma nota para explicar em que contexto falou nessa questão, mas são muitos os indícios e palavras soltas que revelam que Meirelles permanece com o mesmo sonho que o levou a se candidatar em Goiás.
Meirelles foi um bom presidente do Banco Central, ajudando o governo Lula a estabilizar a economia após o salto cambial e inflacionário causado pela eleição do PT. Durante os oito anos que permaneceu no cargo, várias vezes enfrentou o ataque do partido que estava no poder, mas manteve a condução da política monetária que achava a mais adequada, exigindo ter a independência que pedira ao então presidente quando fora convidado.
Como ministro da Fazenda de Temer, montou uma boa equipe e tem ajudado a melhorar a situação da economia, apesar de a crise fiscal continuar sendo gravíssima. No momento em que ele se coloca como candidato, tudo fica mais difícil, contudo. Nos próximos meses, Meirelles precisa aprovar as medidas para manter o Orçamento dentro dos limites que o governo estabeleceu e reagir às muitas pressões dos políticos por liberações e facilidades na entrada do ano eleitoral. O ministro, em notas nas últimas horas, tem tentado qualificar melhor o que disse. Mas todos os que acompanham a sua vida sabem que ele há anos sonha com a Presidência e pode estar convencido de que o momento é este.
Míriam Leitão: Pontos de azul
Pela primeira vez em mais de três anos, o IBGE fez uma divulgação da produção industrial com todos os números no azul. Os indicadores têm sempre várias leituras, dependendo da comparação que é feita. Mas o dado de setembro mostra alta seja qual for a base. O crescimento foi tímido, apenas 0,2% quando o cálculo é feito contra agosto, mas no acumulado em 12 meses é a primeira alta em 39 meses.
O quadro permanece ruim apesar das notícias positivas colhidas aqui e ali. A crise permanece, principalmente nesse setor, apesar de o país estar saindo devagar, e de forma hesitante, da crise que tem vivido desde 2014. A produção industrial ainda está 17% abaixo do pico e só 5,4% acima do pior momento da recessão, em fevereiro de 2016. A indústria é, e continuará sendo, o segmento da economia onde a crise é mais profunda, porque ela foi a primeira a começar a encolher e há razões estruturais que tem levado à queda da sua participação no PIB.
Toda vez em que se tem expectativa de que a indústria vai engrenar, ela decepciona. Este ano, houve vários meses de crescimento em relação ao mês anterior, mas em agosto caiu 0,7%. A expectativa do mercado financeiro era de crescimento de 0,6% em setembro. E cresceu bem menos. Em períodos de recuperação frágil, como o atual, os números ficam sempre mistos. Alguns vão para o azul em um mês, enquanto outros voltam para o vermelho. Tem sido assim com a indústria.
A alta foi tímida e além disso foi pouco espalhada pelos setores. Apenas oito dos 24 setores que o IBGE pesquisa foram positivos, os outros 16 caíram. Na comparação com o mesmo mês do ano passado, a produção industrial aumentou 2,6%. E nesse cálculo já vinha crescendo há vários meses.
Ontem, a FGV divulgou o índice de confiança empresarial e houve nova alta em outubro, para 90,3 pontos, o maior patamar em mais de três anos, desde abril de 2014. Esse indicador mede a confiança de empresários da indústria, dos serviços, do comércio e da construção. Pelo terceiro mês seguido, houve aumento maior no sentimento de situação atual do que nas expectativas em relação ao futuro. Também melhorou o indicador de emprego previsto, que ficou acima de 100 pontos, o que significa mais empresas pensando em contratações do que em demissões. Isso não ocorria desde novembro de 2014.
Notícias boas estão começando a aparecer na economia quando se analisa qualquer indicador, mesmo na indústria. Ainda assim, não é possível ver a luz no fim do túnel. A indústria encolheu e tende a continuar à deriva por motivos de sempre, nunca enfrentados, como o do peso dos impostos, o custo logístico, a produtividade estagnada. O governo e o próprio setor quando pensam em política industrial defendem proteção, benefícios localizados, barreiras ao produto internacional, remédios tão velhos quanto ineficientes. A indústria só terá futuro se os nossos gargalos forem enfrentados de frente e o país se integrar ao mundo. O projeto insular nunca funcionou.
A produção de bens de capital caiu 0,3%, mas no ano tem crescimento de 4,5%. Mesmo assim, o nível de produção de máquinas e equipamentos, hoje, está mais baixo do que o pior momento de 2008, na entrada da crise financeira internacional. É um sinal claro de que a economia não está investindo.
O grande problema continua sendo a incerteza política e a crise fiscal. É isso que trava os investimentos e impede a queda da “parte longa” da curva de juros. Ou seja, contratos com vencimentos para daqui a 5 ou 10 anos. Enquanto a taxa Selic caiu para 7,5%, os contratos que vencem em 2028 ainda pagam 11% de juros. Isso afeta setores importantes da economia, como a construção civil e o setor imobiliário, explica o presidente da Associação Brasileira das Entidades de Crédito Imobiliário e Poupança (Abecip), Gilberto Duarte.
— Os juros caíram, é verdade, mas para o setor imobiliário o que conta são os contratos de longo prazo. As taxas com vencimento em 10 anos caíram de 16% para 11% desde janeiro de 2016. Não é o mesmo patamar de 7,5% da Selic. É preciso votar as reformas no Congresso e resolver a crise fiscal para que a curva longa caia ainda mais — explicou.
Na indústria, o peso do dever de casa não feito é mais difícil de superar.
Míriam Leitão: Ainda em crise
Treze milhões de brasileiros estão procurando emprego e não encontram. Por incrível que pareça, essa é a notícia boa, porque de março deste ano a setembro caiu em 1,2 milhão o número de desempregados, segundo o IBGE. Mesmo na queda de 13% para 12,4% da taxa de desemprego, em três meses, há pontos negativos, como o aumento da informalidade.
“O mercado de trabalho está em recuperação. Mas qualitativamente ela é muito ruim, com muito trabalho por contra própria e informal. São empregos de menor qualidade”, diz o economista Bruno Ottoni, da FGV.
Na visão do economista, especialista em mercado de trabalho, o ritmo de recuperação do emprego está muito abaixo do necessário para o país sair da crise em que está, até porque os empregos criados são no mercado informal. Os números do IBGE mostraram queda de 810 mil vagas com carteira assinada em relação há um ano e aumento de 1,1 milhão de trabalho por contra própria, no mesmo período. Nem sempre o trabalho por contra própria é precário, porque pode ser o resultado do desejo de empreender. Mas, numa conjuntura como esta, a criação de negócios próprios é, em geral, decorrente das muitas demissões.
A FGV tem projeções de melhora do mercado de trabalho, mas elas foram ficando piores nas últimas revisões. Haverá queda do desemprego, mas será lenta. A Fundação prevê 12,2% no fim deste ano e 11,7% em dezembro do ano que vem. O país chegará ao fim do governo Temer com 12,3 milhões de desempregados, pouco abaixo do nível atual.
Mas, antes de melhorar, piora de novo. É que nós estamos agora em plena temporada de recuperação de vagas no mercado de trabalho. Sazonalmente, o desemprego cai no segundo semestre e volta a subir no começo do ano, quando são dispensados os temporários do comércio e novos profissionais recém-formados chegam ao mercado de trabalho. No começo do ano que vem, segundo Ottoni, o desemprego pode voltar a atingir a marca dos 14 milhões.
Este é um tempo misto de boas e más notícias. Neste momento, há vários indicadores de melhora da economia. A FGV já comunicou oficialmente que o Brasil saiu da recessão. A melhora da atividade econômica normalmente demora a chegar ao nível de emprego. Na conjuntura atual, em que o país vive um grau elevado de incerteza política, a recuperação dos postos de trabalho será mais devagar.
O Banco Central divulgou ontem a ata do Copom deixando a indicação de que os juros vão continuar caindo na última reunião do ano. Ainda que em um ritmo menor. Se caírem 0,5 ponto já será a menor taxa de juros da era do real. Mesmo assim, os juros são altos, principalmente na ponta do tomador do crédito.
Um dado positivo dos números da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios foi o crescimento de 3,9% da massa de rendimento real. Esse indicador é a soma de todos os salários da economia. Em um ano, houve aumento de R$ 7 bilhões, o que ajudará o consumo e também a redução das dívidas das famílias. Se a queda dos juros chegasse à ponta do consumidor, ajudaria bastante essa retomada.
A deterioração do mercado de trabalho foi avassaladora. O país tinha pouco mais de seis milhões desempregados ao fim de 2014. Logo depois começou uma escalada que foi até 14 milhões. De lá para cá, tem caído muito lentamente. Mas os números confundem. O desemprego caiu nos últimos meses. Estava em 13% em junho. Mas quando a comparação é feita contra o ano passado, nesta mesma época, há um aumento do percentual de pessoas desocupadas. Em setembro de 2017 a taxa de desemprego estava em 12,4%, no mesmo período de 2016 era de 11,4%. Pode parecer estranho, mas nesta comparação anual houve aumento do desemprego e elevação de pessoas trabalhando, ao mesmo tempo. É que a população economicamente ativa subiu, com a entrada de novos jovens no mercado.
Toda a comemoração deve ser relativa quando o assunto é mercado de trabalho. Ele permanece em instabilidade. De agora até o final do ano vai melhorar um pouco pelos temporários e pela sazonalidade. Mas o mercado de trabalho continua sendo o maior drama da economia brasileira, apesar de os dados mostrarem o aumento da população empregada.
Míriam Leitão: Contas penduradas
O Orçamento de 2018 chega ao Congresso com fragilidades. As MPs que sustentam parte do esforço fiscal estão sendo enviadas junto com o Orçamento. Se não forem aprovadas ou se forem alteradas, muda a equação, cujo melhor resultado é um déficit de R$ 159 bi. A questão fiscal se agravou muito nos últimos anos, e a melhor medida é a dívida pública, que atingiu 73,9% do PIB. O déficit do INSS bate recordes.
Pelo menos, o cenário econômico que o governo traçou para fazer a previsão das suas contas é positivo e possível. Pelas projeções, a inflação subirá um pouco, mas ficando no centro da meta. Os juros ficarão estáveis na casa dos 7%, e o PIB crescerá 2%, pela avaliação do Ministério do Planejamento, estimativa considerada conservadora pelo próprio ministro Dyogo Oliveira. Claro que num ano eleitoral as incertezas podem provocar turbulências no câmbio, que afetam os juros e a inflação, mas tem chance de ser mesmo um ano de recuperação. O problema é que a incerteza fiscal permanecerá.
O problema foi o governo ter cedido tanto, no tempo e no conteúdo, para satisfazer suas bases. Em agosto, o governo disse que adiaria o pagamento da parcela de 2018 dos reajustes dos servidores. Fora dado pela própria administração Temer, mas teve que ser adiado. Além disso, outra medida anunciada foi a de aumentar a contribuição previdenciária dos funcionários que ganham acima de R$ 5 mil. Avisou que elevaria a tributação dos fundos exclusivos. Também se sabia que o governo iria propor a reoneração da folha. Tudo isso em agosto. Ontem, penúltimo dia de outubro, a equipe econômica não sabia pela manhã como colher a assinatura do presidente nas MPs que teriam que ir junto com o Orçamento. Temer estava de manhã no hospital e só teve alta na hora do almoço.
Essa corrida de ontem é porque o governo deixou as MPs dormindo na Casa Civil, enquanto o presidente e alguns dos seus ministros estavam ocupados em se defender da segunda denúncia na Câmara. E uma das estratégias era não editar qualquer proposta que pudesse incomodar os deputados que votariam pela permanência do presidente. Agora, chegando na reta final do ano, é que o Orçamento foi fechado. E mesmo assim tratando como aprovadas MPs que podem ter oposição no Congresso. Houve concessões como a não privatização de Congonhas. Só isso tirou R$ 5,1 bilhões da receita. Se o presidente tivesse considerado que não podia vender o aeroporto por algum motivo sólido, fazia sentido recuar. Mas foi para atender à pressão de Valdemar Costa Neto, do PR.
O Banco Central divulgou ontem a nota fiscal que deixa mais uma vez clara a situação calamitosa das contas públicas. O déficit do INSS bateu novo recorde histórico: chegou a R$ 178,5 bilhões em 12 meses até setembro, ou 2,75% do PIB. Desde outubro do ano passado o número negativo vem aumentando ininterruptamente. Para se ter uma ideia de como é rápida a deterioração dos números da Previdência, há dois anos, em setembro de 2015, o déficit era de R$ 63,3 bilhões. Houve crescimento de 182% no período.
A dívida bruta subiu mais um pouco, para 73,9% do PIB. Somente em setembro, o déficit primário, sem considerar os gastos com juros, foi de R$ 21 bilhões, muito acima da média dos últimos 13 anos, de R$ 500 milhões, segundo levantamento da consultoria Rosenberg Associados. Nos últimos 12 meses, número negativo em R$ 152,4 bilhões, ou 2,35% do PIB. Mais de um ano após o início do governo Temer, não há nada ainda que indique reversão de tendência nos dados das contas públicas.
O governo chega assim ao último ano deste mandato cheio de turbulências e incertezas, com um impeachment e duas denúncias do presidente que assumiu o cargo. Se alguma das medidas não for aprovada, ou for adulterada no Congresso, o Orçamento ficará inconsistente ou terá que sofrer novos cortes. O esforço agora terá que ser duplo e concentrado: aprovar a peça orçamentária e todas as medidas que a sustentam antes do fim do ano. Tudo poderia ter sido apresentado antes, se a agenda do Palácio do Planalto fosse governar o Brasil em vez de ser defender-se para permanecer no poder.
Míriam Leitão: Mentiras convenientes na era da pós-verdade
Na era da pós-verdade, é bom o retorno a algumas realidades: a ex-presidente Dilma provocou surto inflacionário, recessão e desrespeitou as leis fiscais. Mereceu o impeachment que sofreu. Seu vice foi escolhido por quem formou a chapa e votou nela. Dilma e Temer são frutos da mesma escolha partidária e eleitoral. Criticar um não é apoiar o outro, e vice-versa.
O ex-presidente Lula, que escolheu Dilma sem ouvir o partido, usando seu poder majestático, diz agora que o povo se sentiu traído quando ela fez o ajuste fiscal e quando aprovou as desonerações para as empresas. Está querendo se descolar da ex-presidente, que deixou o governo com baixo nível de popularidade. Como a aprovação do presidente Temer é ainda mais baixa, muita gente esqueceu que ela chegou a ter apenas 10% de ótimo e bom.
Lula conhece esses números e estava esperando um bom momento e lugar para fazer essa separação de corpos entre ele e a sua sucessora. Escolheu um jornal estrangeiro, para ter menos contestações às suas invenções. Escolheu criticar dois pontos que acha que são antipáticos: o ajuste fiscal e a transferência de dinheiro para empresários. Ajuste, como as dietas, ninguém gosta de fazer. É apenas necessário quando há um descontrole como o criado pela Dilma. Ela recebeu o país com 3,5% do PIB de superávit primário, entregou com 2,4% de déficit e colocou a dívida pública numa rampa na qual ela continua subindo.
Parte desse desarranjo foi consequência das desonerações e subsídios para os empresários. Lula agora diz que foi um erro. Mas foi ele que começou a política junto com o seu ministro Guido Mantega. Dilma manteve o ministro e aprofundou as medidas. Foi no governo Lula que começaram as transferências para o BNDES, a ideia de recriar os campeões nacionais, os subsídios, o uso dos bancos públicos e tudo aquilo que favoreceu empresários em geral, e alguns em particular, como Joesley Batista, Eike Batista e Marcelo Odebrecht.
Temer conspirou abertamente contra Dilma, mas foi ela que criou o ambiente que desestabilizou seu governo, quando provocou um choque inflacionário e uma queda livre do PIB. É difícil um governo sobreviver a essa dupla. Foi eleita mentindo sobre a situação da economia, com a ajuda dos magos em efeitos especiais João Santana e Monica Moura, que montaram um país cenográfico. Quando a verdade apareceu, sua aprovação despencou e sua base se esfarinhou. Foi nesse ambiente que a conspiração de Temer teve espaço. E ocorreu dentro do grupo que estava no poder. A ex-presidente detestava o ex-presidente da Câmara Eduardo Cunha, mas deu a ele acesso direto ao dinheiro do trabalhador, no FI-FGTS.
Geddel Vieira Lima e seus 51 milhões de “dinheiros” não traiu ninguém. Serviu a vários senhores. Esteve sempre perto dos governos, é íntimo do presidente Temer, mas teve cargos poderosos nos governos Dilma e Lula. Foi ministro de Lula e teve uma vice-presidência da Caixa no governo Dilma. As malas e caixas de Geddel apareceram mais de três anos depois de iniciada a mais ampla operação de combate à corrupção. É por isso que o juiz Sérgio Moro diz que não está julgando o problema da altura da saia, mas sim a corrupção. É com criminosos seriais que o país está lidando.
Vários deputados petistas votaram contra Temer afirmando estar fazendo isso porque são contra a reforma da Previdência. O ex-presidente Lula também fez uma reforma da Previdência, que levou inclusive um grupo a sair do partido e formar o PSOL. A ex-presidente Dilma prometeu fazer uma reforma e aprovou mudanças no pagamento das pensões das viúvas jovens. Qualquer um que governar o Brasil terá que enfrentar esse desequilíbrio. O relatório da CPI da Previdência dizendo que o déficit não existe é tão verdadeiro quanto uma nota de três reais.
Muitos dos deputados que foram ao microfone gritar contra a corrupção de Temer sustentam que as acusações feitas ao ex-presidente Lula e outros petistas são falsas e fruto da perseguição que eles sofrem do juiz Sérgio Moro e dos procuradores. A mentira e a manipulação passaram a ser a ordem do dia. São a pós-verdade dos tempos atuais ou a velha mentira conveniente.
(Com Alvaro Gribel, de São Paulo)
Míriam Leitão: O leilão e a alternativa
O governo arrecadou menos do que tinha como meta e vendeu menos áreas do que ofereceu. Mesmo assim, é preciso olhar as alternativas para avaliar o resultado do leilão de ontem do pré-sal. Se o modelo de partilha não tivesse sido flexibilizado, o governo teria vendido metade do que vendeu, porque a Petrobras só quis participar em três dos oito blocos que foram ofertados.
Não foi o “estrondoso sucesso” que o ministro das Minas e Energia disse, mas a avaliação feita por especialistas foi positiva. Sucesso teria sido se o leilão fosse pelo regime de concessão, mas isso não é possível pela lei do pré-sal. De novo, é preciso ponderar a alternativa: continuar não fazendo leilões de petróleo. Se fosse assim, o Brasil permaneceria perdendo a oportunidade de explorar o pré-sal em época em que os combustíveis fósseis já não têm a atratividade que tinham antes.
— A produção não convencional dos Estados Unidos, o shale gás, é um competidor do petróleo. O consumo mais consciente de combustível está reduzindo também as perspectivas de demanda futura — lembra o presidente da Petrobras, Pedro Parente.
Mas mesmo neste contexto, há muito interesse no pré-sal brasileiro, como ele constata em reuniões e conferências internacionais de óleo e gás.
— O pré-sal brasileiro atrai muita atenção global. É hoje uma das três áreas de produção do mundo porque tem um índice grande de acerto nas perfurações. Por isso o custo unitário de extração é baixo. Há muito óleo em cada poço e o risco é baixo — diz Parente.
E era esse interesse que estava contido com a não realização dos leilões do pré-sal, e com a demora de cinco anos que o governo anterior levou para aprovar o marco regulatório. Esse marco estabelecia que a Petrobras tinha que, obrigatoriamente, participar em 30% de cada bloco explorado. Se isso não tivesse sido alterado, em vez de vender seis blocos, o governo conseguiria apenas três, porque foram os únicos nos quais a Petrobras fez ofertas. Hoje a produção do pré-sal é 51% de todo o petróleo produzido pela Petrobras.
No modelo de partilha, o bônus de assinatura é fixo, com pagamento à vista, e as empresas competem entre si oferecendo barris de petróleo à União, com pagamento a prazo, o óleo-lucro. Ganha quem oferece mais óleo, ou seja, com maior ágio sobre o percentual mínimo. O que houve nas rodadas de ontem é que o bônus de assinatura ficou menor do que o previsto, R$ 6,15 bilhões contra R$ 7,75 bi, porque foram menos áreas arrematadas. Mas o ágio sobre o óleo ofertado foi maior, principalmente pela oferta da Petrobras em um dos blocos. Isso quer dizer que o governo receberá menos à vista, e mais, a prazo.
Essa foi a principal diferença entre as duas rodadas que aconteceram ontem, e a primeira, realizada em 2013, com o campo da Libra. Há quatro anos, o governo arrecadou R$ 15 bilhões com bônus de assinatura, à vista, mas não houve ágio sobre o percentual mínimo de petróleo entregue à União. Isso quer dizer que não houve competição entre as empresas. No leilão de ontem, a arrecadação do bônus foi mais baixa, mas o ágio do excedente em óleo ofertado foi de 260%, na 2ª rodada, e de 202%, na 3ª.
— Alíquotas mais elevadas se transformam, no futuro, em mais recursos para o Estado brasileiro — explicou o diretor-geral da ANP, Décio Oddone, em entrevista coletiva.
Essa também é a avaliação do consultor de petróleo John Forman, ex-diretor da ANP, que considera que o leilão foi um sucesso. Ele lembra que as grandes multinacionais do setor declararam esta semana interesse em ampliar investimentos no Brasil, acha que o pré-sal se mostra competitivo mesmo que o petróleo caia para a casa de US$ 35, e diz que as novas regras regulatórias já deram resultados.
A ideia de que o petróleo é um passaporte para o futuro e deveria ser resguardado para ser explorado pela Petrobras — sozinha ou em parceria — era defendida pelos mesmos que permitiram a instalação de um gigantesco esquema de corrupção na companhia. E o futuro será de menos emissões de gases de efeito estufa, portanto, de menos combustíveis fósseis. Neste momento, ainda há demanda por petróleo e é o tempo de ter um sistema flexível e competitivo de exploração e concessão.
Míriam Leitão: Balanço final
Com 251 votos, Temer passou pelo segundo grande teste, como se esperava, mas o preço foi entregar partes relevantes do ajuste fiscal que prometeu fazer. O BC, ao tomar sua decisão ontem de levar os juros para 7,5%, estava diante do fato positivo da queda da inflação. Ao mesmo tempo, está havendo uma piora da situação fiscal provocada pelas concessões feitas por Temer para vencer na Câmara dos Deputados.
OBC reduziu o ritmo da queda dos juros e reduzirá de novo na próxima reunião. Está chegando ao fim o ciclo de afrouxamento monetário. Se a queda da última reunião do ano for de 0,5%, como se depreende do comunicado do Copom, o país terminará 2017 com 7% de juros, a mais baixa taxa de juros da era do real.
O que torna o terreno econômico instável é a reação do presidente Temer às suas crises políticas, porque ele tem minado o terreno que estava tornando a economia mais sólida. Foram muitas as concessões feitas: parcelamento de dívidas rurais, perdão de multas ambientais, desistência de privatizar Congonhas, sanção ao projeto do Refis que foi todo desvirtuado na Câmara, medidas de ajuste fiscal que ficaram paradas na mesa do chefe da Casa Civil. Para um país que tem R$ 159 bilhões de déficit público, essas concessões são desastrosas. O ajuste que já era insuficiente fica ainda mais fraco e incerto.
O governo Temer foi dividido irremediavelmente em duas partes no dia 17 de maio. Até lá, ele tomou algumas decisões acertadas na economia e tinha uma agenda de reformas que dava horizonte de melhora sucessiva no desequilíbrio das contas públicas. A despeito dos erros em várias áreas, os acertos trouxeram a inflação para baixo, elevaram a confiança de empresários e consumidores, derrubaram o dólar e permitiram a queda da taxa de juros em quase sete pontos percentuais.
O dia da revelação da conversa do presidente com o empresário Joesley Batista definiu a sorte do governo Temer. Ele sobreviveu à primeira denúncia, mas se enfraquecendo. E agora voltou a superar o obstáculo, mas ficou ainda mais fraco. Está sem condições de tocar a agenda de reformas. Pode, na melhor das hipóteses, tocar uma agenda de microrreformas que busquem um aumento da eficiência da economia brasileira.
Apesar de cada vez mais fraco, o governo conseguiu com facilidade vencer o obstáculo de ontem. Depois das concessões, das muitas reuniões com os deputados, e a seletiva liberação de emendas, o governo antes das nove da noite já tinha votos suficientes para impedir os 342 votos a favor do prosseguimento da ação contra o presidente.
Mesmo sobrevivendo às duas denúncias, este é um governo que permanecerá instável, impopular e sujeito a revelações inesperadas que o coloquem em cheque. Sua agenda que era de reformas para “pôr o país nos trilhos”, como dizia sua propaganda original, passou a ser atender a pleitos que representam flagrante retrocesso, como a portaria do trabalho escravo. Ele não tem condições de manter essa portaria. A sua suspensão pela ministra Rosa Weber, a declaração da procuradora-geral, Raquel Dodge, de que ela “ofende" a Constituição, toda a reação de repúdio de diversos setores da opinião pública obrigarão o governo a recuar. A declaração do ministro do Trabalho, Ronaldo Nogueira, de que ela não será revogada, foi feita apenas para manter a convicção da bancada ruralista de que seu pedido seria atingido.
Economia e política não estão em compartimentos estanques, ainda que a economia tenha tentado se afastar da política, melhorando a confiança e o nível de atividade. O Banco Central tomou a decisão de reduzir os juros mesmo na atual situação econômica porque a inflação está muito baixa. Nos últimos 12 meses, está abaixo do piso da meta, que é 3%. Mas eles tiveram também que olhar para a área fiscal e constatar que aumentou muito a incerteza sobre a capacidade do governo de entregar o resultado prometido, que é um déficit. A confusão das contas públicas aumentou nos últimos meses. Essa tendência se acentuou nos últimos dias. Desta forma, o presidente Temer, para se manter, está desfazendo o ajuste fiscal que prometeu. Ele cedeu tanto nos últimos dias que os anúncios de medidas de ajuste que fará agora não vão compensar as perdas.
- O Globo